Introdução
O que explica a América Latina estar na periferia do sistema-mundo moderno desde seu processo de formação no longo século XVI e o Leste Asiático estar, atualmente, deslocando-se em direção ao centro da acumulação mundial capitalista, apesar de sua incorporação periférica no século XIX?
Em geral, as respostas para esta pergunta são buscadas nas histórias individuais de cada país a partir de perspectivas eurocentradas.2 Caminhando em outra direção, buscamos demonstrar que a história do capitalismo não é a mesma em todos os lugares e que a dimensão regional constitui parte explicativa da divergente trajetória do Leste da Ásia e da América Latina na atual conjuntura do sistema-mundo moderno. Para tanto, em três temporalidades - 1500-1850, 1985-1980 e 1980-2020 -, serão comparados três vetores de todo o processo de ascensão de um país ou região na hierarquia mundial do poder e da riqueza: Estado, acumulação de capital e capacidades tecnológicas.
A escolha desses três vetores se justifica porque, na economia-mundo capitalista, a formação do Estado e a acumulação de capital são processos interdependentes. De fato, o Estado nacional não teria se firmado como unidade política da era moderna sem os recursos proporcionados pela acumulação incessante de pital, quer dizer, o capitalismo, o qual não teria sido possível sem o apoio do Estado.3 Quanto às capacidades tecnológicas, é quase im-possível superestimar sua relevância para a acumulação incessante de capital. Em 1848, no Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels já afirmavam que a burguesia não poderia existir sem revolucionar continuamente o modo de produção, e Joseph Schumpeter considerou que a inovação seria o fundamento da dinâmica capitalista.4 Nessa ordem de ideias, o desenvolvimento econômico é um processo que envolve Estados capazes de fomentar a acumulação de capital em sua jurisdição, o que, por sua vez, exige agentes capitalistas inovadores.
Para analisar as semelhanças e diferenças no desenvolvimento desses três vetores no Leste Asiático e na América Latina, adotamos uma periodização que, embora inspirada em Arrighi, Hamashita e Selden (2003), procura resgatar as concepções de longa duração e de conjuntura longa de Fernand Braudel (2013). Na primeira periodização, 1500-1850, são avaliadas as consequências para a América Latina de sua fusão com a economia-mundo capitalista desde o surgimento de ambas as entidades até o surgimento dos Estados nacionais, quando a indústria se consolidava como a principal fonte de acumulação de capital. Também são destacadas as consequências de, nesses três séculos e meio, a história do Leste da Ásia ter prosseguido com pouquíssima influência da economia-mundo capitalista. A segunda periodização, 1850-1980, durante a qual o Leste da Ásia passou a integrar a economia-mundo capitalista, permite avaliar em que medida a trajetória dessa região foi afetada pelas transformações da economia-mundo capitalista sob as hegemonias britânica e estadunidense. Por fim, a conjuntura de 1980 a 2020, que tem como peculiaridades a fase financeira do ciclo sistêmico de acumulação estadunidense e o declínio hegemônico dos Estados Unidos, permite demonstrar que o presente tem uma longa história e que, possivelmente, ambas as regiões estejam diante de longas continuidades que não impediram grandes mudanças.
Para tanto, apoiamos nossa análise no método comparativo, pois, como observa Peter Burke (2002, 40), “é apenas graças à comparação que conseguimos ver o que não está lá; em outras palavras, entender a importância de uma ausência específica”. Além disso, o método comparativo permite, como observa Wong (1997), formular explicações em termos de longos processos de mudança e continuidade, evitando narrativas ou explicações eurocêntricas. Ao estabelecer similaridades e diferenças entre os processos de desenvolvimento do Leste Asiático e da América Latina, a comparação cumpre a função metodológica analítica de identificar padrões de desenvolvimento com base em características regionais. Portanto, a comparação é empregada num contexto abrangente.5
Mais especificamente, são combinadas duas estratégias de comparação. Através da variation-finding, que “supõe que se estabeleça um princípio de variação no caráter ou intensidade de um fenômeno examinando diferenças sistemáticas entre casos” (Tilly 1984, 82), buscamos identificar, no fenômeno do desenvolvimento, particularidades regionais que afetam de maneiras distintas o Estado, a acumulação de capital e a capacidade tecnológica na América Latina e no Leste Asiático. Ao priorizarmos as formas de organização do poder (Estado), da produção material da vida (economia) e a capacidade do domínio sobre a natureza (tecnologia), buscamos encontrar elementos equivalentes em sociedades culturalmente muito distintas. Além disso, com base na encompasing comparison, que “coloca diferentes casos em vários locais dentro do mesmo sistema, explicando suas características em função de suas variadas relações com o sistema como um todo” (Tilly 1984, 83), procuramos avaliar em que medida tais particularidades regionais da América Latina e do Leste da Ásia favorecem ou restringem a construção de competitividade de ambas as regiões a partir de suas relações históricas com a economia-mundo capitalista em três temporalidades: 1500-1850, 1850-1980 e 1980-2020.
Descrevendo e comparando esses três vetores nas duas regiões nas três temporalidades, argumentamos que a atual inserção competitiva do Leste Asiático tem raízes em um padrão de integração regional, o sistema sinocêntrico de comércio e tributos, cuja origem é anterior à formação da economia-mundo capitalista. Um padrão de integração regional semelhante nunca foi observado na América Latina. Assim, sugerimos que, por um lado, a histórica autonomia asiática e, por outro, a subordinação da América Latina no processo de formação e de desenvolvimento da economia-mundo capitalista acabaram estabelecendo as bases para a recente divergência nas respectivas trajetórias.
Para dar conta dessa tarefa, o artigo está dividido em duas seções, além desta introdução e das considerações finais. Na seção 1, discutimos brevemente a apropriação do enfoque regional pela perspectiva dos sistemas-mundo como estratégia de superação do nacionalismo metodológico no estudo das trajetórias de desenvolvimento. Na seção 2, comparamos as formas de integração da América Latina e do Leste Asiático à economia-mundo capitalista nos três períodos, levando em consideração a relação entre Estado, acumulação de capital e capacidade tecnológica em cada região. Por fim, nas considerações finais, sublinhamos que a integração regional em termos de interdependências e interações político-econômicas parece estar na raiz da atual competitividade do Leste Asiático, o que permite que seus países avancem nas hierarquias mundiais de riqueza e poder, enquanto, devido às características da América Latina como região, os países que a compõem se fixaram, desde o século XVI, na periferia da economia-mundo capitalista.
