Introdução
Ao longo do século 21, os jornalistas têm experimentado uma alteração veloz nas suas práticas profissionais e nas dinâmicas de produção de notícias no interior das redações. Essas mudanças resultam de um conjunto de fatores que envolvem a redução do número de jornalistas nas empresas de comunicação e a precarização do trabalho, a digitalização das redações e o amplo uso de ferramentas tecnológicas e aplicativos, até a introdução das lógicas do marketing e da plataformização (Figaro e Silva, 2020; dAndréa, 2020) na produção das notícias.
Em países como o Brasil, cujo tecido social é profundamente marcado pela violência urbana (Bueno e Lima, 2022, pp. 19-56)1, essa conjuntura ganhou complexidade adicional com o aumento de casos de agressões, ameaças e até assassinatos de jornalistas (Reis, 2023), principalmente nas coberturas de temas policiais, normalmente destacados nos jornais e noticiários televisivos. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji [2022a]) aponta um aumento de 69,2% de agressões graves contra jornalistas no país, no comparativo entre 2022 e 20212. Uma cartilha com nove princípios de segurança para jornalistas locais e independentes, e empresas de comunicação foi lançada pela Abraji a fim de fornecer orientações para garantir a segurança física e psicológica dos jornalistas "nas coberturas mais desafiadoras como conflitos, protestos e ações policiais" (Abraji, 2022b).
Uma das principais consequências do contexto relatado acima traduz-se no paulatino distanciamento dos jornalistas das ruas e de determinados territórios considerados hostis à presença de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, onde estão localizadas as sedes das redações das principais estações de televisão brasileiras, as empresas têm procurado estabelecer protocolos de segurança para proteger os jornalistas em coberturas policiais, como o uso de capacetes, viaturas de reportagem blindadas e coletes à prova de balas (Ramos e Paiva, 2007). Mas os equipamentos devem ser usados nos arredores dos locais considerados perigosos, pois, na prática, os jornalistas estão proibidos de entrar em regiões ligadas ao crime e ao tráfico de drogas (Grupillo, 2018).
Como produzir notícia sem poder estar no terreno para o contato direto com as fontes? Quais mecanismos de apuração acionar para verificar denúncias e fatos relacionados às ocorrências policiais? Sendo a imagem um elemento fundamental do jornalismo televisivo (Bourdieu, 1997; Squirra, 1993), como conseguir flagrantes que ilustrem um cotidiano cada vez mais distante da realidade produtiva dos jornalistas?
A partir desses e de outros questionamentos, neste artigo, procuramos analisar o aplicativo de alertas da violência urbana "Onde Tem Tiroteio" (OTT). Criado e alimentado por cidadãos sem o auxílio de jornalistas, o app possui aproximadamente cinco milhões de usuários no Brasil, tornando-se também uma importante ferramenta para a verificação de informações e para a obtenção de imagens entre produtores, repórteres e editores. Diante das dificuldades de realização da cobertura in loco, levantamos a hipótese de que o OTT funcione como ferramenta mediadora na medida em que fornece conteúdo considerado credível aos profissionais, fazendo a ligação entre eles e os territórios onde não estão presentes.
Em termos metodológicos, utilizamos a observação direta do aplicativo e do grupo de jornalistas no grupo de WhatsApp denominado "OTT-RJ Imprensa", formado por 245 profissionais de diversos órgãos de comunicação. Como complemento, realizamos ainda 13 entrevistas em profundidade com jornalistas ocupantes de diferentes funções nas quatro principais estações de televisão do Brasil. Procuramos compreender, por exemplo, em que medida o app preenche o gap deixado pelos jornalistas, como o fornecimento de informações e imagens contribui para a produção das notícias e qual é o papel da ferramenta no processo de apuração, um método central na prática profissional.
Assim, este trabalho está dividido da seguinte maneira: na primeira parte, discutimos a digitalização das redações e o uso de ferramentas tecnológicas e apps na produção noticiosa e a sua correlação com o paulatino distanciamento dos jornalistas da rua. Na segunda, propomos uma compreensão do problema no contexto de crescimento da violência contra os profissionais para, então, abordarmos o uso do OTT, seu funcionamento e importância como ferramenta mediadora à luz das entrevistas realizadas com os jornalistas.
