Introdução
As técnicas de reprodução humana assistida (TRHA) evoluíram nas últimas décadas de maneira vertiginosa. Os avanços originalmente pensados no contexto da infertilidade têm se expandido para novas áreas na tentativa de cobrir, ou gerar, inéditas necessidades sociais. Nesse diapasão, a outrora impensada reprodução além da vida tornou-se tecnicamente possível, juridicamente cabível e moralmente questionável. Trata-se da aplicação das TRHA após a morte de um dos titulares do material genético. O estabelecimento desse controvertido vínculo entre a vida, a morte e a reprodução só foi possível por meio do aperfeiçoamento da criopreservação de gametas e embriões 1. As possibilidades técnicas da reprodução post mortem podem ser enquadradas, num sentido geral, nos seguintes tópicos: 1) uso de material genético criopreservado antes da morte do titular; 2) extração de material genético de cadáver para o uso em fertilização assistida; 3) transferência de embriões criopreservados gerados com material genético do de cujus.
O uso de óvulos da mulher falecida - para fins de reprodução póstuma - ainda é ínfimo, se comparado com a solicitação de uso de sêmen do homem falecido 2. Tendo em vista tais circunspecções, a nossa pesquisa se concentra nas modalidades casuisticamente mais significativas.
A preservação do material genético, em grande parte, envolve homens que se submeterão a quimioterapias, em que existe risco de comprometimento de sua fertilidade, ou pessoas que trabalham em condições adversas (insalubridade, conflito armado, profissões com alto índice de periculosidade). O conflito surge quando o homem (titular) falece sem ter manifestação seu consentimento para o uso post mortem do material depositado. Nesse caso, a viúva ou a companheira reclama a utilização do material - para TRHA post mortem -, alegando a existência de um projeto procriacional interrompido.
Por sua vez, a solicitação de extração de sêmen post mortem (ESP), aos poucos, está deixando de ser uma prática incomum. Apresenta-se quando o homem falece de maneira repentina sem ter iniciado TRHA, e a viúva ou a companheira requer que seja feita a extração compulsoria do material genético do cadáver. Nos países onde a técnica é autorizada, a extrado se realiza em até 36 horas após o óbito 3, por meio de eletroejaculação, aspiração microcirúrgica de espermatozoides do epidídimo, biopsia testicular ou remoção do testículo em bloco 4.
Uma situação muito delicada se dá quando o casal inicia TRHA, mas o homem vem a falecer deixando embriões congelados - gerados a partir de seu material genético - a espera de serem implantados. Dada a circunstância, a viúva ou a companheira requer por via judicial que os embriões sejam transferidos (implantados) nela, configurando uma solicitado de transferencia embrionária post mortem. Desse modo, ao conflito ético-jurídico que supõe a reprodução postuma, agrega-se a discussão sobre o estatuto jurídico do embrião humano.
Em linhas gerais, o caráter conflitivo e dilemá- tico depende dos seguintes pontos: 1) existência ou ausência de consentimento expresso, prévio e escrito; 2) marco normativo vigente para a realização de TRHA post mortem; 3) análise prévia sobre a pertinência moral das técnicas.
Entre os casos ditos “emblemáticos”, tanto pelo ineditismo como pela repercussão mediática e acadêmica, temos a primeira autorização de inseminação post mortem - o caso Parpelaix - na França, em 1984 1; o primeiro caso exitoso de concepção postuma - o caso Blood - no Reino Unido, em 1997 5; a primeira concepqao por injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI) com esperma coletado 30 horas após a morte do titular - o caso Vernoff - nos Estados Unidos, em 1999 4, entre outros. Gradativamente, houve um aumento na demanda por esse procedimento no mundo inteiro. Os países anglo-saxônicos e centro-europeus reagiram de formas diversas, já seja optando pela estrita proibição da técnica, seja pela autorização (livre ou condicionada). Países como Franqa, Alemanha, Suécia ou Canadá proíbem esses procedimentos; já no Reino Unido é permitido desde que o consentimento paterno pré-mortem seja registrado 6. Entre os episódios de relevância na região ibero-americana, temos uma autorização judicial de ESP - o caso da viúva espanhola - na Argentina, em 1999 7; a primeira reprodução post mortem autorizada pelo judiciário no Brasil - o caso Lenerneier -, em 2010 8; o indeferimento de pedido de fertilização póstuma por ausência de consentimento expresso - o caso “B-Lisboa” - em Portugal, em 2013 9, entre outros.
A maior parte das legislações ficou em franca assincronia com as novas possibilidades filiatórias e/ou sucessórias decorrentes da reprodução além da vida. Isso deu lugar ao surgimento de alguns paradoxos tais como filhos biológicos, mas sem filiação com o de cujus, ou filhos póstumos reconhecidos - jurídicamente -, mas sem direito a herança. Por sua vez, pontos-chave como a autonomia nas decisoes reprodutivas, o bem-estar do menor, o direito a biparentalidade ou o respeito a dignidade corpórea do falecido atiçam o debate bioético sobre a legitimidade das TRHA post mortem10,11. Nesse diapasão, fica claro que o estabelecimento dos pontos de atrito depende, uma vez mais, das múltiplas combinações possíveis: da técnica, do pedido, do tipo e da origem do material, dos princípios e dos valores envolvidos etc.
Conhecer o panorama da temática na Ibero-América resulta altamente construtivo para o cenário atual, a julgar pela expansão da casuística e a anfractuosa evolução das leis na região. A mudança nas prioridades bioéticas, biopolíticas, bios- sociais e biojurídicas dependem de uma enorme e instável quantidade de fatores; não obstante, cabe aos estudiosos da medicina legal, da bioética ou do biodireito antecipar-se, na medida do possível, aos adventos da medicina pós-moderna por meio do compartilhamento das experiências forâneas ou na reflexão crítica dos dilemas domésticos, aqueles que ainda driblam a exigua regulamentação vigente.
Objetivos
Identificar e categorizar as legislares dos países ibero-americanos da amostra, de acordo com a permissibilidade das técnicas de reprodução post mortem. Integrar a análise os principais ques- tionamentos éticos e médico-legais que trazem consigo as técnicas de reprodução post mortem.
