Introdução
As calopsitas domésticas (Nymphicus hollandicus) começaram a ser introduzida no Brasil a partir de 1970 e, de acordo com o Anexo 1 da Portaria número 93 de 07 de julho de 1998 do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, incluindo suas mutações, são consideradas como pertencente à fauna doméstica em todo território nacional. Desde então sua criação vem ganhando destaque devido às suas características visuais além de seu temperamento alegre e da sua capacidade de imitar sons incluindo a voz humana (1).
O sistema digestório destes animais distingue-se do dos mamíferos pela presença do bico, ausência de dentes, lábios, palato mole e presença do papo. O canal alimentar é formado pelo esôfago, papo, estômago (proventrículo e ventrículo), intestino delgado, intestino grosso e cloaca (2). O papo ou inglúvio é formado pela dilatação do esôfago imediatamente antes de sua entrada na cavidade celomática. Permite o armazenamento temporário da ingesta, bem como o amolecimento e a pré-digestão de alimentos pouco digeríveis (2).
A ingluviotomia é uma cirurgia comum que pode ser necessária para remoção de corpo estranho ou alimento retido no inglúvio, ou ainda para se ter acesso ao esôfago torácico, permitindo endoscopia proventricular e ventricular (3). Algumas doenças ou aspectos nutricionais e comportamentais podem predispor o acúmulo de material endurecido no inglúvio, podendo ser chamados de ingluviolitos (4). Citam-se as causas que predispõe o acúmulo de material no inglúvio, tais como: candidíase, tricomoníase, bócio, neoplasias, corpos estranhos ingeridos, queimaduras internas por alimentação em temperatura inadequada, entre outros fatores (4, 5, 6).
Relatos de corpos estranhos são comuns em animais, podem ser compostos por madeira, metais, fibras sintéticas ou naturais, penas, pedras, plástico, entre outras substâncias (7, 8, 9, 10). As aves podem ser atraídas por objetos estranhos, chamativos e brilhosos, dessa forma, podem ingerir corpos estranhos indevidos e gerar intoxicação, dependendo da composição do material, ou perfuração de órgãos do trato digestório e por conseguinte, paralisia gastrintestinal (11, 12). Além disso, a falta de estímulos em cativeiro, pode levar ao estresse, resultando em comportamentos anormais, podendo favorecer a ingestão de corpos estranhos, bem como o acumulo no inglúvio (13).
Outrossim, as aves parecem mais sensíveis às intoxicações que os répteis e mamíferos e a maioria das substâncias tóxicas para psitacídeos geram hepatopatia e consequentemente, hepatomegalia (14,15). Essas alterações hepáticas podem acarretar a ascite, provocando aumento de volume abdominal e consequente dificuldade respiratória, pela pressão sobre os sacos aéreos (15).
O objetivo desse trabalho é relatar um caso de ingluviotomia por ingestão de corpo estranho em calopsita doméstica (Nymphicus hollandicus).
Relato de caso
Em abril de 2020, uma calopsita (Nymphicus hollandicus) cinza, macho, de 7 anos com 0,09Kg, chegou no Consultório Veterinário Birds e cia para atendimento. Segundo o proprietário, o animal apresentava dificuldades na respiração e diminuição da interação. Afirmou, também, que o animal vivia com uma fêmea e que costuma deixá-los soltos. Relatou que houve uma piora do quadro e que o animal não saía do fundo da gaiola, e, por isso, o trouxe para a consulta. Na anamnese, notou-se dispneia intensa, apatia e grande volume de líquido livre na cavidade celomática. Pelo quadro descrito, foi necessária a internação imediata do animal para a estabilização e realização de exames complementares.
Decidiu-se, então, realizar a celiocentese para drenagem do líquido ascítico a fim de promover maior conforto ao animal, diminuindo a dispneia. Por meio de fonte luminosa pôde-se realizar a técnica citada evitando, assim, sangramentos e rompimento de órgãos. Foram retirados aproximadamente 20ml de líquido. Este líquido foi levado para análise físico/química e microscopia e como resultado apresentou-se turvo, amarelo, sem coagulação e poucas células de defesa.
A estabilização do animal ocorreu na UTA (unidade de tratamento de aves enfermas), sendo fornecido aquecimento necessário e fluidoterapia com ringer lactato pela via subcutânea na quantidade de 1ml a cada 4 horas. Após a estabilização, foi feita a radiografia digital nas posições latero-lateral e ventro-dorsal (VD) e hemograma com bioquímica. No hemograma pôde-se observar anemia progressiva e na bioquímica o aumento de AST (aspartato aminotransferase) e CK (creatinoquinase), indicando uma possível lesão hepática. O exame radiográfico determinava um corpo estranho de aspecto ovoide no inglúvio, aumento de volume da cavidade celomática de radiopacidade homogenia e perda da silhueta cardio-hepática pela hepatomegalia, comprimindo sacos aéreos e possível causa da intensa dispneia (figura 1).