Problema e metodologia
Não é de hoje que a cobertura policial ocupa uma parte considerável do noticiário televisivo e dos programas que mesclam jornalismo e entretenimento no Brasil (Sacramento, 2008). "002 contra o crime" (TV Excelsior, 1965), "Polícia às suas ordens" (TV Excelsior, 1966), "Patrulha da cidade (TV Rio, 1965), "Cidade contra o crime" (TV Globo, 1966), "190 urgente" (CNT, 1996), "Brasil urgente" (TV Bandeirantes, 1997), "Cidade alerta" (TV Record, 1995), "Aqui agora" (SBT, 1990), além dos mais recentes "Balanço geral" (RecordTV) nas suas versões regionais, "Linha direta" - que teve a sua primeira versão na década de 1990 e voltou à programação da TV Globo em 2023 - e "Primeiro impacto" (SBT) são títulos centrados na cobertura da violência urbana, que mostram a importância dada pelas empresas jornalísticas ao noticiário de crimes, em parte pelo seu potencial para atrair a audiência, tendo em vista as imagens fortes e impactantes que costumam exibir (Bourdieu, 1997).
Em Mídia e violência: novas tendências na cobertura de criminalidade e segurança no Brasil,Ramos e Paiva (2007, p. 77) ressaltam que, até a década de 1990, havia uma receptividade aos repórteres, mesmo nas regiões consideradas hostis, como as favelas do Rio de Janeiro3. De lá para cá, esse cenário foi sendo modificado pelas dificuldades de estabelecimento de canais de diálogo com as comunidades4 e pelas reações negativas de parte dos moradores como xingamentos e ameaças. De "voz da população", os jornalistas passaram a ser visto como "alcaguetes". O problema se intensificou, a partir de 2002, com a captura e assassinato do jornalista Tim Lopes, da TV Globo, no Complexo do Alemão, um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro. Portando uma câmera escondida, o jornalista tentava fazer uma matéria sobre a prostituição infantil em festas promovidas por traficantes de drogas.
Segundo Grupillo (2018), essa tensão e o medo também contribuíram para o afastamento dos jornalistas de determinados territórios, levando, inclusive, à proibição da entrada de repórteres e cinegrafistas nas áreas de conflito armado por parte das emissoras de televisão. Até bem pouco tempo, algumas emissoras chegavam a contratar moradores, cinegrafistas freelancers e até administradores de canais no YouTube relacionados à violência para realizarem a captação de imagens para as coberturas de crime.
Apesar de a cobertura policial ser importante para os noticiários televisivos, Nunes (2017) argumenta que esse contexto de violência promoveu o distanciamento dos jornalistas das áreas conflituosas. Isso levou ao aparecimento de ferramentas de comunicação descentralizadas, organizadas pelos próprios moradores, com o propósito de informar sobre a rotina de violência nos locais, tais como as páginas de bairro criadas no Facebook. Nesse contexto, este artigo está focado numa dessas ferramentas, o aplicativo de mensagens instantâneas da violência urbana OTT, criado e administrado por não jornalistas, em que estão reunidas milhares de pessoas situadas em diversos locais em torno de um problema comum, a violência (Latrônico e Mattedi, 2019). Este trabalho aborda parte dos resultados da pesquisa de doutorado que está em fase de conclusão na Universidade da Beira Interior, Portugal.
Inspirados pela etnografia virtual (Hine, 2000), adotamos a observação direta do aplicativo OTT e do grupo de jornalistas "OTT-RJ Imprensa" no WhatsApp. O grupo é formado por 245 jornalistas de variados órgãos de comunicação que têm contato direto com os administradores do app.
A observação ocorreu durante seis meses, entre 10 de junho e 15 de dezembro de 2020. A análise sistemática da dinâmica comunicacional estabelecida entre OTT e jornalistas nos permitiu, entre outras coisas, compreender o fluxo de transferência de informações e imagens da violência urbana que abastece os noticiários televisivos. Pudemos observar ainda a busca constante dos jornalistas por conteúdo audiovisual capaz de ilustrar as notícias das áreas conflagradas. Nossa hipótese surgiu dessa observação: o app OTT tornou-se uma ferramenta mediadora entre os jornalistas e os territórios onde não podem ou não conseguem estar presentes.