Métodos
A presente revisão integrativa foi elaborada com base nas seguintes etapas, segundo o modelo de Ganong 12: 1) identificação da questao da pesquisa; 2) amostragem; 3) categorização dos estudos; 4) avaliação dos estudos incluidos; 5) interpretação dos resultados; 6) síntese de conhecimento. Para atender aos objetivos do estudo, definiu-se a questão orientadora: qual é o panorama ético-legal sobre a fecundação post mortem na Ibero-América? As bases de dados utilizadas foram SCIELO, PubMed, Dialnet, ScienceDirect, DOAJ, Lilacs e Google Scholar. A busca foi realizada com o uso de descritores controlados e selecionados no Medical Subject Headings (Mesh®)/Descritores em Ciências da Saúde (DECS®): fecundação; reprodução póstuma; concepção póstuma; fertilização in vitro; post mortem; legislado e jurisprudência; ética; bioética; América Latina; Espanha; Portugal (e suas traduções a inglês e Espanhol). Para o refinamento da busca, foram utilizadas palavras-chave (keywords), tais como: filiação; sucessão; [países]. Os operadores booleanos [AND] e [OR] foram empregados de acordo com a necessidade, a fim de aprimorar a expêriencia de busca. Por exemplo, para a base SCIELO, a forma de busca adotada foi “Reprodução [AND] post mortem; reproducción [OR] inseminación [AND] post mortem [AND] países”. A estratégia de busca para as outras bases seguiu um tratamento similar, destacando a combinação de descritores para atingir uma maior especificidade. Artigos que atendam ao objeto de estudo, artigos em português, Espanhol e inglês, e artigos publicados entre 2010 e 2019 foram os critérios de inclusão. Artigos em outras línguas, artigos publicados antes de 2010, monografias, dissertações, teses, comunicados ou editoriais, artigos que não abordam substancialmente o objeto de estudo foram os critérios de exclusão. A seleção inicial obedeceu à leitura de títulos e resumos - ou na íntegra, quando foi necessário -, e ao cotejo de afinidade com a questão orientadora da pesquisa. A leitura críticana íntegra - permitiu a categorização dos dados. A partir dos resultados, leis e regulamentações sobre o assunto foram pesquisados em sites oficiais dos países envolvidos e incluídos de forma complementar para compor o acervo final que foi analisado. Por fim, os dados foram confrontados com fontes oficiais disponíveis on-line, a fim de confirmar a sua validade, pertinencia e vigência.
Resultados e discussão
Caracterização da produção
A busca otimizada nas bases de dados contemplou um total inicial de 281 estudos. Após a leitura de títulos e resumos, e a aplicado dos critérios de inclusão e exclusão, 238 artigos foram descartados, resultando 43 artigos elegíveis. Depois da leitura na íntegra, foram excluídos 22 artigos, os duplicados, com informações insuficientes ou repetitivas, ou aqueles que não abordavam substancialmente a questão orientadora da pesquisa, resultando uma amostra final de 21 estudos (Figura 1).
O Quadro 1 mostra a distribuição dos estudos primários de acordo com autor, título/fonte, país e idioma. Para sistematizar e facilitar a citação na fase de análise, os estudos primários foram codificados da seguinte forma: Estudo (E) + n° = (E1).
Cód./Ano | Autor | Título/Fonte | País1 | Idioma |
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E1 2018 13 | Enguer GP, Ramón FF | Dilemas bioéticos y jurídicos de la reproducción asistida en la sociedad actual en España. Revista Latinoamericana de Bioética. 2018;18(1):104-35. | Espanha | Espanha |
E2 2017 14 | Ribeiro RB | Reprodução assistida post mortem no Direito brasileiro. Revista de Biodireito e Direito dos Animais. 2017;3(1):36-56. | Brasil | Português |
E3 2017 15 | Herrera M | Un debate complejo: la técnica de reproducción humana asistida post mortem desde la perspectiva comparada. Revista ius. 2017;11(39):185-206. | Argentina | Espanhol |
E4 2019 16 | Leite TH | Análise crítica sobre a evolugao das normas éticas para a utilizagao das técnicas de reprodugao assistida no Brasil. Ciencia & Saúde Coletiva. 2019;24(3):917-28. | Brasil | Portugués |
E5 2015 17 | Oliveira NB, Sá MF | Panorama bioético e jurídico da reprodugao humana assistida no Brasil. Revista de Bioética y Derecho. 2015;34:64-80. | Brasil | Portugués |
E6 2019 18 | Geri L | Consentimiento presunto a las técnicas de reproducción humana asistida post mortem. Criterios para su regulación en Argentina. Revista de Bioética y Derecho. 2019;46:149-65. | Argentina | Espanhol |
E7 2015 19 | Rodríguez Guitián AM | La reproducción artificial post mortem en España: estudio ante un nuevo dilema jurídico. Iuris Tantum Revista Boliviana de Derecho.2015;20:292-322. | Espanha | Espanhol |
E8 2013 20 | Bernal CJ | Reproducción asistida y filiación. Tres casos. Revista Opinión Jurídica. 2013;12(24):135-50. | Espanha/Colômbia | Espanhol |
E9 2017 21 | Abreu CS et al. | Determinación de la filiación en la procreación asistida. Revista ius. 2017;11(39):109-37. | Peru | Espanhol |
E10 2012 22 | Dantas E, Raposo V | Legal aspects of post-mortem reproduction: A comparative perspective of French, Brazilian and Portuguese legal systems. Medicine and Law. 2012;31(2):181-98. | Brasil/ Portugal | Inglés |
E11 2014 23 | Abreu CS et al. | Estudo das regulamentações de reprodução humana assistida no Brasil, Chile, Uruguai e na Argentina. Reprodução & Climatério. 2014;29(1):27-31. | Brasil/ Chile/ Uruguai/ Argentina | Português |
E12 2017 24 | Krasnow AN | La filiación por técnicas de reproducción humana asistida en el Código Civil y Comercial argentino. Un avance que permite armonizar la norma con la realidad. Revista de Derecho Privado. 2017;32(1):175-217. | Argentina | Espanhol |
E13 2016 25 | Pisetta Cecchini F | Inseminación artificial y fecundación in vitro homólogas post mortem: la filiación y la sucesión según la ley brasileña. Foro — Revista de Ciencias Jurídicas y Sociales Nueva Época. 2016;19(1): 355-76. | Brasil | Espanhol |
E14 2014 26 | Alves LS, Oliveira CC | Reprodução medicamente assistida: questões bioéticas. Revista Bioética. 2014;22(1):66-75. | Portugal | Português |
E15 2018 27 | Sánchez Ruiz P, Martinez N, Fernandez E | Fecundación in vitro postmortem. Cultura de los cuidados. 2018;50:171-9. | Portugal | Espanhol |
E16 2015 28 | Barbosa S et al. | Extracción de semen post mortem: aspectos éticos y legales. Descripción de caso y estudio en Colômbia . Revista Colômbia na de Bioética. 2015;10(1):170-81. | Colômbia | Espanhol |
E17 2015 29 | Moadie OV | Reflexión crítica sobre la fecundación post-mortem como tra en el ordenamiento jurídico Colômbia no y su incidencia en el ámbito filial y sucesoral. Acta Académica. 2015;1:1-18. | Colômbia | Espanhol |
E18 2014 30 | Gomez Recuero Y | Ley de Reproducción Humana Asistida y Capacidad para adquirir en materia sucesoria. La justicia uruguaya: revista jurídica. 2014; 150:1-10. | Colômbia | Espanhol |
E19 2014 31 | Morante VR | ¿Debería permitir la futura ley peruana sobre técnicas de reproducción humana asistida (teras) la figura del “embarazo post mortem”?. Vox Juris. 2014;28(2):161-87. | Peru | Espanhol |
E20 2018 32 | Ramón FF | Reflexiones acerca del documento indubitado en la fecundación “post mortem”. Actualidad Jurídica Iberoamericana. 2018;9:454-71. | Espanha | Espanhol |
E21 2017 33 | Senna BC | O estabelecimento da filiação na lei de procriação medicamente assistida portuguesa. Revista Eletrônica de Direito da Faculdade Estácio do Pará. 2017;4(5):70-95. | Portugal | Português |
Fonte: elaboração pròpria, 2020.
