1. Considerações iniciais
Intelectuais, empresários, militares, agentes públicos e políticos de carreira. Em torno destes grupos, alinhados com as ideias sociais de Alberto Torres, foi organizada uma entidade político-intelectual em novembro de 1932. A iniciativa ganhou destaque nas páginas do fluminense Jornal do Commercio:
Um grupo de estudiosos da obra de Alberto Torres vai se constituir em sociedade para analisar e propagar as ideias e os ensinamentos do sociólogo brasileiro. Não é preciso salientar o mérito que terá essa futura associação, sendo também seu objetivo chamar a atenção do país para o trabalho da constituição brasileira que empreender Alberto Torres.
Não tem objetivos literários, nem discutir bizantinices a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, mas, tão somente realizar um trabalho de exegese social e desenvolver as ideias e estudos que foram deixados em tese pelo autor da "Organização Nacional". É propósito da Sociedade corresponder-se com os torreanos de todos os Estados para provocar a criação dos núcleos locais e conseguir também estudos objetivos sobre as condições atuais de vida das várias regiões do país.1
A partir das informações contidas na publicação, é possível afirmar que, em termos gerais, a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, também conhecida e mencionada pela sigla SAAT, tinha como motivação principal de sua existência o debate e a difusão das ideias de Alberto Torres, analisando os problemas brasileiros a partir do legado intelectual deixado por seu patrono. Em síntese, Alberto Torres buscou, em sua produção intelectual, expor aqueles que julgava como principais problemas brasileiros e que, a partir de uma análise profunda, precisavam ser corrigidos, visando melhorar a vida e as condições sociais do povo. Deste modo, aspectos como a formação da nacionalidade, o sistema político e constitucional e a falta de amparo ao trabalhador nacional, foram temas recorrentes em suas publicações. Denunciou a ingerência do Estado brasileiro em intervir nos problemas sociais, especialmente os relacionados com saúde e educação. Preconizava a necessidade de um governo mais centralizado e forte, que atuasse incisivamente para combater desigualdades e desmandos da elite política. Por conta dessas assertivas, Alberto Torres recebeu, por parte de seus críticos, a rotulação de "pensador autoritário".
Cabe ressaltar outra característica dos escritos de Alberto Torres - e que assinala uma diferença importante relacionada com as reinterpretações e discursos promovidos pela entidade da qual seria patrono: a forte crítica às teorias racistas e eugênicas que se avolumavam entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Embora defensor de uma nacionalidade brasileira e de valorização do trabalhador nacional em relação ao estrangeiro - sua crítica residia, sobretudo, nos investimentos e vantagens para com imigrantes em detrimento à vida sofrível pela qual passava, por exemplo, o homem do campo -, Torres não adotava um tom discriminatório, se aproximando do que podemos na atualidade denominar de xenofobia. Além disso, reconhecia a importância do aprendizado com as culturas advindas de outros países, através dos imigrantes. Segundo Alberto Torres, era necessário, dentro desta perspectiva, se adotar a capacidade de "aprender com alemães, com americanos, com franceses, com ingleses e com brasileiros, quando for possível, a ser brasileiros: eis a fórmula do nosso cosmopolitismo mental"2.
Como será possível verificar ao longo deste texto, a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres empreendeu uma apropriação e ressignificação das ideias defendidas por seu patrono, condicionando-as com teorias e concepções socioculturais, políticas e econômicas fortemente estabelecidas na época de fundação e atuação da entidade, ou seja, as décadas de 1930 e 1940. Sobre o racismo científico do final do século XIX e princípio do XX, Alberto Torres salientava sua percepção de que este era um instrumento imperialista, adotado politicamente por algumas nações europeias, como a Alemanha, Inglaterra e Bélgica, por exemplo, que utilizaram dessas elocubrações para justificar sua expansão e domínio sobre a África e Ásia.
A visão antiimperialista de Alberto Torres foi instrumentalizada pela SAAT, fortemente coadunada com o discurso nacionalista que imperava no Brasil desde os primeiros anos do século XX, com seu ápice nas décadas de 1930 e 1940, durante o regime do Estado Novo. No Brasil, o nacionalismo crescente da década de 1920 ganhou a incorporação de um novo elemento: a eugenia, que ganhou espaço dentro das discussões ideológicas sobre a nação que se pretendia construir naquela conjuntura e do tipo ideal de homem brasileiro3. Doravante, cabe ressaltar que o caso da implementação de um pensamento eugenista no Brasil e suas ações de caráter mais prático possuem algumas nuances que precisam ser consideradas. Ao longo das décadas de 1920 e 1930, havia uma agenda que perpassava as preocupações dos eugenistas brasileiros, onde podem ser destacados tópicos como: saúde pública e melhora das condições de vida populacional, principalmente através do saneamento básico; controle matrimonial e saúde feminina; imigração e infância. Na primeira fase da Eugenia no Brasil, seus adeptos estavam mais alinhados com as questões de saúde pública e a solução dos graves problemas existentes. Posteriormente, a partir do início da década de 1930, com o crescente incremento do sentido nacionalista no país, é que o cunho racista vai sobrepondo-se à agenda anterior.