Como essa observação ainda deixou algumas lacunas, realizamos 13 entrevistas em profundidade (Duarte, 2005) com jornalistas ocupantes de cargos distintos em diferentes níveis da hierarquia profissional das quatro principais estações televisivas do Brasil: TV Globo, RecordTV, SBT e Band. Realizamos um roteiro de 14 perguntas semiabertas que, além de levantar um perfil dos informantes, abordavam a importância dos flagrantes captados pelos cidadãos para a produção dos noticiários, os mecanismos de verificação utilizados pelos jornalistas, o diálogo com as páginas de bairro e os efeitos do uso de imagens produzidas por não jornalistas na autoridade dos profissionais, entre outras questões. Optamos por não revelar os nomes dos respondentes apesar de todos terem concordado com as entrevistas e assinado documentos de cessão do conteúdo para fins científicos. As respostas serão, portanto, atribuídas a jornalista 1, jornalista 2 e assim por diante. Antes, porém, de passarmos à discussão que envolve a utilização de ferramentas tecnológicas na produção noticiosa contemporânea, faremos uma breve descrição do app OTT.
Onde Tem Tiroteio
O OTT atua na produção nacional de informações da violência, alcançando, aproximadamente, cinco milhões de pessoas (OTT, 2020). Trata-se de uma iniciativa de quatro amigos não jornalistas interessados em criar em uma rede de comunicação de segurança, baseada na lógica C2C, do cidadão para o cidadão. Isso quer dizer que os informes publicados no app não são previamente verificados com fontes oficiais, como acontece no jornalismo tradicional. Os administradores do OTT dizem contar com um conjunto de informantes em zonas de conflito que auxiliam na verificação das informações publicadas, mas o objetivo principal é que os seguidores também participem com a verificação coletiva das ocorrências por meio dos comentários e da publicação de imagens. Antes do app, o OTT era uma página no Facebook com 744 mil seguidores.
Essa dinâmica dialoga com as práticas do "jornalismo participativo", caracterizado pela participação ativa dos cidadãos tanto nos processos de coleta quanto nos de distribuição e curadoria das informações (Bowman e Willis, 2003). Gillmor (2004) associa iniciativas cidadãs dessa natureza a um certo equilíbrio de poder entre jornalistas, órgãos de comunicação e público. Há uma inversão da lógica "filtrar primeiro, depois publicar" comum no jornalismo tradicional. No chamado "jornalismo cidadão" ou "participativo", trata-se de "publicar primeiro, depois filtrar", o que é feito em conjunto pelos participantes, na medida em que as informações vão sendo divulgadas. Assim, enquanto no jornalismo tradicional os jornalistas procuram controlar e fazer a pré-seleção do conteúdo que será processado em notícia (gatekeeping), no jornalismo participativo, o cidadão atua como um curador ou guardião do conhecimento (gatewatching [Bruns, 2005]).
No modelo organizativo da ferramenta OTT, os usuários são identificados por meio de um avatar (Figura 1), que procura ranquear a quantidade e a qualidade da participação no app. Quanto maior é o número de relatos espontâneos publicados e quanto mais qualificados forem os posts e os comentários, mais alta é a colocação do participante no quadro de avatares. Isso significa que seguidores com avatares "fiel" ou "king" são mais participativos e costumam contribuir com informações confiáveis e verificáveis. Quadros (2005) destaca que esse modelo de classificação já era utilizado nos sites que promoviam o jornalismo participativo. Com essa estratégia, o OTT confere mais credibilidade aos seguidores mais participativos.
Outra característica do aplicativo é que os alertas costumam ser tipificados com ícones gráficos conforme a gravidade das ocorrências, variando em nove tipos diferentes. Os tiroteios, por exemplo, são representados por três cápsulas de balas, enquanto as perseguições policiais são apresentadas com a figura de um agente rendendo uma pessoa. Há ainda dois ícones que indicam a publicação de fotografias ou vídeos dos eventos de violência relatados (Figura 2).
Os alertas são publicados em formato de textos curtos, com, no máximo, três linhas. No topo das publicações aparece o tipo do alerta e o nome em letras maiores. Na parte inferior, indicam-se a data, o horário da publicação no app, que pode ser distinto do horário das ocorrências, e a localização. Além de comentar, os usuários também podem compartilhar os alertas.