1 país ibero-americano abordado no estudo.
Cód.: código do estudo.
O Quadro 2 exibe a relação de documentos oficiáis que complementam a revisão integrativa.
Documentos oficiáis complementares | |
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Argentina | Argentina. Proyecto de Código Civil y Comercial de la Nación. Infojus; 2012 34. |
Argentina. Ley 26.994/2014. Código Civil y Comercial de 07/10/14. Infoleg; 2014 35. | |
Argentina. Proyecto de ley: Técnicas de Reproducción Humana Asistida - Expediente 4058-D-2014 de 27/05/2014. Cámara de Diputados; 2014 36. | |
Brasil | Brasil. Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 2.168/2017. Conselho Federal de Medicina. Diário Oficial da Brasil União de 10 de novembro de 2017; seção I, 73 37. |
Brasil. Lei 10.406/2002. Código Civil de 10/01/2002. Diário Oficial da Uniao de 11 de janeiro de 2002; seção I 38. | |
Colômbia | Colombia . Proyecto de Ley 151/2001. Modificación del Código Civil y Penal referente a la aplicación de los métodos Colômbia de procreación humana asistida. Gaceta del Congreso. 2001; n° 558 39. |
Colômbia . Ley 57/1887. Código Civil Colômbia no. Congreso de la República de Colômbia ; 1887 40. | |
Espanha | España. Ley 14/2006. Sobre técnicas de reprodução humana assistida de 26/05/2006. Boletín Oficial del Estado de 27 de mayo de 2006; n° 126 41. |
España. Constitución española de 31/10/1978. Boletín Oficial del Estado de 29 de diciembre de 1978; n° 311 42. | |
Peru | Perú. Anteproyecto de Reforma del Código Civil Peruano. Grupo de Trabajo Revisión y Mejoras Código Civil Peruano de 1984. La Ley; 2019 43. |
Perú. Decreto Legislativo 295. Código Civil del Perú de 24/06/1984. Congreso de la República; 1984 44. | |
Portugal | Portugal. Lei 32/2006. Regula as Técnicas de reprodução medicamente assistida de 26/07/2006. Diàrio da República de 26 de julho de 2006; 1a Série, n° 143 45. |
Uruguai | Uruguay. Ley 19.167 sobre Técnicas de Reproducción Humana Asistida de 22/11/2013. Diario Oficial de 29 de noviembre de 2013; n° 28854 46. |
Uruguay. Ley 16.603 Código Civil de 19/10/1994. Diario Oficial de 21 de noviembre de 1994; n° 24177 47. |
Fonte: elaboraçâo própria, 2020.
Os estudos recuperados abordam a situação ética e jurídica das TRHA post mortem dos seguintes países ibero-americanos: Argentina, Brasil, Colômbia, Espanha, Peru, Portugal e Uruguai (Figura 1). Os países da amostra (n = 7) constituem 32% do total dos países da Ibero-América (n = 22). Apenas 14% (n = 3) dos estudos abordam a conjuntura de mais de um país; o restante 86% (n = 18) concentra sua análise em um único país.
Quanto ao período de publicação, 24% (n = 5) dos estudos foram publicados em 2017; 19% (n = 4) em 2015; 19% (n = 4) em 2014; 14% (n = 3) em 2018; 9% (n = 2) em 2019; 5% (n = 1) em 2012; 5% (n = 1) em 2013 e 5% (n = 1) em 2016. Com relação ao idioma, 67% (n = 14) dos estudos foram publicados em Espanhol; 28% (n = 6), em português e 5% (n = 1), em inglês. Quanto ao tipo de estudo, 62% (n = 13) têm uma abordagem predominantemente jurídica, 29% (n = 6), uma abordagem ético-jurídica e 9% (n = 2), eminentemente ética.
Conteúdo da produção
Argentina
Na Argentina, não existe norma que autorize especificamente ou regulamente as TRHA post mortem. O último anteprojeto do Código Civil e Comercial da Nação (CCCN) contemplava a filiação post mortem sob o artigo 563 - Filiação post mortem nas técnicas de reprodução assistida34, mas a figura foi suprimida no marco do debate parlamentar (E6). O texto pretendia sanear, principalmente, duas questões: “o consentimento dado em vida para TRHA tem vigência para realizar a prática após a morte? É necessário que o consentimento fale concretamente que seu material genético seja utilizado após sua morte?” (E12, p. 208). No entanto, a norma deixava de fora questões referentes à filiação e às outras modalidades de reprodução póstuma, o que poderia ter significado maiores conflitos.
Frentes académicas apresentaram consistentes argumentos contrários à inclusão das TRHA post mortem no texto final, por exemplo, o conflito ético-jurídico da fecundação post mortem, as discrepâncias filiatórias, o bem-estar do menor, a dignidade da pessoa, entre outros. Os doutrinários que se opõem à técnica advogavam pela proibição expressa, o que acabou não acontecendo. Já os favoráveis consideram que se perdeu a oportunidade de legislar sobre o assunto, porém concordam que sua exclusão foi correta devido às restrições da proposta (E3).
A filiação post mortem se mantém, no mínimo, nebulosa, mas a questão sucessória, paradoxalmente, estaria regulamentada (E3). Por um lado, “o novo CCCN regulamenta o sistema de filiação aplicável às TRHA, que se estrutura sobre a vontade procriacional” (E6, p. 151). Por outro, o artigo 2.279 do CCCN, referido à transmissão de direitos por causa de morte, expressa que: “Podem suceder ao causante: [...] c) as nascidas após de sua morte mediante técnicas de reprodução humana assistida, com os requisitos previstos no artigo 561” 35. Destarte, “o CCCN prevê, de maneira restritiva, a capacidade de herdar da pessoa que nascer como consequência de uma fecundação post mortem” (E3, p. 191).
O legislador entendeu que o consentimento expresso é a melhor forma de legitimar a autonomia no caso de reprodução assistida (E6). Por exemplo, sobre a ESP, à luz do ordenamento legal vigente, não seria possível outorgar um pedido de autorização judicial de conformidade com a regra que rege em matèria de atos de disposição do pròprio corpo (art. 56 do CCCN); ou seja, terceiros não podem decidir sobre um ato que depende unicamente da vontade da própria pessoa (E3).
