Introdução
Ainda que apresente um referencial majoritariamente biomédico, nas últimas décadas, a bioética abriu seu leque teórico ao abordar certos problemas sociais que muitas vezes não eram considerados como parte de seu escopo - e ainda não são, principalmente para a bioética estadunidense 1. Parte dessa empreitada foi realizada por autores da América Latina que questionaram o quão útil seria a bioética principialista em países sobrecarregados de desigualdade social, baixa escolaridade, falta de saneamento básico e violência 1. Para esses autores, os problemas do mundo soaram grandes e complexos demais para serem sanados com quatro princípios (beneficência, não maleficência, autonomia e justiça). Daí o esforço em desenvolver perspectivas que realmente dissessem sobre a realidade onde se vive, perspectivas ancoradas na localidade dos problemas, sem, contudo, perder de vista a globalidade das questões. Perspectivas, por fim, que lutam contra a universalização (isto é, colonização) de soluções e princípios criados em contextos muitos diversos 2.
O presente trabalho, assim, inspira-se nessa recente incorporação de referenciais na bioética para pensar a relação entre humanos e animais, especificamente na experimentação científica. Tradicionalmente, a bioética aporta essa questão a partir da filosofia moral e do direito, com base em autores como Peter Singer 3, Tom Regan 4 e Gary Francione 5. Os debates geralmente gravitam entre a importância de se levar os interesses dos animais em consideração e a responsabilidade e o dever humano de se atribuir um estatuto aos animais que não seja o de objeto/propriedade - isto é, transformá-los juridicamente em sujeitos de direito1. Sem desmerecer as contribuições desses autores, contudo, as relações entre humanos e animais podem ser pensadas a partir de outras perspectivas, que ainda não são tão familiares à bioética.
O campo recente e ainda em desenvolvimento dos estudos animais - animal studies ou critical animal studies7 - prova que as relações entre humanos e animais podem ser pensadas a partir de inúmeras fontes, como a literatura, a estética, a filosofia política, a etologia e a antropologia. É esta última área, inclusive, que realiza o maior debate sobre estudos animais no Brasil. Inúmeras pesquisas foram publicadas nos últimos anos, como as de Iara Souza 8,9 sobre os laboratórios e os biotérios, a de Caetano Sordi 10 sobre o consumo da carne bovina, os textos de Jean Segata 11,12 sobre as relações entre humanos e mosquitos, a etnografia de Natacha Leal 13 sobre o gado de elite, os estudos de Andrea Osório 14-16 sobre gatos de rua e protetores de animais, e os recentes trabalhos de Ciméa Bevilaqua 17 sobre agências não humanas e normas do Direito2. E, de fato, a antropologia já vem discutindo o tema dos animais (ou ainda da animalidade) há algumas décadas, sobretudo a partir dos trabalhos de Tim Ingold, envolvendo as ideias de pessoa não humana 19, e dos textos de Philippe Descola sobre a grande divisão moderna entre natureza e cultura - e, como consequência, entre animal e humano 20,21.
Nessa esteira de diálogos entre diferentes campos de estudo, este trabalho pensa a partir da interseccionalidade entre ética animal e estudos biopolíticos, sobretudo foucaultianos. A hipótese central é de que certos conceitos, como disciplina, biopolítica e dispositivo, podem ser úteis para pensar a realidade de animais e humanos no contexto do laboratório. De fato, este não é o primeiro trabalho a utilizar referenciais foucaultianos para investigar fenômenos envolvendo vidas não humanas. Matthew Cole 22, por exemplo, problematizou a ideia de "happy meat", uma carne com um "selo ético" - isto é, suspostamente produzida levando-se em consideração o bem-estar do animal - a partir da noção de poder pastoral, elaborada por Foucault. Lewis Holloway e colegas 23 investigaram a vida disciplinar de vacas leiteiras e de fazendeiros, imposta, em partes, a partir das novas tecnologias de ordenha. A partir dos conceitos foucaultianos de disciplina e biopolítica, Joel Novek 24 refletiu também sobre as mudanças no modo de vida dos porcos no Canadá, resultante da expansão da criação intensiva desde a segunda metade do século XX. Clare Palmer 25, talvez a primeira a publicar um trabalho sobre animais a partir da leitura de Foucault, questionou, de modo amplo, o quão adequadas e úteis são algumas ideias do autor para se pensar os animais. Luanda da Costa e Odilon Castro 26, em uma investigação que serviu de grande inspiração para a nossa, chegam a nomear um "dispositivo-cardápio" como uma rede de relações materiais e discursivas que condicionam e naturalizam o animal como nada mais que um pedaço de carne, e o humano, por sua vez, como nada mais que um consumidor desengajado moralmente. Em suma, estes e outros trabalhos apontam para a proficuidade de se utilizar Foucault como referência para pensar relações entre humanos e animais. Claro que essa transposição deve ser feita com cuidado, já que os conceitos e insights de Foucault foram elaborados para outras questões - questões restritas ao mundo humano. Em contraponto, é extrapolando conceitos que podemos enxergar e problematizar os problemas (antes não nomeados ou discutidos), criar perguntas e, talvez, apontar caminhos e soluções.
Enfim, o que os humanos envolvidos na experimentação com animais pensam sobre sua própria atividade? Quais suas opiniões, crenças e visões sobre seu próprio trabalho e sobre a vida dos animais que manuseiam? Que tipo de relação é mantida entre os humanos e os animais de laboratório? E, talvez mais importante, quais são os poderes que sustentam essa relação? Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo investigar a relação humano-animal no contexto de experimentação científica a partir de um referencial foucaultiano e pensar como os poderes se manifestam nessa relação. Para isso, realizamos pesquisa qualitativa de campo com o objetivo caracterizar as percepções e as crenças de professores universitários, alunos de pós-graduação e bioteristas sobre o uso de animais em pesquisas científicas.
Metodologia
Optamos pela técnica de grupo focal online para atender aos objetivos da pesquisa de caracterizar as percepções e as crenças de professores universitários, alunos de pós-graduação e bioteristas sobre o uso de animais em pesquisas científicas. A escolha da metodologia justifica-se por um dos propósitos da técnica ser justamente captar as percepções, as opiniões e as visões de mundo dos participantes acerca do objeto de estudo 27. E, ainda que a variação virtual ofereça algumas desvantagens - como a ausência de contato presencial entre os participantes ou a dificuldade de registro das emoções faciais -, acreditamos que a cobertura de um maior território seja um fator compensatório. Ao optar pela modalidade online, conseguimos reunir participantes de diferentes estados brasileiros, algo fora de cogitação para o presente estudo, caso o grupo fosse presencial.