Tecnologia e novas práticas jornalísticas
É inegável a incidência das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) sobre o mundo do trabalho dos jornalistas. Realizado no âmbito da pesquisa sobre o Perfil do jornalista brasileiro, o estudo de Mick (2015) analisou a emergência de novas funções e atividades profissionais em decorrência da convergência digital e do incremento das mídias e das redes sociais no jornalismo. Trabalharam com as respostas de 4.183 jornalistas5 a um questionário on-line e perceberam que mesmo os jornalistas em funções convencionais diziam estar inseridos em novas atividades ligadas aos conteúdos digitais, como blogs, redes e mídias sociais.
Assim, "funções tradicionais ligadas à apuração e à produção de informação, receberam atualizações, em denominações tais como repórter de web, redator de conteúdo online e webjornalista" (Mick, 2015, p. 26), o que indica o aparecimento de novas funções e atividades ligadas à internet e ao uso de novas ferramentas digitais e mídias e redes sociais. Trata-se de uma "mutação" derivada não apenas da ação de agentes humanos a partir de novas experimentações, mas também de reações diante de inovações e novas situação que afetam tanto o fazer jornalístico quanto os valores, a representação social e os produtos. Essas transformações foram observadas em diversos momentos da história do jornalismo, e estaria se repetindo, agora, com a chamada "notícia digital" (Jorge, 2013, p. 149).
Deuze e Witschge (2015) abordam, por exemplo, a importância de se olhar para os novos espaços de produção que aparecem com uso da internet, deslocando a centralidade do ambiente da redação. Há, cada vez mais, jornalistas a trabalhar como freelancers, elaborando suas reportagens a partir de espaços compartilhados de trabalho, no trânsito ou em casa. Uma clara adaptação das redações e dos jornalistas ao ritmo da sociedade em rede e conectada (Castells, 1999), e ao impacto das plataformas digitais sobre a produção e a distribuição dos conteúdos de interesse jornalístico (Figaro e Silva, 2020; d'Andréa, 2020).
No Brasil, diferentes estudos indicam que a pandemia da covid-19 intensificou os processos de digitalização das redações, introduziu novas atividades, o home-office e os modos de fazer mediados pelas TIC. Em casa, milhares de jornalistas passaram a apurar e produzir a distância, através da utilização das redes sociais e, principalmente, do WhatsApp. A ferramenta, que já era utilizada para falar com fontes e produzir matérias antes da covid-19, passou a ser fundamental para a apuração e para a verificação de informações. Para os jornalistas, contudo, "sem poder circular, como servir de testemunha dos fatos e acontecimentos?" (Lima, 2022, p. 16).
A investigação aponta para a ampliação do uso das plataformas e do WhatsApp no trabalho dos jornalistas em jornais brasileiros entre 2020 e 2021, o que reconfigura o cenário produtivo no qual "as tecnologias de comunicação passaram a mediar de forma mais acentuada as narrativas (tanto no processo de coleta do material como aquelas que tentam transmitir aos leitores)" (Lima, 2022, p. 17), com efeito sobre a identidade dos jornalistas.
Stacciarini (2019) explica que a apuração é uma das fases de maior importância, se não a mais importante do trabalho dos jornalistas, caracterizada pela busca dos detalhes de um acontecimento, responsável pela credibilidade da reportagem. Assim, a autora procurou analisar se a mediação do WhatsApp na apuração de temas relacionados à segurança pública no Distrito Federal gerava erros nas matérias dos três principais veículos de comunicação diária. Verificou que boa parte das notícias foi gerada nos sites minutos após a troca de mensagens entre jornalistas e fontes nos grupos formados por agentes da segurança pública (policiais, bombeiros e assessorias de imprensa) no aplicativo. Stacciarini identificou erros de informação em 23 matérias, durante 26 meses de análise, o que sugere pressa para publicar e falha de apuração com falta de cruzamento de informações com outras fontes.
A mediação tecnológica na produção jornalística também pode influenciar na pasteurização e na uniformização das notícias (Cavalcanti, 2016), sem falar no aumento do volume de trabalho dos jornalistas que se veem obrigados a participar de dezenas de grupos de mensagens (Schuch e Jorge, 2022). Em outros casos, a euforia inicial provocada pela agilidade e pela ampliação das possibilidades de contato com o público deu lugar à frustração diante da falta de condições e recursos humanos para oferecer respostas a esse mesmo público (Garau, 2018).
