Introdução
Em outubro de 2007, uma adolescente de 15 anos foi presa numa cela com 30 homens, no Pará (Brasil) e durante 26 dias foi vítima de tortura e estupros. A adolescente foi apreendida por tentativa de furto e submetida a tais condições por determinação de uma juíza (Coutinho, 2019). Apesar do fato ter chocado grande parte da população brasileira e se tornado um marco na luta por direitos humanos em contexto de privação de liberdade, nem todos os envolvidos foram identificados e à juíza foi aplicada uma pena de aposentadoria compulsória. O caso pode ser considerado uma exceção, dada a extrema violência que representa. Entretanto, evidencia a complexidade de um tema polêmico e alvo de debates recorrentes no contexto brasileiro: adolescentes em conflito com a lei.
A situação de conflito com a lei na adolescência é uma problemática presente em países com diferentes perfis sociais, culturais ou econômicos. E, no Brasil, está diretamente relacionada às vulnerabilidades sociais e diversas formas de exclusão a que adolescentes estão expostos, tais como econômica, territorial e no acesso à educação, o que explica as diretrizes protetivas da legislação brasileira (Lima et al., 2019; Santos & Legnani, 2019). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8069 (Presidência da República, 1990), trouxe avanço jurídico-normativo ao País, enfrentando contradições sociais que antecederam sua promulgação. A lei considera que crianças e adolescentes são, acima de tudo, sujeitos de direitos e pessoas em desenvolvimento (Garcia & Gonçalves, 2019). Diante da prática de ilícitos, o ECA objetiva não só a responsabilização do adolescente, mas também sua proteção e educação. Adolescentes entre 12 e 18 anos incompletos respondem pelos atos infracionais por meio do cumprimento de Medidas Socioeducativas (MSEs), orientadas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), Lei 12 594 (Presidência da República, 2012).
As MSEs devem ser determinadas em função das características da infração e circunstâncias sociofamiliares, bem como possibilitar que o adolescente supere sua condição, por meio da reinserção na sociedade (Ferrão et al., 2016). O tema é objeto de investigações de diferentes áreas do conhecimento, inclusive revisões de literatura sobre o contexto socioeducativo brasileiro (Coscioni et al., 2017; Lima et al., 2019). Contudo, há um contexto de desigualdade de gênero nesse âmbito, pois a maior parte das investigações é focada no estudo dos adolescentes, meninos, favorecendo a inobservância das singularidades do envolvimento das meninas nos atos infracionais (Aranzedo, 2015).
As adolescentes cometem menos delitos e de menor gravidade, mas apresentam especificidades nas vivências de situações de risco. Vinet e Bañares (2009) observaram em uma amostra chilena que há fatores de risco que não variam em função do gênero, como a relação com pares com envolvimento em atos criminosos e desajustes escolares. Contudo, o grupo feminino mostra maior exposição a alguns fatores como a vitimização no ambiente familiar por meio de violência, maus-tratos e/ou abuso sexual. O mesmo ocorre na realidade espanhola, na qual, embora haja diversas investigações sobre o tema, elas abordam a temática de forma generalizada, sem ter em conta uma perspectiva de gênero (Giménez, 2017).
Há diferentes formas de trabalhar com o conceito de gênero, desde àquela voltada a área biomédica, que se confunde com a noção de sexo, até perspectivas mais críticas. Em Ciências Sociais, Butler (1990/2015) buscou dissolver essa dicotomia, historicizando o corpo por meio do diálogo com a inscrição social, cultural e sua performatividade. Ela defende que o gênero está em constante construção e existiria uma sincronia com os fatores cultural e social, de acordo com o que é histórico e o que nos cerca imediatamente. Além disso, o gênero «estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas» (Butler, 1990/2015, p. 20).
Assim, é impossível separar questões de gênero do contexto e das interseções em que invariavelmente elas são produzidas e mantidas. Nesse sentido, é preciso considerar o recorte de gênero na realidade das adolescentes em conflito com a lei, pois elas possuem questões e demandas específicas que devem ser consideradas no atendimento e compreensão de sua situação. Dados mais recentes do Sinase, referentes ao ano de 2017, mostram que 26 109 adolescentes foram atendidos pelo sistema, sendo a maioria em medida de internação (68.2 %) e 2.5 % em internação eram do gênero feminino (Ministério da Mulher, da Família, e dos Direitos Humanos [MMFDH], 2019).
A literatura sobre MSEs indica que há no Brasil uma distância entre o que é preconizado pela lei e o que é efetivamente desenvolvido, pois há barreiras que impedem a efetivação das diretrizes legais no cotidiano das instituições (como a superlotação), espe cialmente em privação de liberdade (Coscioni et al., 2017; Lima et al., 2019; Scortegagna et al., 2019). Na internação, Machado e Veronese (2010) salientam que há poucas previsões jurídico-legais e políticas públicas referentes à discussão sobre gênero. Assim, as adolescentes são destinadas à invisibilidade e a proteção integral do ECA parece mais distante para elas.