1. O enfoque regional e a perspectiva dos sistemas-mundo
O enfoque regional ganhou destaque após o final da Segunda Guerra Mundial, a partir da temática do crescimento desigual e das consequentes desigualdades socioespaciais envolvidas no processo de reconstrução dos países europeus. Entre as principais contribuições, destacam-se Perroux (1950), Myrdal (1965), Hirschman (1958) e Lipietz (1988). Na América Latina, essa temática reverberou sobretudo nos estudos da Comissão Econômica para o Desenvolvimento da América Latina e Caribe (Cepal) que não apenas concebeu o esquema centro-periferia a partir do trabalho de Prebisch (1986 [1949]), como também buscou elaborar tipologias dos padrões de desenvolvimento a partir de uma perspectiva sistêmico-mundial, como observado em Sunkel e Paz (1970). Visando complementar esse quadro analítico, do ponto de vista dos sistemas de dominação, destacam-se as situações de dependência de Cardoso e Faletto (1984 [1970]), e, do ponto de vista da dinâmica da renda, os aportes de Celso Furtado (2003 [1959]; 2007 [1969]). As contribuições de Moraes (2000) e Becker e Egler (2003) buscam aproximar o enfoque regional da análise dos sistemas-mundo com o intuito de explicar a formação do Brasil nos marcos da economia-mundo capitalista, porém esses autores não utilizam esse enfoque para comparar diferentes processos de regionalização.
Nesta seção, aproximamos o enfoque regional da análise dos sistemas-mundo, recuperando os argumentos de autores como Arrighi, Hamashita e Selden (2003), os quais trilharam o caminho aberto por Cumings (1984) sobre as vantagens de se adotar um enfoque regional no estudo da industrialização do Leste da Ásia:
Modernization theory and these basic differences have reinforced a tendency, at least since 1945, to view each country apart from the others and to examine single-country trajectories. […] Country-by-country approach is incapable of accounting for the remarkably similar trajectories of Korea and Taiwan. (Cumings 1984, 3, grifos nossos)
Como alternativa, o autor propôs ampliar a unidade de análise para compreender a verdadeira dimensão do crescimento: “an understanding of the Northeast Asian political economy can only emerge from an approach that posits the systemic interaction of each country with the others, and of the region with the world at large” (Cumings 1984, 4, grifos nossos).
Além de adotarem a perspectiva regional para estudar os países do Leste da Ásia, Arrighi, Hamashita e Selden (2003) consideraram ampliar o escopo temporal para a formação dessa região no século XVI. Dessa perspectiva, o dinamismo excepcional da região do Leste Asiático no final do século XX deve ser entendido como o resultado de um único processo que opera no nível regional, e não como a soma de processos nacionais separados. Outro exemplo de adoção do enfoque regional para o entendimento do Leste Asiático é o trabalho de So e Chiu (1995), que recusam tão enfaticamente o nacionalismo metodológico nos estudos sobre o desenvolvimento que sequer consideram necessário justificar a perspectiva regional.
Nessa linha argumentativa, a região pode ser considerada uma instância intermediária entre a nação e o sistema-mundo, na medida em que “by adding an additional analytical layer, the regional perspective enables world-systemists to study the region specificity of the world-systemic processes as well as the region generality of the national processes” (Ikeda 1996, 95).
O conceito de região, de modo ordinário, refere-se a um território que apresenta características específicas. Em muitos casos, refere-se a uma unidade taxonômica, como na região físico-geográfica. Nas ciências sociais, predomina o critério político-cultural, que segmenta o território em unidades administrativas ou identidades culturais. Arrighi, Hamashita e Selden (2003), por sua vez, introduzem o conceito de “região mundo, delimitada espacialmente” com base nas interdependências e interações político-econômicas geradas pelos fluxos necessários à produção e reprodução da vida, independentes das diferentes características culturais ou de identidade que possam existir nesse mesmo espaço. Se o termo “região” denota uma certa parte do globo, ao adicionar o qualificativo “mundo”, os autores querem enfatizar que essa região é “a (relatively) autonomous and organic entity encompassing a multiplicity of interrelated material cultures and polities” (Arrighi, Hamashita e Selden 2003, 5, grifos nossos).
Nesse sentido, o Leste Asiático pode ser caracterizado como região-mundo, primeiro porque, até o início do século XIX, o Nordeste, o interior e o sudeste asiáticos constituíam uma única região na qual as interações dentro e entre as sub-regiões eram mais relevantes para os processos de desenvolvimento do que as conexões com outras regiões do mundo. Em segundo lugar, porque a unidade político-econômica resultante dessas interações estava, para todos os efeitos, fora da economia-mundo europeia que emergiu no século XVI. Arrighi, Hamashita e Selden (2003) distinguem três fases no processo de regionalização do Leste da Ásia, a saber: uma de 500 anos, durante a qual o Leste da Ásia se consolidou como região-mundo, quando um sistema sinocêntrico de comércio e tributos (Arrighi 2008) com fortes interações econômicas entre os países da região6 foi estabelecido; nos quase 150 anos entre 1820-1945, sobressaíram as interações inter-regionais como resultado da incorporação do Leste Asiático à economia-mundo capitalista, a qual até provocou algum grau de desregionalização; na temporalidade mais curta, aquela dos 50 anos entre 1945 e 1995, quando a integração regional voltou a ganhar força, em parte como consequência das conexões da região com a economia-mundo capitalista.
Diferentemente, no espaço latino-americano, devemos assinalar que o nome “América Latina” é tão popular que não nos perguntamos sobre a fundamentação empírica e teórica da realidade que ele designa.7 O fato de ser considerada um todo orgânico por instituições internacionais (Cepal, Organização das Nações Unidas, Banco Mundial etc.) e de ser bem-definida geograficamente, não garante que seja uma região em termos empíricos. Se, como fazem Arrighi, Hamashita e Selden (2003), a região é definida a partir das interações e interdependências entre “governmental and business organizations”, e não em aspectos comuns (commonalities), as evidências indicam que a América Latina não se caracteriza como uma região, porque as interações dentro e entre os países latino-americanos não foram tão importantes para seus processos de desenvolvimento como as interações com outras regiões da economia-mundo capitalista. Assim, ao contrário do Leste da Ásia, onde “in numerous ways, this regional dynamic has constrained, driven and shaped the development of the region’s economies, polities and societies over a long historical time” (Arrighi, Hamashita e Selden 2003, 5), os processos de regionalização aos quais as Américas Central e do Sul estiveram submetidas desde a emergência da economia-mundo capitalista não conformaram um contínuo territorial orgânico de interdependência econômica e política ao longo de todo o subcontinente. Isso porque o domínio europeu não apenas rompeu com a regionalidade dos impérios pré-colombianos e dos demais povos, como também redefiniu as formas de integração dos espaços a partir de cadeias mercantis globais - prata, açúcar, ouro, café etc. Portanto, do ponto de vista espacial, se nos referimos à América Latina como região, é antes por suas características comuns, por seu passado colonial, do que pela existência de uma divisão regional do trabalho capaz de condicionar os processos de formação nacional e de inserção mundial dos países que compõem a região. Assim, da ótica cronológica, a temporalidade da América Latina coincide com a da economia-mundo capitalista que inicia no século XVI. Consequentemente, para se comparar a América Latina com o Leste Asiático, sugerimos três unidades temporais que, coincidentemente, se entrelaçam com o sistema sinocêntrico de comércio e tributos:
1500-1850 - quando todo o espaço abaixo do Rio Grande passou a integrar a economia-mundo capitalista nascente como colônia ibérica, por mais de 300 anos, através do colonialismo ibérico, o que sedimentou características comuns: língua (com exceção do Brasil), religião, estratificação social, economia tecnologicamente débil baseada no trabalho forçado (servidão e/ou escravidão), alta desigualdade, exclusão dos povos nativos, ausência de Estado, entre outras;
1850-1980 - quando a região se fragmentou em unidades políticas, após processos de independência mais motivados por rebeliões das elites locais contra o controle metropolitano espanhol e português do que por projetos para mudar as estruturas econômicas e sociais dentro e entre as unidades coloniais, o que apenas possibilitou estruturas estatais fracas e caracterizadas por instabilidade política, crises econômicas frequentes, subordinação aos Estados centrais, economia primário-exportadora, industrialização tardia posterior a 1930 e liderada por empresas multinacionais;
1980-2020 - quando a América Latina enfrentou a famosa “crise da dívida” nos anos 1980, mergulhando em uma profunda crise econômico-social, que teve como resposta, a partir das orientações dos organismos internacionais, as políticas de ajuste e reestruturação, que implicaram processos de privatização e retraimento das estruturas estatais na maioria dos países da região. Em muitos países, inicia-se um processo de desindustrialização que se aprofundou na primeira década dos anos 2000, por conta do aumento dos preços das commodities, ocasionando uma reprimarização na maior parte dos países (à exceção do México, que, por conta do fenômeno das maquiladoras, mantém uma importante base industrial estrangeira em seu território). Os avanços sociais em alguns países, ocorridos também na primeira década do novo século, foram revertidos parcialmente na década seguinte, quando a conjuntura internacional também deixou de ser favorável ao modelo primário-exportador. E, mesmo os processos de integração regional, que tiveram avanços a partir dos anos 1990, passam por dificuldades nos últimos anos, expressando a debilidade estrutural do Estado latino-americano.