Ao início do estudo, a ideia era selecionar participantes aleatoriamente pelo site do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), para a formação de três grupos: o de professores doutores, o de alunos de pós-graduação e o de bioteristas. Para a busca por grupos de pesquisa do Brasil cadastrados no CNPq, utilizamos as expressões "experimentação animal" e "bem-estar animal". Selecionamos os grupos de modo aleatório e enviamos e-mails para os líderes dos respectivos grupos. Dos 21 professores contactados, apenas seis retornaram, e destes, apenas um efetivamente participou da discussão. Como o retorno era baixo, esperamos por um mês e, em seguida, procuramos por indicações de colegas acadêmicos: pessoas que pudessem indicar alunos e professores para participar de nossa pesquisa. Um processo similar ocorreu para a formação dos grupos de bioteristas. Primeiro, realizamos contato com a coordenação de diferentes biotérios, também escolhidos aleatoriamente, na página web da Rede Nacional de Biotérios de Produção de Animais para Fins Científicos. Dos dez biotérios 10 contactados, nenhum respondeu. Partimos então para a indicação a partir de colegas. A partir de adaptações de Abreu, Baldanza e Gondim 28, enviamos os e-mails com o convite, as informações gerais sobre os objetivos da pesquisa e um questionário em anexo. O questionário serviu como um filtro da seleção, cujo único critério de inclusão era se o participante tinha trabalho ou trabalhava com animais de laboratório. O questionário também recolheu dados como idade, região do Brasil onde trabalhava e há quanto tempo trabalhava com animais.
As discussões ocorreram por escrito, por meio de um aplicativo de mensagens instantâneas. A princípio, as discussões ocorreriam em video-chamada, porém, devido a problemas técnicos que ocorreram com os participantes do primeiro grupo, optamos por prosseguir pela discussão em escrito. Também ocorreram problemas com o número de pessoas por grupo. A ideia inicial era formar grupos com quatro participantes, mas este foi o caso apenas para o grupo de professores. No grupo de alunos de pós-graduação, devido à dificuldade de um horário em comum, optamos por realizar dois grupos com dois membros cada. Por último, conseguimos apenas um grupo de bioteristas com dois participantes, visto que este foi o número mínimo de pessoas que aceitaram participar da pesquisa. Em suma, o quadro final foi um grupo de quatro pessoas (professores), dois grupos com duas pessoas cada (alunos) e um grupo de duas pessoas (bioteristas). Os problemas que ocorreram ao longo da coleta de dados podem ter prejudicado a pesquisa em alguns aspectos, mas, ao mesmo tempo, proporcionaram discussões acerca da dinâmica de grupo e do nível de engajamento dos participantes.
Todas as discussões foram conduzidas pela mesma pessoa e duravam em torno de uma hora. Para instigar o debate, foi usado um roteiro de perguntas-chave: 1. o que o animal de laboratório representa para você?; 2. qual a importância da experimentação e sua pesquisa para a sociedade?; 3. quais suas opiniões sobre as Comissões de ética no Uso de Animais CEUA?; 4. como os animais devem ser produzidos e cuidados na pesquisa científica? e 5. quais são suas ideias sobre as emoções dos animais? Cabe ressaltar que estas foram as perguntas que orientaram o estudo, mas não necessariamente foram as únicas, visto que a técnica de grupo focal permite (e exige) certa maleabilidade de acordo com o contexto do debate 27.
Para a análise do material empírico, utilizamos o método de análise de conteúdo, como proposto por Bardin 29, em que se procuram os núcleos de registro para a formação de categorias analíticas. Para fins do presente trabalho, as categorias formuladas foram adaptações de conceitos foucaultianos. Discutiremos esse ponto a seguir. Por fim, o presente estudo foi aprovado por comitê de ética em pesquisa, com o Parecer n.o 3.211.514 e Certificado de Apresentação de Apreciação Ética n.o 98877918.8.0000.0020.
Resultados e discussão
Transposição do conceito de dispositivo
O ponto de partida para a análise das falas dos participantes do grupo focal refere-se ao embasamento teórico que permite a transposição do conceito de dispositivo para o contexto do uso de animais na experimentação. Para tal, foram analisadas as perspectivas de Foucault 29,30,31 e Latour 32, transpostas na reflexão da aplicabilidade nas relações de poder estabelecidas nos laboratórios.
O percurso percorrido parte das ideias de Foucault 31 para o conceito de dispositivo. Um dispositivo é uma rede de práticas materiais e discursivas que orientam a formação de determinados sujeitos históricos. É um conjunto de relações que engloba tratados morais, saberes científicos e filosóficos, instituições políticas e forças econômicas, o qual se orienta para determinadas urgências sociais. Não por acaso Foucault sempre ressalta o caráter político desses aparatos. O dispositivo da sexualidade, por exemplo, envolvia toda uma gama de atores - a psiquiatria, a família, a moralidade vitoriana, as escolas - que condicionavam a formação de certos sujeitos e seus quadros clínicos, como o homossexual, a histeria e a criança com distúrbios sexuais.
Desse modo, qual é o dispositivo que condiciona a contínua formação de animais de laboratório e, ao mesmo tempo, de humanos que cumprirão a tarefa de utilizá-los em pesquisas? Isto é, por que certos animais são lidos como cobaias? Quais são os elementos desse processo? O conceito de dispositivo talvez nos ofereça algumas vantagens para pensar essas questões.
A primeira é que, ao perguntarmos por dispositivos, questionamos a naturalidade da relação estabelecida entre humanos e animais no laboratório. O debate sobre a ética no uso de animais em pesquisas científicas, por exemplo, tende sempre a pressupor que tal uso é uma passagem obrigatória, ou seja, discutem-se questões como o bem-estar e os 3Rs3, maneiras de amenizar o sofrimento dos animais ou de reduzir seus números, mas não sobre o uso em si. É como se o debate ficasse na superfície, sem nunca investigar os modos pelos quais, primeiramente, naturalizamos os animais como vidas experimentais, disponíveis para atender a nossos problemas. Esses mesmos discursos assumem que a ciência biomédica só pode cumprir seus objetivos utilizando os corpos de determinados animais e, como corolário, assume implicitamente que a ciência sempre foi feita dessa maneira (e sempre será). Os discursos dominantes naturalizam o uso de animais, em parte, ao apagar as origens históricas de tal prática e ao mascarar seu caráter contingente - isto é, seu caráter não necessário. Ao utilizarmos a ideia de dispositivo, ao contrário, desnaturalizamos a prática do uso de animais, tanto ao apontá-las como políticas - ou seja, como modos de organizar realidades que não são naturais ou imutáveis - quanto por evidenciá-las historicamente. Em outras palavras, a ideia de dispositivo nos permite relativizar e problematizar aquilo que é tomado como dado, natural, incondicional.
A segunda vantagem na ideia de dispositivo é que ela nos permite compreender o poder não somente como técnica que reprime e nega (ou seja, em termos negativos), mas como instrumento que produz. A partir das falas dos entrevistados, notamos que o poder da prática científica não é do tipo que envolve violência bruta (e muito menos crueldade), mas sim do tipo sutil: um poder que organiza os espaços, classifica os indivíduos e rege seus horários. De fato, o poder disciplinar caracterizado por Foucault em Vigiar e punir31 pode muito bem ser pensado como o idioma do biotério, local onde vigilância, normatização e exames são parte de seu léxico. Como será discutido, a opressão não está ausente nesses espaços - afinal, existe uma grande assimetria entre humanos e animais, o que permite que os primeiros experimentem nos corpos dos segundos. Mas o que se coloca também em evidência com o dispositivo é que o poder envolve positividades: "produz" os animais (incluindo suas versões geneticamente modificadas), constrói a carreira dos humanos envolvidos, constrói espaços, incentiva a formação de empresas especializadas em biotérios e, por fim, foram os saberes construídos a partir da experimentação com animais. Além disso, a ideia clássica de especismo nos oferece a visão de um animal passivo, vítima de uma injustiça: nos termos da bioética, um paciente moral. Com a ideia de dispositivo, em contramão, o animal é um ator ativo que deve, para atender aos objetivos da ciência, ser controlado ou, ainda, manejado. Todo o aparato da experimentação animal, todos os protocolos, as diretrizes, as normas, as portarias e os procedimentos pressupõem uma agência que deve ser cautelosamente controlada - ou, ainda, dirimida. Afinal, a ciência é uma atividade que busca construir uma inteligibilidade em cima da aleatoriedade do mundo: como afirma Latour 32, construir fatos requer a construção de uma rede de atores (humanos e não humanos) cautelosamente organizados.
