Introdução
Em outubro de 2015, a divulgação dos casos de zika vírus (ZIKV) 1 e sua associação com a microcefalia em crianças tornaram público o sofrimento das famílias a partir das redes sociais, dos programas de rádio e televisão, o que gerou comoção e temor generalizados de contrair o vírus e padecer do sofrimento publicizado. O avanço das investigações científicas aponta para a relação causal entre o ZIKV e a microcefalia em recém-nascidos 1,2, bem como identifica calcificações em lobos cerebrais que podem expressar distonia, espasmos musculares e paralisia cerebral, o que justifica a utilização do termo "síndrome congênita do vírus zika" (SCZ) 3.
O Brasil se destaca como o país com maior prevalência da SCZ no mundo, e mantém a ocorrência de casos até os dias atuais, com um total de 3.577 crianças com SCZ entre 2015 e 2020, das quais 35 foram identificadas apenas em 2020 4, o que evidencia que novas famílias continuam gerando e cuidando de crianças com SCZ. O ZIKV continua circulando em várias regiões do mundo, incluindo o território francês que identificou seu primeiro caso em outubro de 2019. Até julho de 2019, foram identificados casos do ZIKV em 87 países e territórios distribuídos na África, nas Américas, no sul da Ásia Ocidental e na região do Pacífico Ocidental 5.
Nesse contexto, conceber uma criança com microcefalia pode significar, para algumas famílias, o distanciamento da perfeição que almejavam. Além disso, enfrenta-se, após a descoberta da microcefalia, o julgamento do outro, o preconceito estabelecido por aqueles que percebem um corpo defeituoso. Constrói-se, a partir de então, um estigma sobre aquela criança, o que, consequentemente, determinará os modos de conviver no sistema familiar 6.
O aspecto motivador deste estudo reside no sofrimento de mães de crianças com SCZ. Tal fenômeno foi divulgado em meios de comunicação em massa, explorando as limitações do desenvolvimento da criança e as constantes dificuldades encontradas em busca da reabilitação e da estimulação.
Considerando a condição econômica das famílias que necessitam exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) para assistir as necessidades específicas de seus filhos com SCZ, o presente artigo parte do pressuposto de que as mães julgam os serviços que recebem e elaboram expectativas sobre os gestores do SUS que possuem responsabilidade pela assistência integral a seus filhos. Nesse contexto, entendemos gestor como pessoas responsáveis pelo processo de decisão, que assumem cargos de direção, desenvolvem funções de liderança, devem respeitar legislações vigentes e definir metas e prazos para alcançar resultados que sanem os problemas de saúde da população 7. Neste estudo, adotam-se os termos "gestores", "governantes" e "Estado" como sinônimos, pois as participantes dele utilizaram as três denominações indiscriminadamente.
Em face das repercussões da epidemia da SCZ, cabe aos governantes se responsabilizarem pela qualificação dos profissionais, pela disponibilidade de recursos tecnológicos para o diagnóstico e o acompanhamento da criança, assim como pelo essencial cuidado à família e principalmente à mãe que convive com escasso conhecimento sobre o adoecimento e com níveis elevados de sofrimento mental 8.
Diante do contexto apresentado, tem-se como questão orientadora: quais as expectativas das mães de crianças com SCZ sobre as atribuições dos gestores direcionadas à assistência integral da criança? A busca de respostas para tal questão direcionou o estudo para o objetivo de compreender as expectativas das mães de crianças com SCZ sobre as atribuições dos gestores direcionadas à assistência integral à criança.
Materiais e métodos
Estudo qualitativo, a partir de entrevistas em profundidade e desenho estória com tema (D-E), realizado na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), localizada em Feira de Santana, Bahia, Brasil, onde se oferecem cuidados - de fisioterapia, fonoaudiologia e neurologia - direcionados às pessoas com deficiência intelectual e física. Este estudo está organizado conforme critérios da ferramenta Coreq para a qualidade dos registros de estudos qualitativos.