Com base no enfoque regional e nas temporalidades acima especificadas, na próxima seção, demonstramos que a América Latina tem uma longa história de ausência de autonomia e de organicidade internas à região e, portanto, de privações e incapacidades para construir vantagens competitivas no interior do sistema interestatal.
2. América Latina e Leste Asiático em três temporalidades
A fim de explicar a atual centralidade do Leste Asiático nos processos de acumulação capitalista e da continuidade da condição periférica-semiperiférica da América Latina, na presente seção, fazemos uma primeira aproximação às relações das duas regiões com a economia-mundo capitalista em três temporalidades (1500-1850, 1850-1980 e 1980-2020).
a. O período 1500-1850
Ao discutirmos o conceito de região-mundo, constatamos que, nesse primeiro período, a América Latina já era parte da economia-mundo capitalista, enquanto o Leste Asiático, embora tivesse contatos com outras partes do mundo, só foi incorporado à economia-mundo na primeira metade do século XIX. Na continuação, procuramos identificar as consequências dessas situações para as duas regiões, a partir de três dos principais propulsores do desenvolvimento econômico de qualquer país: Estado, acumulação de capital e capacidade tecnológica.
Sobre o Estado, é suficiente saber que o Leste da Ásia “tem talvez a mais longa história de estados centralizados do mundo” (Kang 2010, 25). De fato, além da China, que foi unificada em 221 a.C., o Japão e a Coreia se formaram como Estados territoriais entre os séculos VII e X da nossa era, o que aconteceu dentro da “ordem mundial chinesa” (Fairbank 1968) ou do sistema sinocêntrico; quer dizer, do conjunto de normas e instituições que regulavam as relações do Estado chinês com os Estados vassalos ou tributários. Esse conjunto de regras e instituições tem recebido vários nomes. Hendler (2018), que faz um estudo aprofundado do sistema sinocêntrico, chega a falar de “império-mundo chinês”, enquanto Lee (2016) se refere à “hegemonia chinesa”. Já Kang (2010) prefere a expressão “sistema tributário”. Para nossos propósitos, interessa destacar que as realizações políticas culturais, econômicas e tecnológicas chinesas foram amplamente compartilhadas com os Estados tributários e vice-versa. No século VII, uma missão japonesa de 600 pessoas foi à China em busca de inovações culturais e institucionais e, como resultado, o Japão adotou técnicas de governo praticadas na China (So e Chiu 1995, 57).
Na China, entre os séculos IX e XIV, ocorreram avanços enormes na metalurgia (McNeill 1982, 27), construção de canais, construção naval, na agricultura, no sistema monetário e crédito, no comércio interno8 e externo, principalmente com o Japão e o Sudeste da Ásia,9 mas também chegando à Índia. É lícito pensar que o sistema de comércio-tributo centralizado na China (Hamashita 1994) fazia com que as práticas econômicas, tecnológicas e culturais chinesas se espalhassem para os componentes do sistema, como Japão,10 Coreia, Vietnam e Laos, entre outros. Essa interação cooperativa e conflituosa levou Hamashita a afirmar que “em termos gerais, a história da Ásia é a história de um sistema unificado caracterizado por tributos internos ou relações de comércio e tributos, com a China no centro” (Hamashita 1994, 12). Os Estados participantes do sistema perseguiam seus próprios objetivos e os meios materiais e militares para alcançá-los. O que nos interessa destacar é que ideias, mercadorias e tecnologias circulavam entre a China e os Estados tributários, de modo que os avanços chineses podiam ser acompanhados pelos demais países, de acordo com suas capacidades. O Japão, por exemplo, teve o primeiro contato com arcabuzes, primitivas armas de fogo, em 1543, levadas por aventureiros portugueses e “por volta de 1600, [os japoneses] já possuíam armas melhores e em maior quantidade do que qualquer outro país do mundo” (Diamond 2017, 258).
Embora sem o ímpeto inovativo do período 900-1400, a China continuou crescendo até o final do século XVIII:
China’s population, which had previously risen several times to a peak of 100 to 150 million only to fall, increased to nearly 400 million by the end of the eighteenth century. This was clearly a world demographic landmark […], and its impact on world GDP far outweighed that of post industrial revolution Britain, whose share of world GDP in 1820 was less than 6 per cent. (Sugihara 2003, 79, grifos nossos)
O mesmo autor afirma que esse “milagre chinês” também ocorreu no Japão no século XVII, “sob a influência da economia internacional do Lesta da Ásia centrada na China” (Sugihara 2003, 79).
Não fazendo parte da economia-mundo capitalista, o Leste da Ásia pôde seguir sua aceleração evolutiva11 até a primeira metade do século XIX, o que impôs e incluiu encontrar soluções próprias para seus problemas políticos, culturais, econômicos e tecnológicos. Mais especificamente, a formação de Estados e de economias nacionais exigiram e promoveram o desenvolvimento de capacidades técnicas e econômicas que colocaram a região em pé de igualdade com a Europa até o final do século XVIII. A possibilidade de adotar políticas autônomas permitiu, por exemplo, que, para diminuir a influência externa, o Japão praticamente cortasse as relações com o mundo exterior da segunda metade do século XVII até a metade do século XIX (So e Chiu 1995). As desvantagens do isolamento, sobretudo com relação à Europa, começaram a aparecer quando as potências ocidentais chegaram à primeira metade do século XIX.