Enfim, não pretendemos exaurir a ideia de dispositivo cobaia; esse objetivo sequer cabe neste espaço. A ideia é apenas apontar parcialmente que um dos núcleos do dispositivo é a ambiguidade do animal "de laboratório": a partir das falas dos entrevistados, como já afirmamos, os animais ora são seres instrumentais que devem ser utilizados para atender aos objetivos da pesquisa, ora são seres afetivos que devem ser cuidados e respeitados. De um lado, aproximam-se dos objetos e, do outro, aproximam-se dos sujeitos. No laboratório, coexistem poderes que não somente envolvem técnica, mas também afeto. E, como veremos, se essa am-biguidade pode trazer melhorias para a vida diária dos animais, ela também é fundamental para que o dispositivo continue operando. Isto é, a confusão entre animais-objetos e animais-sujeitos mantém a experimentação ativa e pode, ainda assim, colocá-la no passado da ciência biomédica.
Poderes instrumentais: o animal mais perto do objeto
Em uma das entrevistas, um dos alunos de pós-graduação afirma que "usar os animais nos adianta muito em tempo: em 1 ano conseguimos 3-4 gerações de ratos, o que equivaleria a um estudo de uns 200 anos em humanos". Quando é perguntado o que o animal de laboratório representa, uma das professoras responde enfaticamente: "penso no avanço da ciência!" e complementa ao dizer que acredita que os animais "são importantes para que possamos descobrir novas possibilidades!". E, em um dos grupos, quando o assunto chega na eutanásia, uma aluna comenta sobre o cloreto de potássio (KCl): "sempre conferi a sensibilidade antes de aplicar O KCl. E enquanto eu injetava eu agradecia o animal e não conseguia olhar. O KCl altera a bomba de sódio e potássio e isso faz com que as membranas rompam, então eles tremem tudo. Isso eu não conseguia olhar".
Tomados em separado, talvez esses fragmentos não tenham sentido, pelo menos não além de relatos do dia a dia de pessoas comuns que trabalham com animais em laboratórios e biotérios. No entanto, essas falas formam, parcialmente, um mapa sobre os poderes sutis que constituem tais ambientes. Nesses exemplos, o denominador comum é o fato de que o animal é tratado como uma entidade situada mais próxima dos objetos: seja porque deve ser controlado e vigiado, seja porque é parte necessária na produção do conhecimento e da saúde humana, seja mesmo porque deve ter seus tecidos e células utilizados e seu corpo descartado. Desse lado do dispositivo, debruçamo-nos nos relatos sobre o animal-objeto.
A começar pelo animal-objeto que deve ser constantemente controlado. Do nascimento à morte, a vida desses animais é marcada pela disciplina. A todo momento, os participantes - sobretudo as bioteristas - falam sobre a importância de se manter uma rotina bem estabelecida para que os experimentos funcionem como planejado. Os animais devem ser separados em diferentes caixas, uns devem permanecer como matrizes (casais para procriação) e outros são destinados ao espaço da experimentação. O tempo também é fundamental, pois, além dos experimentos serem realizados em uma idade específica de acordo com o estudo, os animais são cuidados por pessoas diferentes ao longo de suas vidas. Fora a miríade de regras e recomendações estabelecidas por diretrizes, portarias e protocolos, desde o tamanho das gaiolas, ao material utilizado nos tetos, nas paredes e nos pisos do biotério, passando pela luminosidade, pela ventilação e pela temperatura desses locais 34. Em suas etnografías, Iara Souza 8,9 chama nossa atenção sobre como o biotério deve ser cuidadosamente organizado. E uma das bioteristas entrevistadas confirma tal caso, ao afirmar que "quase fui demitida... não deixei o novo reitor entrar na sala dos animais", já que, segundo ela, "biotério não é zoológico, onde qualquer novo visitante quer entrar para conhecer".
Não fosse o fato de serem animais e viverem nos biotérios e laboratórios, suas rotinas e vidas bem poderiam ser um dos casos analisados por Foucault. Ao investigar os modos de se punir entre os séculos XVII e XIX, Foucault 32 aponta para uma importante transição, na qual o antigo espetáculo violento da condenação (envolvendo a tríade sentenciado-carrasco-monarca) dá lugar a uma justiça burocrata que náo só castiga, mas também educa que não tanto castiga quanto educa. Isto é, do cenário de forças e cadafalsos, passamos para um de prisões e celas. O importante para ele, no entanto, não é a mudança histórica por si mesma, e sim os modos de exercer o poder. Se antes o poder era uma espécie de "direito de gládio" 30 que retirava bens, posses e a própria vida dos súditos, hoje o poder é caracterizado por sua função produtiva sobre a vida - daí os famosos conceitos de biopoder e biopolítica. Segundo Foucault ele, "pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte" (30, p. 149). É em torno dessa mudança histórica que Foucault ele conceitualiza a disciplina, ou anáto-mo-política, como o conjunto de "métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade" (31, p. 135). Importante entender que a disciplina atua através de técnicas sutis, envolvendo a organização dos espaços e do tempo, e que tal atuação, além de ser da ordem do micro, compreende poderes positivos, pois estes sempre produzem positividades (saberes, mercadorias, sujeitos). O poder disciplinar "não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até as singularidades necessárias e suficientes" (31, p. 167).
E os mecanismos de atuação desse tipo de poder - que se espalhou por prisões, escolas, exércitos e hospitais a partir do século XVII - são a vigilância, a normatização e o exame. O mecanismo de vigilância se refere, por exemplo, ao caso dos acampamentos militares exemplificados por Foucault, onde as tendas dos militares subalternos ficam de frente às tendas de seus superiores, organizadas num diagrama que permite uma troca de olhares virtualmente constante; ou os hospitais modernos, onde os pacientes devem ser monitorados, suas doenças e infecções mantidas sobre controle, compartimentalizados em leitos específicos e de acordo com seu estado de saúde 31. Quanto à normatização, vê-se que o poder disciplinar classifica os indivíduos, recompensa as proezas e penaliza os erros. Ou seja, estabelece uma normalidade. E os desvios são quantificados e punidos, mas não de forma violenta - afinal, os delinquentes, os alunos hiperativos e os soldados desregrados devem ser disciplinados para que melhorem. O que está em questão é que a disciplinarização dos indivíduos visa à transformação de seus corpos (e mentes) em produto útil e dócil. Tal operação não oferece espaço para violência bruta 31. Por fim, no contexto do mecanismo de exame, os indivíduos, disponibilizados em espaços específicos, controlados em sua rotina e manejados em seu tempo, tornam-se objetos do saber. Em hospícios, hospitais, escolas e prisões, o exame é utilizado para escrutinar a vida do sujeito: seu passado, suas aspirações, o que faz diariamente, a relação com a família etc. Aqui é fundamental entender, para a discussão de nossa pesquisa, a relação discreta entre poderes e saberes. Quer dizer, Foucault 32 está chamando a atenção para o caráter sempre político dos saberes, pois eles surgem de relações e práticas perpassadas por poderes. Isso é importante para tomarmos nota de que nenhum conhecimento, por mais científico e distanciado que seja, realmente é neutro: ao contrário, eles são sempre frutos de relações de poder e, por isso, sempre políticos.
