SUMÁRIO
Introdução. 1. Alguns indicadores sociais sobre os povos indígenas. 1.1. Brasil. 1.2. Colômbia. 2. A responsabilidade internacional do Estado: garantir condições para uma vida digna. 3. A diferença e o direito à autodeterminação dos povos indígenas. 4. Políticas de proteção social. 5. Assistência social e acesso da população indígena: tensões entre cidadania e autodeterminação. 6. O dever de consultar como garantia ao exercício da autodeterminação. 7. Conceito de pobreza e povos indígenas. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O direito internacional dos direitos humanos impõe o dever aos Estados de respeitarem, garantirem e promoverem o gozo efetivo do direito à vida em condições de dignidade, consagrado no artigo 4 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) e no artigo I da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948). Este direito fundamental impõe aos governos o triplo dever de: 1) elaborar e aplicar políticas públicas especiais para gerar condições de vida dignas para seus habitantes; 2) abster-se de produzir situações que obstaculizem o acesso de seus habitantes aos serviços básicos; e 3) adotar medidas positivas com caráter prioritário para satisfazer os mínimos sociais para uma subsistência digna para as populações expostas às situações de vulnerabilidade e risco em razão de sua situação de pobreza.
Estima-se que ao redor de 10% dos habitantes da América Latina sejam indígenas1. Uma característica que estes habitantes têm em comum é a sua situação de desvantagem sócio-econômica com relação aos outros setores da sociedade. De fato, ainda que só representem um 5% da população mundial, segundo o Banco Mundial estes povos constituem 15% das pessoas que vivem em pobreza, e 33% das pessoas que vivem em extrema pobreza rural em todo o mundo2.
Uma das respostas estatais contra a pobreza são os programas de assistência social, que desde as reformas constitucionais das décadas de 80 e 90 na América Latina, deixaram de ter um corte meramente beneficente e assistencialista, e assumiram uma perspectiva de direitos fundamentais, como dever do Estado para garantir condições que permitam aos indivíduos em situação de pobreza e com condições de exercício laboral3 serem incluídos no mercado formal, de modo a conquistarem a manutenção financeira e integrar-se ao sistema social vigente, tornando-se contribuintes de sua própria seguridade social e exercendo plena cidadania, ou seja, integração à sociedade como individuo que exerce direitos e cumpre com deveres sociais e políticos.
Os povos indígenas, entretanto, não reivindicam fazer parte do mercado de trabalho formal, nem seus membros demandam integração à sociedade como cidadãos, no sentido de indivíduos que têm direta relação política com o Estado. Esses grupos sociais reivindicam participar do Estado, mas ao mesmo tempo exigem permanecer como sociedade culturalmente distinta, mantendo as suas diversas formas de autonomia e autogoverno para assegurar sua sobrevivência como sociedades diferenciadas.
Em uma pesquisa intitulada "Estudo, implementação e análise de políticas de proteção social para melhoria da qualidade de vida dos povos indígenas no Brasil e na Colômbia" (2016-2019), realizada por pesquisadores da Universidad del Magdalena (Colômbia) e da Universidade Católica de Pelotas-UCPEL (Brasil), se realizam ações acadêmicas de pesquisa e extensão internacionalizada com o fim de explicar as relações e conexões entre os programas sociais e o direito à autodeterminação para indicar linhas gerais para a implantação de políticas públicas com povos indígenas na América Latina.
Os pressupostos da pesquisa são os seguintes: a) as políticas públicas desenvolvidas para a Assistência Social dos povos indígenas na Colômbia e no Brasil não são adequadas à especificidade da cultura indígena, e por isto trazem resultados contraditórios. Elas tanto favorecem a sua sobrevivência e integração na sociedade contemporânea, como contribuem para o gradativo desaparecimento das comunidades tradicionais; b) o saber acadêmico pode colaborar para a preservação de comunidades indígenas, fortalecendo a sua participação e autodeterminação na interlocução com o Estado. Para isto, as equipes universitárias precisam desenvolver permanentemente a capacidade de escuta, de respeito à diferença e de diálogo, bem como, as competências de informação, esclarecimento, encaminhamento e assessoria, para facilitar o processo de organização e o acesso aos direitos sociais na perspectiva da autodeterminação; c) o desenvolvimento de um processo investigativo sobre a implementação de programas assistenciais em comunidades indígenas de dois países do continente latino-americano pode indicar possibilidades e entraves para a livre determinação de povos indígenas na contemporaneidade.
Emergem daí algumas perguntas relacionadas com a elaboração de políticas públicas para indígenas na Colômbia e no Brasil: qual é a perspectiva de exercício de direitos utilizada na projeção e execução de políticas sociais para quem não é súdito politicamente, e vive econômica, social e culturalmente de modo diverso da ordem instituída? Estas perspectivas são adequadas às realidades dos povos indígenas da região? Para isto, a pesquisa deverá explicar as relações e conexões estabelecidas dentro da totalidade contraditória da política social no estado capitalista, entre resultados de programas sociais e o direito de autodeterminação das comunidades indígenas. Neste artigo, nós analisamos alguns dos resultados desta pesquisa, especificamente em relação aos efeitos que as políticas de proteção social no âmbito da assistência social estão produzindo com relação à satisfação das necessidades básicas, ao desenvolvimento da autodeterminação e a preservação da identidade cultural na Colômbia e no Brasil.
Pesquisa bibliográfica e documental, observações participantes em comunidades indígenas no Brasil e na Colômbia4 e entrevistas com autoridades estatais e lideranças indígenas, realizadas por pesquisadores da Universidad del Magdalena (Colômbia) e da Universidade Católica de Pelotas-UCPEL (Brasil), durante o desenvolvimento da pesquisa conjunta, permitem apresentar algumas análises que evidenciam contradições nas propostas de políticas sociais para povos indígenas no Brasil e na Colômbia, especialmente a tensão existente entre as noções de cidadania e autodeterminação dos povos indígenas. Os procedimentos metodológicos da pesquisa partem da premissa que as políticas sociais de assistência social que os estados devem aos povos indígenas necessitam ser verificadas desde a sua perspectiva, o que significa recolher a visão de autodeterminação que possuem estes povos para poder identificar a contribuição, ou não, que é feita pelas políticas de proteção social.