De um lado, a utilização das TIC está no centro do debate sobre as alterações na temporalidade do jornalismo (Franciscato, 2019) e sobre as mudanças na cultura e nas práticas profissionais (Waltz, 2015) ao promover a aceleração e o crescente distanciamento dos jornalistas do principal ambiente fornecedor de substrato para as matérias: a rua. Em vez de coletar material e descobrir fatos novos, repórteres e editores têm se tornado tratadores de informações e textos produzidos por outras pessoas. O sociólogo francês Erik Neveu (2004) usou o termo "journaliste-assis" (jornalista sentado) para designar esse tipo de trabalho redatorial em oposição ao jornalismo orientado para a coleta de informações no campo ou "journaliste-debout" (jornalista de pé).
De outro lado, porém, os jornalistas atribuem às novas ferramentas tecnológicas vantagens como agilidade e maior êxito no contato com as fontes, rapidez na comunicação, facilidade para usar as repostas que ficam gravadas no telefone e até aparecimento de outras formas de apurar (Lima, 2022). A seguir, procuramos abordar tais questões com foco na cobertura da violência urbana.
Distanciamento e limites da cobertura da violência nos telejornais
No Brasil, além da incorporação das TIC à rotina produtiva, o distanciamento dos jornalistas das ruas e dos chamados "territórios conflagrados" está associado à violência e à hostilidade contra os profissionais. Desde 2002, repórteres e cinegrafistas têm encontrado constrangimentos e limitações, especialmente na cobertura de crimes.
O assassinato do jornalista Tim Lopes (2002), além das mortes dos cinegrafistas Gelson Domingos (2011) e Santiago Andrade (2014), ambos da TV Band, em coberturas jornalísticas em diferentes regiões de conflito no Rio de Janeiro, levaram os órgãos de comunicação, especialmente as emissoras de televisão, a implementar protocolos de segurança que pudessem salvaguardar seus profissionais. Na TV Globo, por exemplo, é proibido entrar em qualquer zona de confronto; algumas reportagens só podem ser feitas com o uso de viaturas blindadas; os repórteres são orientados a procurar lugares movimentados, com a presença de policiais que possam lhes oferecer maior proteção e auxílio no deslocamento rápido em casos de tiroteio. Além disso, uma equipe de segurança passou a fornecer pareceres técnicos antes do trabalho jornalístico em zonas consideradas hostis (Grupillo, 2018, p. 78).
Em 2016, a mesma emissora criou o aplicativo "Na Rua", com a proposta de encorajar os cidadãos a enviar fotos e vídeos de eventos que tivessem testemunhado e que pudessem ser de interesse jornalístico. A primeira reportagem produzida e exibida com o auxílio das pessoas através do aplicativo foi sobre um tiroteio na favela da Rocinha. Outras estações de TV procuraram implantar números de telefones para envio e recebimento de mensagens pelos WhatsApp, sem falar da compra de imagens e informações de cinegrafistas freelancers (Reis, 2023).
Nunes (2017) argumenta que o paulatino distanciamento dos jornalistas das áreas consideradas perigosas e a consequente redução da cobertura, juntamente com o desenvolvimento da internet, foram decisivos para o aparecimento de mecanismos descentralizados de comunicação criados pelos cidadãos a partir do uso de redes sociais como o Facebook, uma delas foi o OTT.
Antunes e Matheus (2019) destacam que as informações publicadas pelo OTT funcionam como bússola para os indivíduos transitarem pela cidade. Ao transcenderem o espaço virtual para se concretizarem em ações no espaço físico, como, por exemplo, a escolha de um trajeto a seguir, os alertas da violência alteram a relação dos usuários com o tecido urbano, "redimensionando as práticas sociais e a experiência do cidadão" (p. 250). Para Latrônico e Mattedi (2019), mais do que alterar rotinas individuais no contexto das grandes cidades, ferramentas como o OTT produzem territórios virtuais customizados que funcionam como instrumento de mediação social, indicando a vulnerabilidade dos indivíduos em situações de violência.
Com o olhar sobre a produção de notícias, Reis e Serra (2022, p. 77) acompanharam o fluxo de imagens da violência que percorre o app até os telejornais. Perceberam que o conteúdo produzido pelo OTT tende a ser exibido com destaque nos noticiários, mas algumas vezes sem a explicação sobre a sua origem ou autoria. Há ainda situações em que os vídeos são creditados de forma genérica às "redes sociais" ou aos "telespectadores", o que suscita discussões sobre a autoridade dos jornalistas profissionais.