Explicado como o poder disciplinar opera, fica difícil olhar para o biotério e o laboratório sem essa lente foucaultiana. Afinal, os animais são separados de acordo com o sexo, a idade, se devem ou não ser utilizados em experimentos ou em matrizes; são organizados em caixas, dispostos em fileiras e colunas, onde são literalmente vigiados por seus supervisores humanos. Além, claro, de suas vidas serem normalizadas. Iara Souza relata o destino dos camundongos mais agressivos:
com efeito, alguma violência é tolerada nas caixas masculinas. Mas há alguns cujo anseio por lutar ultrapassa o limite do aceitável, deixando seus parceiros demasiado feridos ou mortos. Nesse caso, é preciso interferir e identificar o "brigão" [...] Tendo se revelado incapaz de viver com os outros em algum tipo de acordo, ele é retirado do convívio dos irmãos e destinado ao "descarte". (8, p. 7)
Algo parecido é relatado por uma de nossas participantes, quando diz que "dois machos dominantes não devem ser mantidos na mesma caixa".
É importante entender como a normalização é uma técnica fundamental desses ambientes, e como os animais a assimilam em seus corpos, não somente no sentido de que seus comportamentos são moldados individualmente - e de como são punidos, inclusive com a morte, caso não sigam a norma -, mas também no sentido de grupo biológico, de como sua anatomia, genética e fisiologia são alteradas definitivamente. Lembremos que os camundongos e ratos utilizados atualmente na pesquisa não existem livres na natureza "na natureza"; são produtos historicamente construídos a partir de práticas que os padronizaram a partir da seleção de determinadas características que fossem úteis para pesquisa 35-37. E, na vanguarda dessa criação biopolítica de formas de vida, estão os animais modificados geneticamente para apresentarem quadros clínicos ou comportamentos específicos, tornando-se, assim, um produto biológico ainda mais útil e explorável do ponto de vista científico. Por isso, vale apontar que, para além da similaridade genética - utilizada como justificativa para pesquisas com esses animais -, os fatores realmente decisivos que impulsionaram o acasalamento endogâmico de camundongos e ratos durante décadas foram a facilidade de se trabalhar, visto sua docilidade; a aceleração em obter resultados, visto o alto número de gerações na quantidade relativamente pequena de tempo e, claro, a comparação de resultados (existentes ou futuros) devido à padronização dos animais e de suas condições de criação. Através dessas técnicas de controle e normalização, o biopoder e suas minúcias disciplinares foram capazes, assim, de construir os "porta-vozes" da realidade a ser descoberta: animais criados artificialmente que, paradoxalmente, representam os fatos mesmos da natureza.
O biopoder, desse modo, estrutura e confere inteligibilidade à relação humano-animal na pesquisa científica. Não só pelos efeitos disciplinares e normativos na vida dos animais, mas sobretudo pelo acentuado caráter biológico de tal relação. Afinal, os animais são criados e valorizados precisamente por sua capacidade de representar - de ser um modelo - a biologia humana e suas patologias. De fato, tal é o caso que poderíamos pensar - não fosse a esfera afetiva, que discutiremos adiante - que a relação não é entre humanos e animais, mas sim entre humanos e tecidos biológicos; ou entre humanos e seus modelos biologicamente humanizados.
E os humanos? Se utilizamos a ideia de dispositivo, devemos estar atentos ao fato de que seus mecanismos e efeitos disciplinares e normalizado-res não recaem somente nos animais, mas também nos humanos envolvidos 37. Vejamos.
Uma das alunas entrevistadas diz que existe uma "tensão" em deixar os animais tranquilos no dia e durante a experimentação. Ela precisa "retirá-los do biotério e levá-los para outro bloco", o que os estressa, segundo ela. Depois, ela precisa "abri-los", o que "inevitavelmente sangra em algum momento, mesmo que pouco". Ela continua: "O cheiro de sangue deixa eles acuados e dificilmente a anestesia pega se eu não evitar o estresse desse dia para eles. Então, tento fazer com calma para não sangrar. Fecho a caixa. Não suja. Não coloco as mãos com a luva que usei com o anterior". Por sua vez, quando perguntei às participantes sobre o quão diferente era sua relação com os animais quando ingressaram no mundo da experimentação, uma delas conta que "no começo era mais difícil porque eu tinha um pouco de receio de machucar no manejo. Depois você se acostuma a pegar de uma certa forma que o animal não sinta dor e a gente consegue ficar mais ágil na manipulação".
Por sua vez, um outro entrevistado, também aluno, afirma que sentiu falta, quando cursou veterinária, de uma disciplina ou curso de animais de laboratório e ainda comenta que "há uma corrida muito grande a nível nacional para capacitar os médicos veterinários para trabalhar" com eles. Ainda sobre o mesmo assunto, uma participante conta que, no Massachusetts General Hospital (local onde trabalhou com animais), é "obrigatório fazer um treinamento teórico e prático antes de entrar em contato com qualquer animal". Quando pergunto sobre o trabalho de rotina no biotério, uma das bioteristas comenta sobre a experimentação e responde que "a segurança de quem faz é primordial. Ter um protocolo a seguir é de extrema importância. Troca de caixa, de acordo. Não interessa se é feriado, precisa ser feita no mesmo horário". Ela continua e lembra da biossegurança e até dos "sapatos que não fazem barulho", enquanto a outra participante bioterista frisa a importância de roupas adequadas. Uma das bioteristas também comenta sobre a higienização do biotério e sobre os funcionários responsáveis por essa parte do trabalho. Diz que "até a troca do funcionário da higie-nização eu brigo se trocam". A outra entrevistada concorda e acrescenta que, "se entrar uma pessoa inadequada, que não tem consciência da responsabilidade do seu trabalho, põe tudo a perder!", pois o setor de higienização, segundo ela, é o "coração do biotério". Para as duas, limpeza e desinfecção malfeitas "acarretam prejuízos para a colônia".