Apesar da falta de normatização específica e sob o entendimento que o silêncio no CCCN não im- plicaria proibição (E12), “várias sentenças judiciais têm autorização a aplicação post mortem das TRHA em casos de ausencia consentimento ad hoc” (E6, p. 152), apelando frequentemente ao consentimento presumido (E3, E6). Salvo exceções, “a maioria tem reconhecido a virtualidade do consentimento nos casos de gametas e embriões crioconservados” (E6, p. 153). Vontade procriacional reconstruída, consentimento por representação ou consentimento presumido (E3, E6, E12), são as propostas que confrontam os questionamentos sobre o caráter personalíssimo das decisões reprodutivas.
O caso de pedidos de transferência post mortem de embriões parece pacificado, haja vista a convergência doutrinária que infere a necessidade de procurar a implantação dos embriões crioconservados (E12).
O Projeto de Lei 4058-d-2014, que tramita no Congresso, no seu artigo 30, estipula a fecundação post mortem, incluindo a possibilidade de que o cônjuge possa decidir o destino do material genético do falecido 36. O projeto recebeu meia sanção, mas continua estancado. A Argentina é um dos países da região onde o debate académico, social e religioso sobre as TRHA tem mantido constancia e intensidade.
Brasil
“O legislador brasileiro não se preocupou em regulamentar exaustivamente a reprodução assistida” (E2, p. 37). Em razão das omissões legislativas, o CFM emitiu resoluções de caráter ético-normativo na tentativa de preencher ditas lacunas. Vide as sucessivas resoluções: CFM 1.358/1992; CFM 1.957/2010; CFM 2.013/13; CFM 2.121/2015 e CFM 2.168/2017 (E4, E5, E11). Esta última versão - quanto a reprodução post mortem- mantém a redação de 2015.
No Brasil, não existe lei específica que autorize ou proíba as TRHA post mortem; sem embargo, estariam parcialmente regulamentadas com base em dois corpos normativos: o artigo 1.597 do Código Civil (CC) e a citada Resolução 2.168/2017 do CFM. Entretanto, persiste a controvérsia sobre o teor, a abrangência e a legitimidade na autorização das TRHA post mortem (E2, E4, E5).
A Resolução CFM 2.168/2017, no seu inciso VIII - Reprodução assistida post mortem -, estabelece:
É permitida a reprodução assistida post mortem, desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislaqao vigente 37.
Apesar de ser o único instrumento que aborda o tema de forma direta, determinando a permissibilidade para a realizado das técnicas (E11), continuam os questionamentos sobre a competência normativa das resoluções do CFM. Alegam-se a falta de imperatividade erga omnes de ditas diretrizes (E2), a impossibilidade de a resoludo inovar originariamente a ordem jurídica (E5) ou simplesmente a não designação a elas do valor de lei (E4).
O silêncio legislativo provoca uma série de dúvidas desde a esfera civil. O assunto é abordado pelo artigo 1.597 do cc:
Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: [...]
II - havidos por fecundação artificial homóloga, mes- mo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga 38.
O artigo em tela permite duas leituras possíeis: 1) a liberação das técnicas; 2) as repercussões filiatórias. Por um lado, uma boa parte dos doutrinários consideram que a previsão no CC vá em caminho a ser entendida como uma permissão legislativa (E2, E5, E13). As situações citadas pela norma civil (incisos III e IV) caracterizam a maior parte dos casos que envolvem TRHA post mortem (E5). Admitem-se como filhos aqueles havidos por fecundação artificial, mesmo que o marido titular do material genético (sêmen) tenha falecido; também se admitem como filhos aqueles havidos por fertilização in vitro, cujos embriões ficaram congelados até o momento da transferência ao útero, de acordo com a vontade dos pais (E2, E5, E13).
Confere a presunção de paternidade se a fecundação artificial ocorre após o prazo (300 dias) (inciso II, do art. 1.597). Mas, necessariamente, o de cujus deverá ter deixado seu consentimento prévio e expresso (E13), caso contrário, não será atribuída a filiação. A norma não contempla a possibilidade de realizar as técnicas em ausência de consentimento do de cujus. O ordenamento jurídico brasileiro prevê situações em que a manifestação de vontade produz efeitos mesmo após a morte do seu emitente (E2). Essa exigência é também prevista pelo Enunciado 106 do Conselho de Justiça Federal. Inclusive, o Provimento 52 da Corregedoria Nacional de Justiça, reforça a qualidade filiatória póstuma, pois prevê o direito de registro da criança concebida por reprodução assistida post mortem (E2). Em síntese, mesmo com as dificuldades interpretativas, para a maior parte dos doutrinários, a filiação estaria reconhecida (E4); diferentemente, o direito sucessório apresenta maiores obstáculos.
O artigo 1.798 do CC dispõe: “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão” 38. “Os problemas iniciam-se quando os gametas do de cujus ou os embriões gerados com seu material genético estiverem congelados no momento da morte” (E13, p. 371). Sobre os embriões gerados pela fertilização in vitro, a discussão pousa no momento da concepto; já sobre os gametas se problematiza sua qualidade nondum conceptus - não concebido ao momento do falecimento do de cujus (E13). Em consequencia, filhos nascidos via reprodução post mortem não teriam o direito sucessório garantido (E4). As dissonâncias são graves e evidentes, pois, na prática, poder-se-ia admitir filhos póstumos, mas sem direitos de herança, o qual é contràrio ao princípio constitucional de igualdade entre filhos (E2, E13). No caso, a alternativa seria a disposição testamentária (art. 1.799 do cc) (E13).
Entre as principais controversas éticas descritas nos estudos e debatidas no Brasil, estão a orfandade da prole, o consentimento do doador falecido, as motivações egoísticas para o uso da técnica, o tratamento sucessório desigual conferido aos filhos póstumos, a dignidade da pessoa, entre outras (E2, E4, E13). Um aspecto que vem sendo considerado é a “reconstrução judicial da vontade” (E5). Não existindo autorização prévia e expressa do de cujus, e diante do pedido da viúva para o uso do material genético, os juízes têm considerado os antecedentes em função da “vontade procriacional” para deferir as autorizações (E2). O dispositivo é controvertido, pois constituiria uma forma disfarçada de consentimento presumido.
Vários projetos de lei já foram apresentados na tentativa de normatizar a reprodução assistida, incluída a post mortem (E4). Atualmente, tem cinco projetos em processo de tramitação na Câmara de Deputados (Projeto de Lei 1.135/2003, Projeto de Lei 1.184/2003, Projeto de Lei 2.061/2003, Projeto de Lei 4.892/2012, Projeto de Lei115/2015).