Participantes do estudo
As 10 mães de crianças com SCZ que levavam as crianças para as atividades de reabilitação na Apae foram convidadas e aceitaram participar do estudo. O convite foi realizado pelo pesquisador principal antes do início da atividade de reabilitação destinada à criança, seguindo com a entrevista em profundidade e o D-E.
A quantidade de participantes foi estabelecida a partir do critério de saturação teórico-empírica dos dados, quando todas as possibilidades de novas discussões a partir dos dados coletados se esgotam (9). O alcance da saturação ocorreu à medida que os núcleos de sentidos surgiam após o julgamento individual e confidencial de três pesquisadores. Quando ocorreu convergência entre dois pesquisadores, foi encerrada a coleta de dados. A equipe em questão foi composta de duas pesquisadoras com qualificação de doutorado e um doutorando.
Os critérios de inclusão dos participantes foram ser membro do sistema familiar da criança com SCZ, condição que foi confirmada oralmente pelas participantes do estudo; ser responsável pela criança com SCZ durante o contato com o pesquisador. Não houve critérios de exclusão.
Técnicas de coleta e análise dos dados
O procedimento da entrevista em profundidade, o D-E e o diário de campo foram utilizados como técnicas de coleta de dados realizadas em setembro de 2017. A entrevista e o D-E aconteceram em ambiente privativo da Apae com a presença do primeiro autor, da participante do estudo e da criança com SCZ. Destacamos que a aplicação das técnicas obedeceu à seguinte ordem: entrevista em profundidade e D-E. O diário de campo foi construído em todo o momento, desde a entrada do pesquisador no campo.
O D-E é uma técnica projetiva que facilita a expressão da subjetividade e permite investigar os modos de expressão dos sujeitos. Inicia-se quando o pesquisador oferece uma folha de papel e instrumentos como lápis, hidrocor, caneta e outros para a participante; em seguida, foi solicitado que ela desenhasse qualquer imagem que viesse à sua mente. Essa primeira etapa objetiva o reconhecimento dos materiais e estimula a habilidade para a realização do desenho 10.
A segunda etapa consistiu em ofertar os mesmos materiais para a participante e a realização do seguinte estímulo pelo pesquisador: "desenhe algo que represente conviver com a criança com síndrome congênita do vírus zika". Em seguida, foi solicitado que ela construísse uma estória que envolvesse a imagem desenhada, com início, meio e fim, e, por último, que a participante inserisse um título para essa construção.
Todas as técnicas de coleta de dados foram aplicadas pelo pesquisador responsável, entre os meses de outubro e novembro de 2017, gravadas e transcritas posteriormente. A entrevista em profundidade e o D-E foram aplicados em apenas um encontro com duração média de 37 minutos.
Para as narrativas transcritas e aquelas escritas nos desenhos, utilizamos a análise de conteúdo temática por reunir técnicas que contribuem para organizar e facilitar a análise dos dados 11. Por sua vez, a análise dos D-E obedeceram ao fluxo de observação minuciosa dos desenhos; agrupamento destes por semelhanças gráficas e/ou temáticas; leitura das histórias escritas e identificação de unidades temáticas (n = 8); seleção das relações entre desenhos e estórias, categorizando-as (n = 2); análise e interpretação das categorias criadas 12.
Para garantir o anonimato das participantes, as mulheres escolheram nomes fictícios para representá-las, iniciando a coleta dos dados somente após a aprovação do estudo pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana, com o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética 67435817.0.0000.0053 e o Parecer 2.178.649.
Resultados
A maioria das participantes do estudo estava na faixa etária entre 26 e 42 anos de idade, 50 % concluíram o ensino médio e se declararam católicas e solteiras, enquanto 80 % eram donas de casa. A íntegra da caracterização sociodemográfica das participantes compõe a Tabela 1.