Outro fator importante e que deve ser explicitado é que, conforme alguns autores, como Stepan4, o movimento eugenistas brasileiro possuía diferenças em relação ao modelo alemão e estadunidense, não podendo ser considerado mera reprodução destes. Conforme adverte Castañeda5 a orientação científica adotada no país tinha uma tendência que, em determinados momentos, pendia ao Lamarckismo6, relacionando higiene e herança, mas também se voltava ora para o pensamento do biólogo alemão August Weismann7, ora para as leis de Mendel8, no âmbito da genética. Entretanto, esse tema ainda é alvo de discussões e interpretações opostas por parte de pesquisadores que se debruçam sobre o tema, não havendo uma definição homogênea sobre o assunto.
Coadunadas com o ideário nacionalista, a eugenia poderia ser utilizada como uma forme de construção identitária, perfazendo um novo modelo de homem brasileiro, conformando-o através do branqueamento, fundindo o brasileiro com determinados grupos de imigrantes europeus. O médico paulista Renato Kehl foi o principal eugenista brasileiro, ganhando proeminência ao se aproximar da chamada eugenia negativa, oriunda da Alemanha e dos Estados Unidos, onde a reprodução de determinados sujeitos sociais, classificados como indesejados ou contraproducentes, deveria ser evitada de qualquer modo.
Foi essa dimensão da higiene racial que sedimentou bases ideológicas e institucionais para o pensamento arianista e ideias eugênicas desenvolvidas na Alemanha nazista, entre 1933 e 1945. Em 1935, Renato Kehl assumiu abertamente sua simpatia para com a política de controle social nazista, buscando difundi-la também no Brasil. Segundo ele, o determinismo biológico deveria ser encarado como um problema estatal, pois todas as mazelas sociais, as crises e ameaças derivavam da questão da regeneração biológica racial.
Contudo, a eugenia mais radical não encontrou eco mais amplo entre os intelectuais brasileiros. Nomes como Gilberto Freyre e Edgard Roquette-Pinto se posicionaram contra o determinismo biológico, apontando para os problemas de ordem social, política, educacional e econômica os fatores que impediam a evolução do homem brasileiro e da sociedade, não o fato do Brasil ser um país de alta mestiçagem.
2. A Sociedade dos Amigos de Alberto Torres e os imigrantes inconvenientes
Retomando os passos iniciais da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, a já mencionada nota do Jornal do Commercio informou também a composição dos idealizadores da entidade. São destacados os nomes de Francisco José de Oliveira Vianna, Alberto José de Sampaio, Augusto Saboia Lima, Alcides Gentil, Hélio Gomes, Edgard Teixeira Leite, José Flexa Ribeiro, Mendonça Pinto, Edgard Roquette-Pinto, Álvaro Alberto da Mota e Silva, Araújo Ribeiro, Armanda Álvaro Alberto, Raul de Paula, Alberto Torres Filho e Heloísa Alberto Torres9. Dos nomes destacados, encontramos médicos, sociólogos, antropólogos, educadores, militares e integrantes da hierarquia governamental, ocupando cargos públicos, como o caso de Roquette-Pinto, então diretor do Museu Nacional.
Quando da fundação da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, Heloísa e Roquette-Pinto integravam um bloco moderado dentro da entidade, em contraponto ao grupo radical, representado por Raul de Paula, Rafael Xavier e Cunha Melo. Entre 1932 e 1935, a SAAT sofreria em seu interior com disputas de concepções teóricas que, como consequências, oportunizaram rupturas dentre os seus integrantes, com afastamentos e acusações.
No dia 4 de dezembro de 1932, nova publicação no Jornal do Commercio ressaltava reunião ocorrida no dia 2 daquele mês, centrada na organização definitiva da entidade e na aprovação de seu programa de ações10. Se formos sintetizar o escopo ideológico e pragmático da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, ele estava assentado em três pilares: 1) políticas agrícolas, conservação e uso racional da natureza; 2) políticas educacionais, sobretudo de caráter ruralista e formação patriótica e, 3) políticas imigratórias, acentuando a definição e controle de grupos étnicos recomendáveis e indesejáveis.
Embora o grupo étnico japonês tenha sido aquele sobre o qual mais recaíram críticas e ações desabonadoras por parte da SAAT, outros também foram alvos de investidas. Foi o caso dos assírios, entre 1932 e 1934, de onde decorreu a primeira grande campanha antiimigratória da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres.
De forma epilogar, a questão pode ser delineada da seguinte forma: em 1932, a Liga das Nações, entidade internacional nos mesmos moldes do que seria atualmente a Organização das Nações Unidas (ONU), buscou junto ao governo brasileiro o assentamento de cerca de 20 mil refugiados assírios católicos, oriundos do Iraque, onde eram vítimas de forte perseguição. Este grupo de imigrantes contava com a proteção da Grã-Bretanha. Cabe esclarecer que os assírios, perante outros grupos, se identificavam e apresentavam como católicos, mais alinhados com o rito latino e orientações do Vaticano. Contudo, sua prática religiosa poderia ser considerada mais como um cristianismo nestoriano adaptado11, que recebeu reconhecimento pelas autoridades da Cúria Romana.