Quando analisamos a América Latina, a primeira e importantíssima observação é que essa entidade geopolítica nasceu junto com a economia-mundo capitalista no século XVI. Com a vinda de espanhóis e portugueses, os povos que aqui viviam tiveram interrompidas suas respectivas acelerações evolutivas, as quais, a partir de então, tornaram-se parte da trajetória da economia-mundo capitalista. Diferentemente dos povos europeus e asiáticos que, pelo menos desde o século XI, intercambiavam entre si mercadorias, conhecimentos, ideias e tecnologia, os povos das Américas permaneceram isolados até 1492.12 Em que pese esse isolamento, os astecas no atual México e os incas na costa leste da América do Sul desenvolveram sociedades sofisticadas em termos políticos, astronômicos, botânicos e medicinais. Contudo, esses povos não conheciam “arados, animais de tração e [a] metalurgia do bronze ou ferro” (McClellan III e Dorn 2015, 155) e, muito menos, as armas de fogo. Dado o atraso com relação aos conquistadores europeus, não é descabido afirmar que a conquista possibilitou o contato com técnicas e práticas superiores, ao mesmo tempo que a inserção na economia-mundo na condição de colônia impedia desenvolver capacidades próprias para imitar e avançar na trajetória tecnológica dos conquistadores. Por sua vez, essas mesmas capacidades próprias dependeriam do conhecimento e acervo de técnicas acumuladas, as quais, como vimos, estavam muito aquém do que já havia sido conseguido na Europa e no Leste da Ásia. Esse atraso e mais as restrições impostas pelo colonialismo ibérico13 - que se estenderam por quase todo o período que estamos analisando - fizeram com que, do século XVI até o início do século XIX, não emergissem na América Latina aqueles três elementos promotores do desenvolvimento econômico: o Estado, porque é incompatível com a condição de colônia; a acumulação de capital e as capacidades tecnológicas, porque tanto Portugal quanto Espanha promoveram, além da mineração de metais preciosos, principalmente atividades econômicas primárias para a exportação baseadas no trabalho forçado, o qual restringia fortemente o mercado interno.14 Além disso, o exclusivo colonial impunha que a exportações e importações fossem feitas pelos comerciantes metropolitanos, que não estavam interessados no florescimento da produção local.
No caso do Brasil, por exemplo, a dominação portuguesa por meio do antigo sistema colonial criou relações de interdependência a partir do comércio do Atlântico Sul. Como observa Luiz Felipe de Alencastro:
A complementariedade sul-atlântica baseava-se na articulação de modos de exploração destintos que engendravam relações de subordinação e de troca desigual entre as duas colônias: a única utilidade de Angola consistia em fornecer escravos para assegurar a prosperidade do Brasil. Dessa assimetria nascem os condicionantes da presença portuguesa na África central e as singularidades da colônia américa e da futura nação brasileira. (Alencastro 2000, 330)
A exterioridade/extroversão do processo de formação do Brasil fica ainda mais evidente se levamos em consideração a posição do Brasil nos elos da cadeia mercantil do açúcar, conforme descreveu Vieira (2010). Portanto, diferentemente do Leste da Ásia, os intercâmbios econômicos, políticos e culturais mais relevantes ao futuro Brasil não se davam com a América Latina, e sim fora dela.
Essa grande diferença entre as estruturas políticas e econômicas do Leste Asiático e da América Latina têm relação com a atual situação das duas regiões? Provavelmente, sim. O ponto de partida do Leste Asiático no século XIX era muito distinto e, por isso, quando os ocidentais chegaram para subjugá-los no século XIX, aqueles povos dispunham de instituições, técnicas e conhecimentos sofisticados nos planos cultural, político, econômico, militar e social, que impediram a subjugação (Pannikkar 1977). Além disso, diferentemente da América Latina, que, no momento do encontro com os europeus, estava muito aquém das capacidades coercitivas e de acumulação de capital destes últimos, quando se deu o encontro entre o Leste Asiático e a Europa, as instituições, as técnicas e os conhecimentos acumulados permitiram aos asiáticos se mobilizar para resistir à invasão e se equiparar aos ocidentais nas tecnologias civis e militares.
Os argumentos acima autorizam-nos a concluir que a primeira temporalidade (1500-1850) tem algo a dizer sobre a posição atual das duas regiões, porque as trajetórias posteriores a 1850 em ambas as regiões foram construídas sobre características e capacidades econômicas, políticas, sociológicas, tecnológicas acumuladas até aquele ano (1850) e foram aquelas características e capacidades que restringiram ou permitiram resistir às ameaças e aproveitar as oportunidades estabelecidas pela economia-mundo capitalista.
Quais as consequências de a América Latina estar inserida na economia-mundo capitalista em todo esse período enquanto o Leste Asiático estava fora desse sistema social histórico praticamente até 1850? Os efeitos das capacidades acumuladas de poder e riqueza sobre as trajetórias de desenvolvimento de ambas as regiões, a partir da reorganização do moderno sistema-mundo após as revoluções industrial e francesa, é o tema da próxima seção.
b. O período 1850-1980
No longo século XIX, que começou mais ou menos em 1760-1770, a economia-mundo entrou em uma nova fase, liderada pela Grã-Bretanha, cuja hegemonia se estabelece definitivamente com a vitória sobre a França em 1815. O industrialismo, o constitucionalismo, o imperialismo de livre comércio (Arrighi 1996), o padrão-ouro, a libra esterlina e o poderio militar deram à Grã-Bretanha “uma influência e um poder nunca experimentado[s] por qualquer estado de suas dimensões e que dificilmente [serão] experimentado[s] por algum outro em um futuro próximo” (Hobsbawm 1982, 13).