* A renda familiar é composta principalmente pelo Programa de Benefício Social Bolsa Família com média de R$ 175,00 reais mensais (USD 52,87) entre as participantes mais o valor mensal de R$ 937,00 reais (USD 278,04) oriundos do Benefício de Prestação Continuada, ambos são pagos pelo Governo Federal do Brasil. ** USD = dólar americano. Nota: para a conversão do real a dólar, foi considerado o valor de USD 3,31 em vigência em setembro de 2017 13.
Fonte: dados da pesquisa.
As mães de crianças com SCZ percebem descaso e abandono por parte dos gestores, convivem com a incerteza do desenvolvimento infantil e identificam algumas necessidades de melhoria na assistência para a criança e sua família. Essas mulheres responsabilizam os gestores por diversas atribuições, desde a qualificação dos trabalhadores de saúde até o fortalecimento da intersetorialidade entre a saúde, a educação e a assistência social.
O Quadro 1 ilustra a síntese das expectativas das mães de crianças com SCZ organizadas em duas categorias: "Expectativas das mães quanto à assistência à saúde" e "Expectativas das mães quanto à assistência social e educação".
Abreviaturas: UT: Unidade temática; BPC: Benefício de Prestação Continuada.
Fonte: elaboração dos autores.
Expectativas das mães quanto à assistência à saúde
Na ótica das mães, as crianças necessitam do cuidado direto e uma assistência que contemple equipamentos e técnicas específicas. Elas concebem o pensamento de quanto mais intervenções melhor será o desenvolvimento da criança, nesse sentido Brenda relata:
[...] porque o estímulo a gente já faz em casa, a gente já dá aquele estímulo, mas quanto mais estímulo ele [criança com SCZ] tiver pela fisioterapia, fonoaudiologia, melhor. [...] (Brenda, mãe)
Brenda reproduz o capital social de valorização dos cuidados profissionais, compreendendo que o estímulo realizado pelos familiares, no ambiente doméstico, não possui a mesma eficiência que aqueles desempenhados por profissionais de saúde, portanto, requerem mais sessões de fisioterapia e fonoaudiologia por semana. Além da quantidade de sessões, as mães reconhecem a terapia ocupacional, a fisioterapia e a fonoaudiologia como categorias profissionais essenciais para a estimulação da criança, justificando o deslocamento intermunicipal.
[...] porque a gente fica saindo de lá [município de residência] para cá [município onde a reabilitação é realizada], se tivesse fono[audiologista], fisio[terapeuta] e terapeuta ocupacional lá, já ajudava bastante, porque eu venho mais para cá por causa de fono[audiologista] e terapeuta ocupacional. (Bianca, mãe)
Contudo, a acessibilidade a outras categorias profissionais poderia produzir significado para as mães, permitindo-as identificar e relatar como relevantes para a reabilitação da criança. Além de citar a relevância das três categorias profissionais, Brenda enfatiza as suas dificuldades com a Rede de Atenção à Saúde (RAS) municipal - conjunto de serviços de saúde municipais que se comunicam e compartilham casos de pacientes em prol do atendimento integral. A ausência de fonoaudiologista e terapeuta ocupacional no seu município de residência exige que mãe e filho se desloquem por um tempo de 58 minutos, duas vezes por semana, até o município vizinho, o qual dispõe desse tipo de assistência.
Ademais, as mulheres entendem que outras estratégias terapêuticas existem e poderiam ser ofertadas à criança, dependendo unicamente da sensibilidade e da vontade do gestor. Nesse sentido, algumas mães entendem que a ecoterapia, a hidroterapia e a fisioterapia avançada deveriam ser ofertadas para as crianças.
Eu só faço fisioterapia, eu queria fazer ecoterapia, fazer hidroterapia. (Drica, mãe)
Se houver outros tratamentos como passou na televisão, um tipo de fisioterapia com elástico. É muito bom estar melhorando. (Carla, mãe)
Na medida em que as mães trocam saberes com os profissionais, acessam informações nos grupos de ajuda ou, por meio das redes sociais, elas percebem que seus filhos dependem e dependerão de uma complexa rede de cuidados e acesso a recursos, muitas vezes indisponíveis nos municípios que vivem. Assim, elas passam a reivindicar e esperam que os gestores atendam às necessidades dos seus filhos:
Deveria fazer mais centro de reabilitação, mais profissionais capacitados para trabalhar nessa parte de desenvolvimento. (Brenda, mãe)
O relato de Brenda evidencia que não apenas equipamentos, máquinas, medicamentos e centros de reabilitação fazem parte das expectativas das mães. Associado a isso, elas também esperam que os gestores invistam na qualificação de todos os trabalhadores da saúde.