Caso sua instalação fosse aceita, ela se daria na região norte do Paraná, sendo o processo de colonização dirigido pela Paraná Plantations Ltda. Entrementes, quando as notícias de que milhares de assírios seriam ali instalados, esforços foram coadunados para que este projeto de colonização não se efetivasse - atendendo aos interesses de grandes proprietários rurais da região e de lideranças políticas e intelectuais. No centro do país, especialmente no Rio de Janeiro, a imprensa também se engajou nesta "cruzada antiassíria", abrindo espaço em suas páginas para confrontar a "tentativa de invasão de estrangeiros indesejáveis e incompatíveis" com a identidade nacional brasileira que se almejava. O tom de radicalização - e incitação à violência - foi se agudizando ao longo dos anos de 1932 a 1934. Exemplo pode ser encontrado em cabeçalho publicado no Correio da Manhã, periódico carioca, em 28 de março de 1934, com os dizeres: "Você só terá paz com um assírio após a morte dele"12.
Outro espaço de combate intenso foi a Assembleia Nacional Constituinte, instalada no ano de 1933. Neste período, parlamentares vinculados com o looby nacionalista e antiimigrantista, procuraram inserir na Carta Magna dispositivos restritivos, que condicionassem a entrada e instalação de imigrantes no país - e, para alguns grupos, pudesse haver a suspenção definitiva. Por fim, diante das pressões de grupos nacionalistas e de setores sociais mais exaltados, Getúlio Vargas, por força de decreto presidencial promulgado em junho de 1934, proibiu a entrada de assírios no Brasil, perfazendo uma conquista dos nacionalistas que se empenharam em impedir a acolhida deste grupo étnico.
Cabe analisar de forma mais pormenorizada a atuação da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres no decorrer deste episódio. Publicações encontradas na imprensa demonstram que a SAAT buscou articular um rede mobilizadora, almejando impedir a vinda de assírios. Até mesmo audiências pessoais entre membros da direção torreana e o presidente Getúlio Vargas ocorreram, conforme registros jornalísticos. Em longa exposição no Jornal do Commercio, de 21 de fevereiro de 1934, a SAAT se manifesta sumariamente contrária ao aceite dos assírios, vendo-os como perigosos e nocivos ao Brasil, sua gente e seus projetos de nação, os comparando como "restos inutilizáveis" não acolhidos em lugar algum: "O Brasil para fortalecer a solidariedade entre as nações, aceita o rebutalho humano que nenhuma outra nação quis receber em seu solo"13.
Em agosto de 1933, as forças militares iraquianas promoveram uma investida violenta contra os assírios que habitavam a região norte do Iraque. O suposto motivo seria a descoberta de uma conspiração de grupos cristãos contra o governo - acusações que se mostraram infundadas. Neste interim, as informações existentes dão conta de que o número de mortos está situado entre 600 e 3 mil assírios. Com esse episódio, que ficou conhecido como Massacre de Simele, aumentou a pressão por parte dos britânicos para que o Brasil aceitasse a entrada dos refugiados. Um comitê constituído dentro da Liga das Nações para mediar o assunto, presidido pelo general britânico John Gilbert Browne, intensificou as tratativas com o governo brasileiro, por meio dos Ministérios das Relações Exteriores e do Trabalho - o primeiro, chefiado por Félix de Barros Cavalcanti de Lacerda e, o segundo, por Joaquim Pedro Salgado Filho.
O acordo entre os representantes da Liga das Nações e do Governo Provisório confirmavam o aceite e instalação dos assírios, com assentamento no Paraná. Segundo Lesser14o Brasil estabeleceu algumas condições, especialmente de ordem financeira e logística, mas não determinou restrições no campo racial, étnico ou religioso. Os elementos condicionais eram: a) o Brasil não arcaria com despesas relacionadas ao transporte e instalação dos refugiados; b) todos os imigrantes deveriam ser, obrigatoriamente, agricultores; c) um grupo de refugiados só poderia desembarcar no território brasileiro após o anterior ter sido devidamente assentado e, d) caso ocorresse qualquer problema mais grave ou insucesso no empreendimento, a responsabilidade seria apenas da Liga das Nações e Paraná Plantations Ltda., sem prejuízos ao governo federal.
Logo as primeiras notícias sobre o fechamento do acordo começaram a circular, a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres capitaneou uma ferrenha tarefa de impedir a execução deste plano de imigração refugiada. Através da imprensa, a estratégia era a de desmoralização completa dos assírios, acentuando os predicados desabonadores, exasperando seus "desvios morais", perigosos e inadmissíveis, capazes de "ferirem gravemente a altivez do povo brasileiro". Essa plataforma discursiva pode ser encontrada em notas como a seguinte, difundida por periódicos sediados, especialmente, no centro do país. Conforme nota publicada em fevereiro de 1934,
A Sociedade dos Amigos de Alberto Torres já documentou e provou fartamente que os assírios que vem para o Brasil não são lavradores. O Dr. Heraclides Souza Araújo, que percorreu o Iraque em estudos de lepra, viu-os em seu habitat e afirmou que eles não são lavradores e sim vagabundos e desordeiros. O Sr. Paulo Vogeler, técnico de imigração do Ministério da Agricultura, que viveu 8 anos na zona do Iraque, confirma as palavras do Dr. Souza Araújo: as revistas europeias que tem tratado desse gente também afirmam que eles não são lavradores e sim desordeiros.