Colômbia
No momento, a Colômbia não tem lei específica para TRHA post mortem, mas já houve uma séria intenção de legislar sobre o assunto no Título IX do Projeto de Lei 151/2001 39. O regime proposto para a “procriação pòstuma” (art. 40) era de caráter proibitivo, com a “finalidade de garantir o direito das crianças a ter uma familia” (E17,p. 10). A contravenção da lei contemplava sanção penal e patrimonial - medida controversa e acertadamente rejeitada. Nesse sentido, “nada foi dito ainda, nem por via da tutela nem por via regulamentar” (E16, p. 179).
Ao não existir legislação que proíba tais procedimentos - inseminação, fecundado ou transferencia embrionária - (E17), “a criança que nasce após 300 dias da morte do de cujus, biologicamente é seu filho, mas juridicamente não estaria dentro da presunção de paternidade, de acordo aos artigos 92 e 220 do Código Civil Colômbia no” (E8, p. 140). Nesse ponto, as soluções jurídicas são contraditórias, por exemplo, uma sentença do Tribunal Superior do Distrito Judicial de Bogotá - Sala de Família, em 2 de agosto de 1994, proferiu a presunção de paternidade (extramatrimonial) de uma crianza gerada por inseminação post mortem, mesmo em ausência de autorização específica do falecido pai, com base na igualdade de direitos entre filhos (inc. 6, do art. 42 da Constituição Política da Colômbia ) (E8). De maneira oposta, existem casos de solicitações de TRHA post mortem indeferidas por carência de legislação compatível (E17). Ainda, tem-se reportado casos de solicitado de ESP indeferidos pelos Comitês de Ética Hospitalar (E16).
Discute-se bastante o papel do consentimento informado, autonomia da vontade e sua representação documental (escritura pública, documento médico privado) (E8, E17). Também se colocam em tela as implicações éticas sobre o defunto e até que ponto a ESP pode ser considerada violatória da dignidade. Reconhece-se que o tema ainda “não foi aprofundado o suficiente e que a técnica pode desencadear situações sociais e psicológicas adversas e lesivas para a criança” (E16, p. 176).
Uma proposta de soludo ética para o impasse da ESP, útil nas outras formas de TRHA post mortem, visa ao esclarecimento conjunto entre a solicitante (viúva/companheira) e a família (pais) do defunto. O protocolo modificado de Batzer foi proposto como um anteparo ético para a validação da ESP (E16). Também se discute que a importância da saúde mental ao momento da solicitação de TRHA post mortem, já que a requerente se encontra em período de luto, o que pode levar a adotar decisoes impulsivas. Nesse ínterim, elementos como egoísmo ou narcisismo na decisão de gerar um filho póstumo devem ser correta e oportunamente avaliados (E16).
Espanha
A normatização da reprodução post mortem deriva-se do entendimento constitucional de que “tem que prevalecer o direito de procriar da viúva ou companheira do falecido” (E7, p. 299). Na Espanha, o tema está regulamentado no artigo 9° da Lei 14/2006, sob o enunciado: “Premoriencia do marido” 41. “De uma forma sintética cabe afirmar que a regra geral é a proibição de tal hipótese, já que o parágrafo primeiro somente admite o uso das TRHA em vida dos cônjuges” (E7, p. 294). Porém, nos parágrafos 2° e 3°, aplicam-se exceções que facultam a utilização do material genético do falecido quando cumpridos dois requisitos: existencia de consentimento para a reprodução post mortem e que a técnica seja realizada até um ano após o falecimento (E1, E7, E8, E15). Contudo, a exceção tem tal amplitude que, na prática, ganha rango de lei, com o mesmo conteúdo e efeitos que a aludida regra geral (E7). É por isso que o rigor é de uma autorização explícita.
A manifestação do de cujus só é válida se lavrada em documento de autorização de técnicas de reprodução, escritura pública, testamento, escrito de instruções prévias (E1), respeitando os requisitos de expressão livre, consciente e formal. Todos esses documentos têm em comum o assentimento para a prática (E20). Tal manifestação não pode ser substituída por declaração de familiares nem por ordem judicial (E1). Sem embargo, existe uma exceção, segundo o artigo 9.2, Lei 14/2006: “se presume outorgado o consentimento do homem quando a mulher já houvesse iniciado o processo de reprodução assistida para a transferência de embriões constituídos antes da morte do mencionado homem” 41. Nessa instancia, o debate se concentra em determinar qual é, propriamente, o início desse processo.
Fica claro que, apesar das exceções, a legislação espanhola foi muito zelosa ao tentar proteger o caráter exclusivo e íntimo da manifestação da vontade (E20).
Sobre a filiação, “se o homem autoriza em vida e a TRHA se realiza dentro dos 12 meses após a morte, se reconhecerá a paternidade, independentemente se os progenitores estivessem ou não casados” (E1, p. 125). Para tentar se harmonizar com o disposto no CC, com relação ao tipo de filiação, a norma a considera uma filiação de tipo matrimonial (E7). Já no suposto de realizar uma procriação post mortem “ilegal” (por ausência de consentimento do homem ou por ter expirado o prazo de 12 meses), à descendência não lhe seria reconhecida a paternidade do homem falecido (art. 9.1, Lei 14/2006) (E1). A possibilidade de ter filhos póstumos juridicamente não reconhecidos entra em contradição com o parágrafo 3° do artigo 39 da Constituição Espanhola (E1, E7, E15, E20), que cita: “os pais devem prestar assistência de toda ordem aos filhos havidos dentro e fora do matrimônio” 42. O citado artigo 9° “não atribui de modo explícito direitos sucessórios aos nascidos fruto destas técnicas, mas pode-se inferir a atribuição implícita de tais direitos ao determinar ou facilitar a determinado da filiação da crianza em relação ao homem falecido” (E7, p. 315).
A lei não se pronunciou sobre o destino específico dos embriões excedentários gerados por TRHA post mortem (depois de transcorridos 12 meses), sendo aplicada a norma geral de destino de embriões (doação, investigação, destruição) (E1). Por outro lado, “o artigo 9 somente regulamenta a reprodução artificial post mortem no casal heterossexual. A literalidade do preceito, entre outras razdes, impede que se estenda tal hipótese a um matrimônio ou casal de fato homossexual, de homens ou mulheres” (E7).
Alguns assuntos discutidos e objetados na reprodução post mortem são: procriação responsável, desvio da finalidade terapêutica das técnicas de reprodução , direitos da criança com relação aos seus pais, percepção do embriào como realidade pessoal, entre outros (E1, E15). Sobre a ESP, fica em discussào a validez do eventual consentimento para o procedimento, já que a norma não é muito clara nesse aspecto. Por fim, o aperfeiçoamento da constatação da vontade, por meio de um “documento indubitado”, é proposto e discutido no âmbito do novo cenário digital (E20).
Peru
O Peru não tem legislado específica sobre a reprodução post mortem; sem embargo, é necessàrio destacar que se encontra em fase avanzada de tramitado a Proposta de Reforma do Código Civil de 1984 43, na qual se introduz de forma inédita a questào da reprodução medicamente assistida post mortem.