Em torno de 86% das unidades para cumprimento das MSEs no Brasil são voltadas exclusivamente ao atendimento masculino, observando-se altos percentuais de lotação (MMFDH, 2019). De acordo com análise realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (2012), a superlotação nas unidades em Sergipe, onde este estudo foi realizado, era de 108%. Dito de outra forma, nestas unidades havia mais que o dobro das internações permitidas. Essa realidade é diferente para as meninas de Sergipe. Na unidade feminina, as condições de habitabilidade são, de forma geral, consideradas boas. No momento da pesquisa havia quatro adolescentes em privação de liberdade, apesar da unidade ter capacidade para 20.
Esse contexto não é o mesmo em todo Brasil, há estados que ainda não possuem unidades exclusivamente femininas, como Goiás e Roraima, sendo o atendimento realizado em unidades mistas. Além disso, algumas instituições reforçam estereótipos de gênero quando, por exemplo, retiram atividades profissionalizantes e promovem outras mais femininas como pintar unhas e cuidar da casa (MMFDH, 2019). Esse contexto reproduz o sistema prisional brasileiro dentro do qual mulheres têm pouca visibilidade e são colocadas enquanto transgressoras de determinado referencial feminino. O sistema reproduz preconceitos referentes aos papéis de gênero, promovendo exclusão das mulheres em relação a direitos básicos como sexuais, à saúde e reprodutivos (Carvalho & Jardilino, 2017). Isso ocorreria em função da construção social, cultural e histórica, que associa gênero a determinadas normas, valores e papéis sociais. Os homens devem ocupar o espaço público, demonstrando funções ativas na sociedade. Já às mulheres se restringem ao privado, posicionando-se ao lado ou atrás deles (Scott, 1995).
No sistema socioeducativo, observa-se diferenças de gênero até mesmo nos tipos mais frequentes de infração. Em 2017, do total de atos praticados (16 433), apenas 3.8% foram cometidos por meninas. Os meninos cometem mais roubo (2095) e tráfico de drogas (371); já entre elas o tráfico de drogas se sobrepõe (163), seguido de roubo (95) (MMFDH, 2019). E até mesmo no chamado «mundo do crime» a posição de subalternidade feminina é, muitas vezes, assumida como natural, presente no estabelecimento dos papéis de poder e prestígio na organização, por exemplo, do tráfico de drogas (Caldeira & Moreira, 2020). Diante disso, cabe considerar o papel do preconceito de gênero na situação dessas adolescentes.
Sabemos que a simples pertença à categoria mulher, numa sociedade patriarcal, pode promover desvantagens em todos os âmbitos da vida feminina, e que a desigualdade entre homens e mulheres é sustentada em bases ideológicas (Garrido et al., 2018). Especialmente no Brasil, ser mulher é fazer parte de um grupo vulnerável a situações de violência e preconceito (MMFDH, 2020). Há muitas definições, mas, preconceito, em essência, pode ser caracterizado enquanto «uma antipatia baseada em uma generalização defeituosa e inflexível pelo simples fato do indivíduo pertencer a determinado grupo social» (Allport, 1954/1979). Entretanto, o preconceito contra mulheres, o sexismo, possui especificidades.
No sexismo, a expressão do preconceito não ocorre apenas com o componente da antipatia ou desejo de distanciar o grupo da sociedade, como acontece com outras minorias sociais como os negros. Ele apresenta uma faceta ambivalente, pois não objetiva o distanciamento da mulher e sim sua aproximação, contanto que ocorra a partir da divisão sexual dos papéis. Existem dois tipos de sexismo: hostil e benevolente, ambos objetivam colocar e/ou manter a mulher num lugar de submissão e normatividade, utilizando diferentes estratégias para isso. Enquanto o sexismo benevolente é considerado mais sutil e recompensa mulheres que cumprem as normas sociais impostas a elas, o sexismo hostil se expressa abertamente, com a intenção de punir a mulher que não se mantém fixa aos papéis tradicionais de gênero (Glick & Fiske, 2001; Pedregosa & Díaz, 2016).
Desse modo, o sexismo hostil é provocado pelas mulheres que desafiam o poder masculino, sendo punidas com hostilidade, enquanto o benevolente é direcionado àquelas que reforçam relações convencionais de gênero e são recompensadas com solicitude benevolente, postura protetora ou paternalista. A combinação do sexismo hostil e benevolente circunscrevem o poder político, econômico e pessoal das mulheres (Connor et al., 2016; Glick & Fiske, 2001). Como as adolescentes em conflito com a lei desviam da norma, entende-se que elas são vítimas, sobretudo, do sexismo hostil.