Neste trabalho, nosso objetivo é compreender em que medida o app preenche o gap deixado pelos jornalistas com o distanciamento dos repórteres e das mídias tradicionais das ruas, em especial dos territórios conflagrados. Nossa hipótese é que o OTT desempenha o papel de ferramenta mediadora, uma vez que atua no processo de apuração, método central na prática profissional, fornecendo conteúdo verificado e pré-editado aos jornalistas. Dessa maneira, o app deixa de atuar como mera fonte para adquirir status jornalístico.
Cobertura mediada da violência urbana
Os administradores do OTT fazem também a gestão de um grupo no WhatsApp com 245 jornalistas (OTT-RJ Imp rensa) de variados órgãos de comunicação. Normalmente, os alertas publicados no aplicativo são também compartilhados no grupo, incluindo fotos e vídeos de eventos relacionados com a violência urbana (Figura 3).
Os jornalistas costumam interagir com os administradores, buscando novas informações, solicitando confirmações, vídeos flagrantes e levantamentos sobre a violência urbana. Subentende-se que o que OTT publica no grupo configura um "material cedido" aos jornalistas para o uso na elaboração das notícias (Figura 4). No entanto, é interessante notar que as imagens recebem um selo com a logomarca do app, uma tentativa de garantir os créditos à ferramenta, o que pode reforçar a sua credibilidade. Embora o grupo aparente ser um ambiente de parceria, observamos que, raramente, as informações passadas pelos jornalistas geram alertas no aplicativo. Quando isso acontece, as informações são mais trabalhadas e complementadas, o que pode indicar um certo receio do OTT da influência dos jornalistas sobre aquilo que é publicado para os usuários.
A lógica do OTT está baseada na comunicação do cidadão para o cidadão, o que significa que o aplicativo funciona a partir de informações e relatos repassados pelos usuários e pelos chamados "grupos de confiança" nas zonas de risco. Contudo, apesar de não contar com profissionais de comunicação em seu quadro de administradores, o app conquistou a confiança dos jornalistas por fornecer informações previamente apuradas dos mais variados casos de violência, principalmente os ocorridos em zonas hostis, de acesso limitado aos repórteres.
O conjunto dos depoimentos coletados nesta pesquisa indica que o fato de o OTT contar com informantes nas regiões de conflito e participantes comprometidos com o compartilhamento de alertas de violência o permite publicar imagens e informações verificadas (ainda que por cidadãos leigos) de modo mais rápido, o que contribuiu para suprir o gap deixado pelos jornalistas na cobertura de tais regiões.
Alguns depoimentos recolhidos são importantes para compreendermos a correlação existente entre os limites da cobertura jornalística e a valorização do OTT. Nesse sentido, procuramos destacar os mais significativos para o estudo. Cada fragmento corresponde a um jornalista diferente.
Limites da cobertura jornalística
"Já tem pelo menos uns 10 anos que uma equipe de reportagem não entra mais nas comunidades. Isso foi proibido tanto pelos donos dos morros, quem manda na comunidade, quanto até mesmo pela empresa que viu que havia já um risco muito grande". (jornalista 2)
"Tem determinadas áreas conflagradas que a gente não pode nem adentrar, tem que pedir autorização lá, tem chefia, o tráfico de drogas na região. Então, a OTT tem essa vantagem: estar onde a gente não pode estar. Isso pra gente é fundamental porque a gente cria um leque de situações, de mostrar a situação que existe vida naquela área conflagrada". (jornalista 1)
"A gente não tem acesso à comunidade, os repórteres não entram se tiver acontecendo um tiroteio, por exemplo, uma operação da polícia". (jornalista 7)
Na visão dos entrevistados, a credibilidade conquistada pelo OTT está diretamente relacionada a dois fatores: 1) a agilidade com que consegue verificar e confirmar a existência de casos de violência e 2) a qualidade das informações que repassa. Os jornalistas acreditam na apuração realizada através da ferramenta, exatamente porque ela consegue "estar no local" onde os repórteres não estão, sendo capaz de oferecer informações que direcionam a cobertura noticiosa, permitindo aos jornalistas correr "atrás do entorno". O grupo do WhatsApp também parece dar segurança aos profissionais que interpretam a sua participação como uma "grande apuração".