As novas TRHA possibilitaram a concepção de um filho quando seu progenitor não se encontra mais vivo. Na norma civil peruana 44, os filhos póstumos, aqueles concebidos pelo pai em vida e nascidos após seu falecimento, mas antes dos 300 dias da dissolução do matrimonio (E19), teriam reconhecida a filiação. Quando o concebido nasce após 300 dias da morte do pai, não pode ser considerado filho do de cujus, mesmo que biologicamente o seja (E19). A estes últimos uma parte da doutrina os denomina “filhos superpóstumos” (E9).
Na doutrina peruana, propõem-se algumas soludes pragmáticas para a reprodução post mortem (E9, p. 135):
se o filho nasce dentro do prazo, aplica-se a presunção de paternidade, portanto é matrimonial e do defunto;
e o filho nasce fora do prazo, deve-se diferenciar, se é inseminação ou transferência embrionária;
se a fecundação é heteróloga (com sêmen de doador), somente a vontade expressa do de cujus proferiria a filiação, inclusive matrimonial.
Se olharmos o projeto de reforma, com relação à determinado da filiação post mortem (art. 415-A), este estipula:
Nos casos de Reprodução Medicamente Assistida Post mortem com material genético do marido, o filho será matrimonial sempre que exista assentimento expresso e se realize dentro do prazo máximo de seis meses desde a morte do marido. A mesma regulamen- tado se aplica aos embriões crioconservados 43.
Embora a regulamentação proposta tente resolver os conflitos filiatórios e suas implicâncias hereditárias, no atual contexto, é inevitável que uma inseminação post mortem não finalize em reclamação judicial. Como se pode observar, o texto aplica de maneira expressa e direta a condição filiatória matrimonial, supeditada a um consentimento válido - devendo concordar com a presunção de paternidade disposta no artigo 361 do CC (E19). O prazo de seis meses é um período fixado com o fim de o filho nascer protegido pela presunto “pater est ” e evitar a pendencia da partilha hereditária (E19). A transferência embrionária post mortem estaria contemplada sob os mesmos termos. Percebe-se a permissibilidade da proposta ao introduzir de maneira expressa a figura da reprodução medicamente assis- tida post mortem, o que, obviamente, significaria a definitiva autorização legal para a pràtica.
Desde a perspectiva bioética, parte da doutrina considera que as TRHA post mortem são violatórias do melhor interesse da criança, haja vista a orfan- dade “ab inittio” e a privalo do filho de se desenvolver num ambiente biparental (E19). É criticada a realização das técnicas em ausência de problemas de fertilidade, já que contraria o disposto na Lei Geral de Saúde. Destaca-se a importância da verificado do consentimento prèvio e expresso; sem embargo, alguns doutrinários admitem que pode ser razoavelmente inferido (E9). Por fim, a carência de legislação produz que, pela grande oferta de serviços reprodutivos, a práxis esteja sujeita ao critério ético de médicos e biólogos (E19).
Portugal
A reprodução post mortem è regulada pelo artigo 22 da Lei 32/2006. A epígrafe da norma intitula-se “inseminação post mortem”; mas, estritamente falando, deveria ser chamado “transferencia de em- brioes post mortem”, dado que apenas esta última è permitida (E10). Assim:
Artigo 22. Inseminação Post mortem
1 - Após a morte do marido ou do homem com quem vivia em uniào de fato, não è lícito à mulher ser inseminada com sêmen do falecido, ainda que este haja consentido no ato de inseminação.
2 - O sêmen que, com fundado receio de futura esterilidade, seja recolhido para fins de inseminação do cónjuge ou da mulher com quem o homem viva em uniào de fato è destruído se aquele vier a falecer durante o período estabelecido para a conservação do semen.
3 - É, porèm, lícita a transferencia post mortem de embriào para permitir a realização de um projeto parental claramente estabelecido por escrito antes do falecimento do pai, decorrido que seja o prazo considerado ajustado a adequada ponderado da decisão 45.
Os dois primeiros incisos se ocupam das duas modalidades mais frequentes. O inciso 1 proíbe de maneira patente a inseminação post mortem; já o inciso 2 impossibilita a fertilização post mortem. “Os legisladores portugueses definiram o regime jurídico na época da fecundação: caso esta ocorra antes da morte do pai permite-se que os embriões sejam transferidos, mas se ainda não tiver ocorrido nessa data, não será mais possível apesar das evidências relacionadas aos desejos do falecido” (E10, p. 192). Ou seja, somente é considerada a transferência de embrião assumido como projeto parental antes da morte do pai (E14). A autorização do de cujus deve ser em documento público, e o embrião deve ser utilizado pela viúva ou pela companheira nos três meses seguintes a data da morte (E21).
Vale a pena assinalar que a redação da lei dispõe unicamente a possibilidade de solicitação por parte da mulher supérstite e não do eventual homem supérstite; ou seja, “todo o regime da lei parte do pressuposto que aquele que morre é o elemento masculino” (E10, p. 192).
Os artigos 23 e 26 complementam os aspectos referidos as TRHA post mortem. Por exemplo, o artigo 23 da referida lei regulamenta a paternidade decorrente da eventual violação da proibição da técnica. Desse modo:
Artigo 23. Paternidade.
1 - Se da violado da proibição a que se refere o artigo anterior resultar gravidez da mulher inseminada, a crianqa que vier a nascer é havida como filha do falecido.
2 - Cessa o disposto no número anterior se, a data da inseminação, a mulher tiver contraído casamento ou viver há pelo menos dois anos em união de fato com homem que, nos termos do artigo 14.°, dê o seu consentimento a tal ato, caso em que se aplica o disposto no n.° 3 do artigo 1839.° do Código Civil 45.
A paternidade estaria garantida mesmo na ocasião da violado do preceito geral; entretanto, a cláusula no inciso 2 delimita tal concessão. Pela lei de PMA, estabelece-se que a filiação, mesmo na hipótese de inseminação/fertilização post mortem, se dará em relação ao falecido, contornando com isso a proibição legal (E10). Após o período de 300 dias previstos na lei, em que se aplica a presunção de paternidade, em tese, não poderá ser considerado filho do falecido (art. 1.829 do CC) (E21). Não se estabelecem de forma clara as condições para a vocação sucessória.
A normatização da reprodução post mortem coloca a tônica no estatuto ético, jurídico e ontològico da vida humana (E10, E14). O direito a uma família biparental é a justificativa para a não admissão da reprodução post mortem, desestimulando “a criação voluntária de uma familia unilinear póstuma” (E21, p. 90). Por outro lado, a normativa visa à proteção post mortem dos embriões crioconservados, “como forma de proteger o patrimonio genético desse ser já formado desde o momento da concepção” (E21, p. 90), “já que a morte não os deve converter em lixo desrespeitosamente manipulável ou comercializável” (E14, p. 74).