Os diversos deslocamentos intermunicipais que configuram o itinerário terapêutico de mães e crianças foram apontados como a principal dificuldade vivenciada. O D-E de Bianca (Figura 1) ilustra tal afirmativa ao desenhar seu percurso longínquo até o hospital e descrever a seguinte estória:
Ser mãe de criança com microcefalia é viver na estrada todos os dias, mas acima de tudo o amor e a fé, pois sem Cristo não somos nada. (Bianca, mãe)
Fonte: desenho elaborado por Bianca, 22 anos, mãe de Francisco, 1 ano e 8 meses. Descobriram a microcefalia com 2 meses de vida da criança.
Entre as expectativas, as mães requerem que os gestores definam e qualifiquem uma RAS municipal, de modo que a presença dos profissionais de saúde no município de residência evite as viagens constantes para outras localidades. A expressão "viver na estrada todos os dias" sintetiza o cotidiano de esperar pelo veículo, de responsabilidade dos gestores municipais, que realiza o transporte da mãe e do filho, vivenciando ansiedade, pois esse deslocamento pode ocorrer ou ser suspenso sem aviso-prévio, causando a ausência na terapia agendada. Significa ainda passar horas dentro de um veículo, com a criança ao colo, choro frequente, dividindo alguns centímetros de espaço com mais duas mães e duas crianças com microcefalia, além das malas que transportam os alimentos e os produtos de higiene da criança, não sendo cogitada a possibilidade de esses objetos estarem no bagageiro do veículo, devido à imprevisibilidade do seu uso.
O desenho de Bianca se destaca também pela ausência de outros membros familiares, ora representando o seu protagonismo no cuidado de Francisco, ora ilustrando a sobrecarga de cuidado familiar. Ademais, os corações simbolizam o amor e o afeto entre mãe e filho, bem como as palavras "Cristo", "Deus" e "fé" podem significar aspectos importantes para o cuidado da criança.
Já Romilda resume o seu cotidiano:
Hoje eu só cuido das coisas da casa e da minha filha, mas em primeiro lugar sempre ela [criança com SCZ]. Não sobra tempo para fazer outras coisas, porque estou sempre em Salvador, o tratamento é sempre fora da minha cidade. (Romilda, mãe)
A mãe cita que o tratamento da sua filha é sempre em Salvador (150 quilômetros de distância), o que exige que se desloque por 2h30min do município de residência.
Para Bianca, o direito ao transporte para viabilizar o itinerário terapêutico da mãe e da criança é a atribuição mínima que se espera dos gestores em obediência à legislação brasileira do Tratamento Fora do Domicílio, após esgotadas todas as possibilidades de terapêutica no município de residência. Entretanto, outras ações relevantes também são esperadas:
[...] ajuda do prefeito mesmo só do transporte, porque é obrigação dele, mas não está ajudando em coisa alguma, nada, nem em remédio, nem em fralda, em nada. (Bianca, mãe)
Bianca atribui suas dificuldades de acesso ao desinteresse do gestor municipal por seu filho ser o único com SCZ no município. Enquanto Drica acrescenta que a dificuldade também está em residir no interior do estado e não contar com os mesmos recursos assistenciais disponíveis para as crianças residentes nas capitais.