Porém, embora impactem na compreensão do fenômeno, diferenças de gênero e o sexismo não têm sido objeto de estudo recorrente na literatura sobre adolescentes em conflito com a lei. Diante disso, este estudo teve como objetivo investigar como adolescentes do gênero feminino, em privação de liberdade, percebem a situação de conflito com a lei e o sexismo. A questão central pode ser colocada da seguinte forma: como adolescentes percebem a situação de conflito com a lei que vivenciam? Há, nesse contexto, uma percepção sobre preconceito e/ou discriminação em função do gênero (sexismo)? Ao dar voz a essas adolescentes, visamos discutir relações entre a situação de conflito com a lei na adolescência e o sexismo no Brasil.
Método
Esta pesquisa se configura como um estudo exploratório e de cunho qualitativo, realizado por meio de entrevistas semiestruturadas. A investigação foi desenvolvida junto a adolescentes num Centro de Atendimento Socioeducativo, em Sergipe-Brasil. No período da realização das entrevistas, apenas quatro adolescentes do gênero feminino cumpriam MSE de privação de liberdade no estado, uma delas em internação e três em período de internação provisória.
Participantes
Participaram do estudo as quatro adolescentes em privação de liberdade na instituição em questão. Nomes fictícios foram utilizados para identificação das participantes, com o intuito de preservar suas identidades. Bianca tinha 15 anos e estava na instituição há seis meses pela prática de homicídio. Já Sara (14 anos), Flávia e Luciana (ambas com 13 anos) estavam em internação provisória há um mês, onde respondiam pela reincidência na prática de furtos.
Procedimentos
Inicialmente, foi solicitada autorização para realização da pesquisa à direção da instituição e também à juíza de direito em atuação na Vara da Infância e Juventude da comarca. Assim, obteve-se a autorização dos responsáveis legais pela instituição que mantêm a guarda das adolescentes durante a medida, por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O estudo também foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Sergipe, em cumprimento dos parâmetros éticos da resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, diretrizes e normas que regulamentam a pesquisa com seres humanos, Parecer Consubstanciado, n. 1 276 048 (Caae: 49332515.8.0000.5546).
As visitas foram pré-agendadas e as adolescentes convidadas a participar, sendo esclarecidas de que tal participação era voluntária, podendo ser interrompida em qualquer etapa, sem nenhum prejuízo ou punição. Após a anuência das adolescentes, foram realizadas entrevistas semiestruturadas numa única sessão, com duração média de 30 minutos.
Elas foram gravadas, transcritas, e, posteriormente, apagadas em função do sigilo e confidencialidade.
Os encontros foram iniciados com um breve rapport para apresentação dos objetivos e procedimentos da pesquisa. Em seguida, foram realizadas questões norteadoras (apresentadas na seção de resultados) que buscavam captar a percepção das adolescentes sobre situação de conflito com a lei e o sexismo nesse contexto.
Análise dos dados
As informações resultantes das entrevistas foram categorizadas utilizando-se a análise temática de conteúdo, conforme proposta por Bardin (1977). A análise de conteúdo consiste em um conjunto de técnicas de investigação que permite interpretar o conteúdo manifesto das comunicações através de uma descrição objetiva e sistemática. Essa análise deve se organizar em torno de três polos cronológicos: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material e 3) o tratamento dos resultados, inferência e interpretação.
O tratamento e análise dos dados desenvolveu-se nas seguintes etapas, realizadas por duas juízas: 1) definição do corpus (as entrevistas com as adolescentes); 2) leitura flutuante (primeira leitura do material); 3) codificação e categorização do corpus (leitura exaustiva das transcrições, definindo temas e categorias que trouxeram significado à pesquisa); e 4) tratamento dos resultados (descrição e interpretação das categorias).
Resultados
As questões norteadoras das entrevistas foram: Como você vivenciou o ato infracional? Há diferenças entre um menino e uma menina que vivenciam essa situação? Como é estar institucionalizada? O que é ser menina nesse contexto? O que, na sua opinião, as pessoas acham de uma adolescente em conflito com a lei? Diante desses questionamentos, da análise temática, emergiram dois núcleos de sentido principais ou categorias. O primeiro aborda a experiência com o ato infracional e o segundo, por sua vez, refere-se à MSE, o contexto de privação de liberdade, ambos atravessados pelas questões de gênero.
As categorias foram nomeadas, respectivamente: «Diferenças de gênero no ato infracional: a transgressão como característica masculina» e «Diferenças de gênero na MSE: a obediência como característica feminina». Cada uma delas será apresentada a seguir, sendo ilustrada por citações das entrevistas, para descrição e posterior discussão dos resultados.
Diferenças de gênero no ato infracional: a transgressão como característica masculina
Nessa categoria, as adolescentes relataram diferenças de gênero tanto na situação de conflito com a lei como em outros contextos, indicando o que é ou não, na percepção delas, «mais para homem». Sobre o envolvimento com atos infracionais, Flávia (13 anos) explica o que as pessoas esperam para cada um:
Com os meninos perguntam: -como podem fazer uma coisa dessa ao invés de estudar, trabalhar, ajudar a mãe? Já para a menina, o povo fala bem assim: -Vai estudar, menina, lavar roupa, procurar uma bucha de prato, coisa para fazer.»