Todas essas falas retiradas das discussões que realizamos nos mostram que os humanos - alunos de mestrado e de doutorado, professores e bioteristas - precisam estar sempre atentos ao trabalho que fazem. Precisam estar atentos a um conjunto grande de elementos que, fora de ordem, prejudicarão ("colocam tudo a perder!") o andamento das pesquisas, e não faz sentido, em nosso trabalho, entender essa atenção minuciosa sobre si mesmo e sobre os outros (humanos ou não) fora do quadro da disciplina. O poder circula, é do tipo que constrói não somente o lugar subalterno da "cobaia", mas também o lugar do pesquisador/ bioterista: o laboratório não é somente a fábrica de animais, mas também de humanos. Robert Kirk está certo quando escreve que, "com esse novo aparato do biopoder, os humanos que trabalhavam com animais de laboratório foram submetidos a processos de padronização (e normalização) tanto quanto os animais não-humanos" (37, p. 212).
Sabemos então que os poderes disciplinares e suas técnicas normalizam e controlam a vida dos animais - e de seus humanos de laboratório. O biopoder, com seus procedimentos de ordenamento, objetifica os animais ao considerá-los somente pelo seu valor biológico. Mas outras técnicas também são necessárias para a objetificação dos animais. Para a criação do animal-objeto, são necessárias não somente a disciplina e todas suas práticas materiais (a classificação, a distribuição no espaço, o regime do tempo, a normalização), mas também outras técnicas simbólicas que criam o lugar subalterno do animal. Ou seja, além do que viemos comentando até então, para a criação do animal-objeto, é necessário um imaginário que primeiramente permita compreender o animal como um ser inferior e que, como corolário, deve ser utilizado para atender às necessidades humanas de conhecimento e saúde. O biopoder da relação humano-animal, assim, envolve não só técnicas disciplinares, mas também aquilo que podemos chamar "biopolítica soberana".
Soberania no sentido discutido por Giorgio Agamben 38,39, quando o autor reatualiza a ideia de biopolítica para pensar o cenário contemporâneo. Sua argumentação é complexa e não precisa ser toda exposta aqui, mas basta apontar que, para Agamben (baseado em Carl Schmitt), soberano é aquele que afasta a norma e impõe o estado de exceção; e é precisamente nesse estado, nessa zona anômica, que surge o homo sacer. Inspirado por essa "figura enigmática" (39, p. 88) do direito arcaico, Agamben o define como um ser excluído do ordenamento do direito e da política e que, por isso mesmo, pode ser morto sem que se cometa assassinato. Ou ainda, homo sacer é aquele que não possui uma bios, ou seja, uma vida qualificada - é apenas vivente. A questão-chave é que o soberano se relaciona com o homo sacer justamente a partir de sua exclusão: ao excluí-lo da política, do direito, da moral, enfim, da polis, ele captura-o. O homo sacer está numa relação de exclusão inclusiva - pois é capturado pela sua exclusão.
Não é preciso tanta imaginação para pensar os animais, em diferentes contextos, como representantes contemporâneos dessa figura que é capturada ao ser excluída, capturada por uma política de exclusão 40; dessa figura que representa vidas desqualificadas, vidas nuas, que podem ser mortas sem que existam assassinos - como é o caso dos milhões de animais que morrem anualmente nos laboratórios de pesquisa científica. O ponto que estamos tentando destacar, no entanto, é que a operação de transformar vidas animais em homo sacer, em vidas nuas, não se restringe ao ato de matar em si (este é o episódio final de uma trajetória), mas também a todo o conjunto de saberes canônicos que construíram, ao longo de séculos, o animal como um ser inferior e complementar necessário ao humano elevado 19,41,42; que associaram suas vidas à animalidade, à selvageria, à brutalidade; ou que associaram seus modos de ser - em toda sua imensa diversidade - ao signo do negativo: seres sem razão, sem linguagem, sem cultura. No mesmo sentido de nossa argumentação, Felipe Süssekind 42, ao realizar o esforço de pensar outras maneiras de coabitar o mundo entre espécies, isto é, de levar uma "vida multiespécie", problematiza, a partir do conceito agambeniano de "máquina antropológica", aquilo que ele chama "dispositivo antropocêntrico":
a afirmação da humanidade, ao delimitar sujeitos de direito, sujeitos de uma vida qualificada, se constitui, nesse sentido, como uma máquina que reduz os viventes desprovidos de humanidade à condição de objetos ou de instrumentos. A categoria do animal funciona, neste caso, como uma categoria em negativo: o não humano genérico, aquilo que está excluído da esfera da vida política. (43, p. 162-163)
Por isso, se quisermos mapear o dispositivo cobaia e todas suas articulações, não podemos ignorar esse processo tão fundamental, processo que permite o uso de animais como instrumentos de pesquisa, em primeiro lugar. Se o ignorarmos, corremos o risco de ficarmos presos na superfície da discussão sobre ética na pesquisa com animais: debruçamo-nos sobre o bem-estarismo, os 3Rs, o "manejo racional", os cálculos sobre prós e contras, mas nunca questionamos por que os animais estão na posição de cobaias, afinal. Devemos nos perguntar, antes, qual o processo que permite que certas vidas (não humanos e humanas4) sejam utilizadas em experimentos. E por que agimos como "soberanos" ao decidir quais seres possuem uma bios, uma vida qualificada, e quais são apenas viventes, vidas nuas.
Discutindo sobre as técnicas disciplinares e a produção de vidas nuas, entendemos um pouco sobre a objetificação dos animais nesses contextos. Mas o quadro fica incompleto se não mencionarmos o conhecimento produzido no laboratório e seus desdobramentos sociais e econômicos, o grande porquê da atividade de pesquisa. E nossos entrevistados não esquecem disso. De antemão, todos lembram por que estão ali, por que continuam a produzir, manusear e matar animais, mesmo sentindo desconforto e "estresse moral" 44. O sofrimento se justifica, afinal, porque produz conhecimento, tecnologias e medicamentos que serão utilizados por nós, humanos 45 - ou, em alguns casos, pelos próprios animais.
Portanto, entre vidas matáveis e produção de conhecimento e saúde, o que parece que está em jogo é a lógica do sacrifício 46. Determinam-se as vidas que podem ser utilizadas em experimentos, cujos corpos são reduzidos a maquinários químico-biológicos, e as outras que devem conhecer, produzir, experimentar e se medicalizar; dividem-se os seres entre aqueles que devem ser cobaias (animais, mas também alguns humanos) dos que não devem; um jogo assimétrico entre seres, cuja ontologia lhes permite serem sacrificáveis e seres marcados pela razão, pela liberdade e pela autonomia. Haraway escreve que "há todo um mundo daqueles que podem ser mortos, porque afinal eles são apenas alguma coisa, não alguém, perto bastante de 'ser' a fim de serem um modelo, substituto, suficientemente semelhantes e, portanto, alimento nutritivo, mas não perto bastante para forçar uma resposta" (47, p. 41). E, por mais que uma de nossas participantes tenha se recusado a usar a palavra "sacrifício" - como ela diz, "sacrifício é para os deuses" -, nem por isso o caráter transcendente da experimentação desaparece. Os animais e os humanos precisam entrar nesse ritual adequadamente, para que os primeiros possam sofrer uma metamorfose: do animal de carne e osso para o "animal analítico", como escreveu Michael Lynch 48; ou seja, de animal vivo para animal na forma de dado, tabela, gráfico, resultado.