Se lá [município de residência] tivesse até mais criança com microcefalia, acho que seria melhor, como é eu sozinha, eles [gestores] dão uma importância mínima [...]. (Bianca, mãe)
Eu queria ter mais tratamento [...], tudo isso que as outras crianças que mora na capital têm e os nossos não têm. (Drica, mãe)
De acordo com as expectativas das mães, os gestores deveriam se responsabilizar pela definição da RAS municipal, incluindo a criação de centros de reabilitação, de modo a superar as dificuldades com o itinerário intermunicipal.
Expectativas das mães quanto à assistência social e à educação
Ao tratarem do direito à saúde, as mães afirmam que os gestores poderiam assegurar outros recursos como a concessão de órteses, próteses, fraldas, medicamentos, cadeira de rodas e de banho. Ao perceberem que a gestão municipal não oferece a assistência necessária para seu filho, Paula e sua família buscam outros meios de apoio financeiro para a aquisição de produtos e serviços essenciais para a criança, devido às dificuldades financeiras da família, muitas vezes ocasionadas pelo desemprego das mães ou pelo convívio com menos de meio salário-mínimo, corroborando com os dados deste estudo.
Ela [criança com microcefalia] precisa de órtese pra mão e pés, cadeira de rodas, cadeira de banho, e nada disso é fácil a gente conseguir. É uma burocracia, um problema terrível, poderíamos conseguir fraldas, remédios, tudo de graça, mas é tudo comprado. A maioria do remédio dela, tudo comprado. Fralda dela comprado, leite comprado, então, eu acho que a gente deveria ter uma força maior desse lado aí. (Paula, mãe)
Em face da complexidade das necessidades de saúde da criança, com repercussão no orçamento familiar, é relevante destacar a preocupação das mães com o deferimento da concessão do BPC1. Para elas, esse é um processo moroso, burocrático e injusto. Na narrativa a seguir, a mãe destaca que a concessão do BPC não deveria levar em conta a renda familiar, pois, independentemente da renda, o tratamento, a alimentação, o deslocamento e outros gastos em benefício da criança são iguais ou superiores ao valor recebido através do BPC.
[...] porque a mãe trabalha e eles [crianças com microcefalia] têm direito ao dinheiro deles, por que não dá? Só porque a mãe trabalha? Tinha que ter o dinheiro dela [criança com microcefalia] como obrigatório, porque eles têm o direito a ter. O dinheiro da mãe não dá pra tudo, porque se eu tivesse de pagar isso aí tudo que eu faço, não tinha condições de cuidar dela. (Júlia, mãe)
Assim, as mães requerem agilidade no processo de concessão do BPC, do mesmo modo que apontam para a necessidade da revisão das condicionalidades como o limite da renda familiar.
Para os próximos anos, as mães prospectam dificuldades com a inserção escolar das crianças, sentem-se inseguras diante da pedagogia tradicional de ensino-aprendizagem utilizada na maioria das escolas brasileiras e exigem dos gestores a construção de escolas específicas para as crianças com microcefalia:
Eles [gestores] deviam criar escolas para os meninos que tem micro. (Fernanda, mãe)
A expectativa de Fernanda pode residir no uso de pedagogias inclusivas nas escolas públicas para melhor socialização das crianças com SCZ com outras crianças, resultando no enfrentamento do estigma e dos comportamentos discriminatórios.
Diante das dificuldades vivenciadas e da restrição de acesso a algumas terapêuticas, as mães se sentem abandonadas, com poucos recursos disponíveis para a reabilitação e o constante desinteresse dos gestores em qualificar o cuidado à mãe e às crianças. As mães clamam por bens materiais, construindo um significado de assistência, doação direta e ajuda que é atribuída ao gestor.
Espero que a prefeitura, o estado, porque eu acho assim que eles tão dando muito pouco caso, eles não tão ajudando a gente no que deveria ajudar. (Brenda, mãe)
Eu queria mais atenção dos governantes em relação essas coisas de microcefalia, o que fosse necessário pra ajudar eles assim a estabelecer, o que fosse necessário que eles [gestores] dessem, porque eu não sei. (Maria, mãe)
Os relatos de Brenda e Maria convergem acerca das atribuições dos gestores, referindo que todo tipo de assistência deve ser ofertado, a fim de garantir condições equitativas. Com esse cenário, acreditam que as crianças com SCZ podem viver com capacidades funcionais semelhantes a outras crianças não deficientes, para isso devem explorar recursos assistenciais, como próteses.