De fato, durante o ciclo sistêmico de acumulação britânico (1780-1930), o mundo passou pela segunda onda de globalização, que afetou todas as regiões do globo. Na América Latina, a conversão das colônias em nações independentes se apresentou como exigência política para a continuidade dos negócios das elites coloniais que abasteciam os centros metropolitanos com produtos primários e que viabilizou economicamente a expansão da cidadania no centro da economia-mundo capitalista.15 No Leste Asiático, em especial na China, com a primeira Guerra do Ópio (1839-1842), teve início a incorporação de todo o Leste Asiático à economia-mundo capitalista, o que mudou profundamente a região e o próprio sistema-mundo através da hibridização (hybridization) ou fusão da trajetória de desenvolvimento daquela região com a do Ocidente (Arrighi, Hamashita e Selden 2003). Antes dessa mudança, as quantidades envolvidas no comércio da China com regiões exteriores ao sistema sinocêntrico não eram suficientes para alterar o funcionamento tradicional da economia e da sociedade chinesas (Hamilton e Chang 2003).16 No aspecto material, a resiliência da civilização chinesa se fundamentava no comércio existente no sistema sinocêntrico e no mercado interno, o que fazia com que:
For China, goods from outside were not necessities, and trade was not essential to national construction […] The fact is that purely in economic terms, China seemed to get along very well without the rest of the world, and in political terms, China could achieve its aims through selective commercial relations. (Xu 2021, 179)
A incorporação17 que provocou importantes alterações nas várias dimensões da civilização chinesa resultou no secular declínio chinês (1839-1949), chamado pelos próprios chineses de “século das humilhações” que, no entanto, não foi suficiente para desestruturar completamente a região-mundo leste asiática. De fato, ao ocupar vários países vizinhos nas primeiras décadas do século XX, o próprio imperialismo japonês, em seus esforços de guerra, promoveu a instalação de indústrias em suas colônias (Amsden 2009). No caso da Coreia, essa autora destaca a importância do desenvolvimento industrial sob o jugo japonês:
A Coreia, assim, tinha acumulado, por ocasião do final da guerra, considerável experiência manufatureira na forma de uma força de trabalho habituada ao serviço remunerado (sob condições muito disciplinadas), uma elite administrativa com capacidades de produção em uma vasta gama de indústrias e burocracias governamentais e um pequeno núcleo de empresários com habilidades de execução de projetos, na empresa tanto pública como privada (bem como entre os militares). (Amsden 2009, 198)
A mesma situação sucedeu com Taiwan, que se beneficiou não apenas da dominação japonesa, mas também de um grande influxo, depois de 1950, de chineses continentais “alguns dos quais com longa experiência na manufatura de produtos têxteis em Xangai e outras grandes áreas chinesas (Shandong), que antes da guerra tinham sido centros de modernas usinas de fiação e tecelagem de propriedade japonesa” (Amsden 2009, 201). Com relação à China, a ocupação japonesa na Manchúria teve uma contribuição fundamental para a construção de uma economia industrial naquele espaço econômico: “By 1942, Manchuria produced the bulk of China’s electric power, iron, and cement, and more than Half of industrial output value. By the end of the war, the majority of China’s industrial capacity was in Manchuria” (Naughton 2007, 48). Em resumo, a incorporação do Leste Asiático à economia-mundo capitalista nesse período não parece ter minado as bases regionais do desenvolvimento, apesar de essas bases terem sido mantidas pelo imperialismo e colonialismo japoneses das primeiras décadas do século XX.
As diferenças regionais gestadas durante os séculos XVI e XVIII ficam mais evidentes no tipo de resposta da América Latina e do Leste Asiático ao colapso da hegemonia britânica e ao deslocamento do epicentro de riqueza para os Estados Unidos, que foi simultâneo à expansão financeira18 de 1860-1930. Por exemplo, como observou Furtado (1978), enquanto no Japão o controle estatal sobre o processo de modernização derivou da tomada de consciência das elites do atraso das forças produtivas do país em relação à Inglaterra, aos Estados Unidos e à Alemanha, na América Latina foi a própria divisão internacional do trabalho que determinou a estruturação social e a industrialização dependente nos Estados nacionais em formação. Não houve, nas ex-colônias ibéricas, uma especialização inter-regional do trabalho: “o caminho da especialização internacional não requeria modificações de maior monta nas estruturas sociais: era um pacto que se estabelecia entre interesses externos e grupos dominantes internos” (Furtado 1978, 76).
Na fase de expansão material (1930-1980) do ciclo sistêmico de acumulação estadunidense (mais especificamente entre 1950 e 1970), ocorreu o período de maior crescimento da economia-mundo capitalista, os chamados “anos dourados”. Inserida nesse movimento, a América Latina conheceu novas experiências de integração regional a partir da construção de mercados internos e de fortalecimento do Estado, no âmbito do que se chamou de “nacional-desenvolvimentismo”. Não obstante, o dinamismo econômico das “economias nacionais” se deu no bojo da expansão do mercado mundial liderado pelas empresas transnacionais, e não - como no Leste Asiático - dentro de projetos nacionais levado a cabo por Estados e capitalistas nacionais, e que fossem capazes de subordinar a acumulação mundial capitalista à integração econômica e política da região.
No Leste da Ásia, no pós-Segunda Guerra, no âmbito da Guerra Fria, a hegemonia estadunidense converteu o antigo sistema sinocêntrico em um sistema de comércio de tributos centrado nos Estados Unidos, do qual a China foi excluída (Arrighi, Ahmad e Shih 2001, 274), com o que iniciou a recente ascensão do Leste Asiático. Merece ser lembrado que a América Latina nunca contou com esse apoio dos Estados Unidos. Ao contrário, entre 1960 e 2000, as exportações dos Estados Unidos competiam com as exportações latino-americanas (Palma 2004).
Uma vez que a economia-mundo capitalista resultou da simbiose do sistema interestatal com o sistema capitalista, o estudo de qualquer região ou país deverá levar em conta, além da ação estatal, a existência de capitalistas, quer dizer, do agente econômico movido pela acumulação incessante de capital. A esse respeito, é necessário investigar sua presença e como o Estado e a sociedade favoreceram ou não a proliferação desse tipo de agente econômico na América Latina e no Leste Asiático, em especial do ponto de vista do desenvolvimento de suas capacidades tecnológicas direcionadas à acumulação de capital. Adicionalmente, é preciso investigar a existência da economia de mercado, sem a qual os capitalistas não podem se proliferar porque não teriam uma massa de transações econômicas de onde extrair excedentes. Como Arrighi (1996), inspirado em Braudel, escreveu, o apoio do Estado foi indispensável para que os capitalistas pudessem se colocar acima da economia de mercado “e, com o correr do tempo, adquiriu seu poder de moldar de maneira nova os mercados e as vias do mundo inteiro” (Arrighi 1996, 11). Na relação Estado-capitalismo, quais foram as relações entre capitalistas nacionais (autóctones) e os respectivos Estados do Leste da Ásia e da América Latina do ponto de vista do desenvolvimento das capacidades tecnológicas?
Nos últimos 25 anos do século XIX, o Japão e a China começaram o processo de aproximação tecnológica com o Ocidente nas indústrias civil e militar, processo conhecido na literatura como “catching-up”, que foi liderado pelos respectivos Estados, os quais, apesar da incorporação à economia-mundo capitalista, permaneciam relativamente fortes.19 Devido às capacidades tecnológicas construídas nos séculos anteriores, a industrialização foi sustentada principalmente por empresas nacionais, privadas ou estatais com tecnologia autóctone: “much of the economic progress made in East Asia during the second half of the nineteenth century was based on the indigenous development of labour-intensive industry rather than on the introduction of Western technology” (Arrighi, Hamashita e Selden 2003, 79, grifos nossos).
Nesse aspecto, o Leste Asiático se diferencia da América Latina, onde a industrialização foi iniciada muito mais tarde (nos anos 1920) e sem uma experiência manufatureira relevante. De fato, ao contrário do que aconteceu no Leste da Ásia, desde o período colonial, a América Latina se destaca pelo baixo desenvolvimento da manufatura, por exportar bens primários e importar produtos industrializados. A falta de know-how manufatureiro foi suprida por importações e empresas estrangeiras que, a partir dos anos 1930, praticamente constituíram o setor industrial em toda a região. A pequena proporção de empresas e tecnologias nacionais se constituiu em um dos mais decisivos e permanentes traços da industrialização latino-americana.20 A ausência de empresas nacionais é uma expressão da ausência de capitalistas, no sentindo braudeliano anteriormente definido. E a falta desses últimos tem a ver com as características do Estado.21 Por exemplo, no Japão, durante a Restauração Meiji iniciada em 1868, o Estado:
actively “manufactured” the Japanese bourgeois class through [...] subsidized pilot projects [...] The Japanese merchant houses simply took over profitable, large-scale enterprises and formed the zaibatsu (economic conglomerates). In this respect, Japanese big business developed a cordial relationship with state from the very beginning. (So e Chiu 1995, 74-75)
A pergunta que emerge imediatamente é: alguma vez houve algo parecido na América Latina? A resposta é negativa, tendo em vista a inexistência de processos desse tipo no período considerado.