Nas falas, vemos que a opinião dos outros sobre atos infracionais na situação dos meninos busca maiores explicações sobre o fenômeno centrado em questões de trabalho e estudo. Na situação das meninas, as falas dos outros assumem um caráter mais prescritivo, na qual devem assumir funções domésticas e/ou tipicamente femininas em nossa sociedade.
Houve referência também ao fato da mulher trabalhar e/ou sofrer mais em termos de regime de trabalho. Para Bianca (15 anos), essa seria uma diferença na vida de homens e mulheres, independente da condição em que se encontravam: «A mulher, vamos se dizer que batalha mais, tem o dia mais corrido, no trabalho, em casa. Pro homem, não, pro homem é uma coisa mais calma, mais sossegada». Essa percepção, provavelmente, está associada às vivências em suas famílias e contexto social.
Outro tema que compõe essa categoria aborda a noção de violência. Nos relatos, enquanto meninos foram relacionados à violência externa ao contexto doméstico: «menino é mais ignorante, briga na rua» (Flávia, 13 anos), as meninas descrevem que, para elas, a violência ocorre, principalmente, no ambiente doméstico. O relato de Flávia ilustra a situação: «Porque eu tive um desentendimento com o meu padrasto, porque eu não gosto dele. Na verdade, porque sempre que tem alguma briga, alguma coisa, ele botava eu no meio», e Luciana (13 anos): «Violência só de minha mãe, mesmo. Porque mãe bate, né?», naturalizando, assim, a violência no contexto intrafamiliar. Contudo, nesses relatos não há um recorte de gênero especifico. As adolescentes não abordaram se a violência por elas vivida, por exemplo, poderia ser também vivenciada por seus irmãos.
Questões de gênero, para as adolescentes, podem ou não ser percebidas em situações de julgamento social. Para uma delas, o julgamento atua igualmente para ambos, como na fala: «é igual, as pessoas olham igual para um menino e para uma menina» (Sara, 14 anos). Por outro lado, marcadores de gênero também operam, sendo novamente prescritivas as funções destinadas às jovens. A fala de Flávia (13 anos) ilustra essa situação: «Porque, assim, é mais homem, né? Que comete essas coisas (…). As pessoas olham assim: "Uma menina tão bonita fazendo uma coisa dessas (…). Por que não muda de vida e vai seguir o caminho de Deus?"».
Ademais, parece que essas percepções sociais são incorporadas/internalizadas pelas próprias adolescentes. O depoimento de Bianca (15 anos) oferece essa dimensão: «... eu também acho feio, vamos se dizer assim, uma menina envolvida na malandragem. Eu acho feio, bastante. Já é feio pra um menino, imagina para uma menina». Essa fala indica como o ato infracional pode, possivelmente, gerar maior estigma quando cometido por uma menina, uma vez que a transgressão é considerada uma característica masculina.
Diferenças de gênero na MSE: a obediência como característica feminina
Nessa categoria, elas reconhecem que a MSE apresenta potencialidades. Flávia (13 anos), por exemplo, afirma:
Não vou dizer que é boa [a experiência] porque estar aqui é ruim, né? Mas, aqui é bom e é ruim, meio lá, meio cá. É bom para lembrar do que fez, pensar no que fez, parar com isso, seguir outra vida.
Já Luciana (13 anos) destaca: «Que aqui não é ruim, né? Aqui é um exemplo para as pessoas. Pra pessoa mudar! Eu pensei, já parei e pensei no que eu fiz». As falas demonstram que a medida pode ser um período para avaliação dos atos, uma oportunidade para buscar mudanças na vida, mas é importante considerar que essa percepção pode mudar com mais tempo de internação.
A rotina da instituição e atividades realizadas demarcam a influência de questões de gênero: «Aqui tem atividade com papel, de fazer cesta, essas coisas. Tem aula de educação física, aula de um monte de coisa, mulher. A professora ensina português, matemática»
(Luciana, 13 anos); «Dia de quinta-feira tem o dia da beleza, é o dia de fazer a unha, so-brancelha » (Sara, 14 anos). Ademais, o contexto da MSE pode proporcionar às jovens uma atenção especializada que, talvez, possa lhes auxiliar na busca por oportunidades. A fala de Bianca (15 anos) ilustra essa questão: «Os professores são bastante atenciosos, é tudo ótimo. Aqui, vamos se dizer, que você tem uma atenção a mais, aí é uma coisa mais fácil, você se concentra mais naquilo».