Para a lei portuguesa a reprodução medicamente assistida só deve ser considerada mediante o diagnóstico de infertilidade ou perante doença grave de transmissão genética, em casais heterossexuais, com relação estável há pelo menos dois anos, maiores de 18 anos e sem patologia psíquica associada (E14, p. 72).
Isso leva a discutir o acesso às técnicas de RMA para casais homossexuais, pois a norma não particulariza nem estimula tal possibilidade.
Atualmente no país existem algumas iniciativas legislativas - de caráter permissivo- que pretendem regulamentar as TRHA post mortem. Devido ao estágio avanzado de tramitação, o panorama normativo em Portugal pode mudar substancialmente.
Uruguai
O artigo 9° da Lei 19.167 define as condições para a TRHA post mortem e as denomina “situação especial”:
Poderá realizar-se fertilização de gametas ou transferir embriões originados numa pessoa que houvesse faleci- do, sempre que esta houvesse outorgado previamente por escrito seu consentimento para aquilo e dentro dos 365 dias após seu falecimento 46.
O artigo em tela libera ou autoriza a realização das TRHA post mortem, mas condiciona a necessidade de consentimento escrito e dentro do prazo de um ano (E11, E18). Pelo teor da redação, a lei não se restringe somente à morte do varão. Inclusive, na hipótese da morte da mulher, elencam-se alguns cruzamentos com outras figuras jurídicas (E18); não obstante, cabe lembrar que a lei uruguaia proíbe a gestação por substituiçao, salvo uma exceção (art. 25) (E18). Desde o início, a lei foi vista como um “grande avanço”, pois permitia o acesso à universalização das técnicas reprodutivas (E11).
O consentimento para a fecundação ou implantação post mortem é o elemento principal para determinar a relação filiatória da criança nascida através da técnica. Sem a existência de documento escrito, a criança não terá vínculo jurídico com o pai genético (E18). O prazo de 365 dias, como na maioria das legislações, visa ao enquadramento da presunção de filiação matrimonial. Se uma criança nasce após os 300 dias como dispõe artigo 215 do CC, ainda estaria dentro dos 365 dias de cobertura pela Lei 19.167 e, assim, seu caráter filiatório seria extramatrimonial (E18). Em matéria sucessória, o artigo 835 do CC dispõe: “São incapazes: 1 - quem não estivesse concebido ao tempo de se abrir a sucessão” 47. O filho “não teria capacidade para adquirir na sucessão de seu pai, já que não estaria concebido ao momento do falecimento” (E18, p. 7). Isso significa que a sucessão seria incompatível com a inseminação post mortem, em que, ao momento da morte do de cujus, só existem gametas.
Sobre os desdobramentos da transferência embrionária, como em outros países, prossegue o eterno debate sobre o real estatuto jurídico do embrião e qual seria o momento da concepção (fertilização versus implantação). Como é lógico supor, as posições são diametralmente opostas e aparentemente inconciliáveis. Em várias passagens, a citada lei reforça - de forma positiva- o compromisso legislativo com a imprescindibilidade do consentimento informado, sua ação e ratificação. Sem embargo, não dispõe que o consentimento seja realizado ante instrumento público ou privado, deixando margem à insegurança jurídica (E18).
Considerações fináis
A revisão integrativa da literatura identificou os principais parâmetros normativos das TRHA post mortem nos países ibero-americanos estudados (Quadro 3).
Proibida pela legislação vigente | Permitida com consentimento informado escrito | Sem consentimento informado escrito | Leis ou normativas ESPecíficas | |
---|---|---|---|---|
Argentina | - | - | - | - |
Brasil | - | (n/e) | - | (n/e) |
Colômbia | - | - | - | - |
Espanha | - | + | - | + |
Peru | - | - | - | - |
Portugal | + | (e) | - | + |
Uruguai | - | + | - | + |
Fonte: elaboração pròpria, 2020. Baseado no modelo de Dostal et al. 48 e Barbosa et al. 28.
Nota: n/e: Norma ética. Resolução emitida pelo Conselho Federal de Medicina, exige consentimento informado para a reprodunção post mortem.
e: Situanção especial. É permitida a transferencia post mortem de embriões; deve existir o consentimento prèvio e escrito.
Também foi possível recuperar as principais normativas que versam sobre o assunto. Cabe salientar que, nesta análise, não foram consideradas as alternativas judiciais ou jurisprudenciais, pois independem de legislado específica (Quadro 4).
Principal normativa | Tipo de documento | Principal posicionamento | |
---|---|---|---|
Argentina | Não existe | -- | Sem posicionamento |
Brasil | Res. CFM 2.168/2017 | Resolução de Conselho profissional (CFM) | Favorável (n/e) |
Colômbia | Não existe | -- | Sem posicionamento |
Espanha | art. 9° da Lei 14/2006 | Lei Nacional | Favorável |
Peru | Não existe | -- | Sem posicionamento |
Portugal | art. 22 da Lei 32/2006 | Lei Nacional | Não favorável (e) |
Uruguai | art. 9° da Lei 19.167/2013 | Lei Nacional | Favorável |
Fonte: elaborando própria, 2020.
Nota: não foram consideradas as alternativas judiciais que independem de legislanção específica.
n/e: Norma ética. Resolunção emitida pelo Conselho Federal de Medicina, exige consentimento informado para a reprodunção post mortem.
e: Situando especial. Norma proibitiva das TRHA post mortem, porém é permitida a transferencia post mortem de embriões; deve existir o consentimento prévio e escrito.
A análise comparativa da realidade ético-normativa expoe uma certa carência de regulamentação específica das TRHA post mortem nos países da amostra. Dos países estudados, apenas a Espanha e o Uruguai têm regulamentado alguns aspectos das TRHA post mortem. A Espanha, por exemplo, autoriza o uso do material genético do homem falecido, sendo necessário o consentimento do de cujus, e que a técnica de reprodução seja realizada dentro dos 12 meses após o falecimento. Pela natureza e pelo teor da normativa, na prática, é considerada uma autorização/liberação expressa para a realização das técnicas. Já no Uruguai, a fecundação post mortem e a transferência pòstuma de embriões originados com material do de cujus estão plenamente autorizaçãos, devendo constar consentimento prévio e ser realizada no prazo de 365 dias após o falecimento.
Do outro lado, Portugal é o único país da amostra que tem proibição expressa, via lei, para a realização de reprodução post mortem. No entanto, tal proibido contém uma exceção. No país luso, é lícita a transferência post mortem de embriões condicionada à existência de consentimento escrito prévio ao falecimento do titular. A Argentina, a Colômbia e o Peru compartilham uma situação similar. Não existe lei específica nem normativa auxiliar que autorize ou proíba as TRHA post mortem. A Argentina tem precedentes judiciais que liberam determinados procedimentos reprodutivos póstumos. Na Colômbia , existem escassos relatos de solicitações judiciais para aplicação de TRHA post mortem; os casos relevantes têm tido desfechos divergentes. No Peru, a casuística ainda é exígua. O Brasil encontra-se numa situação especial e intermediària em relado aos outros países estudados. Não existe uma lei ou norma específica que autorize ou proíba a reprodução post mortem ou que regulamente suas variadas consequencias. Contudo, alguns instrumentos legais tem sido interpretados como “adequados” para inferir uma liberação dos procedimentos no país: o teor permissivo da Resolução 2.168/2017 do CFM e a interpretação evolutiva do artigo 1.597 do CC. De fato, alguns precedentes jurisprudenciais que autorizaram a realização de TRHA post mortem foram fundamentados em interpretações extensivas das normas citadas e/ou alegando a proteção de princípios constitucionais.