A Sociedade dos Amigos de Alberto Torres cumpriu o seu dever, denunciando esse crime que se pratica contra o futuro da nação, recebendo-se um bloco humano inassimilável ao nosso meio.
A vinda dos assírios tem sua razão final na imposição do capitalismo inglês, tendo sido eles desalojados de suas terras por possuírem petróleo, foram-lhes compradas terras no Brasil a uma Companhia Inglesa, possuidora de 500.000 alqueires no Norte do Paraná, que assim vê reembolsado parte do capital ali empregado.
Ainda temos esperança de que este pobre povo brasileiro um dia acordará para mostrar ao estrangeiro que o Brasil deve ser nosso!15
Sobre este grupo étnico pesava o fato de ser considerado fora dos padrões eugênicos delimitados, por alguns cientistas e intelectuais, como assimiláveis e contribuintes para uma melhoria da raça brasileira. Mesmo que contassem com o fator religioso, ou seja, estivessem inclusos na confessionalidade católica - ao menos nos discursos externos -, isso não era visto como suficiente, pois sua origem geopolítica - instalados no Reino do Iraque - lhes renderam a adjetivação perniciosa de "muçulmanos ou islamitas fanáticos". Esse caráter "dúbio e exótico" dos assírios era utilizado para difundir uma ideia de periculosidade e ameaça.
Outra alternativa, também fazendo uso da imprensa, era direcionar críticas para sujeitos políticos que, naquela conjuntura, foram rotulados como "vendilhões do país", subalternos aos interesses imperialistas e pouco preocupados com as consequências da vinda de grupos indesejáveis e inassimiláveis ao Brasil. E a figura escolhida no caso da imigração assíria foi o ministro Salgado Filho. A virulência dos argumentos de Raul de Paula, expressos nas páginas do Jornal do Commercio, incentiva até mesmo o uso de violência de qualquer espécie, se assim fosse necessário, para impedir a instalação assíria no Paraná. Além de asseverar o apoio da SAAT aos "desamparados irmãos paranaenses", cogitou residir em Salgado Filho um perfil de traidor aos interesses estritamente nacionais, agindo como um "negociante inescrupuloso". Nas palavras registradas de Raul de Paula:
[...] a nenhum argumento atendeu o Sr. Salgado Filho, que acha ser o Brasil a Sapucaia do mundo. Só resta ao próprio povo paranaense, povo altivo e de tradições de honra, levantar-se como uma só vontade, e violentamente impedir que essa gente aventureira que em breve vai poluir os campos dos pinheirais lendários, se instale nesse lindo pedaço do Brasil, para onde levará a turbulência e o saque que pratica no Iraque.
Paranaenses: pelo nosso futuro, pela nossa paz, pelo nosso sossego, pela nossa grandeza, não consenti que a Inglaterra instale no Norte deste Estado os assírios que ele desalojou do Iraque.16
Uma concisa apreciação de termos utilizados neste trecho, por sua vez, já nos indica o caráter fortemente preconceituoso e discriminatório, com o qual a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres atribuía aos seus adversários quanto aos grupos que julgava inferiores. O discurso depreciativo ficou claro no trecho "essa gente aventureira que em breve vai poluir [...]". Caso não fossem suspensas as negociações em torno da questão assíria, segundo os ideólogos torreanos, o Brasil seria profundamente maculado por uma presença cancerígena em seu interior, "poluindo" nossa integridade social e cultural.
Já ao final de sua nota, Raul de Paula empregou um tom de humildade ao referir-se à SAAT: "se a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres dispusesse de poder, impediria por todos os meios e modos esse crime que se está preparando contra o futuro do Brasil". Inicialmente, cabe salientar que, desde seus primórdios, a agremiação torreana dispunha de certo poder dentro do jogo de influências e interesses vigentes, a partir da rede de interações que constituiu. As pretensas "limitações" da SAAT, evocadas por Raul de Paula, não condiziam com o observado na prática, ao longo dos anos 1930.
A Sociedade dos Amigos de Alberto Torres não se fazia de rogada, buscando atingir seus objetivos e implementar sua agenda junto às mais altas autoridades federais. Tanto que uma notícia datada de 13 de março de 1934, novamente no Jornal do Commercio, comunicava que a SAAT enviou ao presidente da República, Getúlio Vargas, um memorial "contra a vinda dos beduínos do Iraque"17. Após as considerações iniciais, exaltando os predicados e boas obras feitas por Vargas, o documento adentra mais precisamente na querela assíria.