Se tomamos os dados do comércio inter-regional como proxy das interconexões regionais, no período 1900-1960, as Figuras 1 e 2 evidenciam uma diferença significativa: a América Latina, “extrovertida”, tinha uma participação maior nas exportações mundiais do que o Leste Asiático em 1900, 1913, 1948 e 1953. Além disso, a importância da própria região como destino das exportações foi muito mais relevante para o Leste da Ásia do que para a América Latina, em todo o período analisado.
Fonte: United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), Historical Data 1900-1960. Elaboração própria.
Portanto, enquanto na metade do século XIX, a América Latina se esforçava para construir estruturas estatais reconhecidas pelo moderno sistema de Estados, no Leste da Ásia, a herança imperial do antigo sistema sinocêntrico deu maior capacidade de resistência às imposições das potências ocidentais. Essa diferença de poder se fez sentir quando os Estados de ambas as regiões buscaram se fortalecer no sistema interestatal, promovendo maior acumulação de capital, no contexto do novo regime de acumulação liderado pelos Estados Unidos. Na América Latina, o esforço de construção dos mercados internos (processos integração regional por meio da industrialização planejada pelo Estado) se apresentou como oportunidade de expansão da acumulação capitalista transnacionalizada na periferia; ao passo que, no Leste Asiático, sobre o antigo sistema sinocêntrico de comércio e tributos, os Estados Unidos constituíram um sistema de comércio de tributos centrado nesse país, inserindo o Leste da Ásia no centro da expansão da própria economia-mundo. Talvez seja a capacidade tecnológica que revela mais claramente as consequências desses padrões de integração à economia-mundo. Ao longo do século XX, na América Latina, a existência de capitalistas capazes de controlar processos inovativos relevantes foi a exceção, mesmo com todo o apoio estatal observado; no Leste Asiático, estes foram disciplinados por Estados desenvolvimentistas capazes de orientar a capacidade criativa da sociedade em direção à construção da competitividade.
c. O período 1980-2020
Nos anos 1980, começa a fase de expansão financeira do ciclo sistêmico de acumulação estadunidense e o declínio da hegemonia dos Estados Unidos. Esses dois processos, que continuam até os nossos dias, devem ser vistos como as forças definidoras do contexto mais geral de nosso tempo, isto é, como características fundamentais dessa conjuntura. Os “anos dourados” ficaram para trás, instalou-se uma época de crescimento lento e as finanças tomaram o lugar do comércio e da produção como principal fonte de lucros.
A crise de lucratividade que se seguiu aos anos dourados, por um lado, provocou a busca de maiores lucros nas finanças. Por outro lado, deu início ao processo que ficou conhecido como “reestruturação produtiva”, que teve como alvo a empresa verticalmente integrada, que foi a unidade produtiva por excelência da expansão material do ciclo sistêmico de acumulação estadunidense, mas que deixou de ser competitiva ante o “modelo japonês” de empresa enxuta. As empresas verticalizadas integradas foram obrigadas a se reinventar. Emergiu um novo modo de organização industrial, conhecido como “pós-fordista” ou “produção flexível”, que se desenvolveu sobre uma tecnologia revolucionária, a microeletrônica, que, da década de 1970-1980 em diante, passa a funcionar como elemento-chave e onipresente nas empresas de todas as áreas da economia: indústria, serviços, agricultura etc. Começa aí o que hoje está sendo chamado de “indústria 4.0” ou “Quarta Revolução Industrial”.
Como essas mudanças afetaram e afetam o Leste Asiático e a América Latina, e como elas responderam e respondem ao novo contexto?
Sabemos como a América Latina foi severamente atingida pelo início da expansão financeira: fim do nacional-desenvolvimentismo, da industrialização substitutiva de importações, crise da dívida, hiperinflação etc. Assim, desde o início da década de 1980, que ficou conhecida como “década perdida”, até os dias de hoje, com exceção de alguns anos de crescimento econômico, a maioria dos países latino-americanos não passou por um período maior de prosperidade econômica.
No mesmo período, o Leste da Ásia conheceu uma realidade totalmente diferente. A expansão financeira não estancou o crescimento do pós-Guerra. Se, desde os anos 1950, esse crescimento era puxado pelo Japão e seu sistema de subcontratação em múltiplas camadas (criado no âmbito do acima mencionado sistema de comércio de tributos centrado nos Estados Unidos), desde os anos 1990, a China tem sido o motor da expansão econômica regional e mundial, reforçando a posição do Leste da Ásia como centro da acumulação mundial (Figuras 3, 4, 5 e 6).22
O direcionamento maciço dos fluxos de capital para os Estados Unidos inaugurou uma nova conjuntura que alterou o destino tanto da América Latina quanto do Leste Asiático, a partir da década de 1980:
Regiões que, por razões históricas, apresentavam boa vantagem na concorrência pela participação na expansão da demanda norte-americana por produtos industriais baratos, mais notadamente a Ásia Oriental, tenderam a se beneficiar do redirecionamento do fluxo de capital, porque a melhora de seu balanço de pagamentos reduziu a necessidade de competir com os Estados Unidos no mercado financeiro mundial e chegou a transformar algumas delas em grandes credores destes. Outras regiões, principalmente a África Subsaariana e a América Latina, tinham, por razões históricas, mais desvantagens na briga por um quinhão de demanda norte-americana. Estas tenderam a sofrer dificuldades no balanço de pagamentos, o que as colocou na posição sem esperanças de precisar competir diretamente com os Estados Unidos no mercado financeiro mundial. (Arrighi 2008, 156-157)
A retomada de lucratividade da economia estadunidense na década de 1990 se deu principalmente devido “à reorientação geral da economia dos EUA para aproveitar ao máximo a financeirização, tanto nacional quanto mundialmente” (Arrighi 2008, 158). Como resultado da financeirização e do deslocamento de unidades produtivas para outras regiões, principalmente para o Leste da Ásia, as economias centrais, notadamente os Estados Unidos, passaram por um processo de desindustrialização que:
certamente teve conotações negativas para os trabalhadores mais diretamente afetados por ela; mas não tinha um significado tão terrível para a economia dos EUA como um todo, e especialmente seus estratos mais ricos. Em vez disso, era uma condição necessária para o grande renascimento da riqueza e do poder dos EUA nos anos 90, quando - para parafrasear a descrição de Landes da era eduardiana, apesar do brandir das armas no Sul e no antigo Oriente, e das referências admonitórias ao iminente choque de civilizações, tudo parecia certo outra vez. (Arrighi 2008, 158)
Portanto, enquanto os Estados Unidos lideravam e se beneficiavam da financeirizacão e o Leste da Ásia se tornava a “oficina do mundo”, a América Latina e a África não obtiveram qualquer benefício. Ao contrário, sobreveio a década perdida de 1980 e, desde então, como dissemos antes, nenhum país experimentou uma fase sustentada de prosperidade.