Maria acredita que são inúmeras as necessidades de saúde das crianças com SCZ, dificultando o reconhecimento do tratamento necessário para o seu filho. Desse modo, Maria atribui aos próprios gestores a tarefa de reconhecer as necessidades de saúde do seu filho e implantar estratégias de cuidado essenciais para as crianças, ainda que ela não saiba que estratégias são essas.
Cabe ainda qualificar os profissionais e elevar o número de sessões de reabilitação semanal, conduzidas, principalmente, com profissionais de terapia ocupacional, fonoaudiologia e fisioterapia. Somam-se às atribuições citadas a agilidade e a rapidez na concessão do BPC, a garantia de acesso a equipamentos, insumos e novas tecnologias que potencializem o cuidado às crianças, as quais são tão importantes quanto o planejamento e o preparo do setor educação para uma eficiente inclusão escolar das crianças com SCZ.
Discussão
As expectativas das mães de crianças com SCZ sinalizam para as carências no campo da saúde, da educação e da assistência social. O direito à saúde, à educação e à assistência social deve ser assegurado pelo Estado brasileiro, representado por um governo escolhido pelo povo, que incumbe ofertar serviços para garantir à sociedade viver com dignidade 15.
Ao conviver com um Estado que não atende às suas expectativas, as mães dispensam todos os esforços para melhor cuidar da criança, elas militam, enfrentam e vão à "guerra" contra pessoas ou instituições que dificultam o desenvolvimento da sua criança e o bem-estar da sua família 16. Para isso, reorganizam-se com o envolvimento de vários membros familiares, assumindo papéis diversos 17; as mães participam de grupos coletivos em defesa das famílias e das crianças, abandonam interesses pessoais em lazer, estética, diversão e, em muitos casos, o próprio trabalho 18, percorrem itinerários terapêuticos complexos com a criança no colo e tempo de deslocamento, por vezes, superior ao tempo de duração da sessão de reabilitação 19. Tais condições agravam o adoecimento crônico das mães 20 e permitem o reconhecimento de lacunas, limites e negação de direitos, responsabilizando os gestores por essas experiências negativas.
A maioria das famílias deste estudo convive com menos de USD 445,39, residindo entre quatro e seis moradores, resultando em renda por pessoa entre USD 74,23 e USD 111,35. A renda familiar indica a camada social de origem dessas famílias 21, podendo ser rebaixada diante da necessidade das mães de desvinculação de trabalho/empregos para se dedicarem integralmente ao cuidado da criança, além da ruptura da relação conjugal e consequente ausência da participação do genitor no provimento de condições materiais para a manutenção da família 18,19.
O conjunto de alterações ocorridas no contexto familiar com a chegada da criança com SCZ inclui elevação dos custos, diminuição da renda, culpabilização da mulher pelo adoecimento 22, alteração do papel de cônjuge e parceira sexual pelo ser mãe em tempo integral e a saída constante do ambiente domiciliar para as consultas e as terapias 23,24. Esse cenário tende a contrariar as expectativas de gênero sobre as mães, ferir os ideais de masculinidade hegemônica e ampliar a vulnerabilidade delas à violência de gênero 24.
As mães requerem os benefícios das tecnologias duras para a estimulação das suas crianças, que, por sua vez, estão centralizadas em grandes regiões de saúde, exigem qualificação profissional para o manuseio, estão condicionadas a trâmites burocráticos de regulação da RAS2 e à demanda de acesso, que é superior à oferta do serviço 24,25.