1. ALGUNS INDICADORES SOCIAIS SOBRE OS POVOS INDÍGENAS
Um estudo do Ministério da Saúde de Colômbia revelou que ao redor de 43% das famílias indígenas da América Latina são afetadas pela pobreza - mais que o dobro da população não indígena - e 24% de todos os lares indígenas vivem em situação de extrema pobreza, isto é, quase o triplo da população não indígena5. Nessa região, a taxa de mortandade infantil é substancialmente mais elevada que a população não indígena nos sete países estudados: Bolívia, Brasil, Chile, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai e Venezuela6 .
Há uma serie de controvérsias no momento de contabilizar dados socioe-conômicos da população indígena de um país ou região. Algumas têm a ver com a mobilidade entre os países fronteiriços - situação que afeta parte da população indígena. Mas, o principal obstáculo para obter dados precisos é a falta de reconhecimento jurídico-institucional das diversas identidades indígenas. Isto não é um problema novo, muito pelo contrário. O não reconhecimento das identidades indígenas nos âmbitos políticos e jurídicos acontece desde a época da conquista. Mas um elemento novo parece haver surgido a partir dos avanços legais de final do século XX na proteção dos direitos dos povos indígenas: o fato de que muitos povos que se consideravam desaparecidos, ou extintos, tenham e estejam ressurgindo, e na maioria dos casos necessitem enfrentar barreiras legais, entre outras, para terem sua identidade reconhecida.
Outro problema para analisar estes dados está relacionado com a definição de pobreza e construção de metodologias que indiquem como esta deve ser medida, questão que abordaremos mais adiante nesse artigo.
1.1. Brasil
Hoje, no Brasil, 246 povos indígenas falam mais de 150 línguas e somam, segundo o censo do IBGE (2010), 896.917 pessoas, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país (Instituto Socioambiental, 2016). Destes, 324.834 vive em cidades e 572.083 em áreas rurais, ocupando mais de 113 milhões de hectares de terras indígenas (aproximadamente 13% da área total do país). Ao redor de 98,5% dessas terras estão localizadas na Amazônia legal, habitat de 60% dos indígenas do país. Os outros 40% dos indígenas se distribuem no restante 1,5% de terras com indígenas do Brasil7.
Devido ao fato de que menos de 1% da população brasileira ocupe ao redor de 13% das terras do país, existe uma falsa crença popular de que no Brasil há "muita terra para pouco índio". Santilli e Valle, porém, ao utilizar dados do IBGE de 2010 para comparar a quantidade de terras demarcadas como terras indígenas com as terras usufruídas pelos grandes produtores rurais, chegaram a conclusão de que "os 67 mil maiores proprietários possuem 195 milhões de hectares, 72% a mais que os índios" 8. As grandes terras indígenas estão na Amazônia legal, o que abarca a floresta amazônica. Nas áreas fora da Amazônia, tal como declarou a Relatora Especial das Nações Unidas para os povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, logo após a sua visita ao Brasil em 2015, "é o setor do agronegócio que detém um percentual desproporcional do território brasileiro"9.
A combinação de políticas genocidas com políticas etnocidas (para a segunda não é necessário o extermínio físico) estabelecidas desde a formação da República, determinou as atuais condições de vida dos membros dos povos indígenas, e que hoje se reflete em indicadores sociais: a taxa de tuberculose entre os indígenas no Brasil é de 101 casos para cada 100 mil pessoas, enquanto que a média nacional é de 38 casos para cada 100 mil. A mortalidade infantil das crianças indígenas é duas vezes a média nacional10. Estudos sobre o alcoolismo entre indígenas, no país, têm demonstrado que a sua incidência é maior na população indígena do que na não indígena, sendo causa conexa de outros problemas sanitários e sociais: desnutrição infantil, diabetes, violência doméstica, abuso sexual e prostituição. Da mesma maneira, o suicídio tem se apresentado de maneira epidêmica nesta população, ainda que pouco se conheça sobre este tema no Brasil11. Em 2011, a UNICEF informou que a taxa de suicídio entre as populações indígenas no Brasil é quatro vezes maior que no resto do país12. Em 2014, o Ministério da Saúde do Brasil informou que esta taxa era de até seis vezes maior que o resto da população13.
Os dados sociais do IBGE sobre a renda familiar apontam que das 18.263 pessoas indígenas residentes em terras indígenas, 9.949 tinham rendimento mensal domiciliar de até 1/4 de salario mínimo, 4.476 entre 1/4 e meio; 1.790 entre meio e um salário, 310 entre 1 e 2 salários, e 63 mais de 2 salários. Dos indígenas registrados no censo, 1.675 não tinham qualquer tipo de rendimento14.
1.2. Colômbia
Dados oficiais do último censo colombiano (2005) indicavam a presença de 1.392.623 indivíduos indígenas (3,34% da população nacional) distribuídos em 87 povos que falam 64 línguas, sendo que 78,4% deles moram nas áreas rurais e o resto nas zonas urbanas15. Em 2011, estavam reconhecidos 710 resguardos indígenas, abarcando um total de 34.000.000 hectares de terra (29,8% do território nacional). Similar ao que ocorre no Brasil, 79% destas terras estão na região Amazônia (departamentos da Amazônia e Orinoquia). A outra parte se localiza em regiões de páramos, desertos, áreas de proteção florestal ou parques nacionais16.
Dos indígenas registrados na Colômbia, 63% vive abaixo da linha de pobreza, 47% abaixo da linha de miséria, e 28,6% maior de 15 anos são analfabetos. Segundo o pnud17, esta precariedade expressa as assimetrias entre este segmento da população e o restante da sociedade no acesso aos serviços e bens públicos, e as consequências da exclusão associada à exploração laboral ou discriminação no emprego, por falta de domínio do idioma nacional.
O anterior Relator Especial das Nações Unidas para os povos Indígenas (2008 - 2014), James Anaya, concluiu que os indicadores de mortalidade materna entre indígenas na Colômbia é alarmante: enquanto que a média nacional é de 73,1 mortes por cada 1.000.000 nascidos vivos, departamentos com alta porcentagem de população indígena refletem indicadores excessivos: Chocó 250,9; Guainía 386; Guaviare 171,2; Amazonas 158; La Guajira 1.312; Cauca 125,9[18]. Além disso, mais da metade, ao redor de 1,37 milhões de indígenas da Colômbia, estão em pobreza estrutural e a maioria de suas crianças sofre de desnutrição crônica19. Considerando esses dados, Anaya recomendou ao governo colombiano dar inicio a uma intervenção adequada, mediante consulta com as autoridades dos povos indígenas, para frear o aumento destes índices.