Agilidade na apuração de crimes
"Eles conseguem estar no local, mesmo que eles não estejam fisicamente porque eles são uma plataforma e recebem essa informação, mas eles conseguem trazer aquela situação para o momento atual e, no momento que eles trazem esse momento atual, o jornalista corre atrás do entorno". (jornalista 12)
"Na intensão do factual, ele é muito rápido. Muitas vezes, a gente fica sabendo antes de toda a nossa apuração através do OTT. A gente sabe antes pelo OTT o que aconteceu. Porque são os profissionais de todas as emissoras juntas. É como se fosse uma grande apuração. E muitas vezes esses vídeos são cedidos por esses profissionais todos que estão no OTT". (jornalista 8)
"O Onde Tem Tiroteio hoje em dia faz um trabalho mais apurado e faz um balanço no final e aí já foi tudo apurado. Mas eu acho que é interessante porque ele te dá um direcionamento do que fazer como jornalista, alerta de algumas coisa que você não sabia. Eu não sou contra não. Gosto bastante até desses aplicativos". (jornalista 5)
Assim, à medida que fornece informações filtradas e credíveis, e imagens (fotos e vídeos) filtradas e pré-editadas da violência em territórios hostis à presença dos repórteres, o OTT acaba por ter a confiança dos jornalistas. Alguns depoimentos indicam que o app é considerado mais do que uma mera fonte de informação, já que os jornalistas tendem a classificá-lo como uma espécie de "instituição" ou "órgão oficial", que apura e auxilia na pré-produção das pautas, o que nos leva a crer que o app tenha alcançado um status jornalístico.
Status jornalístico
"Sim, existe uma confiança maior porque passou por um filtro já, o OTT já é um filtro que traz mais veracidade àquela imagem. Eles têm um banco de dados enorme, eles sabem se aquilo ali é inédito pra eles, eles não vão republicar um vídeo que existe todo um cuidado ali dentro. É uma instituição séria, digamos assim". (jornalista 6)
"O Onde Tem Tiroteio se tornou um dos principais canais de apuração que a gente tem". (jornalista 1)
"Virou como se fosse o órgão oficial de tiroteios, digamos assim, pra gente. Não é à toa que às vezes a gente usa dados do OTT, dados do Fogo Cruzado, que é outro aplicativo. Já virou conveniente usar esse tipo de dado. Ele tem levantamento. Não é só o alerta 'tá tendo tiro em tal lugar'. Eles fazem um levantamento, um acompanhamento". (jornalista 13)
"Além de avisar aos moradores e jornalistas onde está tendo tiroteio ou alguma ação criminosa, eles fazem um levantamento de quantos tiroteios tiveram naquele bairro. Isso é essencial pra uma matéria." (jornalista 10)
"Quando você quer fazer uma pesquisa, você não depende só da pesquisa da polícia. Nessas plataformas já tem uma pesquisa vasta de quantos mortos naquele ano, quantos atingidos por balas perdidas. É muito importante pra gente também mesmo sendo segmentado só com a violência". (jornalista 9)
Como pudemos perceber, os jornalistas tendem a valorizar a velocidade do sistema colaborativo desenvolvido pelo app, o que lhe permite obter informações e imagens em primeira mão. Diante de um contexto de pressões sobre a produção noticiosa, principalmente nas redações de TV, de alterações nas práticas laborais, de entrada de novos agentes no campo jornalístico e de multiplicidade de tarefas, os jornalistas defendem que ferramentas fiáveis como o OTT podem contribuir para a aceleração da elaboração das notícias.
Produção de notícias acelerada
"Ele faz um trabalho jornalístico também, de checagem daquele material que chega, daquele relato. É um colaborativo, mas um colaborativo que eles têm esse trabalho de checagem, muitas vezes". (jornalista 7)
"Aquela etapa de apuração que às vezes é até demorada porque é o princípio de tudo, precisa da informação, da apuração pra poder começar a produzir, aquilo ali já passou. A gente já vai pra uma etapa de execução da matéria". (jornalista 13)
"Ajuda a gente a identificar cada vez mais rápido o que está acontecendo". (jornalista 3)
Ao que tudo indica, o aplicativo se tornou uma ferramenta mediadora da cobertura da violência urbana. Os jornalistas acessam as regiões de conflito e conseguem produzir notícia através do OTT e da dinâmica colaborativa criada pelo app. Em contrapartida, o OTT capitaliza credibilidade junto aos seguidores e aos órgãos de comunicação.