Devemos realmente compreender a importância que a produção do conhecimento exerce no dispositivo cobaia. Sem esses saberes, geralmente revertidos em medicamentos ou serviços de saúde destinados a populações humanas, não haveria justificativas fortes o bastante para manter certos animais como cobaias; não haveria, por sua vez, compensação moral e emocional suficiente para os pesquisadores, que, como já apontamos, sofrem por utilizar os animais. Tal fato é recebido como más notícias pelos animais: como a produção de conhecimento é virtualmente infinita, infinita também pode ser a utilização de seus corpos para fins alheios aos seus interesses. Por mais que a participante mencionada afirme que "sacrifício é para os deuses", não podemos deixar de enfatizar que os deuses nunca deixaram o laboratório; ao contrário, estão presentes de maneira laicizada na transcendência de todo conhecimento produzido. São esses mesmos deuses que demandam seus bodes expiatórios. Diante deles, o que podemos fazer? Haraway, mais uma vez, afirma: "é bem provável que quebrar a lógica sacrificial que define quem deve e quem não deve ser morto leve a muito mais mudança do que as práticas de analogia, extensão de direito, denúncia e proibição" (47, p. 45). Quem sabe, assim, não conseguiremos impedir a lógica de produção biopolítica de vidas matáveis?
Afetos: o animal mais perto do sujeito
Para além da instrumentalidade, o que revelam as falas de nossos participantes? Esta segunda categoria compreende noções quase que opostas da primeira. Se antes o debate estava centrado na disciplina, na biopolítica animal e humana, no modo como o poder circula por entre diferentes instâncias, nas regulações necessárias para a formação dos saberes e na criação de vidas matáveis, deste lado do laboratório, ao contrário, encontram-se os sentimentos, a culpa, a responsabilidade e os afetos. Daquele lado, o status do animal se aproxima mais do objeto, enquanto deste, aproxima-se do sujeito. Ontologicamente flutuante, os animais que habitam os laboratórios e os biotérios não podem ser tomados de uma vez por todas. Se quisermos entender melhor as relações humano-animais na pesquisa científica, é importante sublinhar tanto as práticas disciplinares quanto as trocas de afeto.
E essas trocas de afeto surgem em todas as discussões. "Acho que penso neles como parceiros de trabalho", diz uma das alunas, enquanto uma outra comenta que os animais "são vidas como nós e como meu pet... isso faz com que tenha empatia com eles [...] por ter empatia, tenho respeito quando ele passa a fazer parte do meu trabalho como forma de obter resultado. Então fico agradecida por ele 'cooperar'". Muitos outros registros revelam a afetação por parte dos humanos, com seus sentimentos de culpa, responsabilidade e compaixão. Em tom de arrependimento, uma das professoras diz que fez "muita coisa ruim" no passado. No mesmo grupo, um professor pergunta se todos ainda trabalham com animais em pesquisa, ao que outra participante responde que não os utiliza há anos. Essa mesma participante completa: "mas confesso que em certos momentos acho que faz falta. Mas, ao mesmo tempo, minha coragem de trabalhar com os bichinhos diminuiu". Um dos professores do grupo, ao início da discussão, afirma que, no passado, "não havia comitê de ética! Eu tomava todos os cuidados, mesmo assim era muito animal sacrificado". Uma outra participante também chama a atenção para as comissões, ao dizer que "hoje, mesmo com a CEUA, ainda temos um descaso no cuidado com os animais!". A mesma participante acredita "cada vez mais no uso criterioso, com justificava plausível, e não esquecendo que são animais sencientes!"
É no mesmo sentido de afetação que as bioteristas falam. À pergunta "o que os animais de laboratório representam para vocês?", uma delas responde que "representam ciência, mas sem perder de vista o respeito por suas vidas! O bem-estar deles é minha prioridade, sempre", enquanto a outra responde que "são como qualquer ser vivo, que precisa ser respeitado, tratado da melhor forma possível". A primeira ainda acrescenta que "hoje em dia", ela vê "um maior cuidado do pesquisador com seus animais, uma maior responsabilidade". Por sua vez, no outro grupo, uma aluna acredita que os animais "são seres vivos, assim como nós. Merecem respeito e cuidado". Outro aluno diz que "tenho em mente que muito ainda precisa ser feito para lhes garantir bem-estar". Este último participante também encosta no assunto de enriquecimento ambiental quando diz que "o uso obrigatório de casinhas como pontos de refúgio seria necessário, porque quando abrimos uma caixa que só tem maravalha, percebemos nitidamente que o animal gostaria de se esconder, mas não tem para onde ir". E, sobre a eutanásia, uma das alunas conta:
Como nós estudávamos microglia, o processo de euta-násia era horrível (para assistir, pelo menos): primeiro usávamos o anestésico inalante, então abríamos o tórax do camundongo, cortávamos o diafragma e então injetávamos soro fisiológico no coração ainda batendo para que substituísse o sangue do cérebro [...] Eu achei desumano, ainda que soubesse que ele não estava sentindo nada. Como sou bióloga e não veterinária ou médica, não aguentei ver isso.
Sobre o mesmo assunto, um dos alunos lembra "que ficava triste por ter que eutanasiar um animal que muitas vezes aparentava estar saudável, ou estava saudável mesmo. No caso, os grupos controle". Uma das bioteristas conta sobre o incômodo de algumas pessoas com a eutanásia: "temos um técnico que não pode nem ver os animais saindo da sala porque sofre muito". A outra participante do mesmo grupo também comenta que, em dia de eutanásia, "mesmo os alunos só participando da coleta e processamento material... muitos ficam com o rostinho vermelho, olhos inchados, pois choram". Por fim, ao falar sobre a rotina de seu trabalho, a bioterista afirma: "tenho muito amor por eles. Por isso tenho que fazer meu trabalho da melhor forma possível! De forma mais cuidadosa e criteriosa possível".
Algumas dessas falas remetem a uma discussão realizada por Iara Souza. A autora afirma, com relação aos animais de laboratório, que "como criaturas vivas eles se envolvem em relações de afeto com outros vivos com os quais compartilham o ambiente" (8. p. 2). O afeto de que ela fala é no sentido de ser movido por algo ou alguém. Um dos pontos centrais do artigo de Souza é que, mesmo privados de liberdade, os animais desempenham papel ativo na experimentação científica. Não devem ser tomados como objetos nem como entidades passivas, pois podem cooperar para mais ou para menos. Não só são afetados, como também afetam. O importe aqui é ressaltar que não se trata somente de disciplina, mas também de cooperação do animal que, dependendo dos afetos trocados, do tato de quem o manuseia e dos vínculos que cria, pode ser mais dócil ou mais agressivo. Ele escolhe, minimamente, o quanto se vincula aos processos.
E, para além das afetações que os animais causam no dia a dia, essas falas reunidas nos mostram como a relação entre humanos e animais nos laboratórios e nos biotérios não pode ser reduzida à instrumentalidade. Quer dizer, a paisagem da atividade científica com animais não é composta por cientistas cartesianos, cruéis e insensíveis, por um lado, e por animais que são tratados como objetos passivos, por outro. É claro que existem poder, assimetrias e violência, mas o ponto é que também existem afeto, troca, responsabilidade, culpa e empatia. De acordo com a própria prática dos entrevistados, faz mais sentido pensar o animal como um ser de ontologia dupla ou ambivalente, pois não se situa nem inteiramente no mundo dos objetos, nem no mundo dos sujeitos. Não é mais um na lista dos instrumentos do laboratório, ao passo que não detém o mesmo estatuto jurídico e moral dos humanos. Atípico ser ambivalente cuja casa é entre naturezas e culturas 49.