Sobre aspectos negativos, elas consideram a distância do convívio social como a maior dificuldade na experiência de privação de liberdade, gerando sentimentos de solidão, saudade e tristeza, ilustrados nas seguintes falas: «A saudade é de minha mãe, minhas duas irmãs pequenas, minha cunhada e minha irmã que tá presa» (Sara, 14 anos); «Porque sente falta, muita falta, e muitas vezes a gente só dá valor quando perde» (Bianca, 15 anos). «Ah, eu quero ficar do lado de minha mãe porque mãe é só uma, vou ficar bem juntinho, é capaz de eu botar meu padrasto para dormir no sofá para eu dormir com ela» (Flávia, 13 anos).
As MSEs afetam os relacionamentos familiares das jovens e também seus relacionamentos afetivo-sexuais, tanto em função de desconforto vivenciado pelos familiares como por proibições de visita. Exemplos dessas situações podem ser encontrados nas falas: «Minha mãe não vem muito visitar no dia de visita, sexta-feira, porque ela não gosta de se abaixar, né? Porque sabe que se abaixa (…). Aí ela não gosta de participar de, como é que fala? De revista» (Flávia, 13 anos). As adolescentes se queixam também da impossibilidade de visitas: «Aqui parece em casa, só que o namorado não pode visitar (…), eu queria meu namorado aqui, mas não pode» (Luciana, 13 anos). «Sinto falta do meu namorado, mas não pode vir, aqui só pode família» (Bianca, 15 anos). Para elas, nesse aspecto a institucionalização feminina difere da masculina em Sergipe, conforme relato: «Os meninos podem ter visita e a gente aqui não pode (…), sei porque minha irmã ia visitar o marido dela lá» (Flávia, 13 anos).
Diferenças de gênero também são percebidas no perfil dos meninos e meninas que cumprem a MSE:
Ah, eu já vi vários agentes dizendo que lá [instituição masculina] é muito diferente daqui, que aqui é um lugar calmo, vamos se dizer que aqui as meninas são mais educadas e os meninos são aquela coisa, aquele estresse. Ou é do jeito que eles quer ou não é. (Bianca, 15 anos)
Houve ainda uma relação entre gênero e a possibilidade de fuga: «Ah, o menino nem conta, né? Porque tem menino que tem arte do cão, menino foge. Já mulher, não, mulher é mais quieta, não tem essa mentalidade de fugir» (Luciana, 13 anos).
O clima institucional dos contextos feminino e masculino também é considerado distinto:
É diferente porque, por exemplo, aqui na hora do almoço a gente vai para o refeitório, eles lá [instituição masculina] nem vão porque é muita briga, muita coisa, eles ficam dentro da ala. Porque na ala aqui é tudo organizado, lá as paredes servem de calendário, as comidas espalhadas pelo chão, perto da cama. (Flávia, 13 anos)
A percepção geral é de que a unidade feminina seria melhor, como explicou Luciana (13 anos): «Assim, porque aqui é muito melhor, né? Porque lá os meninos fazem a parede de calendário, e lá é muito mais bagunçado do que aqui, aqui as regras é melhor do que lá e assim vai».
Observa-se que o clima e as estratégias institucionais são fatores percebidos como mais positivos pelas entrevistadas, que se consideram também mais educadas/obedientes em comparação aos meninos nesse contexto de privação de liberdade. Essa percepção, possivelmente, reflete marcadores ou prescrições sociais aos corpos femininos, uma vez que a obediência é percebida como uma característica mais feminina.
Discussão
Este estudo investigou como adolescentes do gênero feminino, em privação de liberdade, percebem a situação de conflito com a lei e o sexismo. A partir dos relatos identificamos duas categorias: Diferenças de gênero no ato infracional: a transgressão como característica masculina e Diferenças de gênero na MSE: a obediência (ou submissão) como características femininas. Essas categorias articulam-se entre si, indicando o impacto do gênero na percepção dessas adolescentes. Assim, os resultados evidenciam singularidades no envolvimento das adolescentes nos atos infracionais, invisibilizadas na maior parte das investigações.
Na primeira categoria, a noção de que «esse negócio é mais para homem» indica a percepção de que a sociedade não espera envolvimento feminino em transgressões, pois elas deveriam estar trabalhando em casa, com suas mães. O que relaciona-se à divisão tradicional dos papéis de gênero. A criminalidade sempre esteve fortemente integrada à masculinidade, associada a padrões históricos hegemônicos, como a violência, a virilidade e a transgressão. Nesse sentido, a relação das mulheres com a violência é perpassada pelas relações de gênero. A identidade feminina é impregnada de estereótipos, que determinam papéis, regras, valores e condutas. E, ao cometerem atos violentos, essas meninas rompem com o modelo cultural e social pré-estabelecido e destinado a elas (Abramovay & Feffermann, 2014).
Como vimos, a atribuição e naturalização de determinados traços às mulheres (carinhosa, prestativa, etc.) servem à manutenção da crença de que são especialmente adequadas ao papel doméstico (Garrido et al., 2018; Glick & Fiske, 2001) e o julgamento que incide sobre as adolescentes não apenas penaliza seu envolvimento com atos infracionais, mas parecem demarcar uma dupla discriminação: ser infratora e ser mulher.
