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Opinión Jurídica

Print version ISSN 1692-2530On-line version ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.20 no.spe43 Medellín Dec. 2021  Epub Nov 19, 2022

https://doi.org/10.22395/ojum.v20n43a17 

Artigos

Justiciabilidade de medicamentos: uma análise de como as experiências da Colômbia e da África do Sul podem contribuir com o Brasil

Justiciability of Medicines: an Analysis of the Experiences in Colombia and South-Africa that Might Contribute to the Brazilian One

Justiciabilidad de medicamentos: un análisis de las experiencias en Colombia y Sudáfrica que puede contribuir a Brasil

Alessandra Brustolin* 
http://orcid.org/0000-0001-8925-2172

Edinilson Donisete Machado** 
http://orcid.org/0000-0003-4303-7041

Felipe Calderón-Valencia*** 
http://orcid.org/0000-0001-7384-7470

* Centro Universitário Univel, Cascavel, Brasil aless.brustolin@gmail.com, https://orcid.org/0000-0001-8925-2172

** Centro Universitário Eurípides de Marilia, UNIVEM, Marília, Brasil; Universidade Estadual do Norte do Paraná, UENP, Jacarezinho, Brasil edinilson.machado@uenp.edu.br, https://orcid.org/0000-0003-4303-7041

*** Universidad de Medellín, Medellín, Colômbia felipecalderonvalencia@gmail.com, https://orcid.org/0000-0001-7384-7470


RESUMO

Estudos recentes apontam indícios de que a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) pode estar contribuindo para o fenômeno da judicialização da saúde. Isso ocorre diante da interpretação extensiva da Constituição Federal de 88 no que diz respeito às hipóteses de justicialidade do direito. Diante disso, o estudo promove uma análise comparatista entre Brasil, Colômbia e a África do Sul, analisando como decidiram as Cortes estrangeiras e de que forma as experiências destes países poderiam contribuir com o Brasil no caso das demandas de medicamentos. Foi utilizada uma combinação dos métodos dedutivo, comparatista de Pierre Legrand e análise de caso de Robert Yin. Foi possível concluir que a forma pela qual decidiram as Cortes estrangeiras, provavelmente, influenciou em maior ou menor escala a busca pelo judiciário para reclamar direitos que extrapolam a abrangência constitucional do direito à saúde. E que a postura da Corte Constitucional sul-africana, ao limitar a justiciabilidade do direito à saúde promoveu mudanças estruturais mais significativas em comparação ao caso da Corte Constitucional colombiana e do STF, que estão mais focados na solução de demandas individuais, havendo um risco para o sistema de saúde pública brasileiro em termos orçamentários.

Palavras-Chave: direitos fundamentais; direito à saúde; judicialização da saúde; medicamentos; análise de decisões; cortes constitucionais

ABSTRACT

Recents studies indicate that the acting of the Supreme Federal Court might be contributing to the judicialization of health phenomena. This happens due to the wide interpretation of the Federal Constitution of 88 in regards to the hypotheses of the justiciability of law. Because of this, this research promotes a comparative analysis between Brazil, Colombia and South-Africa, analyzing how the foreig Courts have decided and how these experiences might help Brazil with the demands for medicines. As a methodology, this research made a combination of the deductive, comparative (of Pierre Legrand), and case study (of Robert Yin). THe study was able to conclude that the way decided by the foreign courts was heavily influenced by a big or small search for power by the judicial power for reclaiming the rights that extrapolate the Constitutional coverage of the right to health. The position of the South-African Constitutional Court, by limiting to justiciability in comparison with the Colombian Constitutional Court and the STF, which is more focused in solving the individual allegations, with a chance of incurring in risks for the Brazilian public health system in budget terms.

Keywords: fundamental rights; right to health; judicialization of health; medicines; decisions analysis; Constitutional Courts

RESUMEN

Estudios recientes indican pruebas que la actuación del Supremo Tribunal Federal puede estar contribuyendo para el fenómeno de la judicialización de la salud. Esto ocurre ante la interpretación amplia de la Constitución Federal de 88 en lo que se trata de las hipótesis de la justiciabilidad del derecho. Ante esto, esta investigación promueve hacer un análisis comparativo entre Brasil, Colombia y Sudáfrica, analizando cómo han decidido las Cortes extranjeras y como estas experiencias pueden colaborar a Brasil ante las demandas por medicamentos. Como metodología se hizo una combinación de los métodos deductivos, comparatista de Pierre Legrand y estudio de caso de Robert Yin. Fue posible concluir que la forma por la cual decidieran las Cortes extranjeras, probablemente, influyó en una grande o pequeña búsqueda por el poder judiciario para reclamar los derechos que extrapolan la cobertura constitucional del derecho a la salud. La posición de la Corte Constitucional sudafricana, al limitar a la justiciabilidad en comparación al caso de la Corte Constitucional colombiana y el STF, que están más enfocados en la solución de los litigios individuales, pudiendo ocurrir un riesgo al sistema de salud pública brasilero en termos presupuestales.

Palabras clave: derechos fundamentales; derecho a la salud; judicialización de la salud; medicamentos; análisis de decisiones; cortes constitucionales

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa realizada em nível de mestrado no período de 2019-2021 para a obtenção da titulação de Mestra pela primeira Autora no Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP, em Jacarezinho/PR (BR) e não contou com financiamentos.

Em uma escala global o Brasil ocupa o 2º lugar no ranking de litigiosidade em matéria de saúde. A maior concentração de litígios está na América Latina. A Colômbia lidera o contencioso, seguida pelo Brasil, Costa Rica e Argentina (Maestad et al., 2011, p. 281 ).

Com relação ao Brasil, no ano de 2019, a pesquisa realizada pelo Instituto de Ensino e Pesquisa - Insper constatou que “o número de demandas judiciais relativas à saúde aumentou 130% entre 2008 e 2017, enquanto o número total de processos judiciais cresceu 50%” (Instituto de Ensino e Pesquisa [Insper], 2019). A pesquisa levou em consideração os dados disponíveis nos Tribunais de Justiça (TJ) estaduais brasileiros de primeira instância. O deslocamento do lócus do conflito entre o indivíduo e o Poder Público para o judiciário caracteriza o fenômeno da judicialização, que gera repercussões negativas no cenário de saúde. Grande parte da demanda de saúde está relacionada a medicamentos. Estes se destacam com um dos mais altos índices de busca pelo judiciário.

O artigo busca apresentar uma nova proposta de discussão sobre a temática, tendo como ponto de partida a análise da atuação do STF. Isso porque, estudos recentes, na contramão do caminho trilhado pela produção acadêmica, têm apontado que provavelmente, tanto o problema quanto a solução da judicialização da saúde concentramse no próprio STF. As conclusões destes estudos apresentam indicativos de que o próprio STF pode ter grande responsabilidade pela litigiosidade individual que se instalou e cresce vertiginosamente no país, com reclamações e concessões diárias em termos de saúde. A principal preocupação que decorre do posicionamento da Corte tem se mostrado em termos orçamentários. Há indicativos de que a judicialização pode vir a comprometer o orçamento de saúde se não for urgentemente contida.

Esse cenário coincide com a experiência da Colômbia e contrasta com situações como a da África do Sul, por exemplo, um país com baixo índice de demandas individuais. Brasil, Colômbia e África do Sul, apesar de suas inúmeras diferenças, são países com semelhanças que possibilitam e justificam a análise comparativa entre estes três países. Especialmente porque lidaram de forma diferente com o problema da efetivação do direito à saúde.

O trabalho consiste em um estudo jurídico comparativo que analisa as “juriculturas”1 do Brasil, Colômbia e África do Sul, com base na seguinte problemática: como as experiências da Colômbia e da África do Sul podem contribuir com o Brasil no caso da justiciabilidade de medicamentos? O artigo busca promover a análise constitucional, jurisprudencial e analisar as repercussões das decisões das Cortes nos cenários de cada um dos países, avaliando-se como a experiência estrangeira pode contribuir com o Brasil.