A presença de indígenas nas áreas marginais urbanas e nas grandes cidades da Colômbia aumentou como consequência do conflito armado, especialmente como efeito do deslocamento forçado. Outro fator importante nesse fenômeno é esgotamento das terras dos resguardos, especialmente na Serra Nevada de Santa Marta e Urabá e nos departamentos do Cauca, Córdoba, Guaviare, Nariño e Putumayo20. A migração traz dificuldades para acessar a serviços sanitários de água potável, o que produz doenças infecciosas, desnutrição infantil gestacional, alcoolismo, drogadição e delinquência relacionada, desintegração familiar, aculturação, debilidade da identidade cultural, e vinculação permanente ou temporal a atividades ilícitas21. Em uma visita realizada a comunidades indígenas e instituições departamentais e municipais da Guajira, a Defensoria do Povo colombiana constatou a existência de mortes de crianças por fome; uma limitada cobertura de programas do Instituto Colombiano de Bem-estar Familiar dirigido às crianças e mulheres gestantes e lactantes; uma grave situação de seca, com falta de acesso à agua potável e consumo de água contaminada; evidencias da falência do Estado em realizar uma busca de crianças indígenas com desnutrição, e de dar seguimento aos estudos sobre os usos e impactos produzidos pelos alimentos entregues22.
Durante a última década, no departamento de Vaupés, a epidemia do suicídio atingiu 123 mortos em 16 dos 27 povos indígenas. Naquele departamento, a taxa de suicídio é de 38 para cada 100 mil habitantes, comparado com 4,9 por cada 100 mil entre os demais habitantes da Colômbia23. A maior parte destes casos (76,4%) ocorre entre os jovens de idade entre 14 a 26 anos, que nunca puderam contar com uma assistência psicológica, porque não têm acesso a esse serviço24.
Em 2009, a Corte Constitucional colombiana declarou que o conflito armado e o deslocamento forçado ameaçam a existência de numerosos povos indígenas colombianos, entre os quais 34 foram descritos como em situação de risco de extinção25. O conflito armado interno e o consequente deslocamento forçado fizeram dos membros dos povos indígenas vítimas da pobreza, trazendo insegurança alimentar, restrições de mobilidade, condições de saúde deterioradas, mortalidade infantil alta, e altas taxas de doenças previsíveis26.
2. A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO: GARANTIR CONDIÇÕES PARA UMA VIDA DIGNA
A Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) da Organização dos Estados Americanos estabelece que os Estados têm o dever de respeitar o direito à vida. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos interpreta esse direito desde uma dupla perspectiva: o ser humano não pode ser privado da vida arbitrariamente e deve ter garantido as condições necessárias para uma existência digna27 (Corte Interamericana de Direitos Humanos, 1999). Os dados sociais anteriormente apresentados já são suficientes para evidenciar que a situação dos povos indígenas, nos dois países, aponta para a violação sistemática dos direitos humanos. Segundo a jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, os Estados têm o dever de "gerar as condições de vida mínimas compatíveis com a dignidade da pessoa humana, e a de não produzir condições que a dificultem ou impeçam, como seria o caso de uma situação que determine a impossibilidade de acesso a água salubre, ou apta para o consumo humano". De igual forma, as Nações Unidas estabeleceram que a responsabilidade dos Estados de proteger seus habitantes repousa em três pilares, sendo que o primeiro está constituído pela responsabilidade permanente de proteger seus habitantes contra o genocídio e a depuração étnica28. Uma das maneiras de garantir essa proteção para os povos indígenas é respeitar plenamente o exercício de seu direito à autodeterminação.
3. A DIFERENÇA E O DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS
Os estados latino-americanos foram construídos sobre as premissas da diferença civilizatória. Os povos indígenas e africanos eram culturalmente inferiores, portanto não lhes era devido o reconhecimento de uma igualdade política. E esse é, efetivamente, o núcleo o racismo: atribui-se a uma cultura a incapacidade da liberdade política, uma certa incompletude humana que estaria relacionada com uma natureza corporal29. A incapacidade política destes povos os impediriam de determinar seu destino e, portanto, de exercer atribuições de soberania. Com o desenvolvimento histórico do direito internacional e a criação do conceito - e logo direito humano - da autodeterminação, povos indígenas de todos o mundo o escolheram para reivindicar o que lhes fora arrebatado pelos processos coloniais: a capacidade de decidir sobre seus próprios destinos.
O termo autodeterminação dos povos passou a ter um lugar no discurso político internacional a partir da primeira Guerra Mundial e com a criação da organização da Sociedade das Nações, tendo sido vinculado tanto aos ideais democráticos, como aos dos nacionais europeus e aos socialistas. O presidente norte-americano Wilson foi um dos mais importantes promotores da noção da autodeterminação para as sociedades que estavam sob o domínio europeu ao término da primeira guerra. Wilson defendia que cada cultura distinta tinha direito a tornar-se um estado independente, e foi relevante tanto para os grandes territórios coloniais, como a Índia, como para os pequenos, posto que para os movimentos nacionalistas da Argélia, Vietnam ou Turquia se apropriaram desta noção para promover suas demandas de autogoverno. Posteriormente o desenvolvimento desta noção pelos emergentes estados Balcãs potenciou o discurso dos não-europeus30.
A partir da criação das Nações Unidas, a autodeterminação dos povos foi um dos seus princípios fundacionais, e vários instrumentos de proteção dos direitos humanos passaram a referir-se à autodeterminação como um direito de "todos os povos", um direito que "beneficia os seres humanos enquanto seres humanos, e não as entidades soberanas como tais"31. As Nações Unidas adotaram o conceito da autodeterminação para promover uma de suas principais preocupações: administrar a transformação dos territórios coloniais em estados independentes. Como indica Anguie, virtualmente todas as agencias das Nações Unidas participaram neste projeto, e a doutrina moderna da autodeterminação foi formulada em resposta ao fenômeno do colonialismo32.
Para os propósitos deste trabalho, é importante ressaltar que enquanto soberania é uma atribuição dos estados, autodeterminação é um direito dos povos, e ambas noções estão relacionadas entre si. Em sua concepção original, o respeito à autodeterminação de um povo deveria ser materializado no reconhecimento de poderes soberanos da unidade política que os representa, assim como em sua autonomia para administrar e exercer justiça. Com a criação do sistema das Nações Unidas, houve certa expectativa entre alguns juristas internacionalistas de que finalmente fosse possível a criação de um sistema universal, no qual fosse possível a participação de todas as culturas, respeitando-se umas regras mínimas de funcionamento do sistema internacional, resolvendo assim o problema do colonialismo.