A dificuldade de acesso a alguns serviços de saúde apontada pelas mães pode ser atenuada pela resposta efetiva dos gestores em face dos problemas emergentes derivados da pandemia pelo ZIKV, no sentido de oferecer não somente recursos materiais, mas também a coordenação dos serviços, o aprimoramento da governança, o planejamento e a programação, o desenvolvimento de redes articuladas entre profissionais de saúde, assistência social e educação, a qualificação profissional e exercícios de aperfeiçoamento da acessibilidade nos estabelecimentos de saúde, incluindo a viabilidade de novas terapêuticas 25. Entretanto, as mães também denunciam a naturalização das dificuldades encontradas nos serviços de saúde diante de uma epidemia, pois, ainda que a RAS seja eficiente, com profissionais qualificados, e a situação econômica do país seja favorável, os gestores se pautam na alta demanda das necessidades de saúde para justificar as restrições do acesso.
Estudos 24,27 que avaliaram o cenário da epidemia da SCZ no Brasil convergem com as expectativas das mães citadas neste artigo, o que evidencia a desorganização e as incertezas dos fluxos das RAS 24,25, o pouco preparo técnico-científico dos profissionais de saúde em assistir crianças com anomalia e suas mães 28, e a hipossuficiência das informações oferecidas por profissionais 27,29, ampliando as desconfianças e as inseguranças 30 vividas pelas mães. No entanto, o aprendizado e as descobertas científicas em torno do comportamento e da evolução das crianças resultante do trabalho do terapeuta ocupacional, do fisioterapeuta e do fonoaudiólogo 25) são partilhados nos espaços que as mães e as crianças frequentam e alimentam as expectativas daquelas quanto ao futuro dos filhos.
As respostas favoráveis correspondentes às expectativas podem ocorrer quando as decisões dos gestores se dirigirem às necessidades dos usuários e não somente para funções burocráticas da RAS. A RAS puramente burocrática minimiza a criatividade dos profissionais de saúde para a solução de problemas, além de constituir fluxos de acesso seletivo e excludente 24,29. Em consonância, governantes de alguns países da América Latina optam por constituir a RAS de acordo com sua ideologia moral, limitando a oferta de serviços que assegurem a saúde sexual e reprodutiva das mulheres 31,32.
Ao transitarem nos serviços, as mães aprendem que seus filhos devem ser estimulados o mais precocemente possível e que qualquer ato de falar, brincar e manusear resultará em benefícios para a criança 29. Do mesmo modo, é sabido que o uso de órteses, próteses, cadeira de rodas e outros equipamentos são essenciais para a acessibilidade e o desenvolvimento da criança, e, na direção de prover tal cuidado e recursos, essas mães se adaptam, modelam cuidados próprios e assumem o protagonismo do cuidado à criança 17. Por sua vez, a sua concessão pelo SUS requer um trâmite burocrático excessivo e um longo investimento de tempo por parte das famílias, que, às vezes, se veem compelidas a recorrer à judicialização.
Entre as expectativas das mães, encontra-se a de poder realizar os cuidados do filho no município em que residem. Isso revela a desorganização dos fluxos e a exploração da referência e da contrarreferência com a transferência de responsabilidade da gestão do município de origem da díade mãe-criança com SCZ, e que resulta em atenção focalizada nos déficits da criança 24,33 e na ausência de cuidado para com as mães 28.
Em meio do contexto de vida das famílias de crianças com SCZ, há de se destacar a intensificação das necessidades de saúde das mães durante a pandemia ocasionada pela covid-19. As mães apresentaram piora dos sinais de ansiedade e depressão, tentaram substituir os papéis de professora e profissional reabilitadora dentro do ambiente doméstico, o que repercutiu no aumento dos níveis de sobrecarga do cuidado 34.
Associado a esse contexto, as mães se preocupam com a inserção escolar da criança, prevendo dificuldades de convivência da criança com outras pessoas que não fazem parte do seu ciclo familiar, além do restrito domínio de práticas pedagógicas inclusivas e equivalentes pelos professores, de modo a favorecer a aprendizagem dessas crianças. Importa que a escola disponha de uma ambiência que inclua a participação dos pais e dos familiares, acompanhando todo o processo de aprendizagem da criança 35.