Ferramenta mediadora
"Passa por uma peneira deles, uma mediação deles, por um controle unificado deles. [...] Quando vem do OTT, é como se viesse tranquilo. Veio do OTT, então, vamos dar. [...] Eu acho que eles sanaram um problema de comunicação, digamos assim, que existia. Uma falta de comunicação, uma falta de acesso e eu acho que, por unificarem isso, por transformarem todas essas informações referentes a tiroteios, referentes a comunidades, a coisas específicas que a gente não tinha acesso antes, ao unificar isso num lugar só e prestar o serviço pra população também, porque a população também acredita neles, também recebe alertas deles, então, o fato deles prestarem um serviço pra sociedade e também à imprensa, porque eles têm um papel importante nesse sentido, acho que foi isso que fez eles ganharem força". (jornalista 13).
"Receber esse conteúdo direto permite com que ele [o jornalista] acesse de certa forma um recorte da realidade de quem vive naquela localidade. E permite também com que, tendo esse recorte, nós possamos nos comunicar, retratar esse recorte de realidade". (jornalista 11)
Apenas o jornalista 4 foi contundente ao dizer que o material disponibilizado pelo OTT precisar sempre ser cruzado com as informações oriundas de outras fontes oficiais. Mas reconhece que esta não é uma prática comum entre os colegas, que costumam agir como "chupa cabra", ou seja, fazem cópia e transformam o conteúdo em notícia sem verificações complementares.
"Não é porque o OTT publicou tá tendo tiroteio em tal lugar, esse vídeo é de lá. Eu vou acreditar? Não, não vou. Vou confirmar, entendeu? Eles fazem um trabalho muito bom, mas na minha opinião é mais como disparador de aviso. [...] Uma postura minha e de alguns colegas da emissora. Outros, não. Outros só replicam o conteúdo, entendeu? Tem muita gente lá que pega do OTT nem confirma, nem nada, joga no grupo. Tá no OTT é como se diz 'chupa cabra'". (jornalista 4)
Conclusões
Embora verificado em um contexto específico de violência, o problema central abordado neste trabalho está relacionado tanto com a emergência de práticas jornalísticas associadas ao desenvolvimento das TIC quanto com o distanciamento dos jornalistas da rua e de determinados territórios nas grandes cidades brasileiras. De um lado, a intensificação da digitalização das redações, do uso de ferramentas tecnológicas e de aplicativos aceleraram a produção das notícias, mas, de outro, os jornalistas estão inseridos em práticas profissionais cada vez mais mediadas.
No Brasil, esse contexto, aliado à hostilidade contra os jornalistas, promoveu, ao longo dos últimos anos, o afastamento da mídia tradicional e dos repórteres de territórios considerados perigosos. Em 2022, a organização não governamental "Repórteres sem fronteiras" classificou o país como um dos mais perigosos para os jornalistas (Repórteres sem fronteiras, 2022). Assim, como os jornalistas conseguem saber o que acontece em regiões consideradas hostis? E, principalmente, como conseguem cobrir esses acontecimentos sem poderem estar presentes nesses territórios? Essas perguntas orientaram este estudo, pois acredita-se que o cenário apresentado e problematizado neste trabalho contribuiu para o aparecimento de iniciativas descentralizadas de comunicação, organizadas por cidadãos, tal como o app OTT.
Com cinco milhões de usuários, o OTT vem ganhando prestígio e credibilidade entre os jornalistas, pois consegue fornecer informações apuradas e imagens da violência urbana de territórios inacessíveis a esses profissionais, de forma rápida e relativamente simples. O material costuma ser cedido aos repórteres por meio de um grupo no WhatsApp formado por 245 jornalistas. Os profissionais entrevistados para esta pesquisa dizem confiar nas informações passadas pelo app porque elas correspondem à realidade, quer dizer, são informações qualificadas, verificáveis. Alguns tendem a dispensar a confirmação dos dados com outras fontes por acreditar que o OTT funciona como uma espécie de "instituto" ou "fonte oficial" de temas relacionados com a violência urbana.
Desse modo, à medida que apura e fornece dados confiáveis aos jornalistas, o OTT atua como uma instância jornalística, a qual permite o acesso dos repórteres aos recortes da realidade dos territórios em que já não conseguem ou não podem mais entrar. A hipótese defendida aqui é a de que essa característica elevou o status do OTT de mera fonte para o de ferramenta mediadora na cobertura da violência urbana.