Sabemos, porém, que as Nações Unidas não resolveram o problema do colonialismo, mas que o direito internacional seguiu servindo aos interesses dos estados mais poderosos, levando os novos estados a buscar estratégias para defender-se e mudar várias regras da ordem jurídica internacional que estavam em seu contra33. A resposta dos países ocidentais frente às propostas de mudança por parte dos novos estados era que estas violavam princípios clássicos do direito internacional. Ainda assim, as leis internacionais relacionadas com a autodeterminação, direitos humanos, responsabilidade dos estados, sucessão dos estados, direitos adquiridos, fontes da doutrina e o direito internacional do desenvolvimento, foram afetadas de alguma maneira por estas disputas34.
Os povos indígenas foram privados de sua história. Em todo o mundo tiveram que recorrer a métodos para reformular seu conhecimento e seguir resistindo aos processos de colonização. No âmbito de inter-relações com os estados coloniais, apropriaram-se da noção de povos para, a partir disso, reivindicar direitos de autodeterminação, termo de muita utilidade para os indígenas porque está relacionado com o respeito e a coexistência entre as culturas35. Ainda assim, autodeterminação é uma noção criada pela cultura jurídica ocidental e que não traduz a complexidade e diversidade de todos os povos indígenas do mundo, mas deve ser entendido como um exercício de tradução que faz inteligível suas aspirações36.
A maioria dos povos que se auto reconhecem como indígenas nos dias de hoje não reivindicam separar-se dos estados aos quais foram forçosamente absorvidos, mas sim manter certa autonomia territorial e jurídica. Assim, a noção de autodeterminação é especialmente útil porque oferece um contraponto à noção de soberania. As raízes do termo soberania se remonta às noções de domínio territorial e colonialismo, enquanto que as raízes da autodeterminação têm a ver com noções de liberdade, respeito e autonomia37. Em 2007 a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas38 recolheu décadas de trabalho político de líderes e ativistas indígenas e estabeleceu que "os povos indígenas têm direito a autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural"39. A acomodação dos sistemas de cada cultura para o exercício da autoridade é uma medida neurálgica do êxito ou não da construção de estados multisocietais, e a autodeterminação deve ser um dos princípios norteadores das políticas estatais de proteção social, seja saúde, educação ou assistência social. Mas sua aplicação segue sendo problemática no Brasil e na Colômbia, como exporemos a seguir.
4. POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL
O Brasil e a Colômbia possuem políticas de Proteção Social que são aplicadas também para membros dos povos indígenas. Na área da Assistência Social encontram-se vários programas e serviços socioassistenciais focalizados ma-joritariamente na extrema pobreza, mas há programas dirigidos, também, para pessoas em situação intermedia. No Brasil, a Política de Assistência Social é definida como direito do cidadão e dever do Estado, devendo atender a quem dela necessitar, sem exigência de contribuição de qualquer tipo. A política de assistência social nacional tem três grandes objetivos: a) a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos; b) a vigilância socioassistencial, que visa identificar e prevenir situações de risco e de vulnerabilidade social; e c) a defesa de direitos, que pretende garantir o pleno acesso ao conjunto de direitos socioassistenciais40. A Proteção Social é ofertada por programas, projetos, serviços e benefícios, e hierarquizada em Básica e Especial de acordo com o grau de complexidade. Entre as suas ofertas mais conhecidas estão: o Beneficio de Prestação Continuada (BPC), ofertado sem contribuição previa a todos os idosos com mais de 65 anos e pessoas com deficiência cuja renda familiar per capita é inferior a 14 do salário mínimo vigente; o Programa Bolsa Família que é dirigido às famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza; o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) que tem como objetivo erradicar as chamadas piores formas de trabalho infantil no País, concedendo uma Bolsa às famílias das crianças e adolescentes em substituição à renda que traziam para casa; o Programa de Atenção Integral à Família (PAIF), ofertado pelos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) com ações de caráter proativo, protetivo e preventivo - realizadas por meio do trabalho social com famílias; e o Programa de Proteção e Atendimento Especializado às Famílias e Indivíduos com um ou mais de seus membros em situação de ameaça ou violação de direitos, por meio de serviço de apoio, orientação e acompanhamento.
Uma parceria entre o Ministério de Desenvolvimento Social e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) resultou na elaboração de uma proposta de diretrizes para o trabalho com povos indígenas no âmbito da Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Na referida proposta aparece clara uma nova orientação para o trabalho com os indígenas.
Ao contrário da transformação dos índios em "civilizados" integrados à sociedade nacional, a ação estatal atualmente deve reconhecer e respeitar as línguas indígenas, as identidades étnicas dos seus falantes e as diferentes formas de organização social e visões de mundo dos povos nativos do Brasil. Para eles, o direito à autodeterminação é primordial. Seu reconhecimento implica respeitar e acatar os pontos de vista das diferentes nações indígenas: oportunizar espaços de escuta e ouvir suas definições sobre o trabalho social que desejam. No momento histórico em que vivemos, de fortalecimento da participação popular na elaboração, implementação e acompanhamento de políticas públicas, deve-se canalizar a mobilização de lideranças tradicionais e organizações representativas para a discussão em torno da proteção social que, ao mesmo tempo, previna risco sociais, fortaleça suas famílias e comunidades e revitalize suas tradições culturais. Para tanto, há que se pautar pela Constituição Federal e pela Convenção n° 169, da Organização Internacional do Trabalho, na construção de uma política de assistência social culturalmente adequada41.
Com esta perspectiva a pnas destaca a necessidade de uma adequação teórica conceitual para o trabalho com os indígenas, onde inclusive palavras que são chaves para a estruturação da política como território, autonomia, vulnerabilidade social e famílias precisam ser redefinidas a partir do universo da cultura indígena. A orientação indica que antes de traçar o próprio plano de trabalho cada equipe deve realizar uma reunião para obter o consentimento da comunidade para o desenvolvimento da intervenção.