Do ponto de vista financeiro, a América Latina nunca superou o histórico problema da necessidade do financiamento externo (Bértola e Ocampo 2010), enquanto no Leste Asiático, além dos avanços já mencionados na produção global de riqueza, nota-se uma ascensão também na acumulação financeira, com destaque para o Japão e a própria China. Evidências desse poder financeiro podem ser percebidas no papel de ambos os países ao socorro dado aos Estados Unidos durante a crise econômica de 2008 e 2009 (Harvey 2011), e no montante de ativos das instituições financeiras do Japão e da China, que possuem seis bancos entre os 10 maiores do mundo.23
A alteração do padrão de integração do Leste Asiático com a economia-mundo capitalista pode ser observada se compararmos as Figuras 1 e 2 com as Figuras 7 e 8. No que diz respeito à participação da região no total das exportações mundiais (Figuras 1 e 7), enquanto na primeira metade do século XX, a participação média do Leste da Ásia no total das exportações mundiais era de 6,2% a.a., depois dos anos 1990, essa participação subiu para 21,8% a.a., tornando-se responsável por um pouco mais de 1/5 das exportações mundiais. A América Latina, por sua vez, não alterou substancialmente sua posição. Se, na primeira metade do século XX, sua participação relativa média no total das exportações foi de 8,4% a.a., nas últimas quatro décadas, esse valor caiu para a média de 5,2% a.a. No que tange à participação relativa do comércio intrarregional no total das exportações da região (Figuras 2 e 8), é possível observar uma melhora na integração econômica regional da América Latina. Contudo, ela segue sendo bastante inferior à integração do Leste Asiático.
Os dados parecem indicar que as vantagens do Leste Asiático se acentuaram após os anos 1980. Desde a incorporação de tecnologias e processos produtivos inovadores (sintetizados no que se convencionou chamar de “toyotismo”), passando pela existência de forças de trabalho disciplinadas e educadas (resultado dos investimentos educacionais em praticamente todos os países da região) e da produção orientada para a exportação, a região Leste Asiática avançou nas cadeias globais de valor e nos indicadores de bem-estar da população; e mesmo a China, retardatária em relação ao Japão, à Coreia do Sul e ao Taiwan, vem experimentando melhoras significativas nos indicadores de bem-estar social.
De acordo com Amsden (2009), a bifurcação no destino das regiões do resto está relacionada às distintas estratégias de industrialização. De um lado, países como China, Coreia e Taiwan, que adotaram a estratégia “independente”, que consistiu “na decisão de ‘fazer’ tecnologia, que era sinônimo do fortalecimento das capacidades de firmas nacionais” (Amsden 2009, 484). De outro lado, países como Argentina, Brasil, Chile e México,24 denominados “integracionistas”, cuja estratégia de crescimento em longo prazo “se predicava na decisão de ‘comprar’ tecnologias e na dependência tanto de regras de conduta estrangeiras para disciplinar os negócios [...] como de transbordamentos e investimentos estrangeiros e transferências tecnológicas para gerar riqueza” (Amsden 2009, 484). Em outros termos, a divisão cada vez maior entre as duas regiões está relacionada também “em torno das habilidades competitivas, das capacidades e dos ativos baseados no conhecimento” (Amsden 2009, 485).25
Vista em perspectiva, a comparação mais geral das duas regiões, nessa temporalidade, também evidencia distinções importantes nas três dimensões elencadas nos dois períodos anteriores. A primeira refere-se ao Estado, que, malgradas as diferenças entre os países da região do Leste Asiático (Castells 1999), continuou tendo um papel fundamental nos processos e estratégias de desenvolvimento. Como destacado por Beeson (2007), um elemento distintivo do desenvolvimento do Leste Asiático tem sido o estado desenvolvimentista: “the developmental state has had a dramatic impact on the region, and the distinctive relationships between government and business it encouraged have not disappeared” (Beeson 2007, 15). A orientação estatal das estratégias de desenvolvimento permanece como um traço essencial da trajetória daquela região. Palma (2019) nos recorda que, mesmo implantando reformas, os países asiáticos não subordinaram os interesses nacionais ao receituário dos organismos internacionais, como ocorreu na América Latina. Pelo contrário, “el énfasis de las reformas económicas se orientó a fortalecer y enderezar lo que había, en un esfuerzo liderado por la transformación creativa de su proceso de industrialización” (Palma 2019, 958).
Na América Latina, por sua vez, assistiu-se, desde 1980, um enfraquecimento das estruturas estatais, como decorrência da aceitação e implementação das políticas de ajuste e reestruturação determinadas pelos organismos internacionais. Em contraste com o ocorrido no Leste Asiático, no espaço latino-americano, passou-se da “industrialização dirigida pelo Estado” para uma “reorientação para o mercado”, conforme ressaltado por Bértola e Ocampo (2010). E essa reorientação para o mercado implicou o abandono da atuação estatal, via políticas comerciais, industriais e mesmo macroeconômicas, favoráveis ao aprofundamento dos processos de industrialização. Palma (2004) ressalta que:
essencialmente a partir de 1982 [...] a América Latina embarcou em uma das mais drásticas guinadas de política econômica da história do Terceiro Mundo, afastando-se da política de industrialização por substituição de importações liderada pelo Estado em direção a um intenso processo de liberalização econômica e desregulamentação. (Palma 2004, 405)
No que tange à acumulação de capital, é importante destacar a diferença entre as duas regiões acerca da trajetória da industrialização. No caso do Leste Asiático, observou-se a continuidade de um processo de industrialização acelerado e hierárquico, através de um sistema de subcontratação de múltiplas camadas, como destacado por Arrighi (1997), e da passagem dos países da região de atividades industriais menos complexas e inovadoras para atividades cada vez mais complexas, em um claro movimento de ascensão na hierarquia de produção da riqueza de origem industrial (Palma 2004). Enquanto isso, na América Latina, a maior parte dos países ainda ficou replicando as características da indústria metalmecânica (Segunda Revolução Industrial), e inclusive passando por processos de desindustrialização (Cano 2014; Bielschowsky, Schönerward e Vernengo 2013; Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial [IEDI] 2019; Palma 2019). Além disso, a pauta exportadora da região, à exceção do México (com uma industrialização baseada nas “maquiladoras”), foi se modificando desde os anos 1990, e sua competitividade exportadora foi e continua sendo baseada em produtos tradicionais, sem sequer promover o processamento deles (Palma 2004).