Foram aplicados os métodos dedutivo, análise comparatista de (Legrand, 2018) e estudo de caso (Yin, 2015). Parte-se de uma dedução com a hipótese predeterminada e para se chegar ao resultado foi aplicada uma perspectiva internacionalista em comparação, com a realização de um estudo jurídico comparativo e análise de decisões. Além disso, trata-se de pesquisa descritiva em relação ao aspecto metodológico, diante da análise ampla realizada, que estuda os diversos ordenamentos jurídicos, os institutos jurídicos do direito à saúde, regras e princípios jurídicos envolvidos.

1. A POLÍTICA CONSTITUCIONAL DO BRASIL, COLÔMBIA E ÁFRICA DO SUL

Essa seção é direcionada à análise das jurisculturas da Colômbia e da África do Sul com foco no direito à saúde. Serão apreciados três aspectos específicos: a política constitucional de saúde; interpretação das Cortes Constitucionais; e as repercussões deste posicionamento nos cenários de saúde e judiciário de cada um dos países.

A política constitucional tem como base as Constituições colombiana e a sulafricana, “Constitución Política de Colombia” de 1991 (CP/91), na “Constitution of the Republic of South Africa” de 1996 (CR/96) e na Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88).

De se ressaltar que o Brasil adota o modelo federalista de caráter tripartite, atuando o STF com dupla competência para atuação, ora como Corte Constitucional e ora como Tribunal Superior, diferente demais países analisados.

Colômbia e África do Sul não seguem o padrão do sistema judiciário brasileiro. Diferentemente do que ocorre no Brasil, cada um dos países possui dois órgãos jurisdicionais superiores. As Cortes Constitucionais são a instância decisória máxima quando o assunto se concentra sob sua jurisdição.

As Constituições democráticas inovaram ao trazer uma alteração substancial: a instituição de Cortes Constitucionais (Colômbia, 2016; África do Sul, 2012): a Corte Constitucional de Colombia - CCC (Corte Constitucional da Colômbia) e a Constitucional Court of South Africa - CCSA (Corte Constitucional da África do Sul).

Apesar de os modelos de jurisdição constitucional da Colômbia e da África do Sul terem as Cortes Constitucionais como a mais alta autoridade nos países, os sistemas colombiano e sul-africano não seguem exatamente o mesmo padrão. Enquanto na Colômbia compete à Corte a proteção da integridade e supremacia da Constituição no exercício da função jurisdicional (artigo 241 da CP/91), ficando a seu cargo decisões e revisões exclusivamente relacionadas à matéria constitucional, na África do Sul CCSA, a CR alarga o âmbito de atuação da CCSA. Neste caso, além da matéria constitucional é competência da Corte a análise de qualquer outro assunto que considere suscitar questão de direito discutível e de interesse público e geral, concedendo uma autorização para recurso com estes fundamentos (artigo 167 da CR/96).

Além disso, cabe esclarecer que apesar de Brasil e Colômbia seguirem o sistema romano-germânico (civil law) e a África do Sul adotar o modelo que se baseia no direito romano-holandês (common law), mas existem divergências no que diz respeito ao modelo de constitucionalismo aplicável aos países. Afirma-se, por um lado, que a promulgação das Constituições do Brasil e Colômbia faz parte do movimento denominado “novo constitucionalismo latino-americano” ou “neoconstitucionalismo latino- americano” nos processos de consolidação da democracia na América Latina, com um número razoável de mudanças políticas de transição, resultando em novas constituições, que se identificam por traços comuns de historicidade e geografia (Lourenço, 2016). Por outro lado, este entendimento é desafiado com base no fundamento de que se insere em um movimento mais amplo, não específico da América Latina do final do século XX ou início do século XXI, o movimento das “Constituições transformadoras”. Esse movimento inicia no século XX com a Constituição da Índia em 1949 e se expande para países de culturas distintas, como o caso do Brasil e África do Sul, que tem como característica comum a situação periférica na economia mundial (Bercovici, 2013).

A CP/91 e a CR/96, podem ser consideradas marcos constitucionais na investida para vencer desigualdades, o que incluiu a universalização do direito à saúde. Em ambos os casos a saúde é garantida como um direito universal - artigo 48 da CP/91 e seção 27, “1” da CR/96 (Colômbia, 2016; África do Sul, 2012). A CP/91 possui uma particularidade ao abranger três meios principais de defesa judicial: a ação de tutela, ação popular e ações de cumprimento (Colômbia, 2016). A ação de tutela, nos termos do artigo 86 da CP/91 consiste em uma ação que pode ser apresenta a qualquer juiz para a proteção imediata de um direito humano fundamental (Colômbia, 2016).

No Brasil, o direito à saúde é instituído pela CF/88 enquanto um dos objetivos da seguridade social e incorporada na norma constitucional brasileira como um direito fundamental social, nos termos do “Título II”, “Capítulo II” e especificamente do artigo 6º da CF/88 (Brasil, 1988).

Nos termos do artigo 196 da CF/88, a saúde é percebida em dois aspectos principais: um direito, de acesso universal, igualitário, gratuito e integral; e, por outro lado, um dever, enquanto responsabilidade estatal (Brasil, 1988). Com relação à segunda perspectiva é que segue a análise com base no texto constitucional. As noções dessa primeira via estão relacionadas com os próprios princípios do sistema de saúde brasileiro.

Na organização da política de saúde brasileira o sistema de saúde se encontra em papel de destaque. Diferente da Colômbia e África do Sul, no Brasil há um sistema público de saúde que é único, o Sistema Único de Saúde (SUS), que compreende a universalidade, igualdade, gratuidade e integralidade e assegura o acesso à saúde pública a todas, todes (Tiburi, 2018), regulamentado pela Lei 8.080/1990 (Lei do SUS). Este sistema conta com uma série de princípios definidos pela CF/88 e que ordenam a sua atuação. Os princípios que são a base do direito à saúde na ordem constitucional brasileira igualmente compreendem os objetivos e fundamentos do SUS e fazem parte das suas diretrizes.

O direito à saúde nos três países possui como característica comum a exigência de uma postura ativa do Estado, com a criação de mecanismos para que o direito seja efetivado. Colômbia, África do Sul e Brasil têm como compromisso prover o direito à saúde por meio de políticas públicas, que devem fazer parte da agenda governamental como instrumentos para promoção do desenvolvimento socioeconômico da nação (Nakamura & Caobianco, 2019; Barbosa, 2009). As duas Constituições seguem a tendência internacional de proteção da dignidade humana e da vida, com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 (Organizações das Nações Unidas [ONU], 1948) e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais [PIDESC], 1966).

Além disso, o Protocolo de San Salvador, de 1988, especificamente em seu artigo 10, reforça a necessidade de comprometimento dos Estados para a adoção de medidas específicas para a promoção da saúde (Comissão Americana de Direitos Humanos, 1988).

A saúde é constitucionalmente estabelecida na Colômbia nos artigos 44, 49, 50, 365 e 366 da CP/91 (Colômbia, 2016). Em uma análise prévia e literal, o texto constitucional consagra a saúde enquanto um direito que possui interlocução com outros direitos como vida e dignidade humana (artigos 11 e 13 da CP/91, tradução nossa). Especificamente o artigo 49 da CP/91 garante a todos o acesso aos serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde e saneamento ambiental (Colômbia, 2016).

Dhai e Mahomed (2018) , apontam que “a saúde na África do Sul (SA) está em crise”. Segundo as autoras, a escassez de recursos humanos e a negativa de acesso para 84% dos pacientes que dependem do serviço público são os fatores principais. (Dhai & Mahomed, 2018). Na Colômbia, é igualmente apontado um cenário de crise no que se refere ao sistema de saúde. Yamin, Parra-Vera e Gianella (2011) sustentam que o cenário decorre tanto da incapacidade do sistema de ser regular, como também de fatores sociopolíticos. De acordo com as autoras, a principal falha do sistema tem se mostrado na segunda ponta do seu financiamento: os impostos sobre a folha de pagamento (Yamin et al., 2011). Apesar de múltiplos órgãos de fiscalização, o sistema foi “atormentado por falhas regulatórias” e políticas para a sua melhoria não foram implementadas (Yamin et al., 2011).

As disparidades nos sistemas de saúde da Colômbia e África do Sul fazem com que a maioria da população, notadamente a mais necessitada, esteja desassistida. Indícios apontam para a forma como as políticas foram geridas e aplicadas, principalmente diante do fortalecimento do setor privado e a desatenção da saúde pública, como consequência deste resultado nos dois países (Coovadia et al., 2009; Ataguba & Mcintyre, 2012; Barbosa Filho, 2016; Yamin et al., 2011).