Na Colômbia, segundo as bases do Plano Nacional de Desenvolvimento, o Sistema de Proteção Social é constituído pela Seguridade Social Integral, a Promoção Social, o Acesso a Ativos, a Formação de Capital Humano e o Manejo dos Riscos Covariantes. O principio da Universalidade na proteção social indica que suas políticas são dirigidas para todas as pessoas, seja como contribuintes e beneficiárias de programas de segurança social, ou somente como beneficiárias dos programas de assistência social, que estão direcionados à população que não tem capacidade econômica para contribuir financeiramente ao sistema de seguridade. O Estado desenvolve programas para satisfação de necessidades básicas, especialmente saúde e alimentação mediante auxilio em dinheiro e subsídios em espécie, garantindo o acesso à educação das crianças para melhorar sua capacidade produtiva no futuro. Assim, o chamado sistema de promoção social abarca saúde, o sistema de bem-estar familiar, os subsídios econômicos a famílias e os auxílios de subsistência por transferência direta condicionada. Para dar cumprimento ao principio de solidariedade, 1% da contribuição dos trabalhadores que aportam financeiramente ao sistema são destinados ao regime subsidiado de saúde.
Por tratar-se de uma estratégia contra a pobreza, um dos objetivos do sistema de promoção social é melhorar a capacidade produtiva das pessoas mediante a educação, saúde e entrega de subsídios. Os beneficiários desse sistema são definidos em base ao Sistema de Identificação de Potenciais Beneficiários de Programas Sociais (SISBEN), ferramenta que utiliza o Estado para focalizar o investimento social.
Em 1997, foram criados o Sistema Nacional para a Prevenção e Atenção a Desastres, e o Sistema Nacional de Informação e Atenção Integral a População Deslocada pela Violência, financiados com recursos provenientes do Orçamento Geral da Nação, doações, créditos e cooperação internacional42. Essa lei também criou a Rede de Solidariedade Nacional, responsável por coordenar o sistema de Atenção Integral à População Deslocada pela Violência e outros projetos destinados a proteger a população da extrema pobreza. No ano 2000, foi criada a Rede de Apoio Social (RAS), dando inicio aos programas assistenciais de transferência condicionada: Famílias em Ação, Emprego em Ação, e Jovens em Ação. Em 2002 a Lei 789 definiu, a partir desses programas, o sistema de proteção social colombiano43. Em 2005 foi criada a Agência Presidencial para a Ação Social e Cooperação Internacional, que é a entidade responsável de articular os programas especialmente desenhados para a população afetada pelo conflito interno criado no âmbito do RAS: Famílias Guardabosques, Famílias em Ação, Projetos Produtivos, Infraestrutura social e Reconversão laboral44.
5. ASSISTÊNCIA SOCIAL E ACESSO DA POPULAÇÃO INDÍGENA: TENSÕES ENTRE CIDADANIA E AUTODETERMINAÇÃO
Nos dois países em questão, os programas identificados anteriormente como de proteção social para famílias em situação de pobreza, ou de extrema pobreza são elaborados para a população nacional em geral, portanto sem considerar a especificidade da realidade indígena. Piperata et al.45 pesquisaram os impactos do Programa Bolsa Família na nutrição das famílias ribeirinhas da Amazônia brasileira, e uma de suas conclusões foi a de que o Programa está afetando as estratégias de subsistência familiar, o que, por sua vez, impacta na nutrição destas famílias. Concluíram que existe uma aparente relação entre a implementação do Programa e a redução de massa muscular e incremento de índice de gordura corporal na maioria dos grupos estudados; além de uma associação negativa entre o aumento da renda familiar com o peso das mulheres. Ou seja, mesmo sendo evidente a necessidade de que o Estado atenda necessidades sociais básicas das famílias tradicionais, a maneira de implementar o programa não traz necessariamente um aumento da taxa nutricional de seus beneficiários, ainda que estes possam estar mais gordos. No Canadá, por exemplo, os povos indígenas têm as taxas mais altas de obesidade: 26% deles são obesos, em comparação com 16% dos não indígenas46. Os pesquisadores advertem, porém, que é muito pouco o que se conhece sobre a maneira em que as mudanças econômicas afetam os estilos de vida e a saúde das sociedades rurais, especialmente os que dependem de uma agricultura de subsistência47. Esses dados são de extrema importância para compreender as variações na saúde, e para indicar a necessidade de elaborar e implementar programas com a participação efetiva dos usuários, o que se torna ainda mais fundamental no caso dos indígenas, considerando as particularidades de sua própria constituição sócio-econômica-cultural, que requerem estudos específicos com consulta prévia, a fim de que possam, de fato, favorecer o bem-estar integral desses povos.
Porém, as políticas sociais partem de programas sociais elaborados tecnicamente a partir de uma visão de inclusão construída sobre a base de um modelo de desenvolvimento, que relaciona crescimento econômico individual com melhoria de qualidade de vida. Assim, mesmo quando a consulta é realizada, ela não incidirá sobre a proposta substantiva, pois esta já estará delineada da forma idealizada pelos programas, restando apenas a opção de aceitar ou não, e, quando aceito, de talvez poder opinar em deliberações secundárias, sobre algumas estratégias possíveis para a implementação do programa. Ainda, sendo o modelo de qualidade de vida e de desenvolvimento das políticas sociais vigentes aparentemente alheio aos modos de vida dos povos indígenas, não respeitando a diversidade cultural, quando aceito ele pode trazer impactos indesejados para a vida destas populações.
Na aldeia Kaigang de Pelotas, Rio Grande do Sul, o Programa Bolsa Família foi recebido com fastio pelos indígenas, dado a quantidade de exigências burocráticas para a inscrição das famílias no Cadastro Único do Programa. Em entrevista, o cacique da Aldeia nos indicou que o desejo da comunidade é poder viver com o retorno de suas atividades tradicionais e em comunhão com a natureza, mas dado que a terra é pequena para todas as famílias, que não há caça ou condições para que vivam de seu artesanato, eles se sentem sem alternativa senão aceitar o apoio financeiro oferecido pelo Bolsa Famí-lia48. Ou seja, não há uma liberdade substantiva de escolha: ou aceitam os recursos do Bolsa Família, ou ficam sem receber qualquer tipo de auxílio indispensável, embora não suficiente, para a sua subsistência.
Outro problema que surge na aplicação de um modelo universal de proteção social para povos indígenas nasce na fundamentação teórica das políticas de proteção social na América Latina, qual seja a consolidação de uma cidadania plena na realização de direitos civis, políticos e sociais.