As inúmeras violações que crianças e adolescentes brasileiros vem sofrendo ocorrem diariamente nos diversos contextos sociais, visto que estão diante de um cenário em que se acentuam e reproduzem vulnerabilidades e desigualdades multidimensionais (Alvarado et al., 2021). Nesse contexto, sobre a percepção de violência, as adolescentes entrevistadas abordaram experiências domésticas e relacionadas a familiares. Destaca-se que no Brasil, apenas em 2019, houve 85 412 denúncias de violência contra mulheres, sendo 78.96% de violência doméstica e familiar (MMFDH, 2020). Com isso, ressalta-se que a naturalização de contextos abusivos também está relacionada ao sexismo. Dito de outra forma, até o modo com que se sofre ou perpetra violência está relacionado ao gênero ao qual se pertence.
Como o tema central da primeira categoria foi o julgamento que incide sobre as adolescentes, destacamos novamente a percepção de uma delas: «Já é feio pra um menino, imagina para uma menina». Essa fala reitera a divisão binária de gênero associada aos papeis e condutas sociais. Como indica Scott (1995), o gênero é uma categoria analítica macrossociológica e microssociológica ao mesmo tempo. Assim, mesmo que vivenciem a situação de conflito com a lei, elas podem reproduzir símbolos culturais desenvolvidos pela sociedade nessa construção de referenciais de feminilidades e masculinidades. Ademais, é possível identificar a expressão do sexismo nessa categoria, pois parece que também na situação de conflito com a lei há um status subordinado das mulheres. Nesse caso, a adolescente ilustra a expressão do sexismo benevolente que recruta mulheres como participantes involuntárias de sua própria subjugação (Connor et al., 2016).
O que se observa no sistema socioeducativo brasileiro sobre a condição feminina é fruto de uma construção histórica e sociocultural. Adjetivos depreciativos, como: amorais, enganosas, frias, calculistas e malévolas foram e ainda são utilizados para descrever (ou julgar) meninas que cometem ato infracional. E esse estigma, aliado a naturalização de perspectivas de gênero que as desqualificam podem limitar suas perspectivas de vida. Assim, o preconceito impacta a trajetória das jovens mesmo após o cumprimento da MSE e, de maneira geral, se são grandes as dificuldades encontradas pelos adolescentes, para mudanças em suas trajetórias de vida, para elas são ainda maiores (Oliveira et al., 2018). Nessa direção, o preconceito e a discriminação contra essas adolescentes é algo a ser revisto na e pela sociedade brasileira, pois, por mais que as MSEs busquem assumir um caráter sociopedagógico, não serão eficazes se continuarem sendo vistas como irrecuperáveis ou vítimas de maior hostilidade social, por ser «pior para uma menina» (Aranzedo, 2015).
Por outro lado, a segunda categoria reúne percepções sobre um caráter sociopedagógico na medida. Aspectos descritos nessa categoria sugerem que a socioeducação para essas meninas consegue alcançar alguns de seus objetivos, protegendo as adolescentes. Cabe lembrar que algumas instituições de MSE podem reproduzir preconceitos relativos a gênero, raça e nível socioeconômico, também adotando uma lógica punitivista e individualizante, que perpetua violências sofridas em outros ambientes (Leal & Macedo, 2019). Aranzedo (2015) encontra resultados similares ao descrever que a socioeducação voltada às meninas alcança resultados mais positivos na busca por espaços pedagógicos, reflexivos e de aprendizado. E indica que conhecer a realidade das meninas é fundamental, pois os dados coletados junto aos meninos, se generalizados, podem mascarar ou masculinizar o fenômeno.
Ao assumir um caráter efetivamente socioeducativo, a medida pode oferecer às jovens a possibilidade de rever seus atos, pensar e mudar escolhas para o futuro. Destaca-se que MSEs devem funcionar como fator de proteção, reduzindo fatores de risco advindos de situações pregressas de vulnerabilidade e otimizando aspectos positivos (Coscioni et al., 2017). Para as adolescentes entrevistadas, dentre as vantagens da MSE estava uma melhor escolarização. Pois, em geral, elas são provenientes de contextos socioeconômicos de baixa renda que, historicamente, não recebem do Estado uma educação de qualidade e inclusiva (Santos & Legnani, 2019). Embora a educação seja um direito fundamental da criança e adolescente na legislação brasileira, ele nem sempre é alcançado. Com isso, parece que essas adolescentes precisaram transgredir para acessar o que, na lei, é direito de todos e dever do Estado: uma escola que atenda às suas necessidades.
Há estudos que abordam relações entre fracasso escolar e adolescentes em conflito com a lei, indicando que esses adolescentes são relacionados a conflitos na escola, desinteresse e altos índices de evasão. Porém, a dificuldade de adaptação ao sistema educacional também pode gerar implicações na constituição da identidade, relacionando-se ao comportamento infracional (Cardoso & Fonseca, 2019; Giménez, 2017; Santos & Legnani, 2019). Portanto, a garantia de acesso à educação precisa vir, também, antes do delito, a fim de atuar na prevenção e propiciar melhores condições de desenvolvimento.