Os países possuem um pano de fundo bastante similar: afinidade no cenário que envolve um histórico fragmentário na área da saúde; as mais diversas formas de desigualdade e de pobreza que também repercutem no cenário epidemiológico e de doenças dos países; e a ascensão capitalista consubstanciada no fortalecimento do setor privado. Mas Colômbia e África do Sul igualmente possuem uma série de diferenças.

No Brasil, a situação é parecida. Quando se fala na concretização universal e integral da saúde, isso esbarra em uma série de problemas que serão sintetizados com a expressão “escassez de recursos”. São eles: 1) o estágio de desenvolvimento insuficiente do Estado para a sua garantia (Bobbio, 1992); 2) a colisão entre questões orçamentárias no tema da despesa em saúde quanto ao controle social da despesa pública e a garantia do direito integral à saúde (Luhmann, 1985); 3) modificação dos procedimentos e incorporação de tecnologias na área da saúde, o que encarece os tratamentos e o problema da “farmaceutização” da saúde (Biehl & Petryna, 2016).

Some-se a isso o período de políticas de austeridade que se vivencia no Brasil, aceleradas e intensificadas a partir do governo provisório de Michel Temer e aprofundadas no governo de Jair Messias Bolsonaro (Bravo et al., 2020). Das “ações de desmonte” (Bravo et al., 2020) na saúde, durante os anos 2016, 2017 e 2018 no governo Temer destaca-se, principalmente, a aprovação da “Emenda Constitucional n° 95, de dezembro de 2016” (Brasil, 2016), sem contar o colapso do sistema de saúde brasileiro diante da pandemia da COVID-19, agravado pela desastrosa atuação do atual Presidente Jair Messias Bolsonaro, que coloca em risco a estabilidade do SUS.

Os problemas de efetivação do direito à saúde fizeram com que fosse desenrolada ao longo dos anos, em ambos os países, uma abundante e dispersa regulamentação da temática por meio de legislações esparsas no pós-91 e pós-94, sobre as mais diversificadas matérias. Isso não ocorreu necessariamente enquanto “causa e efeito”. De acordo com Yepes (2007) a judicialização da política tem sido um fenômeno mundialmente estabelecido.

A crescente busca pelo judiciário para a efetivação de toda e qualquer prestação de saúde, assim como no caso colombiano, é atualmente um problema ainda sem solução no Brasil. A África do Sul, por outro lado, possui um índice de demandas extremamente reduzido. Diante disso, a seguir busca-se analisar e compreender o comportamento judicial das Cortes, sobretudo, diante deste contraste.

2. O COMPORTAMENTO JUDICIAL DAS CORTES

Essa seção apresenta uma análise sistemática do posicionamento das Cortes Constitucionais com relação ao direito à saúde. O diagnóstico obedece a critérios específicos. A análise jurisprudencial recairá sobre as decisões que são consideradas pela bibliografia analisada marcos importantes na interpretação das Cortes sobre o direito à saúde constitucionalmente estabelecido. O critério de seleção das decisões levou em consideração e teve como orientação a bibliografia utilizada. Foram selecionadas três decisões para exame em cada um dos países: “Sentencia T-2004 de 2000”; “Sentencia T-859 de 2003”; e “Sentencia T-760 de 2008”, na Colômbia; e “CCT 32/97”; “CCT 11/00” e “CCT 8/02”, na África do Sul; e Medida Cautelar na Pet 1246 MC/SC” “RE 271.286/2000 (RS)” e “RE 657.718/2019 (MG)”, no Brasil.

Os critérios para análise são os seguintes: 1) avaliar como a Corte interpreta o direito à saúde previsto na Constituição; 2) verificar se a Corte associa o direito à saúde à indispensável garantia de outros direitos, especificamente vida e dignidade humana; 3) analisar se a corte privilegia a saúde curativa ou preventiva; 4) averiguar se a Corte considera o interesse coletivo.

Antes de promover a análise das decisões, conhecer o sistema judiciário e de jurisdição constitucional dos países em grau superior, é imprescindível. Colômbia e África do Sul não seguem o padrão do sistema judiciário brasileiro. Diferentemente do que ocorre no Brasil, cada um dos países possui dois órgãos jurisdicionais superiores. As Cortes Constitucionais são a instância decisória máxima quando o assunto se concentra sob sua jurisdição (artigo 116 da CP/91 e artigo 167, 3, “a” e “c” da CR/96).

As Constituições democráticas inovaram ao trazer uma alteração substancial: a instituição de Cortes Constitucionais (Colômbia, 2016; África do Sul, 2012): a Corte Constitucional de Colombia - CCC (Corte Constitucional da Colômbia) e a Constitucional Court of South Africa - CCSA (Corte Constitucional da África do Sul). Apesar de os modelos de jurisdição constitucional da Colômbia e da África do Sul terem as Cortes Constitucionais como a mais alta autoridade nos países, os sistemas colombiano e sul-africano não seguem exatamente o mesmo padrão.

Enquanto na Colômbia compete à Corte a proteção da integridade e supremacia da Constituição no exercício da função jurisdicional (artigo 24) (África do Sul, 1996), ficando a seu cargo decisões e revisões exclusivamente relacionadas à matéria constitucional, na África do Sul a Constituição alarga o âmbito de atuação da CCSA. Neste caso, além da matéria constitucional é competência da Corte a análise de qualquer outro assunto que considere suscitar questão de direito discutível e de interesse público e geral, concedendo uma autorização para recurso com estes fundamentos (artigo 167) (África do Sul, 1991).

No Brasil, o STF é o órgão de cúpula do judiciário brasileiro, ao qual compete a guarda da Constituição, exercendo controle difuso e/ou concentrado de constitucionalidade, em sede de competência originária e recursal, nos termos do artigo 102 da CF/88 (Brasil, 1988). O Supremo Tribunal detém o poder de última palavra na estrutura judiciária brasileira, dentre elas e, sobretudo, os direitos socioeconômicos.

O STF possui uma série de atribuições que lhe são constitucionalmente estabelecidas especialmente no artigo 102. Dentre as atribuições do Tribunal destacam-se a sua competência penal, para julgar os chamados “remédios constitucionais”, além de decidir sobre questões de constitucionalidade e inconstitucionalidade (Brasil, 1988). Com a Emenda Constitucional - EC 45/2004, ainda foi definida a possibilidade do STF “[...] aprovar, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, súmula com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 103-A da CF/1988)” (Brasil, 2004).

Diferente do que ocorre na Colômbia e África do Sul, o STF não se trata exclusivamente de uma Corte Constitucional, porque ora assume esse papel, ora atua como Tribunal Superior de revisão. Nos países analisados esta função é dividida em dois órgãos judiciários autônomos. Além dessa particularidade convém também ressaltar que o STF passeia por um largo muito maior de matérias e, inclusive, de volume de julgamento (Rosevear, 2018). A análise do STF neste estudo, recai especificamente na sua atuação enquanto Corte Constitucional.

Desde a sua criação a CCC desempenhou papel atuante nas decisões que envolvem o direito à saúde. Além de decidir mais de mil casos explicitamente a partir de 1991, também emitiu inúmeros acórdãos quanto às obrigações do Estado em respeitar, proteger e cumprir o direito à saúde (Yamin et al., 2011). Em 1993 a Corte proferiu a Sentencia T-328 de 1993. Apesar de os pedidos do autor não contemplarem diretamente uma demanda de saúde ou prestações de saúde, dentre as suas alegações concentram-se questões que envolvem tais matérias. A decisão (e não a sua análise propriamente dita), foi considerada pelo estudo porque a CCC firmou um entendimento que orientou a sua atuação em matéria de saúde nas decisões que seguiram - saúde enquanto um estado “variável”, de acordo com cada caso concreto.

Até o ano de 1998, a CCC desenvolveu vasta jurisprudência (Ramirez, 2013) de interpretação constitucional com relação ao direito à saúde que pode ser considerada controvertida. A jurisprudência da Corte consolidou interpretação sobre o direito à saúde em dois aspectos específicos: adquire status de direito fundamental, quando o direito à vida ou outro direito fundamental está em risco, caso em que é passível de reclamação mediante ação de tutela; e não é considerado um direito fundamental se não se relaciona com outros direitos, adquire o caráter de benefícios e podem ser executadas por outros meios de defesa, além da tutela.