Desenvolver as potencialidades humanas de crianças com deficiência requer a interação entre atores sociais desde o microssistema - incluindo professores, familiares e crianças, responsáveis pelo diálogo e pela construção do ambiente favorável à aprendizagem - até o macrossistema, que se refere à predominância da ideologia e da cultura institucional do ensino, enfatizando as crenças e os valores da sociedade 36. Nesse sentido, urge fomentar o diálogo entre profissionais do campo da saúde e da educação para a troca de informações sobre as limitações de desenvolvimento da criança, a partilha de reflexões quanto ao enfrentamento do estigma e dos preconceitos vivenciados por criança e familiares com vistas a potencializar a criação de oportunidades à sua inclusão nos espaços sociais, além de valorizar a autonomia dos familiares 37.
O uso do BPC para algumas famílias significa a única renda financeira, ou seja, é a possibilidade de adquirir recursos para subsistir, a exemplo de alimentos, medicamentos, investir em condições de moradia e de percorrer o itinerário terapêutico 14. Ademais, o BPC, assim como o direito a órteses, próteses e recursos para acessibilidade, pode viabilizar a independência social e financeira das mães e crianças, ampliando as noções de autonomia e cidadania, bem como protegê-los de situações de vulnerabilidade social como pobreza 14. Desse modo, cabe aos gestores reconhecer a importância de agilizar o processo de concessão do BPC, visto que os custos para a realização de exames complementares, consultas com profissionais de saúde e início de sessões de cuidado de fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional para a estimulação precoce são buscados pela família imediatamente após os profissionais comunicarem a suspeita da SCZ.
A possibilidade de os gestores assegurarem a assistência social favorece a diminuição das desigualdades sociais, protege os direitos humanos fundamentais e promove a justiça social 38, além de respeitar a Constituição Federal do Brasil de 1988 quanto ao capítulo da seguridade social 39. Ao campo da assistência social, cabe atuar além da concessão do benefício financeiro, colaborando para a construção de uma rede de proteção à saúde da mulher-mãe, adotando estratégias e táticas de enfrentamento do estigma e da violência de gênero, apoiando a judicialização de pleitos de interesse delas e valorizando os projetos de vida pessoal e profissional.
Como limitação deste estudo, apontamos para o fato de a coleta de dados ter ocorrido no espaço da Apae, o que pode ter interferido e aumentado a censura das falas das participantes sobre a responsabilização dos gestores quanto à assistência a ser dispensada aos seus filhos, devido à assimetria de poder existente nas relações entre prestadores de serviços e usuários.
Conclusões
As expectativas das mães podem ser supridas a partir de investimentos no campo da saúde, da educação e da assistência social da rede própria municipal. Desconsiderar as expectativas das mães significa sobrecarregá-las de serviços que seriam de responsabilidade legal do Estado, o que leva ao seu adoecimento, além de restringir o desenvolvimento da criança e elevar os casos de judicialização da saúde.
Para a construção de uma rede de proteção à saúde e à vida de mãe-criança com SCZ, recomenda-se que gestores levem em consideração as diretrizes da Política Nacional de Humanização, alinhando estratégias intersetoriais entre o campo da saúde, da educação e da assistência social. Ademais, cabe incluir a participação da mãe-criança-família na formulação de programas de cuidado e na tomada de decisões.
Contudo, enquanto a voz das mães não sensibiliza e alcança os gestores para as mudanças pretendidas, todos aqueles que cuidam diretamente da mãe-criança com SCZ podem exercer a escuta empática, elevar a autoestima, motivar as mudanças de hábitos de vida e encorajar as mães a reivindicar e exercer seus direitos. É oportuno estimular o fortalecimento das mães enquanto sujeitos coletivos, envolvendo-as em grupos de convivência composto por diversos atores sociais a fim de colocar as necessidades desse grupo vulnerável em pauta na agenda política e evitar que outras demandas sanitárias emergentes as coloquem em situação de invisibilidade.