Sobre a ambivalência
O que faz de um animal uma cobaia? Ao tomarmos o conceito foucaultiano de dispositivo, traçamos, a partir de pesquisa empírica e da literatura, processos e técnicas que tanto disciplinam os animais - ao corrigi-los, normalizá-los, ordená-los em espaços e tempos - como os rebaixam a um estatuto jurídico, moral e político inferior aos humanos. Ou seja, fazeres e saberes que objetificam determinados seres, transformando-os em instrumentos úteis a certas atividades, no caso, a prática científica. Isto é, traçamos, parcialmente, aquilo que estamos chamando "dispositivo cobaia". Contudo, a pesquisa empírica também mostra como os humanos e animais não estão inteiramente presos em redes instrumentais. Ao contrário, uma gama de afetos os constitui. Entretanto, a responsabilidade, a culpa e a empatia não podem ser entendidas aqui como elementos que estão fora do dispositivo, pois são igualmente importantes na transformação do animal em cobaia e em modelo experimental. Esses sentimentos, assim como o senso ético dos pesquisadores e bioteristas (e também das organizações bem-estaristas, das comissões de ética e mesmo dos documentos e das diretrizes sobre uso e manuseio de animais de laboratório), não estão de fora do quadro da experimentação, mas a constituem. Eles estão indissociáveis da violência, do controle e, por fim, da biopolítica da relação humano-animal. As mesmas pessoas que se incomodam com a eutanásia, que têm respeito e cuidado com os animais, não deixam de utilizá-los como objetos para suas pesquisas. De fato, o cuidado, o bom manejo e as práticas bem-estaristas são todos revertidos em bons resultados, o propósito da atividade de pesquisa. Como diz uma aluna, "eles estarem confortáveis é importante para mim, do ponto de vista do bem-estar deles em si, assim como da qualidade do resultado que eu vou produzir". Em outras palavras, as técnicas instrumentais e os afetos estão entrelaçados, formando, juntos, o dispositivo cobaia (Figura 1).
Podemos inclusive argumentar que as noções de responsabilidade, cuidado (uma categoria ambivalente por si só, pois todo cuidado envolve tutela e, consequentemente, poder) e todos seus desdobramentos no formato de saberes bem-estaristas, regulamentações e comissões de ética são elementos que, ao adicionarem o caráter "ético" na relação, servem na manutenção do animal como cobaia, como ser que deve ser experimentado, desde que de forma adequada e razoável. Abolicionistas como Gary Francione 5 já chamaram a atenção para esse resultado torcido da regulamentação e do "melhoramento" das relações humano-animais.
O desafio, no entanto, é não seguir muito firme com essa última afirmação - de que os cuidados são nada mais que uma parte do dispositivo, pois, se os cuidados não devem ser tomados como sinônimo de ausência de conflitos ou sofrimento - isto é, não devemos acreditar nos que afirmam que "fizemos nossa parte, pois já cumprimos com as normas e fomos sancionados pela CEUA" -, seria também um pouco problemático tomá-los apenas como elementos de um todo, ou seja, enxergá-los a partir de uma lente puramente funcionalista. Com essa lente, a experimentação científica seria sempre uma totalidade em que os indivíduos operam de acordo com o dispositivo, sem espaço para brechas, rupturas e novidades. Todos seriam operadores de uma grande máquina. Portanto, a própria noção de "cuidado" deve ser lida como ambivalente: o cuidado não somente faz parte do processo de transformação biopolítica dos animais em vidas matáveis e do dispositivo, mas também reflete a inquietação ética dos humanos envolvidos. O mal-estar presente em cada um de nossos participantes - assim como nos sujeitos de pesquisa de outros estudos 8,45 - bem pode levar a questionamentos, propostas e ações que mudem, em um grau pequeno e importante, a situação dos animais. Esses cuidados, sentimentos e inquietações podem desmantelar o funcionamento do dispositivo cobaia, por mais que façam parte dele. Ao tomar a noção de "cuidado" como contraditória, isto é, como um elemento que faz e desfaz, simultaneamente, o disposto cobaia, evitemos cair num cenário ingenuamente otimista, por um lado (em que se acredita que basta ter sensibilidade que os problemas dos animais acabam), e exageradamente pessimista, do outro (em que humanos e animais estão para sempre presos na mesma relação problemática). Afirmar que o cuidado é ambíguo nos salva de cair na armadilha de acreditar que os 3Rs, o bem-estarismo e as CEUA são suficientes, ao mesmo tempo que nos permite vislumbrar e trabalhar em futuros possíveis (Figura 2).
A ambivalência e a contradição também valem para certos atores na experimentação científica. As CEUA, o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA) e o bem-estarismo talvez sejam mais bem compreendidos sob essa mesma lente. Por um lado, eles cumprem um papel disciplinar, pois coletam informações, fiscalizam, monitoram, quantificam; por outro, parecem ser fruto de uma real preocupação com a qualidade de vida dos animais utilizados em pesquisa 50. É importante levar em conta os dois lados para evitar dois tipos de raciocínio. Ao pressupormos que essas entidades possuem efeitos de disciplina, ao reconhecermos seu caráter normativo e bio-político, ao expormos o modo que suas práticas e discursos criam vidas matáveis, evitamos cair no discurso de que elas são suficientemente boas ou que, por conta de suas existências, os problemas dos animais acabaram; evita-se assim um otimismo exagerado nas leis, nos 3Rs, no bem-estar, no "uso criterioso" e no "manejo racional", como já dissemos. Por sua vez, ao pressupormos que essas mesmas entidades refletem um genuíno cuidado e preocupação, evitamos retornar ao paradigma do cientista frio, calculista, que comete barbaridades. Levando-se em conta os afetos, deixamos de entender a atividade científica como uma totalidade e permitimos a entrada das rupturas, de mudanças, contradições, falhas e sentimentos genuínos. O cientista não opressor livre de problemas éticos e o cientista cartesiano que comete atrocidades são duas fantasias das quais devemos nos livrar para entender a experimentação científica com animais.
Para abandonar o cientista-monstro, basta observar uma das alunas participantes: "me incomodo um pouco com a visão de uma parte da população que vê o cientista como torturador de animais. Embora minha colega tenha, infelizmente, observado maus tratos, eu particularmente nunca vi. Inclusive nunca vi nenhum colega superconfortável em trabalhar com animal". Finaliza dizendo que "o dia em que a substituição for completa, será um alívio para todos". Ou seja, claramente ela não usa os animais por prazer, o que é corroborado por trabalhos de outros autores 51 que apontam que as pessoas que realizam experimentações científicas apresentam maior satisfação no trabalho quando os animais sofrem menos. Por mais que pareça óbvio, é importante frisar tais trabalhos para desmitificar a visão, ainda popular, de que os cientistas são pessoas cruéis - o que não os torna, entretanto, imunes à dessensibilização ao sofrimento dos animais que manipulam.