No primeiro aspecto, a CCC reconheceu a relação da saúde com o direito à vida e dignidade humana (Corte Constitucional da Colômbia [CCC], 1992; Corte Constitucional da Colômbia [CCC], 1998), com a acolhida da tese de fundamentalidade do direito à saúde por conexão, alargando as possibilidades de manejo da ação de tutela se o direito à saúde guarda relação com outros direitos (Corte Constitucional da Colômbia [CCC], 1992; Corte Constitucional da Colômbia [CCC], 1998).

A jurisprudência da Corte se destacou durante este período no início dos anos 2000 e foi até objeto de críticas neste sentido afirmam Young e Lemaitre (2013) pela concessão de medicamentos antirretrovirais (para tratamento do HIV/AIDS), medicamentos onerosos para o tratamento do câncer e por ordenar o tratamento de pacientes no exterior se na Colômbia não havia o tratamento adequado, por exemplo. Além de aprovar outros tipos de atendimentos médicos, como implantes mamários, administração de hormônios para crescimento, dentre outros (Yamin et al., 2011).

Ainda no ano de 2000, a Corte proferiu a Sentencia T-204/00, primeira decisão objeto de análise. A Corte confirmou a variabilidade do direito à saúde e seguiu o raciocínio anteriormente adotado. Mas firmou a tese de fundamentalidade, reconhecendo a sua intrínseca relação com a dignidade humana e com a vida e com o conceito de bem-estar (Sentencia T-204/00).

Da Sentencia T-760/08 é possível extrair, em primeiro lugar, que a Corte interpreta o direito à saúde previsto da CP/91 de forma restritiva. Essa interpretação se coloca na medida em que a Corte estabelece que o direito à saúde não é absoluto ou ilimitado e imediatamente realizável. Segundo a Corte, o principal critério (ainda que não exclusivo) para determinar quais os serviços mínimos de saúde que cada um tem direito é o conceito científico médico (item 4.1.2 da decisão). (Sentencia T-760/08, 2008).

Embora possam surgir argumentações sobre o mérito, questionando o posicionamento da Corte - e até mesmo as suas repercussões, como será trabalhado adiante -, o ponto a que se quer chegar é que a Corte além de definir a abrangência do direito constitucionalmente estabelecido parece também ter determinado as suas hipóteses de justiciabilidade. As repercussões desse posicionamento serão avaliadas adiante.

Além disso, a Corte considerou que a saúde está relacionada e é indispensável para garantia de outros direitos, mas não de forma absoluta. Nesse sentido, o âmbito de proteção constitucional para acesso aos serviços de saúde é apenas indispensável para conservar a saúde quando estiver em risco a sua vida, integridade pessoal ou dignidade e segundo prescrição médica (Sentencia T-760/08, 2008).

Outros pontos da decisão e da própria jurisprudência da Corte se sobressaem. A despeito de a CCC ter decidido, principalmente aspectos curativos do direito à saúde e não tenha abordado de forma direta aspectos preventivos, é notável que a Corte levou em consideração os últimos.

Analisadas as decisões da CCC, passa-se, então, para a avaliação do posicionamento da CCSA no contexto sul-africano. Diferente do que ocorre na Colômbia, a juris- prudência da Corte sul-africana é bastante restrita.

Os casos analisados foram CCT 32/97; CCT 11/00 e CCT 8/02, popularmente conhecidos como casos “Soobramoney”; “Grootboom”; e “TAC”. Para tanto, levou-se em conta os mesmos critérios estabelecidos de análise de jurisprudência da CCC. As decisões analisadas foram extraídas diretamente do site da CCSA.

Na primeira decisão, a Corte determinou uma interpretação constitucional bastante restritiva do direito à saúde, enquanto um direito não absoluto e que, portanto, pode ser limitado de uma forma ou outra, como no caso de recursos (comprovadamente) escassos. A CCSA considerou que, neste caso, não houve demonstração de falha estatal. Este posicionamento é alvo de críticas negativas (Ngwena, 2013).

O segundo caso analisado “Grootboom” (Corte Constitucional da África do Sul [CCSA], 2000), como referido, trata do direito à moradia, analisado e julgado pela CCSA em uma demanda coletiva. Em Grootboom houve uma percepção e análise mais ampla por parte da Corte dos direitos socioeconômicos, o que influenciou diretamente o direito à saúde. A Corte considerou, com base nas seções 25 a 29 da CP/96, que o direito à saúde guarda relação com outros direitos socioeconômicos (alimentação, água e seguridade social, adequação, direitos da criança e educação), ao estabelecer que “esses direitos precisam ser considerados no contexto do conjunto de direitos socioeconômicos consagrado na Constituição” (Corte Constitucional da África do Sul [CCSA], 2000, p. 15). Além disso, adotou uma interpretação mais extensiva destes direitos, tendo como base, inclusive em instrumentos internacionais de proteção. Pode-se dizer que nessa decisão a Corte lançou um olhar diferente para o problema que lhe foi colocado.

O caso TAC (Corte Constitucional da África do Sul [CCSA], 2002) envolveu o que a CCSA considerou “o desafio mais importante que a África do Sul enfrenta desde o nascimento da luta pela democracia” (Corte Constitucional da África do Sul [CCSA], 2002).

As questões principais tratadas pela Corte no julgamento dizem respeito à interpretação das seções 27 e 28 da CP/96, para decidir sobre o fornecimento público de nepravina, a fim de estabelecer: 1) “o direito concedido a todos de ter acesso aos serviços públicos de saúde e o direito das crianças a receber proteção especial” (Corte Constitucional da África do Sul [CCSA], 2002, p. 5); e 2) “se o governo é constitucionalmente obrigado e deve ser compelido a planejar e implementar imediatamente um programa eficaz, abrangente e progressivo para a prevenção da transmissão do HIV de mãe para filho em todo o país” (Corte Constitucional da África do Sul [CCSA], 2002).

A Corte seguindo a orientação da decisão anteriormente analisada, avaliou que, naquele caso, a questão que se colocava era analisar “[...] se as recorrentes demonstraram que as medidas adotadas pelo governo para fornecer acesso aos serviços de saúde para mães e seus bebês recém-nascidos soropositivos não cumprem as obrigações estabelecidas pela Constituição” (Corte Constitucional da África do Sul [CCSA], 2002).

A conclusão da Corte seguiu os mesmos critérios e o mesmo rumo da decisão anteriormente analisada. A CCSA, analisando a política relativa ao HIV/AIDS em todas as suas particularidades, concluiu que o Estado falhou em cumprir o que estabelece a seção 27 (1) e (2) da CP/96 ao deixar de “[...] realizar progressivamente os direitos das mulheres grávidas e seus filhos recém-nascidos para que tenham acesso a serviços de saúde para combater a transmissão do HIV de mãe para filho” (Corte Constitucional da África do Sul [CCSA], 2002).

No Brasil, foram analisadas as decisões proferidas pela Corte na “Medida Cautelar na Pet 1246 MC/SC” “RE-271.286/2000 (RS)” e “RE-657.718/2019 (MG)”. No que refere ao direito à saúde, a primeira decisão no âmbito do STF relevante para a análise realizada, pelas razões já estabelecidas, é a decisão proferida em 1997 pelo Ministro Celso de Mello em sede de Medida Cautelar na Pet 1246 MC/SC - Santa Catarina, que envolveu menor impúbere portador de “Distrofia Muscular de Duchene” (Supremo Tribunal Federal [STF], 1997). Segundo consta na decisão não dispunha de condições para custear o tratamento. Na decisão, a Corte concebe o direito à saúde de forma irrestrita e de aplicabilidade imediata, ou seja, não reconhece na decisão quaisquer limitações a este direito.

A Corte também considera o direito à saúde como indispensável para a garantia de outros direitos, especificamente, o direito à vida. Essa decisão é apontada como “estopim” para o que decorreria nos próximos anos: a massificação de ações pleiteando medicamentos relacionados ao tratamento da AIDS. A decisão proferida no RE-271.286 no ano de 2000, tendo novamente como Relator o Ministro Celso de Mello, é emblemática neste sentido e, por isso, será adiante analisada.