Dessa forma, pela hepatopatia, utilizou-se também complexo B, ornitil e mercepton no volume de 0,1ml diluído em 1 ml de fluido (solução injetável com cloreto de sódio 0,9 %) cada. O diagnóstico possível através da anamnese, dos sinais clínicos, dos exames e radiografia, foi de intoxicação por corpo estranho, sendo necessária sua retirada.
Com a autorização, houve o preparo para a realização da cirurgia. O paciente foi submetido à medicamentos pré-anestésicos por meio da associação de quetamina (2mg/Kg) com midazolam (0,1mg/Kg) e mantido em oxigênio 100 % e isofluorano em um circuito de anestesia baraka. Para terapia auxiliar, administra-se enrofloxacina (20mg/Kg) e meloxican (0,5 mg/Kg) via intramuscular. Os parâmetros fisiológicos foram acompanhados a cada 5 minutos. O animal foi colocado em decúbito dorsal (supinado) esquerdo e em um tapete térmico para a cirurgia, evitando hipotermia e mantendo o circuito respiratório. Com o espécime em plano anestésico, foi realizada a limpeza do local e assepsia com álcool iodado 10 %, além da retirada manual por tração mecânica de algumas penas. Executou-se uma incisão mediana ventral cervical de aproximadamente 1cm tendo como base o espaço cranial ao manúbrio do esterno para a retirada do corpo estranho. Após a retirada do corpo estranho (figura 2), fez-se a uma primeira sutura das bordas do inglúvio e, após tal procedimento, uma sutura invaginante utilizando 4/0 Vycril. Em seguida, ocorre o fechamento da incisão da pele com 3/0 Nylon. No pós-cirúrgico, foi feita a antibioticoterapia com enrofloxacina (5mg/Kg) e antinflamatório não esteroidal, nesse caso, o meloxican (0,5mg/kg). A ave teve sucesso na recuperação e para a manutenção foi prescrito o uso de mercepton oral 4 gotas em 50ml de água, trocar tal medicamento a cada 24 horas por 30 dias, azitromicina suspensão 600 0,01ml oral a cada 24 horas durante 5 dias, Silimarina (70mg/Kg) 2 gotas a cada 12 horas no bico da ave por 30 dias e limpeza do local.
Não foi possível identificar composição exata do corpo estranho, que media cerca de 2cm de maior eixo. Acredita-se ser uma mistura de materiais como plástico, fios de algodão e matéria orgânica formando essa massa disforme (figura 3).
Discussão
O papo se localiza na entrada torácica, mas geralmente não é visível radiograficamente, a menos que contenha alimento ou algum outro material. O alimento no papo é normalmente identificado na densidade de tecido mole e as densidades ingluviais focais podem resultar em granulomas, corpos estranhos ou ingluviolitos (3).
O inglúvio é uma porção sacular de uma distensão do esôfago que tem aptidão de dilatar-se e armazenar alimentos por um período curto e está localizado no lado direito do pescoço das aves (16, 17). O papo, quando inflado ou por decorrência de alimento, ou no caso de patologias, tem sua ingestão diminuída e nele é onde ocorre o armazenamento de alimentos, pequena digestão de carboidratos por ação enzimática e ação fermentativa de microorganismos. Outros fatores como medo, ansiedade, estresse também podem reduzir o esvaziamento do papo e aumentar os riscos de fermentação (15). Algumas doenças, aspectos nutricionais e comportamentais podem predispor ao acúmulo de materiais endurecidos no inglúvio, esses materiais são denominados ingluviolitos, ou ainda, quando a ave está acometida por candidíase, podem formar massas no inglúvio (4, 6). Seu rompimento é facilitado devido sua parede fina, podendo ocorrer sobrecarga alimentar ou devido a traumas, que expõe o animal ao risco de morte (18).
A radiografia simples é um exame importante para o diagnóstico e pode revelar organomegalia ou alterações topográficas dos órgãos, também se apresenta como um instrumento que auxilia o diagnóstico de ingestão de corpos estranhos, observando as radiopacidades da substância, pode-se concluir de qual material ela é formada (2, 19).