Na Colômbia, onde a situação é alarmante em vista da falta de cobertura que responda de maneira adequada a quantidade de desafios socioeconômicos enfrentados pelos membros dos povos indígenas49, a perspectiva das políticas de promoção social é que contribuam para a superação da pobreza e o fortalecimento do chamado capital humano. Desde essa visão, as políticas de assistência social são consideradas como medidas transitórias, que devem promover os beneficiários a ser capazes de se integrarem por seus próprios meios ao sistema de seguro social existente50. Porém, a única maneira de inserção, nesse sistema, é pelo mercado de trabalho. Essa perspectiva está na contramão das aspirações sócio politicas expressadas pelas lideranças indígenas do país.
E certo que existe uma pluralidade de significados para o termo cidadania, e que este tem sido utilizado para a justificação de princípios e posições opostos e até contraditórios51. Mas cidadania é inquestionavelmente um status individual, e essa é a principal tensão com o exercício dos direitos da autodeterminação dos povos indígenas. Os povos indígenas são um sujeito de direito coletivo, e ainda que seus membros sejam individuados, sua identidade política será primeiramente relacionada com o povo, a coletividade, antes que com o Estado, enquanto cidadão. Ou seja, um membro de uma comunidade indígena é indígena antes de ser cidadão brasileiro ou colombiano. E sua identidade enquanto indígena depende de relações complexas e coletivas entre os membros de um mesmo povo.
A Convenção 169 da OIT e a Declaração das Nações Unidas sobre povos indígenas se aplicam aos "povos" indígenas. Enquanto "população" pode significar um aglomerado de indivíduos que não necessariamente possuem laços culturais entre si, o conceito de "povo", nos termos desta normativa, indica o sentido de pertencer a uma sociedade específica e diferenciada; anuncia que as comunidades sujeitas a sua aplicação possuem um certo grau de autodeterminação para decidir a forma de suas instituições políticas e seu desenvolvimento social, econômico e cultural. Para que um indivíduo indígena se mantenha culturalmente como tal, precisará manter sua identidade política com o núcleo social ao qual pertence, ainda que ao mesmo tempo se relacione individualmente com o Estado.
O programa Famílias em Ação, que é o maior programa de assistência social já implementado na história colombiana, é também o primeiro Programa de Transferências Condicionadas na América Latina que desenvolveu um esquema desenhado especificamente para populações indígenas52. Incialmente construído em 1999 sem ter em conta a diversidade étnica e cultural do país, em 2007 desenvolveu um esquema diferenciado de operação para oferecer cobertura específica às familias indígenas. Em 2012, oferecia assistência a aproximadamente 22% da população colombiana, e 3% das famílias beneficiadas eram indígenas53. Porém, o objetivo do programa Famílias em Ação é, também, a redução da pobreza e a formação de capital humano54. O esquema de aplicação diferenciada para indígenas aproximou alguns dos critérios de avaliação dos beneficiários às realidades dos povos indígenas. Assim, para serem beneficiárias do programa, as comunidades indígenas devem ter uma organização jurídica nos moldes da lei colombiana - o que inclui um número mínimo de membros da comunidade - e destinar o dinheiro recebido para a satisfação de necessidades básicas. As autoridades do Estado primeiro contatam com as autoridades indígenas para indagar sobre a pertinência do programa em suas comunidades, e se for considerado pertinente, as autoridades indígenas consultam com suas assembleias comunitárias, diligenciam o censo indígena e definem com a municipalidade territorial, com a qual operam, a administração do programa no âmbito local.
Na prática, a implementação dos programas de assistência social significa uma carga burocrática que é alheia aos povos indígenas e que pode interferir de maneira dramática em sua organização política própria55.
Uma das medidas do esquema diferenciado na aplicação do programa Famílias em Ação, foi a criação e troca de experiências sobre hortas tradicionais. Só que essa atividade foi implementada inclusive em lugares onde a atividade agropecuária não era a atividade principal da comunidade56, o que alerta para o perigo de estereotipização no desenho das políticas. Perigo que só pode ser evitado com a implementação diálogos interculturais sobre políticas públicas. Sánchez identificou algumas iniciativas de assistência social enfocada a populações indígenas e observou a dificuldade dos programas de assumirem uma perspectiva realmente dialógica57. Sobre os programas de entrega de alimentos pelo Estado colombiano a comunidades indígenas, por exemplo, a autora registra que
... além da configuração de hábitos culturais, os alimentos são bons para pensar. Eles estão classificados em todas as culturas e como categorias fazem parte de mundos e imaginários compartilhados por grupos particulares. [... ] A cultura também determina o que deve ser comido dos animais, vegetais e minerais acessíveis; qual é seu uso, segundo a idade, o estado de crescimento ou de saúde; como devem ser comidos e com quem58.
Assim, embora com algumas estratégias operativas mais definidas e adequadas, o programa Famílias em Ação não chega a ser essencialmente diferente da modalidade usada no Brasil pelo Programa Bolsa Família. No Brasil, desde março de 2017, existe um subsídio específico para orientar o "Trabalho com Famílias Indígenas na Proteção Social Básica" publicado pela Secretaria Nacional da Assistência Social do Ministério de Desenvolvimento Social (SNAS-MDS), que indica a necessidade tanto de superar o desconhecimento da sociodiversidade indígena, como de dar visibilidade a ela, incentivando o debate e a troca de saberes, para que o SUAS consiga responder ao desafio de atender adequadamente às especificidades indígenas.
6. O DEVER DE CONSULTAR COMO GARANTIA AO EXERCÍCIO DA AUTODETERMINAÇÃO
A pesquisa revelou que nos dois países as lideranças indígenas estão preocupadas com o enfraquecimento das autoridades tradicionais em detrimento de um reconhecimento maior para a autoridade burocrática criada pelo Estado e que recebe e administra recursos em espécie em nível local.
Na Colômbia, muitas comunidades indígenas optaram por não receber esse subsidio, argumentando que o Estado não conta com ferramentas apropriadas nem para medir pobreza entre comunidades indígenas, nem para assegurar uma implementação autônoma, por parte das comunidades, dos programas de assistência59. As transferências monetárias por parte dos governos às comunidades indígenas podem ser vistas como políticas assistencialistas e de cooptação, que colocam em risco a autonomia dos povos indígenas na medida em que podem criar dependência dos recursos transferidos e das autoridades que os transferem60. O resultado concreto disso é justamente o oposto do exercício do direito a autodeterminação.