O segundo caso, trata-se de uma demanda individualmente ajuizada por paciente com HIV/AIDS, segundo consta na decisão, destituído de recursos. Requer-se o fornecimento gratuito de medicamentos para o tratamento. A Corte confirmou a decisão do Tribunal em grau inferior e condenou solidariamente o Município de Porto Alegre e o Estado do Rio Grande do Sul a fornecerem gratuitamente medicamentos necessários ao tratamento da AIDS, nos casos que envolvessem pacientes portadores do vírus HIV e destituídos de recursos (Supremo Tribunal Federal [STF], 2000).

A interpretação da Corte em comparação com a decisão anteriormente analisada é similar, mas com diferenças que neste estudo foram consideradas relevantes. Novamente o STF interpretou o direito à saúde enquanto uma garantia imediatamente realizável e de impostergável realização pelo Poder Público e “indissociável do direito à vida”. Essa afirmação é feita por diversas vezes ao longo da decisão (Supremo Tribunal Federal [STF], 2000).

O terceiro e último caso, no julgamento do RE-657.718/2019/MG, o STF concluiu pela constitucionalidade do artigo 19-T da Lei 8.080/1990, que veda, em todas as esferas de gestão do SUS, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento experimental ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), além de fixar parâmetros com repercussão geral reconhecida com relação à matéria. Predominou o posicionamento do Ministro Luís Roberto Barroso que, mesmo reconhecendo a Anvisa como órgão com capacidade para definir sobre a segurança de um medicamento, entendeu que o direito à saúde não deve ser diminuído em razão do dever constitucional do Estado. O entendimento foi firmado no sentido de que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais, segundo a Corte, aqueles sem eficácia comprovada. Mas, considerou, excepcionalmente possível (pela via judicial) o fornecimento de medicamentos fora das listas do SUS, mas registrados perante a Anvisa ou, quando submetido o medicamento a registro, mas ainda não registrado no caso de mora razoável da Agência - com base em critérios estabelecidos no voto - e, em sendo comprovada a hipossuficiência do demandante (Supremo Tribunal Federal [STF], 2019).

Diante da análise das decisões vislumbra-se semelhanças e diferenças entre os posicionamentos adotados pelas Cortes. Em semelhança, tanto a CCC quanto a CCSA conceberam o direito à saúde constitucionalmente estabelecido enquanto um direito que não é absoluto e, portanto, limitado, diferente da interpretação do STF. Do mesmo modo, nos dois primeiros casos, na maioria das decisões avaliadas (com exceção do caso “Soobramoney”, onde a CCSA parece ter sido omissa sobre esse aspecto) as Cortes consideraram, em diferentes graus, que estes direitos guardam íntima relação com o direito à vida e com a dignidade humana, assim como no Brasil.

3. A REPERCUSSÃO DO POSICIONAMENTO DAS CORTES E COMO AS EXPERIÊNCIAS DA COLÔMBIA E DA ÁFRICA DO SUL PODEM CONTRIBUIR COM O BRASIL

As experiências do Brasil, Colômbia e África do Sul, parecem adequadas para comparação. Apesar das diferenças, os três países se identificam por históricos autoritários, de acentuada discriminação e desigualdade socioeconômica. De modo que a experiência de exploração e desigualdade social e os seus resultados possam ser consideradas similares.

A análise comparatista envolveu, sobretudo, avaliação constitucional e jurisprudencial. Não se ignora que a forma pela qual as decisões repercutiram nos cenários dos países foi de acordo com contextos próprios, sistemas jurídicos e de saúde, próprios. O que afeta, obviamente, custos e benefícios. Cada uma das jurisculturas possui as suas particularidades.

Como foi possível perceber, ainda que o texto constitucional dos três países indique pistas, não há em nenhuma das três Constituições uma definição clara sobre a abrangência do direito à saúde. Nesse sentido, a primeira constatação a ser feita é que a CCC e a CCSA, ao interpretarem o direito à saúde constitucionalmente estabelecido, consideram que este direito em menor ou maior medida é passível de restrições. A perspectiva de “restrições” da CCC é questionável, mas esse ponto será melhor trabalhado adiante. No caso brasileiro, por outro lado, nas três decisões do STF analisadas, a Corte considera o direito à saúde absoluto e, nas palavras de Rosevear (2018) “(quase) imediatamente realizável”.

Brasil, Colômbia e África do Sul possuem algumas semelhanças, mas quando se analisa a ótica de atuação de suas Cortes com relação aos direitos socioeconômicos e, especialmente o direito à saúde, nota-se que a América Latina e a África do Sul, ao longo dos anos, trilharam caminhos diferentes na prática de litigiosidade e “justiciabilidade” do direito à saúde (Brinks & Gauri, 2008). Os dois primeiros países latino-americanos se destacam pelo alto volume contencioso de demandas individuais em saúde e o último apresenta um cenário bastante diferente, com um número muito reduzido de ações judiciais, em sua maioria, ações coletivas (Maestad et al., 2011). Isso faz com os três países tenham “experiências de justiciabilidade” diferentes (Young & Lemaitre, 2013).

No caso brasileiro a crítica mais usual que se faz à justiciabilidade dos direi- tos sociais, há algum tempo, é que a sua justiciabilidade “ultrapassa os limites institucionais democráticos e constitucionais” (Machado, 2012; Valle, 2009; Souza Neto, 2008). Não obstante, mesmo diante de todas as críticas, ao longo dos anos, o STF “[...] se tornou um ator incontornável na formulação e execução de políticas públicas” (Vasconcelos, 2020).

Os precedentes do STF vêm afirmando a possibilidade de um amplo controle das políticas públicas, sobretudo na área da saúde, especialmente quando a omissão ou a deficiência no agir do Estado compromete a eficácia do direito fundamental discutido.

No campo onde o traçado das próprias políticas públicas em execução é ainda insuficientemente denso ou por vezes sequer existe, a margem de alternativas postas ao controle jurisdicional aumenta, já que ausente o critério de racionalidade formal emanado da lei. Essa é a razão para advertir-se quanto aos riscos de regressão decorrentes do favorecimento ao controle judicial de políticas públicas, ao menos no modelo substitutivo desenvolvido ordinariamente na crônica da jurisprudência nacional (Valle, 2013).

O texto constitucional brasileiro não determina a abrangência do direito à saúde e, portanto, essa definição fica a cargo do intérprete. Parte da interpretação do STF, como visto, pode decorrer de uma aplicação do texto constitucional brasileiro. Com relação esse ponto, possivelmente, a maior lição do caso Soobramoney e a posterior mudança no posicionamento da CCSA seja a indicação de que este não é o caminho mais adequado. Naquele julgamento a CCSA considerou “aplicar as obrigações formuladas na Constituição e não fazer inferências” (Corte Constitucional da África do Sul [CCC], 1997). De acordo com Ngwena (2013) , “[...] a tarefa da Corte pareceu estar limitada a conduzir uma revisão judicial, no sentido tradicional, atendo-se mais à forma do que ao conteúdo da decisão”. De acordo com o autor “a justiciabilidade do direito à saúde deve ser compreendida como algo muito maior do que a simples inscrição deste direito na constituição” (Ngwena, 2013).

A interpretação por parte do STF do direito à saúde desde a primeira decisão analisada em 1997 é denominada como “jurisprudência do direito a tudo” (Ferraz, 2019). Ocorre, também, que diferente do que ocorre no cenário judicial onde a saúde é interpretada como “garantia absoluta”, a realidade fática é bem diferente. O direito à saúde não é incondicionalmente assegurado. Na prática, essa garantia defronta com limitações de diferentes ordens, sobretudo a de disponibilização de recursos - e não propriamente escassez de recursos. Assim, “a interpretação extremamente expansiva conferida ao direito à saúde foi muito além do que a norma constitucional e a própria realidade autorizam” (Ferraz, 2019).

A técnica até então utilizada pelo STF demonstra que a Corte está em cima do muro (Brustolin, 2020). Porque tem a judicialização sabidamente como um problema para o qual busca alternativas fora do espaço decisório (Vasconcelos, 2020), sem antes rever sua própria atuação.