Apresenta-se, agora, o veredictum do julgamento final dos assírios. Quando surgiram as primeiras vagas notícias telegráficas das démarches processadar no Bureau Nansen da Liga das Nações, a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, tendo no seu seio alguns curiosos da questão imigratória, poz-se a estudar e pesquisar o assunto. E, com espanto, verificou que a Liga das Nações e a Companhia de Terras Norte do Paraná, transacionavam, ouvindo somente os seus interesses, a vinda de quase vinte mil famílias inadaptáveis e inconvenientes para o sul do Brasil. Eram as célebres tribos do Iraque, cuja história recente nos Balcãs e na Turquia é "tão confusa e tão complexa" segundo o sr. Johson, nosso visitante e secretário no Bureau Nansen, "que a própria Liga das Nações, enviando ao Oriente emissário especial, nunca se pode pronunciar sobre ela". Eram os mesmos homens que, sob a hierarquia multissecular dos seus sacerdotes e dos seus marshimuns, tinham amargado a existência do pobre Rei Faiçal. E a Liga das Nações, impulsionada pelo grupo Shell do petróleo, que tem vultuosos interesses na exploração de poços identificados no Iraque, começou a leiloar com esse rebutalho étnico, que a Companhia de Terrar Norte do Paraná, bem paga, arrematou.
A Companhia de Terras Norte do Paraná era uma subsidiária da Paraná Plantations Ltda., companhia inglesa que foi responsável pela colonização de uma vasta área do território paranaense. A empresa seguia o modelo inglês de fracionamento rural, concomitante com a expansão da malha ferroviária naquela região. Assim sugiram cidades como Apucarana, Arapongas, Cambé, Ibiporã, Jandaia, Tapejara, (termos de origem indígena), Londrina e Rolândia (baseados em palavras inglesas e germânicas). Posteriormente, com a política de nacionalização do Estado Novo e a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a empresa foi adquirida por acionistas brasileiros. Tendo em vista que a Grã-Bretanha era "protetora" dos assírios católicos, a acusação principal é de que toda aquela trama não passava apenas de um grande golpe comercial envolvendo diversos atores - o governo britânico, a companhia petrolífera, a colonizadora de terras instalada no Paraná e alguns setores "pouco nacionalistas" do governo brasileiro - especialmente os ministros Cavalcanti de Lacerda e Salgado Filho.
Salgado Filho ainda era acusado de descumprir promessas que teria feito, comprometendo-se em transferir campesinos que viviam na miséria nordestina, garantindo-lhes terra e trabalho em novas áreas de expansão, como era o norte do Paraná naquela década de 1930. Contudo, o ministro do Trabalho teria preterido seus "irmãos brasileiros", bajulando os interesses comerciais britânicos e trazendo imigrantes apontados como "desqualificados e moralmente primitivos" para o país que deveria defender fervorosamente, tendo em vista ser integrante do governo central.
A mesma publicação demonstrou que havia, dentro do Governo Provisório, uma divisão ministerial em torno do assunto da imigração assíria para o Brasil. Segundo os torreanos signatários do memorial, além deles, outras entidades e a própria população se mostrava descontente com o acordo firmado. Entretanto, será que efetivamente a população se engajou nesta campanha antiassíria? Qual era o verdadeiro grau de conhecimento sobre a questão e as características deste grupo? Sabendo que os índices de analfabetismo e de restrições à informação eram acentuados no Brasil das primeiras décadas do século XX, é plausível que essa população ao qual o memorial se refere não abarcasse, na prática, os grupos sociais mais populares. Estes até poderiam ser envolvidos na contenda, como objetos de disputas de poder, mas pouco eram ouvidos.
3. Dois lados de um debate e um governo dividido: a vinda dos assírios
Retomando a polarização sobre o tema dentro do governo de Vargas, enquanto Salgado Filho e Cavalcanti de Lacerda se mostravam favoráveis ao ingresso de refugiados assírios, Góis Monteiro, Protógenes Guimarães e Juarez Távora, ministros da Guerra, Marinha e da Agricultura, respectivamente, declararam sua desaprovação para com aquela tentativa de imigração. Dentro dos Ministérios do Trabalho e das Relações Exteriores, também haviam funcionários, detentores de funções expressivas, que julgavam uma iniciativa inconcebível acolher aquele "grupo alienígena" em nosso território. Na Assembleia Nacional Constituinte, formada e atuando desde 1933, também havia um forte bloco de oposição ao acolhimento assírio. Este grupo contava com nomes como Xavier de Oliveira, Artur Neiva, Miguel Couto - que também se destacaram na campanha antiimigrantista promovida contra outros grupos étnicos, como será visto em seguida18.
Houve repercussão importante em torno do memorial enviado pela SAAT ao chefe do Governo Provisório. Tanto que, para realizar uma análise mais "técnica" do documento - e de seus possíveis desdobramentos jurídicos e sociopolíticos -, foi instituída uma "comissão de inquérito", composta pelo consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Francisco José de Oliveira Vianna; o diretor geral do Departamento Nacional de Povoamento, Dulphe Pinheiro Machado e o médico Renato Kehl. O grupo era secretariado por Pedro Marques, funcionário da Secretaria Geral do Ministério do Trabalho19.