Ainda assim, é importante abrir as discussões nas comunidades para escutar especialmente as vozes das mães, que são as principais destinatárias dos programas, pois na ausência de alternativas concretas, muitas comunidades decidem pelo seu ingresso61. A qualidade dos diálogos relacionados com o ingresso, ou não, dos programas nas comunidades depende muito do grau de fortalecimento político de cada povo ou comunidade. As comunidades politicamente frágeis não submetem os programas a maior escrutínio, tendo uma urgência em aceder aos benefícios monetários. As comunidades politicamente mais organizadas não somente ponderam os possíveis efeitos negativos, senão que também avaliam o contexto político nacional em que tal o qual programa chega até suas comunidades.
Igual ao que ocorre no Brasil, os custos que as famílias devem assumir para chegar até o lugar em que são feitos os pagamentos são relativamente altos: viagens a pé ou de canoa que chegam a durar dois ou mais dias, plantações e famílias desatendidas, entre outros. Além disso, em muitas comunidades é o homem quem tem relações com a entidade financeira onde é depositado o recurso, o que dificulta que as mulheres tenham controle sobre o uso dos recursos inicialmente destinado a elas.
O dever dos Estados de consultar com os povos indígenas antes de tomar uma medida legislativa ou administrativa que os afetem, estabelecido em instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil e pela Colômbia, é um componente dos direitos substantivos que os povos indígenas possuem sobre suas terras, território, decidir suas prioridades no processo de desenvolvimento e o direito a autodeterminação.
A falta de consulta e relacionamento dialógico entre servidores estatais e autoridades indígenas acaba sendo um obstáculo na consecução dos fins propostos pelas políticas de redução de pobreza. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos identificou uma falência dos Estados da região em adaptar as iniciativas de redução de pobreza aos contextos culturais, o que as torna ineficazes. Exemplo disso, segundo a Comissão, são as políticas de assistência social como:
... a prática de proporcionar transferências monetárias condicionadas às famílias indígenas pobres em troca do cumprimento de certas condições prévias, como enviar seus filhos a escola, ou que as mulheres grávidas realizem controles médicos em clínicas rurais ou hospitais. Tais práticas tendem a desatender os valores culturais dos povos indígenas, além de não atacar as causas básicas específicas da pobreza62.
7. CONCEITO DE POBREZA E POVOS INDÍGENAS
Não existem indicadores absolutamente corretos para medir a pobreza nas populações indígenas, indicadores que possam dar conta de toda a diversidade e diferentes circunstancias de vida dos indígenas de um país. Ainda assim, a erradicação da pobreza é a base da maior parte dos programas de proteção social, razão pela qual um dos problemas na aplicação de um modelo universal para povos indígenas reside na definição de "pobreza".
Geralmente as medições de pobreza entre populações indígenas têm por base o critério usado para definir o ingresso na linha de pobreza, ou necessidades não satisfeitas, mas sem ter em conta as necessidades consideradas como prioritárias por estas populações. Por outro lado, além de que na área rural seja difícil avaliar os ingressos não monetários, o método de medir a pobreza em relação ao ingresso parte do suposto do lar como unidade básica de produção e consumo, o que nem sempre ocorre no contexto indígena63.
Ocorre que pobreza não deve ser entendida apenas uma renda inferior a determinado parâmetro estabelecido, tal como caracterizada por agências que oferecem modelos de desenvolvimento e alivio da pobreza, como o Banco Mundial, por exemplo. Pobreza é, essencialmente, uma privação das capacidades básicas de um indivíduo64. Por "capacidade" entendem-se as combinações alternativas de funcionamentos de possível realização pessoal e coletiva. Capacidade, portanto, é um tipo de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos, ou a liberdade para ter estilos de vida diversos. De forma mais ampla, a capacidade básica para viver com dignidade65.
A compreensão de pobreza como dificuldades ou incapacidade de viver com dignidade alerta para a importância da participação da população na construção de seu próprio desenvolvimento, desde a sua própria perspectiva sobre o que é viver com dignidade. Esse entendimento se coaduna com "o direito que têm todas as pessoas afetadas por decisões importantes a participar nos processos pertinentes para adotalas"66, protegido pelo direito internacional dos direitos humanos, particularmente pelos mecanismos da consulta previa e do consentimento informado no caso dos povos indígenas.
Na Colômbia a pobreza é calculada de duas maneiras: a partir dos ingressos monetários dos lares (pobreza monetária), e do índice de pobreza multidimensional (IPM), que tem em conta cinco dimensões de privação: educação, infância e juventude; trabalho, saúde, e acesso a serviços públicos e condições de moradia. O IPM pretende precisar uma linha de pobreza e uma linha de indigência a partir da informação sobre hábitos de consumo dos lares registrados no censo67. No Brasil, o método da insuficiência de ingressos é o mais utilizado para dimensionar a população em condições de pobreza, além de também utilizar um enfoque multidimensional que avalia também o acesso a agua potável, saneamento, tipo de moradia, alimentação adequada e assistência escolar68.
Só que nessas medições, por exemplo, não se tem em conta a questão da terra indígena. A insegurança jurídica sobre direitos territoriais é um fator determinante na qualidade de vida dos povos indígenas, e a perda de terras e cultivos, combinado com uma serie de outras circunstancias desfavoráveis, também incidem na insegurança alimentar dos indígenas. Tal como Sánchez indica, os obstáculos estruturais que na Colômbia obstaculizam o desfrute do direito à alimentação são a magnitude dos deslocamentos forçados; a situação das terras, da agricultura e a desigualdade social nesses setores; o conflito armado; o incremento dos cultivos ilícitos; a colonização forçada e o narcotráfico69. No Brasil, a situação social mais grave que enfrentam os povos indígenas está no estado do Mato Grosso do Sul devido a conflitos violentos por demarcações de terras70. Porém estas questões não são refletidas nas políticas estatais contra a pobreza. A ignorância da perspectiva indígena na concepção das políticas públicas é uma prática comum desde a criação dos Estados da América Latina. O Fórum Permanente das Nações Unidas para os Povos Indígenas ressaltou que os povos indígenas "estiveram e estão em desvantagem ao ser subsumidos dentro dos confins de uma perspectiva de desenvolvimento que frequentemente os ignora, ou os subordina, ou os minimiza e, sobretudo, os desconhece"71.