Mesmo com a guinada expressiva no número de demandas de saúde a partir de 2000 (Ferraz, 2019), ano da segunda decisão analisada, e todos os esforços para contenção da judicialização (notadamente aqueles concentrados nos anos de 2009, 2010 e 2011), em termos gerais, a Corte manteve a sistemática adotada ainda em 1997. Em contrapartida, vem articulando medidas por meio do CNJ com a finalidade de instruir instâncias inferiores na obstrução de demandas nessa natureza, de forma completamente contraditória. A Corte utiliza-se do CNJ, um órgão administrativo, em busca de soluções que não são de sua competência (Vasconcelos, 2020).

Com o julgamento do “RE 657.718/2019 (MG)” em 2019 esperava-se que o STF apresentasse uma solução razoável para esse impasse. No entanto, novamente, o Tribunal se esquivou e apresentou um posicionamento contraditório (Vasconcelos, 2020). A Corte seguiu o padrão decisório anteriormente adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), para o qual a concessão de medicamentos experimentais não pode ser judicialmente garantida, mas se o medicamento estiver registrado na ANVISA, é passível de execução judicial. O STF, em sua decisão, pouco inovou. Mantendo este entendimento, fixou três critérios segundo os quais é possível a concessão judicial dos medicamentos (Supremo Tribunal Federal [STF], 2019).

Ocorre que, como visto no capítulo anterior, em termos práticos, o posicionamento do STF está muito longe de resolver o problema. Isso porque a grande maioria dos medicamentos que tem potencial para gerar impactos orçamentários comprometedores possuem registro na Anvisa e os medicamentos com mais concessões são os que demandaram em maiores custos no ano de 2016. Fora isso, os custos foram despendidos a nível federal (Ferraz, 2019).

Assim, ao estabelecer como critério de justiciabilidade que “2) A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial” (Supremo Tribunal Federal [STF], 2019) e “4) As ações que demandem o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão ser necessariamente propostas em face da União (Supremo Tribunal Federal [STF], 2019) a Corte não gera nenhum tipo de restrição ao direito à saúde e com isso segue a máxima do quanto mais direitos, melhor.

Silva (2010) promove uma crítica inerente à pesquisa ao afirmar que em alguns casos é equivocada a ideia que se tem sobre a tese do “quanto mais, melhor” com base no instituto da dignidade humana, que é utilizada como fundamento em grande parte das decisões judiciais.

Da atuação da CCC, CCSA e do STF percebe-se que o posicionamento predominante é de que o direito à saúde guarda relação íntima com outros direitos, especialmente, a vida e a dignidade humana. Não obstante, nas decisões que exploraram essa fundamen- tação, a técnica utilizada pelas duas primeiras Cortes, especialmente a segunda, tem uma robustez muito mais profunda, do que no caso brasileiro.

Com base na exclusiva análise textual das decisões estudadas não é possível assegurar, que as Cortes privilegiam a saúde curativa ou preventiva, bem como se consideram o interesse coletivo. Não obstante, é possível tecer algumas considerações neste sentido.

Das três decisões colombianas analisadas, todas referiam-se a ações de tutela individuais. A “Sentencia T-760” foi uma reunião de tutelas individuais. Por outro lado, no caso sul-africano, apenas uma das decisões avaliadas era individual (caso Soobramoney) e as outras duas, coletivas. Além disso, a CCSA parece ter sido a única Corte que efetivamente levou em conta o interesse coletivo em suas decisões.

O STF parece ignorar todos os problemas que refletem do seu comportamento e ainda não foi capaz de determinar a abrangência do direito à saúde e isso gera inúmeras preocupações, especialmente em termos orçamentários. É neste sentido que a interpretação da Corte é questionável quando comparada com as experiências estrangeiras. Foi possível perceber, ao menos em termos de definição das limitações do direito constitucionalmente estabelecido, que as Cortes da Colômbia e da África do Sul adotaram um posicionamento que definiu de forma clara qual a abrangência e os limites do direito à saúde com base nas suas Constituições.

Na Colômbia, isso ocorreu de forma tardia, comparado ao caso da África do Sul. Enquanto na África do Sul a atuação da CCSA, desde a sua primeira atuação foi pautada por muita cautela, mesmo sendo perceptível nas passagens das duas primeiras decisões colombianas avaliadas que a Corte compreendia o direito à saúde como passível de restrições, é apenas na “Sentencia T-760”, em 2008, e após o crescimento expressivo de litígios individuais por meio de tutela, que a CCC definiu e, inclusive, exemplificou as limitações de justiciabilidade do direito. Ainda assim, essas “limitações” são questionáveis.

Apesar dos estudos que sugerem a judicialização enquanto um problema que decorre dos atos da própria Administração Pública (Faria, 2014; Hachem, 2013; Freitas, 2018), estudos recentes, na contramão do caminho trilhado pela produção acadêmica, têm apontado que provavelmente, tanto o problema quanto a solução da judicialização da saúde concentram-se no próprio STF (Insper, 2019; Vasconcelos, 2020).

A parte das críticas que poderiam ser tecidas, a decisão foi considerada um modelo mundial em atuação progressiva (Yepes, 2007; Young & Lemaitre, 2013), diante das mudanças estruturais que a Corte determinou em termos de políticas públicas. Ocorre que, na prática, essa decisão não surtiu o efeito esperado, tanto em termos de implementação por parte do Estado, quanto não foi capaz de frear o ajuizamento de tutelas individuais que cresceram principalmente em 2008 e nos anos que seguiram.

De acordo com Young e Lemaitre (2013) o período entre 2009-2010 foi marcado por protestos e crises no país. Isso porque, em resposta à decisão do Tribunal, o governo adotou dez decretos que reformaram o sistema de saúde em janeiro de 2010 com medidas de austeridade com relação à política orçamentária que revelaram um cenário em que “empresas sem escrúpulos manipularam reembolsos e direitos financeiros complexos sob o regime de seguro. Juntos, esses fatores provocaram crises e protestos fiscais” (Young & Lemaitre, 2013).

Prada e Chaves (2018) , dentre outras conclusões, apontam que a interferência do judiciário no espaço social forçou ajustes regulatórios do poder público. De acordo com Young e Lemaitre, todos os problemas que foram anteriormente elencados decorreram, justamente, da atuação do judiciário, que despertou um senso de direito à saúde na população (Young & Lemaitre, 2013).

Para Young e Lemaitre (2013) , muitos problemas que decorreram da atuação do judiciário colombiano e, especialmente, da postura adotada pela CCC. Para as autoras, a experiência que decorre da atuação da Corte, atrelada à privatização da saúde na Colômbia e a má administração do governo “resultaram em um sistema que incentivava o aumento das despesas governamentais, que nem sempre se refletiam na melhoria da prestação de serviços de saúde” (Young & Lemaitre, 2013).

Não é demais reforçar que o contexto em que se insere a busca pelo judiciário para resolver questões de saúde na Colômbia, é marcado por alta conflitualidade. Prada e Chaves (2018) revelam que na Colômbia, “[...] cada ação de saúde está vinculada ao custo econômico e tem um comprador e vendedor”. A pesquisa realizada pelos autores indica que “empresas de suprimentos médicos, especialmente empresas farmacêuticas, acumularam capital e poder durante o período compreendido entre 1990 e 2013, enquanto provedores públicos e privados” (Prada & Chaves, 2018).

Young e Lemaitre (2013) ao analisarem essa situação, concluem que a experiência judicialização colombiana e privatização da saúde, atrelada a má administração do governo “[...] resultaram em um sistema que incentivava o aumento das despesas governamentais, que nem sempre se refletiam na melhoria da prestação de serviços de saúde” (Young & Lemaitre, 2013). Talvez a maior preocupação que decorreu disso é a falta de crescimento nos serviços preventivos de saúde (Young & Lemaitre, 2013).

Além disso, no período posterior à “Decisão T-760”, a Colômbia, apesar de adotar a definição de saúde mundialmente estabelecida, assim como o Brasil, ainda estava atrelada a uma definição meramente curativa de saúde e se afastava de considerar o seu aspecto preventivo diante daquele cenário.