Nessa direção, a premência da cultura e do lazer também tem destaque na legislação brasileira, em especial, quando adolescentes se encontram institucionalizados. Contudo, às adolescentes, em geral, são propostas atividades supostamente femininas (como manicure, trabalhos com bijuteria etc.), promovendo a internalização de determinado «modelo de mulher» (Aranzedo, 2015; Machado & Veronese, 2010). Nesta pesquisa, esse viés sexista também foi identificado, por exemplo, no denominado dia da beleza. Ainda que pareçam pequenas, tais práticas podem invisibilizar algumas necessidades e perspectivas das adolescentes. Isso não significa que, ao atentar às questões de gênero, atividades de autocuidado ou responsabilidades domésticas seriam proibidas. Mas cabe questionar se essa atividade também seria promovida numa unidade masculina. Para que a socioeducação não sirva à reprodução dos estereótipos de gênero que ainda impedem as mulheres de galgar posições igualitárias na estrutura social.
O mesmo ocorre em relação às atividades profissionalizantes que, geralmente, direcionam a mulher ao âmbito doméstico, viés reforçado por muitos profissionais em atuação no sistema socioeducativo que apresentam concepções pré-estabelecidas sobre papéis de gênero (Aranzedo, 2015; Machado & Veronese, 2010). Programas que ofereçam às adolescentes possibilidades de inserção profissional e social podem estimular o atendimento das suas necessidades materiais e simbólicas a partir de meios lícitos, possibilitando o desenvolvimento de identidades das quais se orgulhem (Coscioni et al., 2019). Mas esses programas devem escapar da reprodução social das desigualdades, pois o ECA objetiva a proteção e educação dos adolescentes para que superem sua condição, por meio da reinserção na sociedade. Essas diretrizes devem ser seguidas sem discriminação de qualquer ordem (Ferrão et al., 2016). Assim, adolescentes não devem, no cumprimento da medida, ser responsabilizadas também pela transgressão dos papéis de gênero.
Embora tenham relatado aspectos positivos, as participantes afirmaram a impossibilidade da internação ser uma experiência boa. A medida também é avaliada negativamente em outros estudos (Aranzedo, 2015; Coscioni et al., 2017), especialmente, pelo afastamento dos vínculos familiares e comunitários, gerando tristeza, solidão e/ou carência afetiva. Esses aspectos incidem também na internação masculina, porém o sofrimento e suas especificidades são invisibilizados quanto se trata de mulheres encarceradas (Germano et al., 2018). O sofrimento psíquico decorrente da privação de liberdade faz dessa medida a mais danosa ao desenvolvimento humano. Documentos importantes, como as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade (Unicef, 1990), afirmam que não devem ser economizados esforços para sua abolição, pois ao serem privados da liberdade, esses indivíduos são expostos a condições de extrema vulnerabilidade e difícil controle.
Além disso, elas relataram que, ao contrário dos meninos, não têm autorização para receber visitas dos namorados. A percepção de diferenças de gênero nesse âmbito parece derivar de um tratamento não padronizado da questão pelas entidades que executam a MSE. O Sinase, Lei 12 594 (Presidência da República, 2012) assegura direitos sexuais aos adolescentes em internação, independentemente do gênero, orientando que as entidades garantam um local para visitas íntimas, desde que observada a idade dos parceiros, bem como o consentimento dos responsáveis. Destacamos apenas que uma das adolescentes que referiu essas visitas tinha 13 anos. Nessa faixa etária, relações sexuais estão associadas a questões de vulnerabilidade. O código Penal brasileiro destaca a importância de sua proteção ao tipificar a conjunção carnal ou prática de outro ato libidinoso com menor de 14 anos como crime de estrupo de vulnerável. Porém, dados sugerem que a proibição das visitas intimas não está apenas associada a diretrizes protetivas, mas podem também refletir restrições ao exercício da sexualidade feminina -reproduzindo restrições presentes na sociedade.
Essa realidade não ocorre apenas no Brasil. Ao analisar o Sistema Penal Juvenil Uruguaio, López-Gallego et al. (2018) encontram práticas discriminatórias nesse âmbito, seja conferindo um caráter sexual a quase qualquer comportamento das adolescentes, ou por meio da negação da sua sexualidade, como estratégia de controle social. Para Barros (2019), a sexualidade é um assunto silenciado na execução das MSEs e são necessários esforços, estudo e abertura para o diálogo, no sentido de lidar e compreender a sexualidade ao invés de negá-la.