Ainda que não exista uma visão consensual sobre o que significa bem-estar para os povos indígenas, suas lideranças apresentaram propostas concretas sobre algumas das características que devem ter os indicadores de desenvolvimento social, tais como: ser construídos desde uma visão de bem estar dos povos indígenas (e não desde a sociedade dominante); ter por base os direitos coletivos dos povos; medir o grau de reconhecimento e exercício de direitos; servir para reafirmar a autodeterminação (ibid.). Ou seja, para os povos indígenas, a pobreza deve ser medida especialmente em relação com o grau de autonomia que gozam sobre suas terras e territórios, pois disso também se trata sua perspectiva de viver com dignidade. A Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas (2007) indica que todos os direitos nela reconhecidos, como a autodeterminação, a autonomia, e o autogoverno, "constituem as normas mínimas para a sobrevivência, a dignidade e o bem-estar dos povos indígenas no mundo"72.
Uma metodologia mais apropriada para definir pobreza na relação entre Estado e povos indígenas, é o conceito de pobreza multidimensional com enfoque de direitos. Nessa proposta, a pobreza se traduz "em obstáculos para o gozo e exercício dos direitos humanos em condições de igualdade real por parte das pessoas, grupos e coletividades que vivem em tal situação"73. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos vem insistindo na indispensabilidade de um enfoque de direitos humanos em todas as políticas estatais para a erradicação da pobreza. Desde essa perspectiva, as pessoas e os coletivos que estão em pobreza são e devem ser vistos como titulares de direitos e agentes de mudança, deixando de ser consideradas como receptoras passivas de ajuda ou objetos de beneficência. Devem poder participar de maneira ativa na tomada de decisões sobre as questões que lhes afetam e demandar proteção e prestação de contas por parte das autoridades do Estado74.
Algumas declarações internacionais de povos indígenas neste sentido, como a Declaração de Kimberley (2002) e a Declaração do Fórum Indígena de Abya Yala (2013) identificaram quatro áreas temáticas de importância prioritária para o bem estar destes povos: controle sobre as terras e territórios indígenas; respeito e conservação do meio ambiente; reconhecimento e respeito à identidade e às culturas indígenas; garantia do direito à água; e a participação indígena em todas as decisões que afetam aos indígenas e seus territórios. Em 2008, o Foro Permanente das Nações Unidas para assuntos indígenas elaborou uma proposta de indicadores de bem estar e desenvolvimento indígena (Pacto de Pedregal) onde considera, entre outras: o reconhecimento de terras tradicionais; número de sítios sagrados; mudanças na utilização das terras; nível dos conflitos e atores em conflito; participação de jovens, mulheres e anciãos na transmissão do conhecimento, em festas religiosas e tradicionais; migração; instituições próprias; além de vários outros fatores75.
Esta concepção de pobreza significa, sem dúvida, um avanço importante para as políticas sociais para povos indígenas, porém ignoradas pelos planejadores de políticas sociais no Brasil e na Colômbia. Neste sentido, não responde radicalmente a algumas críticas, apresentadas anteriormente, sobre a forma não participativa de elaborar e implementar políticas de proteção social para povos indígenas em ambos países.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando os estudos realizados, pode-se afirmar que nas últimas décadas o tratamento dispensado às políticas sociais para povos indígenas no Brasil e na Colômbia tem apresentado certos avanços. Entretanto, os programas de transferência de renda, por exemplo, são pensados como medidas transitórias, destinadas a dar condições para que as pessoas consigam uma colocação, ou o reingresso, no mercado produtivo, como trabalhadores formais e contribuintes do sistema de seguridade social. Assim, contraditoriamente, é negado aquilo que aparentemente dizem buscar, pois para que um indígena se mantenha culturalmente como tal, é necessário que mantenha a sua identidade política com o núcleo físico e social ao qual pertence, ainda que ao mesmo tempo se relacione individualmente com o Estado.
Assim, é possível afirmar que, neste milênio, alguns programas sociais têm contribuído para minimizar a total exclusão social de povos indígenas das agendas governamentais, bem como, para ampliar alianças e reforçar movimentos deles mesmos, em busca de condições dignas de vida. Porém, ainda que embasados em uma concepção multidimensional de pobreza, acrescida da importância do conhecimento e respeito à cultura originária dos povos indígenas, elas não contemplam as determinações econômicas sofridas ao longo da história por povos indígenas em diferentes países.
Os programas sociais procuram atender a um conjunto de direitos de cidadania, não abordando de forma alguma as necessidades dos indígenas enquanto membros de povos com direitos de autodeterminação. E este parece ser o ponto de onde convergem, no Brasil e na Colômbia, as contradições presentes nas políticas estatais para os povos indígenas. Em vez de os Estados considerarem estes povos como partícipes da proposição, deliberação, gestão, implantação e avaliação de todos os programas sociais, atendendo plenamente a recomendação do direito a sua autodeterminação, estabelecida nos tratados de direitos humanos, os Estados os vêm e tratam como coletivos pobres, agentes passivos, usuários do sistema de assistência social e parte de um modelo sócio econômico (embora não o sejam) no qual precisam ser melhor incluídos.
A utilização de padrões universais para elaboração e implementação de programas de Proteção Social significa partir de um modelo de inclusão social construído sobre a base de um modelo de desenvolvimento que relaciona crescimento econômico individual com melhoria de qualidade de vida. Este modelo é aparentemente alheio aos modos de vida dos povos indígenas, e pode trazer impactos indesejados nos modos de vida destas populações. Os programas de proteção social aos povos indígenas que vêm sendo desenvolvidos até o momento não atendem a especificidade da cultura indígena, e por isto trazem resultados contraditórios. Desta forma, eles tanto podem favorecer a sua sobrevivência e integração na sociedade contemporânea, como podem contribuir para o gradativo desaparecimento das comunidades tradicionais, transformando os indígenas sobreviventes em "pobres diferentes".
Isso não significa que os programas de assistência social sejam desnecessários, ou necessariamente tragam impactos negativos sobre o direito a autodeterminação dos povos indígenas. Pelo contrário, ante o contexto social atual de ambos países, os programas de assistência social podem efetivamente trazer certa melhoria nas condições de vida em que a maioria da população indígena se encontra. O que queremos evidenciar é que este é um dos campos das políticas públicas onde a falta de uma ética de escuta entre governos e governados, ou de uma participação efetivamente deliberativa dos sujeitos nas políticas públicas, afeta o desempenho de programas estatais e, ao mesmo tempo, produz uma violação das obrigações internacionais do Brasil e da Colômbia.
Por fim, estas notas preliminares apontam para a necessidade de aprofundar a análise da contradição existente na relação de políticas sociais para povos indígenas, propostas e regidas por concepções inerentes de sistemas econômicos, como os vigentes no Brasil e na Colômbia, que divergem essencialmente do modo de produção, organização e reprodução social dos povos indígenas.