A CCC teve grande influência no caminho que seguiu a judicialização da saúde naquele país e que dessa postura decorreram inúmeros problemas. Atrelado a esse fator, não se pode ignorar o pano de fundo: a crescente expansão e consolidação do mercado de saúde, sobretudo o mercado farmacêutico.

Enquanto isso, a CCSA adotou nos casos “Grootboom” e “TAC” uma técnica que segue os parâmetros da tese proposta por Silva com a aplicação da ideia de “suporte fático”, pouco conhecida no direito constitucional e própria do direito administrativo (Silva, 2010; Sunstein, 2001), o mesmo não ocorreu por parte da CCC e do STF. De acordo com Sunstein (2001) “o que o Tribunal Constitucional da África do Sul basicamente fez foi adotar um modelo de direito administrativo dos direitos socioeconômicos”.

De acordo com Sunstein (2001) a utilização desta técnica é uma alternativa diante das “legislaturas dos países pobres e até menos pobres, que não pode facilmente garantir que todos vivam em condições decentes” (Sunstein, 2001). Isso porque não se pode desconsiderar que todos os direitos, fundamentais positivos ou negativos, ou seja, que requerem ação ou omissão estatal implicam em custos (Sunstein, 2001; Silva, 2008), porque requerem uma dispensação orçamentária para tanto.

Na África do Sul, a postura da CCSA se mostrou muito mais cautelosa na interpretação da Constituição. As disposições da Constituição sul-africana com relação aos direitos socioeconômicos - ao estabelecer que o Estado deve tomar medidas razoáveis, dentro dos recursos disponíveis - “não cria ou desabilita claramente a execução judicial” (Sunstein, 2001). Assim, de acordo com Sunstein (2001, p. 6), o texto constitucional poderia sugerir duas interpretações: 1) a execução das medidas é reservada a atores não judiciais dentro do Estado; 2) quando o Estado não age, sendo capaz de fazer muito mais, financeiramente, parece violar a norma constitucional. A CCSA, nos casos analisados, no que se refere ao direito à saúde, resolveu a questão com base na segunda premissa, concluindo que os direitos socioeconômicos no país “são, pelo menos, em certa medida, justiciáveis” (Sunstein, 2001). De acordo com Sunstein (2001), no caso “Grootboom” “[...] a abordagem da Constituição sulafricana no Tribunal responde a uma série de perguntas sobre a relação adequada entre direitos econômicos, direito constitucional e deliberação democrática”.

A técnica utilizada pela CCSA é considerada inovadora e para Landau (2018) as repercussões do posicionamento da Corte e o baixo número de demandas individuais decorrem, principalmente, da técnica utilizada. Landau (2018) considera que “parte da fama dos casos sul-africanos decorre da abordagem distinta do Tribunal. O Tribunal combina um conjunto de recursos que, a meu conhecimento, não são encontrados em nenhum outro tribunal no mundo (Landau, 2018).

Mesmo no caso “Soobramoney”, onde a atuação da CCSA foi objeto de críticas (Ngwena, 2013; Sarmento, 2009). Young e Lemaitre (2013) , consideram que a Corte adotou uma orientação utilitária, apesar de codificada com a linguagem de direitos, aceitando que a saúde pública deveria ser organizada para o bem-estar de todos, e não tendenciosa para aqueles cujas reivindicações haviam conseguido chegar aos tribunais. E que a CCSA ressaltou que a escassez de recursos e que o racionamento era uma realidade cotidiana, acolhendo o entendimento que a saúde pública deveria ser organizada para o bem-estar de todos, levando em conta o interesse coletivo.

De modo geral, considera-se que a atuação da CCSA é cautelosa e consciente de suas limitações em termos de competências constitucional e institucional (Ngwena, 2013). Segundo Sunstein (2001, p. 11) “[...] a abordagem da Constituição sul-africana pelo Tribunal responde a uma série de perguntas sobre a relação adequada entre direitos econômicos, direito constitucional e deliberação democrática”. Ngwena (2013), apesar das críticas à atuação da CCSA no caso “Soobramoney”, considera que o caso “TAC” representa a capacidade da Corte em proporcionar “remédios tangíveis para as violações do direito à saúde mesmo quando há implicações orçamentárias”. Além disso, “[...] a Corte Constitucional sul-africana mantém a cautela e, mesmo quando encontra violações de direitos socioeconômicos, permanece consciente de suas limitações em termos de competências constitucional e institucional” (Sunstein, 2001).

No caso das Cortes que integram a América Latina (Brasil e Colômbia) a compreensão que a própria Corte tem sobre o seu papel no desenho institucional foi completamente diferente. Enquanto a CCSA demonstrou-se consciente de todas as limitações constitucionais e institucionais, a CCC e o STF adotaram posturas notavelmente mais interventivas.

Rosevear (2018) , analisando o caso da África do Sul e do Brasil afirma que essa diferença se justifica, fundamentalmente por três fatores específicos: 1) a cultura judiciária adotada; 2) as diferenças entre a natureza da educação jurídica nos dois países; 3) na natureza do julgamento como atividade profissional. Além disso, também são três os aspectos que contribuíram para a divergência em termos de desenho institucional: 1) o número real de juízes em cada jurisdição; 2) a doutrina do precedente; 3) a natureza dos tribunais de ponta. Com relação ao último aspecto, se destaca a quantidade de matérias diferentes julgadas pelo STF diante da sua dupla competência para atuação, hora como Corte Constitucional e hora como Tribunal Superior.

Não se pretende discutir a (i)legitimidade do judiciário na criação de políticas públicas, mas avaliar se a atuação judicial ainda que para complementação de políticas públicas desenvolvidas pelo Poder Executivo, da forma como vem sendo aplicada pelo STF é o melhor caminho a ser seguido.

O Poder Judiciário brasileiro, especificamente o STF, detém o poder de definir a abrangência do direito à saúde na fase interpretativa, diante da indefinição constitucional e, assim, ditar as regras do jogo do que é ou não tutelado. Nos casos de omissão ou deficiência no agir do Estado que comprometa a eficácia de direito fundamental, o artigo 5º, § 1º, da CF/88 ao conferir aplicabilidade imediata a estes direitos possibilita eles sejam reclamados perante o judiciário. Essa tutela jurisdicional consensualmente designada nos trabalhos produzidos sobre o assunto como positiva, mas isso não a afasta dos problemas decorrentes.

No caso da saúde o texto constitucional ao garanti-lo em seu grau máximo e lhe conferir aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88) possibilita a justiciabi- lidade deste direito, este é um ponto que não parece ser discutível. Mas a justiciabilidade é livre de qualquer limitação? Com base na Constituição brasileira, não é possível evitar que demandas sobre essa matéria cheguem ao judiciário. O que parece maleável, pelo que já foi trabalhado até aqui, é a interpretação judicial.

Em contrapartida as experiências estrangeiras foram capazes de demonstrar que o Brasil tem a aprender com a Colômbia e com a África do Sul. Dos posicionamentos da CCC e da CCSA e repercussões nos cenários dos países é possível extrair algumas lições. Em primeiro lugar que a percepção do direito à saúde por parte do STF provavelmente está equivocada. Em segundo, que a jurisprudência da Corte precisa ser reformulada e a Corte precisa estabelecer a abrangência do direito à saúde de forma clara e objetiva.

Com abordagem da CCC, que mais se aproxima da atuação do STF, verifica-se, pelas repercussões que seguiram que este provavelmente não seja o melhor caminho a ser trilhado no Brasil. Com posicionamento do CCSA, por outro lado, é possível perceber que uma atuação mais racional do STF, limitando a justiciabilidade do direito à saúde, existe a probabilidade de se promover mudanças importantes em termos orçamentários e nos rumos da judicialização, apenas com a modificação da jurisprudência do STF.

Não é possível estimar e este nem consiste o propósito, mas é certo que a judicialização implica na dispensação de recursos para além da saúde, impacta, também no orçamento judiciário. Do mesmo modo que a mobilização realizada por meio do CNJ em esforços empreendidos na busca de mecanismos para conter a judicialização certamente também está implicando em (altos) custos para o Estado.