Numa perspectiva histórica, espaços de reabilitação sempre atuaram na domesticação e vigilância da sexualidade feminina. Esse contexto refiete na solidão vivenciada por mulheres privadas de liberdade, pois, enquanto homens mantém laços afetivos, recebendo visitas das mulheres, filhos, mães e raramente de pais, mulheres são esquecidas nos cárceres e, com isso, duplamente punidas pela sociedade (Carvalho & Jardilino, 2017). Nas entrevistas, houve referência também ao constrangimento da revista como impeditivo para visitas familiares. A situação parece semelhante ao contexto penal, no qual dentre os principais fatores que predispõem o abandono afetivo às mulheres estão: o estigma de transgressão às normas e moral incutidas ao feminino, dificuldades impostas às visitas íntimas e constrangimentos dos familiares no momento da revista (Santos & Silva, 2019).
Em suma, se a primeira categoria apresentava a noção de que a transgressão seria um comportamento mais masculino, na segunda, por outro lado, as participantes destacam diferenças no cumprimento da MSE com base na naturalização de determinadas características: os meninos seriam mais agressivos, violentos e as meninas mais calmas e educadas. Como vimos, as normas sociais exigem das mulheres a reprodução de estereótipos e aquelas que desviam causam estranheza e repulsa (Glick & Fiske, 2001). Como a situação de conflito com a lei seria oposta à educação ou obediência, parece que a MSE atua também na adequação dessas adolescentes, para que não sejam merecedoras da hostilidade social.
Quando uma das adolescentes afirma que meninas nem «pensam em fugir» entendemos que a elas, mesmo em pensamento, só é permitida a conformidade e adequação. Parece que essas adolescentes não estão confinadas apenas fisicamente na instituição, mas, sobretudo, nos papéis e espaços socialmente permitidos a uma mulher. Exemplo disso é o fato de que, apesar da população carcerária feminina mundial crescer proporcionalmente mais rápido que a masculina, diferentes práticas de discriminação se perpetuam sem que debates de gênero ganhem visibilidade. Assim, a mulher cumpre pena tanto no setor penal, quanto no moral, pois, ao cometer um crime, viola seu lugar (posição) na sociedade, que espera corpos femininos dóceis e controlados (Germano et al., 2018; Santos & Silva, 2019).
Os resultados apresentam consonância com pesquisas anteriores (Aranzedo, 2015; Giménez, 2017; Machado & Veronese, 2010; Santos & Legnani, 2019), indicando seu potencial para compreensão da realidade dessas adolescentes. Entretanto, algumas questões, emergentes nas falas das adolescentes, merecem ser melhor investigadas, destacam-se: 1) explicação versus prescrição: a sociedade ainda associa o papel feminino às tarefas domésticas, assim falas dos adultos ao se dirigirem a elas tratam de prescrições comportamentais; 2) a violência doméstica presente nos relatos, pois meninas parecem estar mais expostas à violência em função dessas prescrições («lugar de menina é em casa»). Futuros estudos podem aprofundar esses aspectos e também investigar o atravessamento das questões de gênero junto a gestores e profissionais em atuação na área, pois esse é um analisador importante do fenômeno (Machado & Veronese, 2010).
Esta pesquisa possui limitações que só podem ser respondidas por investigações futuras, como a amostra ser composta apenas por quatro participantes, em unidade socioeducativa de um estado brasileiro escolhido por critério de conveniência, sendo que três delas estavam em internação provisória há cerca de um mês. Portanto, os resultados não podem ser generalizados para toda realidade nacional e o período pode ser considerado curto para análises mais profundas. Embora as participantes representem a internação em Sergipe, pois eram as únicas que cumpriam MSE de privação de liberdade, naquele período, compreende-se que percepções de mais adolescentes brasileiras (internadas há mais tempo) ampliaria análises do funcionamento institucional e também sobre como elas percebem a visão externa quanto à situação que vivenciam.
Esse trabalho soma-se aos poucos voltados à compreensão das singularidades vividas por meninas no contexto socioeducativo e seus resultados evidenciam que elas podem sofrer maior discriminação, impactadas pela manutenção dos papeis tradicionais de gênero, o reforço aos estereótipos e o sexismo. Elas parecem sofrer significativa condenação moral, pois ao praticarem o ato infracional, desviam-se da representação construída e sustentada socialmente que as vincula ao lar e às tarefas domésticas.
A relevância acadêmica e social dos resultados aqui apresentados reside também na discussão sobre adolescentes em conflito com a lei à luz das teorias sobre gênero, sexismo e sua faceta ambivalente. Considera-se fundamental que pesquisas utilizem o recorte de gênero para aprofundar a compreensão do fenômeno. Este estudo avança ao discutir que o sexismo e suas consequências podem ser identificadas nos relatos das adolescentes e na realidade que vivenciam não apenas por serem infratoras, mas, por serem mulheres. Conhecer essas percepções pode auxiliar no combate à discriminação e desigualdade de gênero, além de fornecer referências para profissionais na qualificação do sistema socioeducativo, para que seja possível alcançar o ideário da legislação brasileira, o atendimento às especificidades das adolescentes numa proteção integral e igualitária.