Observando a nominata da comissão, Oliveira Vianna e Dulphe Pinheiro Machado eram integrantes da SAAT e, por seu turno, Renato Kehl era um influente eugenista, alinhado com a denominada eugenia negativa, um modelo radical caracterizado pela defesa de medidas extremas, como o controle matrimonial e reprodutivo, a esterilização dos considerados "degenerados" e a seleção criteriosa e restritiva ao perfil de imigrantes que deveriam ingressar no país. Como anteriormente visto, essa radicalização ideológica de Renato Kehl o aproximou do modelo eugênico adotado pela Alemanha nazista. Sobre os pareceres emitidos pela comissão de inquérito, levando em conta as vinculações e posições ideológicas de seus membros, as indicações emitidas eram pela recusa irrevogável de refúgio aos assírios católicos oriundos do Iraque.
Como resultado da forte oposição liderada pela Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, Getúlio Vargas revogou as negociações e determinou que a entrada dos refugiados assírios no Brasil estava vetada. A vitória torreana nesta querela deu ânimos para uma campanha ainda mais intensa: impedir a inserção de imigrantes japoneses no país, além de promover um controle severo sobre os já instalados no Brasil e seus descendentes.
Augusto Saboia Lima, presidente da SAAT em 1934, publicou na imprensa fluminense carta endereçada ao deputado federal Miguel Couto20. Além de tecer palavras laudatórias pela "cruzada" contra a imigração japonesa promovida junto à Assembleia Nacional Constituinte, o texto deixa claro quem compunha o grupo antinipônico: além do próprio Couto estavam também Xavier de Oliveira e Artur Neiva, Pacheco e Silva e Teotônio Monteiro de Barros.
O caso envolvendo os refugiados assírios católicos, assim como o relativo aos japoneses, evidenciaram o caráter racista que ganhava força dentro da SAAT, mesmo diante de tentativas de amenização, como aquelas que advinham de Heloísa Alberto Torres e Roquette-Pinto, por exemplo. A agenda antiimigração era justificada na apropriação e ressignificação de problemáticas levantadas por Alberto Torres, ao identificar que os governos republicanos desvalorizavam o trabalhador nacional, preterindo-o em preferência ao imigrante. Deste modo, especialmente o "homem pobre nordestino" não encontrava "voz e nem vez" nas políticas sociais brasileiras daquela conjuntura. Todavia, embora defensor enérgico do trabalhador brasileiro, Alberto Torres, mesmo em suas nuances mais autoritárias, não compartilhava do pensamento discriminatório de seus pretensos "discípulos". E o caráter racista da agremiação torreana ganhava contornos mais densos, quando direcionados para alguns grupos. Na mesma nota do Jornal do Commercio, enviada ao deputado Miguel Couto, isso é proclamado de forma contundente:
A Sociedade dos Amigos de Alberto Torres várias vezes externou o seu pensamento relativamente à nossa política imigratória. Apoiados na doutrina do nosso patrono, somos radicalmente contra qualquer espécie de imigração, enquanto houver tantos brasileiros a reclamarem uma assistência do Estado. E mais particularmente combatemos a recepção de novos inassimiláveis no "melting-pot" da nossa demografia. Tal é o caso dos japoneses, à luz dos ensinamentos da antropologia e da psicologia das raças, como tão brilhantemente o tem demonstrado V. Excia.21
Além da eugenia racial e da teoria de inferioridade dos japoneses, aspectos geopolíticos também embasavam os discursos dos representantes da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres. O expansionismo nipônico, por meio de ações militares, era acentuado como mais um fator que indicava sinal de perigo, pois ao aceitar a vinda de mais imigrantes - sem contar os já instalados no território brasileiro -, as chances de uma tentativa de apropriação territorial de áreas do Brasil por parte do Império do Japão se tornavam infindáveis - seguindo a mesma perspectiva discursiva atribuída ao perigo alemão e ao colonialismo nazista.
Na publicação torreana, um detalhe me chamou atenção. Em dado momento, o texto assim demarcava: "na incisiva e feliz expressão de Mussolini". Embora possa se tratar apenas de uma concordância com uma expressão especifica, cunhada pelo Duce italiano, também contribui para a interpretação de que a SAAT se aproximava do fascismo - em alguns critérios. É possível identificar uma inclinação fascista na construção e utilização de um discurso patriótico exacerbado, coadunado com a intolerância e a construção de inimigos da Pátria, especialmente acusando imigrantes aqui instalados - e seus descendentes - de agirem contra o Brasil.
Em 1935, ocorreu uma tentativa, promovida por Rafael Xavier e Plínio Salgado, líder integralista que ingressara na SAAT, de aproximação mais estreita entre a agremiação torreana e a AIB - com a intenção, por parte de Salgado, de absorver a SAAT, arregimentando seus membros mais influentes e capitalizando sua força ideológica e política. Mas esta justaposição entre as duas entidades nacionalistas não foi bem aceita por parcela massiva dos torreanos, interpondo barreiras que inviabilizaram esta união. A AIB, por seu turno, era um movimento político e ideológico de inspiração notadamente fascista, fundamentando sua agenda e procedimentos em uma adaptação abrasileirada do modelo italiano.