Ao se abster de definir uma limitação, a Corte deixa a cargo de magistrados de instâncias inferiores a deliberação sobre conceder ou não determinada medicação. Essa postura, conforme dados apresentados e estudos citados na seção anterior, acarreta inflação judiciária. Então, muito provavelmente, a manutenção da postura adotada há cerca de vinte anos por parte da Corte, não permite vislumbrar um futuro otimista em termos de serviços de saúde e de estabilidade do próprio SUS.

O STF - parecendo ignorar todos os problemas que refletem do seu comportamento - ainda não foi capaz de determinar a abrangência do direito à saúde e isso gera inúmeras preocupações, especialmente em termos orçamentários. É neste sentido que a interpretação da Corte é questionável quando comparada com as experiências estrangeiras.

É claro que a atuação da Corte, por si só e de forma isolada não acarreta este resultado. Em primeiro lugar porque há um consenso de que a alavancada da indústria farmacêutica e o desenho institucional do sistema de saúde brasileiro incentivaram a crescente judicialização da saúde no Brasil (Biehl, 2013; Biehl et al., 2009; Biehl & Petryna, 2016; Ferraz, 2009). Em segundo, porque vive-se um período de políticas de austeridade que comprometem o orçamento de saúde no Brasil. Esse não é um fenômeno recente (Bravo et al., 2020), mas que sabidamente tem se acentuado nos últimos anos e isso é motivo de preocupação. Se iniciou no governo Temer, no qual se destaca a “Emenda do Teto de Gastos Públicos” (Emenda Constitucional 95/2016) que instituiu um novo regime fiscal no país e determinou “aplicações mínimas em ações e serviços públicos de saúde” (Brasil, 2016) no país. A ocupação do cargo de Presidência da República, seguida por Bolsonaro, em termos de política de saúde, é apontada como “questionável e preocupante” (Bravo et al., 2020).

As autoras, ao fazerem uma análise do plano de governo e dos primeiros seis meses de Bolsonaro à frente da presidência, concluíram que a gestão se caracteriza por “medidas regressistas” em uma “conjuntura de barbárie social e retirada de direitos” (Bravo et al., 2020). As autoras registram, por outro lado, avanços na convocação e organização da 16ª Conferência Nacional de Saúde, um espaço democrático de debate, e a participação da comunidade com diversos movimentos sociais e de sua autonomia frente ao governo (Bravo et al., 2020). Mas essa que seria uma “consequência positiva”, quando comparada ao que ocorreu na Colômbia, deve ser analisada com cautela.

Nos últimos anos, a África do Sul tem chamado a atenção de pesquisadores. O contraste em número de litígios envolvendo demandas de saúde, quando comparada com países da América Latina, como Colômbia e Brasil, por exemplo, é o que se destaca. A África do Sul teve um número significativamente reduzido, quando comparado aos demais mencionados. Isso fez com que o país não fosse objeto de estudos mais densos durante anos e ainda hoje é pouco estudado (Andia & Lamprea, 2019).

CONCLUSÕES

Este trabalho partiu da análise de pesquisas que apontaram o próprio STF como ator principal da judicialização da saúde no Brasil. Corroborando esta conclusão, outros estudos citados ao longo do texto contribuem para a afirmação de que a repercussão do comportamento adotado pelo STF nas demandas de medicamentos provavelmente comprometerá o orçamento em saúde pública no Brasil.

A análise da jurisprudência do STF permitiu verificar que, a Corte, ao decidir os casos avaliados, concebe o direito à saúde como um direito absoluto, desconsiderando fatores externos de eventual restrição. A Corte, em suas decisões, não leva em conta o interesse coletivo. Desconsidera ainda, decisões em âmbito administrativo por órgãos legalmente competentes para avaliar os impactos da incorporação de um novo medicamento no sistema de saúde brasileiro e o seu custo-efetividade. Além disso, apesar de reconhecer a judicialização como um grave problema, mesmo quando poderia buscar outras alternativas de técnicas decisórias, mantém o seu entendimento judicial. Por outro lado, busca outras formas de solução para a judicialização, como, por exemplo, ações encabeçadas pelo CNJ, órgão que não detém competência para tanto, e ainda implica em mais custos para o Estado, não tendo sido objeto do estudo o levantamento e apuração, bem como eventuais impactos destes custos.

Diante dos contrastes que se inserem, realizou-se uma análise comparatista entre as jurisculturas do Brasil, da Colômbia e da África do Sul, buscando responder ao problema de pesquisa proposto. O desenvolvimento do trabalho contribuiu para a confirmação da hipótese. Nos três casos analisados, os contextos socioeconômicos dos países são marcados por elevada desigualdade e a promulgação de Constituições democráticas como marco (simbólico) de rompimento com períodos autoritários.

Essas iniquidades e os sistemas de saúde de cada um dos países refletiram se demandas judiciais de saúde, havendo variações tanto na postura adotada por cada uma das Cortes, quanto nas repercussões de suas decisões diante do posicionamento adotado.

O Brasil e a Colômbia, apesar de suas diferenças, possuem situações muito similares: as Cortes se destacam por uma atuação progressista em termos de saúde e concebem o direito à saúde de forma bastante similar e isso fomentou um alto índice de demandas judiciais em saúde. A diferença é que no ano de 2008 a CCC, tentando frear a avalanche de litígios individuais, proferiu importante decisão que avaliou e determinou mudanças diretamente nas políticas de saúde da Colômbia. Mesmo diante desta postura, a decisão não foi suficiente para frear a judicialização e, segundo apontam alguns estudos, provavelmente, tampouco para melhorar as prestações de saúde e a efetivação deste direito no país. O STF, por outro lado, até o ano de 2019 - ano em que foi proferida a última decisão analisada - sequer adotou uma postura decisória na tentativa de uma possível solução no Brasil.

Diferente do que ocorreu no Brasil e na Colômbia, a experiência da África do Sul foi completamente oposta. Mesmo com um sistema de saúde pública que apenas é capaz de atender uma mínima parcela da população e com os problemas herdados pelo Apartheid, houve uma baixa incidência de litígios individuais no país e prevalência de demandas coletivas, o que foi capaz de promover mudanças estruturais importantes no país. Há indícios de que isso se deve ao posicionamento da Corte e, mais especificamente, à técnica utilizada pela Corte. Além disso, nesse sentido, considera-se que a CCSA adotou a postura que democraticamente se considera a mais adequada. Ao restringir a justiciabilidade do direito à saúde, a Corte considerou as restrições externas no momento da ponderação. E, quando comprovada a ineficiência/deficiência na atuação do Estado, também determinou mudanças nas políticas públicas existentes, mantendo, assim, as regras do jogo democrático. Ainda que este não seja o propósito principal do trabalho, é importante mencionar para que estudos futuros que eventualmente problematizem a atuação judicial sua relação com a democracia, possam avançar com base em pesquisas que envolvam a experiência de outras jurisculturas, como, por exemplo, a África do Sul.

Considerando o exposto, o estudo conduz à conclusão de que, possivelmente, a solução para o problema da judicialização esteja sob as togas do próprio STF. Há evidências, de que restringir a justiciabilidade de medicamentos com base em critérios claros, racionais e específicos, é contribuir para a solução da judicialização da saúde, com base na experiência sul-africana.

Verificou-se, ao longo da pesquisa, que a abrangência do direito à saúde na CF/88 não compreende a justiciabilidade de medicamentos que se encontrem fora das listas dos SUS, quando já tiver sido realizada pesquisa de impacto orçamentário pelo órgão administrativo competente (Conitec). Somente em casos de omissão estatal, quando ausente pesquisa de impacto orçamentário ou quando esta não for suficiente para comprovar que a implementação do medicamento em custo/efetividade é capaz de comprometer o orçamento, definidos os critérios para tanto é que se tem situação passível de execução judicial, o que parece ser desconsiderado pelo STF. O caminho que parece mais adequado para o Brasil, constitucionalmente falando, é a limitação da justiciabilidade do direito à saúde no âmbito de medicamentos e para tanto é necessário que se leve em conta os pareceres do órgão administrativo no momento da decisão judicial.

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1 Tipo de análise considerada adequada por Legrand (2018, kindle), que leva em conta uma análise das características sociais, estruturais e culturais de cada país, para que seja possível reduzir ao máximo o alcance da violência que ocorre no momento da reapresentação do direito estrangeiro.

Recebido: 30 de Junho de 2021; Aceito: 16 de Outubro de 2021

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