Por sua vez, para se livrar do cientista moralmente bom e livre de problemas, basta lembrarmos que os animais (mesmo sob o mantra do bem-estarismo), ainda são submetidos a procedimentos invasivos, ainda vivem em espaços pequenos, ainda são mortos e ainda possuem suas vidas destinadas a propósitos alheios aos seus interesses. Portanto, os discursos totalizantes não dão conta; deve-se desconfiar tanto daqueles que acreditam que não existe espaço para afetos, que a experimentação é um sistema maquínico implacável que opera a partir da técnica, assim como daqueles que esquecem que a ciência envolve violência, os mesmos que acreditam que as CEUA, o bem-estar e os 3Rs acabaram com o sofrimento animal de uma vez por todas. Na contramão de ambas as visões, a presente pesquisa parece mostrar uma realidade menos dramática, menos monstruosa, menos totalizante, mas não tão paradisíaca e livre de problemas morais.
É a realidade mundana e menos dramática que dificulta nossa tarefa de pensar e agir sobre as relações humano-animais nos contextos da pesquisa científica. Afirmar que a senciência dos animais deve ser levada em consideração, como quer Singer 3, por exemplo, não parece suficiente. Afinal, as práticas de laboratório, especificamente para este estudo, já nos informam que a última coisa que pesquisadores e bioteristas esquecem é a capacidade de sentir e sofrer dos animais. Eles sabem que estão lidando com seres sencientes, daí as cautelas, o zelo, a preocupação com a troca de funcionários, a atenção com as luvas sujas de sangue, os cuidados no manuseio e a vigilância rotineira. Os próprios instrumentos, e mesmo a arquitetura dos ambientes, aliás, já denunciam que a senciência está como pano de fundo das atividades de pesquisa: analgésicos, tocas de refúgio, materiais utilizados em biotérios que evitam ruídos externos etc. Anna Williams 52 comenta que a arquitetura dos corredores de matadouros reflete uma preocupação com a percepção dos animais de seu ambiente: as vacas ficam mais tranquilas ao andarem em círculos. Este reconhecimento da senciência como pano de fundo não seria diferente no contexto de pesquisa com animais.
Nossas pesquisas e estudos, portanto, além de críticos, não devem se desprender da realidade prática dos problemas; isto é, devem estar atentos a como os atores (não necessariamente humanos) se engajam mutuamente. A partir dessa atenção a realidades práticas que entendemos a ambivalência dos animais utilizados em pesquisas: são objetos e sujeitos ao mesmo tempo. Tal caráter contraditório revela a dificuldade que enfrentamos ao pensar e escrever sobre animais de laboratório: como não são inteiramente objetos, como estão parcialmente situados no mundo dos sujeitos, e como são tratados com cuidado e respeito, nossa tarefa de criticar as situações a que são sujeitados, os processos a que devem se submeter, enfim, a vida que levam fica muito mais difícil. De certo modo, o senso ético presente em pesquisadores e bioteristas, as diretrizes, as comissões de ética, as leis e o bem-estarismo, de um modo geral, acabam por funcionar como um escudo de defesa contra críticas à experimentação animal. Cria-se, assim, nas aparências, um cenário livre de problemas éticos, em que qualquer um que aponte problemas será considerado demasiadamente radical - afinal, os animais "são respeitados". Esses elementos (isto é, o conjunto de discursos, sentimentos e organizações cujo denominador comum é a noção de cuidado), contudo, não podem ser tomados por nós, de modo acrítico, como legitimadores suficientemente bons para a atual situação dos animais em pesquisas científicas. Não é porque as CEUA e o bem-estarismo existem ou porque os pesquisadores e bioteristas têm um senso ético que devemos deixar de pensar as relações humano-animais ou pior, que devemos acreditar que não existam mais problemas morais nestas relações e ambientes. As CEUA, o bem-estar e os sentimentos dos indivíduos envolvidos são importantes e, inclusive, frutos de uma longa batalha (que se estende para muito além do contexto da experimentação) por uma vida mais digna para os animais. Ainda assim, fazem parte de uma rede complexa que ainda mantém e transforma certos animais em cobaias - vidas úteis, dóceis e matáveis que nos servem, que servem a nossa saúde, conhecimento e sociedade.
Nesse sentido, a bioética, como campo interdisciplinar que se ocupa em pensar e trabalhar sobre situações injustas, deve entrar em debate sério consigo mesma sobre os instrumentos e as referências teóricas que servem para estruturar seus parâmetros de julgamento: quais perspectivas, afinal, devemos começar a valorizar para pensar adequada e criticamente sobre os problemas do mundo? Ou melhor, que problemas deixamos de enxergar quando adotamos certas teorias e métodos e deixamos de utilizar outros? Não defendemos, claro, que nossa abordagem é suficiente para pensar a relação humano-animal e seus problemas éticos. Apontamos, todavia, que o diálogo com os estudos sobre biopolítica (passando por Foucault, mas não se limitando a ele), antropologia e estudos animais de um modo amplo podem ser bons caminhos para construir uma bioética menos antropocêntrica em seus problemas teóricos e práticos, e talvez mais diversa.
Conclusões
Partindo da pergunta que orientou esta pesquisa sobre como interpretar os modos de relação entre humanos e animais no laboratório, especialmente, sobre os poderes que regem essas relações, atestamos a hipótese da relevância da análise da questão sob a perspectiva biopolítica. A análise da questão sob a perspectiva da fala de atores desse conflito ético, os cientistas e os laboratoristas, evidenciou que a pesquisa científica, ao menos na área biomédica, ganha inteligibilidade através do biológico. Logo, toda a política e todo o conjunto de práticas, hierarquias, negociações e alianças gravitam em torno de questões da vida biológica. Justamente por isso, não faria sentido retirar os animais da cena. Afinal, seus corpos são tanto alvos quanto meios de uma biopolítica: alvos, pois são objeto de transformação - fisiológica, genética -; meios, pois deles criam-se fármacos e terapias que eventualmente estarão inseridas nas políticas de saúde. A biopolítica da qual Foucault escrevia parece ir muito além do mundo humano. Isso é corroborado não só pelos autores que utilizamos, como também por nossa pesquisa de campo.
Contudo, a ambivalência no estatuto dos animais foi uma constatação na fala dos participantes da pesquisa não prevista na hipótese inicial. A partir das falas dos entrevistados, percebe-se que os animais ora são tratados como instrumentos que devem ser manejados no biotério e no laboratório e utilizados para a pesquisa, ora como seres que devem ser cuidados, respeitados e levados em consideração. Apontamos, por fim, que, por mais que essa ambivalência seja um dos fatores que mantém os animais como cobaias - visto que, por serem "respeitados", a experimentação com seus corpos pode continuar -, é justamente ela que permite pensar outros modos de nos relacionar com esses animais. O fato de que os animais são considerados como seres com seus próprios interesses, que os incômodos surgem e, com eles, novas maneiras de realizar ciência. Maneiras, talvez, que fujam de dispositivos que insistem em transformar animais em vidas menos importantes.