Entrementes, o texto de Saboia Lima também admoesta o "amor" do brasileiro ao Brasil, tal qual os japoneses o nutrem por seu país, sua nação. E é categórico ao afirmar que a presença nipônica no Brasil era um "mal que necessitava ser integralmente extirpado":
Contra o câncer nipônico, cumpre agir niponicamente. Com persistência, com rapidez e com patriotismo! Amemos nossa terra como eles amam a sua! A Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, vitoriosa no tribunal da opinião pública do Brasil no caso da imigração dos beduínos do Iraque, vai agora abordar o problema japonês.
E como assinalado anteriormente, o êxito na questão assíria fez com que a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, de certa forma, se autoproclamasse "detentora do direito de aceitar ou impedir a política imigratória brasileira" -contando com um aparato informativo e político para concretizar seus projetos nacionalizantes. E naquele exato momento, se fazia necessário, aos olhos de seus integrantes, abortar qualquer política que favorecesse a entrada de japoneses e outros imigrantes "indesejáveis" no Brasil.
4. Contra os inimigos amarelos: imigrantes japoneses
Quase vinte e cinco anos depois da chegada das primeiras levas de imigrantes japoneses, o destino migratório deste grupo étnico no Brasil estava em disputa na arena da Assembleia Nacional Constituinte de 1933-1934. Os deputados antinipônicos contavam com respaldo bastante veemente da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres e esta, por sua vez, buscava cooptar o apoio da opinião pública, lançando mão de recursos como a imprensa e conferências públicas.
Se havia, entre os deputados constituintes, o já mencionado bloco antinipônico, alguns parlamentares militaram no lado oposto, defendendo um discurso favorável aos imigrantes japoneses no Brasil. Os principais líderes pró-nipônicos foram o médico paraense Bruno Lobo - o mesmo que havia dirigido o Museu Nacional antes de Artur Neiva - e o advogado paulista Carlos de Morais Andrade. Assim como os deputados contrários à imigração nipônica dispunham de um grupo de apoio - a SAAT - e a imprensa para difusão de suas argumentações, o grupo de Lobo e Morais Andrade contava com Alfredo Ellis Jr. (professor e historiador), Alexandre Konder (jornalista) e Nestor Ascoli (advogado), que se articularam no enfrentamento dos discursos parlamentares, especialmente contra Miguel Couto e Xavier de Oliveira. Neste primeiro momento, me deterei aos aspectos mais restritos ao espaço utilizado na Assembleia Nacional Constituinte pelos deputados anti e pró-nipônicos. Mais adiante, adentrarei nas contendas estabelecidas entre a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres e Alexandre Konder através da imprensa, onde os principais alvos deste último foram Raul de Paula e Rafael Xavier.
Segundo Priscila Nucci22, "os parlamentares antinipônicos, além de constituírem maioria na Constituinte, foram considerados referências para o tratamento do assunto e citavam obras de autores europeus especialistas em matéria de raça e de eugenia". Na qualidade de médicos, Miguel Couto, Xavier de Oliveira e Artur Neiva buscaram, cientificamente - de acordo com suas percepções eugênicas -, apresentar argumentos que embasassem a decisão constitucional de limitar ou barrar definitivamente o ingresso de japoneses e outros grupos no Brasil. Embasamento esse que se ocupava tanto de aspectos biológicos quanto geopolíticos e socioculturais. Contudo, em meio aos sustentáculos técnicos, o preconceito racial transparecia -mas seus autores tentavam apregoar a si mesmos uma posição desprovida de tal atitude. Exemplo está registrado nos Anais da Assembleia Constituinte (1933) onde Miguel Couto afirmou que "se já prestamos um tão grande serviço à humanidade na mestiçagem do preto, é o bastante. Não nos peçam outras, tanto mais quanto ainda não completamos a primeira. A do amarelo, a outrem deve competir. Não tenho, pois, como disse, preconceitos de raça"23.
No lado oposto na arena de combate, Bruno Lobo, em suas alegações de defesa aos japoneses e seu processo de migração para o Brasil, refutava a tese de inassimilação e de completo afastamento biológico-cultural deste povo para com os brasileiros. Teoricamente, um dos pesquisadores eleitos como referencial por Bruno Lobo foi membro fundador da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres: Edgard Roquette-Pinto. Uma das teses defendidas por Roquette-Pinto afiançava que os indígenas brasileiros, povoadores originários destas terras, tinham sua origem racial no ramo "amarelo-mongólico", originários da Ásia.
Em uma hipótese considerada ainda mais inusitada, Bruno Lobo chegou a preconizar que os primeiros grupos indígenas que aqui habitaram - dezenas de séculos atrás - teriam emigrado mais precisamente do Japão. Com isso, teria assim ocorrido a "[...] primeira atuação de indivíduos de raça mongólica em nosso país", onde o processo de adaptação e evolução proporcionou a sobrevivência destes grupos ao ambiente brasileiro e ao seu sistema climático complexo. Construindo inclusive um enredo mais próximo da literatura, essas percepções buscaram evidenciar que os traços e fenótipos, cor da pele e ligação irrestrita com a natureza eram sinal dessa conjugação originária comum. Ao defender a presença de imigrantes nipônicos na região amazônica, reforçava sua teoria da "matriz asiática dos nativos brasileiros": "[...] vendo os nossos índios e caboclos do Amazonas, os japoneses pensam que são seus patrícios, enquanto, por outro lado, alguns dos nossos habitantes do extremo norte do Brasil, se iludem-se com eles e pensam que são da terra"24.