A ingluviotomia é uma cirurgia comum, indicada quando há corpo estranho podendo também ser utilizada na retenção de alimento ou para ganhar acesso ao esôfago torácico para realização da endoscopia proventricular e ventricular (3). Para tal procedimento, o animal deve apresentar o mínimo de condições físicas para ser submetido a anestesia e cirurgia (5). Para essa cirurgia, recomenda-se estender as asas, puxar as pernas caudalmente e prender com esparadrapo nessas posições. Deve-se preparar cirurgicamente o local, preferencialmente utilizando panos de campo claros. A incisão deve ser feita no papo com uma lâmpada sobre a borda cranial do saco ingluvial lateral esquerdo, em área não vascularizada de aproximadamente metade do comprimento desejado, pois o papo estica-se facilmente. Para o fechamento da incisão ingluvial utiliza-se um padrão inversor com um material de sutura absorvível em uma agulha atraumática. Para a pele, fechar com sutura absorvível 4-0 a 6-0 em um padrão contínuo (3). Para realizar essa cirurgia é necessária anestesia geral, que apresenta fatores de risco como infecções secundarias, baixas condições do corpo e peso e má nutrição (20). De acordo com a literatura (21, 22, 23) ao executar a ingluviotomia para remoção do corpo estranho, evitar o uso de força pode minimizar o trauma na região, além disso é necessário cuidado para evitar trauma acidental ao esôfago, traquéia, vasos sanguíneos e nervos cervicais.
Dietas ricas em fibras, ingestão de material estranho, consumo excessivo de material mineral, alimento frio em filhotes e temperatura ambiental inadequada podem favorecer a impactação do inglúvio e sofrer desidratação, formando os benzoares ou ingluvolítos (24). A ingestão de materiais impróprios por aves é comum e podem estar presentes, em brinquedos próprios pra psitacídeos, sementes, tinta de parede, gesso, bijuterias, farinha de ossos contaminados entre outros, toxinas, que podem levar a uma serie de disfunções (12, 25). Sob cuidados humanos, o baixo enriquecimento ambiental leva a uma falta de estímulos e pode gerar estresse e tédio nos animais, resultando, muitas vezes, na ingestão de corpos estranhos, podendo causar obstruções e intoxicações (13). Os materiais utilizados para o enriquecimento ambiental devem ser seguros impedindo ingestão de materiais indesejados (25, 26).
As intoxicações ocorrem geralmente devido a erros na dieta e brinquedos inadequados, especialmente quando se trata de psitacídeos, animais curiosos com hábito de bicar objetos e destruir materiais (3, 24). As aves são muito sensíveis à intoxicação e esse quadro é frequente nesses animais. A alta taxa metabólica contribui para a distribuição do agente tóxico e a baixa concentração de gordura corporal não favorece o acúmulo de toxina no tecido adiposo (14).
A respeito do aumento da AST (27) ressaltam que esta enzima apesar de não ser específica para danos hepatocelulares e musculares, excepcionalmente, em psitacídeos sempre se apresenta aumentada em danos hepáticos por qualquer etiologia. Ainda para os mesmos autores, as elevações da atividade de AST estão relacionadas a doença de Pacheco, clamidiose, exposição a produtos químicos tóxicos e ao uso de alguns fármacos como doxiciclina e antifúngicos. Neste caso, os resultados observados no presente relato reforçam o quadro de intoxicação decorrente da ingestão de materiais tóxicos, de modo a caracterizar o corpo estranho presente no inglúvio.
O diagnóstico diferenciado de corpo estranho em inglúvio é micobacterioses, bornavírus (PDD), candidíase difusa, neoplasias e papilomatose difusa, e através de exames radiográficos, sinais clínicos e exames laboratoriais, pode se descartar tais patologias (7,28). Esse diagnóstico é baseado nos sinais clínicos, anamnese e exames complementares como a radiografia. A cetamina é o agente injetável mais utilizado como anestésico para uma ampla variedade de espécies, incluindo aves. O midazolam pode ser utilizado como adjuvante de indução anestésica por promover relaxamento muscular satisfatório (29).
A redução do apetite relatado durante a anamnese pode ser explicada pela ação do corpo estranho no trato gastrointestinal, impedindo a passagem e o funcionamento pleno do sistema digestório, causando dor (30). O ideal é a realização de uma análise hematológica e toxicológica sanguínea, entretanto, a antecipação na escolha do tratamento pode ser determinante para a sobrevivência do paciente (31).
Conclusão
O presente relato demonstra os perigos da ingestão de substâncias não devidas, podendo trazer diversas complicações para as aves. Os sinais clínicos relacionados a ingestão de corpos estranhos nem sempre são específicos, por isso, o histórico clínico, durante a anamnese, associado aos resultados complementares, são fundamentais para o diagnóstico. Os efeitos secundários podem incluir intoxicação, hepatopatia e ascite. A ingluviotomia é um procedimento cirúrgico de urgência, podendo ser optado para a remoção de corpo estranho no inglúvio, sendo que a resolução cirúrgica do problema e a recuperação clínica ocorre sem maiores problemas desde que empregada um conduta clínico-cirúrgica adequada. A profilaxia, como o enriquecimento ambiental e utilização de brinquedos naturais, sem componentes tóxicos para aves, é essencial para evitar que as aves façam ingestão de substâncias indevidas.