Todos os países estudados tem, em maior ou menor medida, sérios problemas para adequar suas normas cíveis ante os eventuais casos de gerados por reprodução post mortem. O motivo é simples, as legislações não foram pensadas no contexto das técnicas de reprodução assistida além da vida. Embora a Espanha e o Uruguai consegui- ram sanear parcialmente o problema filiatório, as consequências sucessórias no concebido pòstumo ainda permanecem nebulosas.
Por sua vez, os principais questionamentos éticos nos países ibero-americanos versam fundamentalmente sobre a legitimidade do consentimento para a utilização pòstuma do material genético, o tratamento desigual proferido à prole, o direito à biparentalidade, o estatuto jurídico do embrião, a proteção da dignidade humana, o filho como fim e não como meio, as motivações egoístas para a procriação pòstuma, o respeito pela integridade corpòrea do falecido, entre outros.
A comunidade médica, particularmente a médico-legal, deve adotar uma atitude ativa no debate bioético e biojurídico, especialmente, nas questões dilemáticas que envolvem a vida, a saúde e a dignidade das pessoas. A tarefa não é fácil. Os cruzamentos entre figuras jurídicas controvertidas como a gestação por substituição, as novas configurações familiares como os casais homoafetivos ou a instabilidade das demandas sociais convergem em problematizar, ainda mais, o atual panorama ético-normativo. Percebe-se que a tendência se inclina à regulamentação das técnicas, em consequência, algumas áreas de competência para médicos, assistentes ou peritos, potencialmente poderão ser exploradas. Por exemplo, na presenta de imprecisoes sobre a “verdade genética” do filho póstumo ou quando superados os prazos de presunção de paternidade estipulados por lei, os magistrados podem requerer a investigação da paternidade, ato restrito ao perito especializado. O estado emocional do cônjuge supèrstite é um componente digno de ser abordado; alguns centros americanos sugerem um acompanhamento médico e psicològico de até um ano prèvio à efetivação da inseminado ou fertilização post mortem49. De fato, algumas evidências demonstraram que o aconselhamento oportuno e prolongado levou às viúvas a desistirem da utilização do material genético do falecido marido 50. A labilidade emocional apòs a morte do cônjuge pode induzir solicitações precipitadas ou desmedidas; desse modo, uma avaliação da aptidào mental para a requisição de reprodução póstuma pode ser solicitada no contexto do processo judicial. Por sua vez, médicos assistentes das áreas de emergencias e unidades de cuidados intensivos já se deparam com solicitares de ESP “a beira do leito”; esses profissionais devem ter competencia teórica suficiente sobre as implicancias éticas, legais e religiosas que circundam as solicitares de reprodução póstuma51. Uma dessas competências tem a ver com capacidade de executar, interpretar, interpelar ou questionar os pormenores - forma e conteúdoda documentação médico-legal nas mais variadas circunstancias (na solicitação formal da viúva, na comunicação com os outros familiares, no consentimento prévio do de cujus, no encaminhamento ao comitê de ética hospitalar, nas requisições judiciais etc.). Algumas dessas atuações já estão padronizadas em países onde a técnica é permitida - por exemplo, Israel, Reino Unido, Estados Unidos 52. Já nos países com legislação permissiva que fazem parte de nossa amostra, nem Uruguai nem Espanha tem protocolos para orientar a atuação unificada do pessoal médico em face dos conflitos emergentes.
A procriação a partir do uso de material de genitor falecido tem crescido em casuística e relevancia, ganhando o apoio de togados e doutrinários. Porém, ainda é palpável a rejeição social entre os leigos 53, principalmente em razão dos sérios conflitos morais, éticos e religiosos que tais técnicas produzem 50, além do constrangimento natural provocado pela simples menção da ideia. Essa desconfianza social parece repercutir de forma direta na ausencia de normatização Específica na região ibero-americana. Tal atitude seria o reflexo da complexidade da matéria, dos variados entraves jurídicos e, principalmente, da dissensão moral. O debate confronta posizoes dificilmente compatíveis entre si, já que, em determinados pontos, se devem definir aspectos críticos, tais como o estatuto jurídico do embrião, a titularidade do material genético ou a validade póstuma da vontade procriacional, entre outros. Diante desses conflitos ainda irresolutos, a postura protecionista resulta uma opzão eticamente viável, quando focada na defesa da vida e da dignidade dos mais vulneráveis (embriões, crianças).
Em definitiva, a enorme quantidade de atritos e óbices pode nos levar a reflexionar: será que vale a pena investir todos esses esforços em uma técnica tão contracorrente? Será que já é tarde demais para retroagir até um Espado de diálogo e reconsideração dos pormenores éticos da reprodução além da vida?
Conclusões
Com algumas exceções, a maior parte dos países ibero-americanos da amostra não tem legislações específicas que regulamentem os variados aspectos das TRHA post mortem. Do conjunto estudado, unicamente Uruguai e Espanha têm normatização permissiva para a reprodução post mortem. O primeiro de forma expressa, e o último de forma implícita. Portugal tem normativa proibitiva para a maioria das técnicas de reprodução post mortem, excetuando a transferencia póstuma de embriões. A Argentina, a Colômbia e o Peru estão desregulamentados para TRHA post mortem, tendo como alternativa de autorização a via judicial. O Brasil encontra-se numa situação especial. Por um lado, inexiste regulamentação Específica; por outro, alguns consideram o caráter normativo-vinculante da Resoludo 2.168/2017 do CFM, além da interpretação evolutiva do artigo 1.597 do CC.
O debate bioético gira em torno das tensões na relação quadrangular entre a dinâmica da autonomia humana, o estatuto do material genético (gametas e embriões), a proteção da prole e os direitos reprodutivos. A rejeição social das técnicas e a ausência de regulamentação na região parecem ser o reflexo da complexidade da matéria, dos sérios entraves jurídicos e, principalmente, da dissenção moral. Na presença dos variados conflitos emergentes, a postura protecionista da vida e da dignidade dos mais vulneráveis é uma alternativa eticamente viável.
Ante o advento dessas técnicas, o papel da medicina legal deve ser ativo, tanto no debate acadêmico como no labor pericial. Apesar da tendência, o debate não pode deixar de questionar de forma incisiva a legitimidade/ilegitimidade ética e jurídica da reprodução além da vida.