A terceira diferença, ligada às capacidades tecnológicas, mostra, talvez de forma mais evidente, o crescente hiato na trajetória das duas regiões. Quanto ao Leste Asiático, como corolário da estratégia de industrialização orientada para as exportações, em particular exportações de produtos de maior valor agregado, houve uma ampliação significativa das estruturas públicas e privadas (com consequente aumento dos recursos destinados à ciência, tecnologia e inovação), voltadas para o aprimoramento tecnológico. O papel proativo do Japão, da Coreia do Sul e da China, no sentido do financiamento e apoio às atividades ligadas à chamada “indústria 4.0”, é um indicador de manutenção desse círculo virtuoso, que envolve a sinergia entre Estado e capital, na busca pela liderança tecnológica (Vieira, Ouriques e Arend 2021).
A situação da América Latina, nesse sentido, é diametralmente oposta. Não há esforços generalizados de internalização de capacidades tecnológicas, posto que se optou, via de regra, por atividades pouco sofisticadas, como mencionado anteriormente. Isso teve como resultado a perda de complexidade econômica26 da América Latina. Nessa direção, não é surpreendente que, em termos de ciência, tecnologia e inovação, a região continue defasada com relação ao resto do mundo, em geral, ao Leste Asiático, em particular. Dados publicados pela Unesco (2021) ilustram essa diferença: em 2018, o Brasil investiu 1,26 % do PIB em pesquisa e desenvolvimento. A média da América Latina foi de 0,66 %. O Japão, a China e a Coreia do Sul investiram, respectivamente, 3,26 %, 2,19 % e 4,53 %. Entre 2014 e 2018, os gastos com pesquisa aumentaram em todas as regiões do mundo, exceto na Ásia Central, na América Latina e no Caribe. Nesse cenário, o hiato entre as duas regiões em termos de capacidades científicas e tecnológicas tende a se ampliar.
Assim, temos, de um lado, uma região-mundo, o Leste Asiático, consolidando-se cada vez mais como epicentro dos processos de acumulação e poder da economia-mundo capitalista. De outro lado, a América Latina, que permanece na mesma posição periférica-semiperiférica, sem indícios mais efetivos de uma ascensão (mesmo que de um país específico da região) na hierarquia do moderno sistema interestatal.
Considerações finais
O principal objetivo deste texto foi responder à seguinte pergunta: o que explica a América Latina estar na periferia do sistema-mundo moderno desde seu processo de formação no longo século XVI e o Leste Asiático estar, atualmente, se deslocando em direção ao centro da acumulação mundial capitalista, apesar de sua incorporação periférica no século XIX? Para dar conta dessa tarefa, com base no método comparativo e na longa duração, argumentamos que o desvio das trajetórias de desenvolvimento do Leste Asiático e da América Latina tem raiz na relação das duas regiões com a economia-mundo capitalista: autonomia do Leste da Ásia na maior parte da sua história e fusão da América Latina com a economia-mundo desde o surgimento de ambas no século XVI. Procuramos estudar como essas diferentes relações impactaram, desde o século XVI até os dias de hoje, as duas regiões em três vetores essenciais para o desenvolvimento econômico: estruturas estatais, acumulação de capital e capacidades tecnológicas.
No período 1500-1850, com relação à economia-mundo capitalista, a América Latina estava na periferia, enquanto o Leste Asiático se constituiu como uma arena externa. Com respeito à organização de estruturas estatais, aqui estávamos na condição de colônia, enquanto a região-mundo asiática já estava formada por Estados dinásticos. No que tange à acumulação de capital, a América Latina baseava-se na produção de bens primários para a exportação, ao passo que o Leste Asiático assistia à emergência de economias nacionais voltadas para si mesmas. Do ponto de vista das capacidades tecnológicas, enquanto o espírito criativo na América Latina era sufocado pela escravidão e pelo colonialismo, pelo menos até o advento da chamada “revolução industrial” do final do século XVII, o Leste da Ásia tinha desenvolvido técnicas produtivas, comerciais e financeiras semelhantes às da Europa. Quanto à integração regional, por estar conectada às metrópoles através do exclusivo colonial, a América Latina não foi capaz de construir relações de interdependência que lhe assegurassem condições autônomas de aceleração evolutiva como ocorreu no Leste Asiático.
Para o período 1850-1980, apesar da formação e consolidação dos Estados nacionais, a América Latina continuou na posição periférica. O Leste Asiático, ao contrário, apesar de sua incorporação subordinada à economia-mundo capitalista, conseguiu preservar e, em alguns casos, fortalecer as estruturas estatais anteriores. Isso implicou possibilidades distintas na capacidade estatal de disciplinar os agentes capitalistas, em especial, na criação das capacidades tecnológicas necessária à aceleração da acumulação capitalista. Na América Latina, a debilidade estrutural dos aparelhos estatais impedia o controle estatal efetivo sobre os processos de modernização econômica e, como consequência, houve baixo grau de desenvolvimento tecnológico manufatureiro e preponderância de tecnologias externas. No Leste Asiático, como resultado de uma longa história de autonomia, o controle sobre o processo de modernização foi acompanhado por um alto grau de desenvolvimento tecnológico manufatureiro apoiado por tecnologias autóctones. Assim, enquanto a industrialização tardia se apresentava como esperança para integrar regionalmente a América Latina, o que acabou não acontecendo, a histórica relação de interdependência e conexões do Leste da Ásia e sua especialização inter-regional foi a base para convertê-la em “oficina do mundo”.
Finalmente, no período 1980-2020, essas diferenças foram intensificadas. Acatando as recomendações emanadas dos países centrais, e antes mesmo da implementação de alternativas capazes de alterar sua condição periférica na economia-mundo capitalista, os governos da América Latina abandonaram a estratégia desenvolvimentista, o que tem resultado no fenômeno da desindustrialização e mesmo de reversão neocolonial (especialização na produção/exportação de poucos produtos primários). O Leste Asiático, apoiado por sua histórica autonomia regional e pela persistente estratégia desenvolvimentista, reinventou o antigo sistema sinocêntrico a partir do sistema contratação em múltiplas camadas e, desse modo, recriou uma estrutura econômica capaz de se apropriar de parcelas crescentes do excedente mundial, avançando, assim, em direção ao centro da hierarquia da riqueza e poder (o centro tendo sido alcançado por dois países da região, Japão e Coreia do Sul).
Essa primeira aproximação ao poder explicativo das características regionais sobre o desenvolvimento dos países revelou o contraste que pode ser assim sinterizado: tendo em vista a longuíssima duração das interconexões políticas e econômicas entre os Estados, ao Leste Asiático pode ser aplicado o conceito de região-mundo. A América Latina, desde sua origem incorporada de forma subalterna, periférica, à economia-mundo capitalista, e com a maior parte de sua história econômica determinada pelos vínculos metrópole-colônia, nunca conseguiu construir e mesmo avançar em processos efetivos de integração regional (como o Mercosul e a Unasul). A histórica baixa articulação interna entre os Estados nacionais latino-americanos faz com que eles reforcem cada vez mais as relações econômicas com áreas externas à própria região.
Além de aprofundar e detalhar o desenvolvimento das três dimensões nas duas regiões e identificar suas semelhanças e contrastes através da comparação, na continuidade da pesquisa, pretende-se estudar, com a metodologia aqui esboçada, países e períodos específicos.