Essas afirmativas, divulgadas nas sessões da Assembleia Nacional Constituinte ou por meio da imprensa, visavam também angariar a simpatia da população para com a causa pró-nipônica. Contudo, o poder comunicacional e de articulação dos congressistas liderados por Miguel Couto e da SAAT eram mais eficazes em seu trabalho de arregimentação social. Se as discussões teóricas, sobre aspectos psíquicos, biológicos ou antropológicos poderiam ser vistos como "etéreos" e mais distantes da compreensão da maior parcela da população brasileira, haviam episódios mais empíricos e palatáveis que poderiam ser utilizados como instrumento na defesa de um discurso antinipônico. Diante desse panorama, os planos imperialistas do Japão não passaram impunes pela análise e discursos condenatórios dos deputados contrários à presença japonesa no Brasil - e aos nacionalistas torreanos.
As medidas expansionistas adotadas pelo Japão seguiam os exemplos empreendidos anteriormente por potências ocidentais, ainda no século XIX - como fizeram Alemanha, Inglaterra, Bélgica, França e Holanda. E, embora estes países tenham suplantado uma feroz campanha colonialista, especialmente no continente africano, os principais porta-vozes da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, por exemplo, não teceram ou registraram maiores críticas aos modelo que estes países europeus adotaram - pelo contrário, muitos torreanos acharam justa e prudente essa intervenção, pois representaria uma "chance evolutiva para com uma população claramente inferior", como eram classificadas as nações e povos africanos.
Para os parlamentares antinipônicos e membros da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, a estratégia expansionista em relação ao Brasil era diferente: não se tratava de usar forças militares, mas de fomentar o enquistamento dos núcleos imigrantistas, gerando celeumas e rupturas destes imigrantes para com a sociedade receptora brasileira.
Como tentativa de refutação das teses do isolamento e enquistamento japonês junto ao tecido social brasileiro, Bruno Lobo e Carlos de Morais Andrade, em seus relatos e escritos, procuraram demonstrar, a partir de vivências do cotidiano - inclusive adentrando no prisma da religiosidade -, que os japoneses estavam empenhados em inserir-se na sociedade brasileira que lhe havia aberto as portas:
[...] como se deparam outras provas de perfeita assimilação, até mesmo no que concerne à religião, conforme o reconhece o Prof. Von Ihering, escrevendo no "Diário Nacional de S. Paulo", em número de agosto de 1930: 'Os japoneses convertem-se ao catolicismo, mandam seus filhos aos grupos escolares nacionais. Mostram-se, portanto, adaptáveis'25.
5. Notas finais
No jogo de forças que esteve em disputa na Assembleia Nacional Constituinte de 1933-1934, o pêndulo se direcionou favorável ao grupo antinipônico. O objetivo e os conteúdos das emendas feitas pelos deputados eram com a intenção de proibir ou restringir a entrada, essencialmente, de negros e amarelos. Neste segundo grupo, apenas os japoneses constituíam uma corrente imigratória mais considerável para o Brasil. Apesar dessas propostas buscarem a proibição somente desses grupos, o texto final que foi aprovado estabeleceu a cota de entrada de 2% para todos os imigrantes. Isso foi uma ação estabelecida pelo Itamaraty, que exerceu um papel importante para "[...] impedir que a restrição fosse destinada apenas a africanos e asiáticos, ou ainda, que a imigração japonesa fosse proibida em sua totalidade [...]"26. As medidas restritivas foram possíveis graças a emenda propositiva de Miguel Couto, que foi aprovada por 141 deputados federais constituintes. Parte do texto presente no artigo 121 da Constituição de 1934 trazia a seguinte forma:
§6.o A entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necessárias a garantia da integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo, porém, a corrente imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de dois por cento sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinquenta anos. §7.o É vedada a concentração de imigrantes em qualquer ponto do território da União, devendo a lei regular a seleção, localização e assimilação do alienígena.
A Constituição aprovada e promulgada em 1934 reflete em si um elemento que ganharia maior destaque a partir do Estado Novo: a construção de uma identidade nacional, pautada em uma propalada "autenticidade brasileira", acentuadamente afastada da influência estrangeira - especialmente de grupos classificados como nocivos, inferiores, exóticos ou ameaçadores. Os discursos e representações manifestadas sobre determinados grupos étnicos, como os japoneses, não eram, por seu turno, um fenômeno restrito àquela conjuntura. Deputados como Miguel Couto, Pacheco e Silva, Artur Neiva, Xavier de Oliveira e Teotônio Monteiro de Barros expressavam uma concepção advinda de parcela importante da sociedade: o preconceito contra os estrangeiros, especialmente aqueles que não se enquadravam em um padrão idealizado por intelectuais e autoridades políticas nacionais - a partir de um pensamento forjado na eugenia negativa, xenofobia e hierarquização racial. E a Lei de Cotas representou, também, uma importante vitória para a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres.