A prática da horticultura para benefício terapêutico tornou-se justificada e incorporada as abordagens terapêuticas que surgiram na Europa e na América do Norte durante o início do século XX (Seifert, 2014). Na atualidade, a literatura nacional e internacional demonstra a melhoria da qualidade de vida e a redução dos índices de estresse biológico, como a estabilização dos marcadores neuroendócrinos e imunológicos por meio da horticultura como uma modalidade de tratamento complementar valiosa para pessoas que frequentam centros de reabilitação ou prevenção terciária a dependência de substâncias (Cervinka et al., 2011; Lehmann et al., 2018; Rodrigues et al., 2018; Seifert, 2014; Van Den Berg & Custers, 2011). Os pesquisadores recomendam a realização de estudos que comprovem a eficácia da atividade.
No que concerne a prática clínica dos psicólogos no tratamento da dependência química, a Associação Americana de Psicologia publicou o documento Multicultural guidelines: An ecological approach to context, identity, and intersectionality (American Psychological Association [APA], 2017), que estimula a elaboração das metas interventivas e a organização dos papéis desenvolvidos durante o ciclo vital. Recomenda-se avaliações clínicas qualitativas pautadas na teoria dos sistemas ecológicos que compreende o desenvolvimento em quatro dimensões inter-relacionadas: o processo, a pessoa, o contexto e o tempo (PPCT) (Bronfenbrenner & Morris, 2007).
O processo são as formas de interação entre o organismo e o ambiente. A pessoa corresponde às características biopsicológicas construídas nos processos proximais com o ambiente. O contexto representa o espaço onde ocorrem as atividades, papéis e interações face a face da pessoa com os objetos e símbolos que permeiam este lugar imediato. O tempo refere-se às alterações e mudanças no curso de vida, transições biológicas, ecológicas e sociais em relação aos aspectos culturais (Bronfenbrenner & Morris, 2007).
As interações entre os sistemas circundantes -como o ambiente familiar, escolar e comunitário (microssistema), a maneira como se relacionam entre eles (mesossistema), a sociedade e as instituições maiores (exossistema), a cultura e as políticas sociais (macrossistema) e as interações ao longo de um período (cronossistema)- promovem ou impedem o crescimento (Bronfenbrenner & Morris, 2007). Assim, de acordo com a teoria dos sistemas ecológicos, alterar qualquer uma das quatro propriedades das interações no conjunto de sistemas pode mudar o curso do desenvolvimento (Roysircar, 2014). Os desafios da interlocução entre os fenômenos humanos inseridos em seu contexto sugerem a necessidade de adaptação das ferramentas metodológicas nas pesquisas de intervenção comunitária sobre grupos em situação de vulnerabilidade (Bucher-Maluschke, 2016; Cecconello & Koller, 2016).
No Brasil, a Lei N° 11.343/2006, prevê a atenção comunitária integrada aos usuários de álcool e outras drogas com atendimentos específicos para a reabilitação. O objetivo é proporcionar a expansão do tratamento com abordagens amplas sobre o problema e a inclusão na perspectiva da redução de danos. Quando a dependência química se torna um problema de saúde pública, quase sempre há elementos sociopolíticos em jogo, que ocorrem nos diferentes "contextos de culturas das drogas", ao invés de ser meramente um sintoma epidemiológico (Alarcon et al., 2012; Seifert, 2014).
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são os dispositivos estratégicos mais representativos para a atenção, assistência e reabilitação das pessoas com dependência química (Santiago & Yasui, 2015). O CAPS se constitui de equipe multiprofissional com foco na rede das relações profissionais e aquelas significativas aos usuários, de caráter intra e interinstitucional na perspectiva da intervenção clínica (Alarcon et al., 2012; Santiago & Yasui, 2015). Essas redes são compreendidas em dinâmicas de colaboração, baseadas nos princípios da economia solidária (ecosol), no contexto do cuidado e da inclusão pelo trabalho (Barreto et al., 2013; Santiago & Yasui, 2015; Venturini & Amarante, 2016).
A ecosol é uma política pública que visa a organização das atividades de geração de renda guiadas pelos fundamentos da propriedade coletiva ou associada do capital e da liberdade individual (Morais, 2013). Os princípios da ecosol são cooperação, solidariedade, autogestão, sustentação econômica e sustentabilidade ambiental (Singer, 2002). A ecosol desenvolve inovações da ideia de trabalho, o qual significa não somente a manutenção e a produção das condições materiais, mas a busca de valorização da identidade pessoal e social (Girelli et al., 2017).
Dentre as tecnologias sociais sustentadas nas políticas da ecosol, agroecologia, segurança alimentar e nutricional encontram-se os quintais produtivos, que consistem em um espaço de convivência familiar ou comunitária para a produção de alimentos (Lima et al., 2021). Segundo (Lucas, 2019), trata-se de uma alternativa para o desenvolvimento sustentável, pois permite tanto a criação de sistemas naturais equilibrados, sem a utilização de agroquímicos, quanto a produção e o consumo de alimentos, o que contribui para a qualidade de vida e a soberania alimentar da população.
Observa-se que o sistema de quintais produtivos se assemelha as formas tradicionais das atividades agrícolas. Em decorrência da globalização e da industrialização dos alimentos, os cultivos dos quintais perderam a sua relevância no desenvolvimento das pesquisas científicas (Lucas, 2019). Entretanto, esses espaços trazem consigo características culturais e valores passados de geração a geração, onde há a combinação de várias culturas, que são utilizadas para diversas finalidades dentro do sistema familiar, e que pode vir a ser fonte de alimento e renda para os (as) produtores (as) e suas famílias.
Os quintais produtivos comumente se localizam ao redor ou nas proximidades das residências e diferem, geralmente, das formas tradicionais de monocultivo de alimentos, pois, utilizam pequenas áreas como os quintais em consórcio com a criação de animais (Lima et al., 2021). As atividades de preparo do solo, controle natural de pragas e a diversidade de cultivos, rompem a monotonia da dieta das famílias, quando estas não dispõem de recursos financeiros (Lucas, 2019). Além de proporcionarem o bem-estar dos membros, por meio do valor estético e recreativo, e o complemento da renda, com a venda do que é obtido na produção.
O Relatório Mundial sobre Drogas (Organização das Nações Unidas [ONU], 2021) revela que 35 milhões de pessoas sofrem de transtornos associados ao uso de drogas. O aumento da população com maior risco de uso de drogas é maior em países com baixo (43 %) e médio (10 %) nível de renda, acompanhando a tendência para o aumento da urbanização nesses territórios. Paralelamente, a reabilitação está mudando de uma perspectiva biomédica para uma perspectiva centrada na pessoa, que está incluída e participante em uma sociedade (Káppler & Faleiros, 2021).
Diante do que foi exposto, questiona-se: quais são os efeitos dos quintais produtivos no processo de reabilitação de um grupo de pessoas com dependência química? O presente trabalho tem por objetivo avaliar a implementação de um projeto de ecosol no contexto de um grupo de reabilitação para pessoas com dependência química. Foi utilizada a perspectiva da Reabilitação Baseada na Comunidade (RBC), que consiste em uma estratégia de desenvolvimento comunitário para a reabilitação, equalização de oportunidades e inclusão social (Káppler & Faleiros, 2021). Sugere-se que a implementação deste tipo de tecnologia social promove a atuação profissional em um conjunto de sistemas organizados, a partir da mobilização da rede de colaboradores do serviço e da participação ativa dos envolvidos no projeto.
Método
Delineamento
Trata-se de um estudo de avaliação qualitativa, baseado no método da inserção ecológica. Este método procura responder à demanda por uma estratégia de pesquisa que seja efetivamente consistente com o Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano (Bronfenbrenner & Morris, 2007). Ela foi sistematizada, inicialmente, por Cecconello e Koller (2016) em uma pesquisa longitudinal que acompanhou as famílias em situações de vulnerabilidade durante quatro anos. A originalidade do método consistiu na operacionalização dos elementos do Modelo PPCT durante o desenvolvimento da pesquisa propriamente dita. Ou seja, a inserção ecológica como método assumiu que os processos proximais necessariamente tinham que ocorrer entre a equipe de pesquisa e os participantes. Estes processos não só devem ser estudados, mas também favorecer o surgimento de um contexto ecológico que se aproxima do contexto pesquisado da realidade cotidiana vivida pelos participantes (Coscioni et al., 2019).
Este método induziu a observação, seleção, análise e a interpretação dos dados apreendidos no contexto temporal da convivência entre os participantes e os pesquisadores (Bucher-Maluschke, 2016; Cecconello & Koller, 2016). Os pesquisadores integram a teoria dos sistemas ecológicos ao ambiente estudado e se aproximam ao máximo dos integrantes de modo participativo no processo da coleta de dados (Cecconello & Koller, 2016; Morais et al., 2012). Portanto, a inserção ecológica permite a interlocução com outras teorias e métodos; os fundamentos da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano ajudam os pesquisadores a compreender não apenas seu cenário de estudo, mas também o próprio método de inserção ecológica que está fundamentalmente ligado a esta teoria.
Local da pesquisa
A pesquisa ocorreu entre fevereiro e agosto de 2012 no CAPS de Porto Nacional, Tocantins, que atendia na época 26 municípios circunvizinhos com população total de 94.098 habitantes. O serviço contava com uma equipe multidisciplinar composta por 33 funcionários; dos quais 11 de nível superior e 22 de nível médio. O CAPS oferece atendimentos individuais, grupais, oficinas terapêuticas, visitas domiciliares, atendimento à família e atividades de integração do paciente na comunidade (Alarcon et al., 2012; Santiago & Yasui, 2015; Venturini & Amarante, 2016).
Participantes
Quinze pessoas, das quais doze eram do sexo masculino e três do sexo feminino, com idades entre 30 e 60 anos. Foram incluídos os participantes e familiares do grupo de reabilitação da dependência química, que apresentassem quadro clínico estável, de ambos os sexos, maiores de 18 anos. Foram excluídos os participantes que não fossem registrados nos prontuários do CAPS, participantes do grupo por período inferior a 6 meses, que não possuíssem área externa da residência adequada para a implantação da horta e familiares que não residiam com os usuários.
Instrumentos
Análise documental dos dados dos participantes obtidos nos prontuários do serviço, caracterizando a idade, grau de instrução, renda, o histórico clínico e a frequência nas atividades terapêuticas. Diário de campo, com o objetivo de registrar em tempo real as atitudes, fatos e os fenômenos percebidos. Fotografias e Filmagens das oficinas, reuniões, visitas domiciliares, visitas técnicas e dos mutirões para o manejo da horta.
Procedimentos
A intervenção foi aplicada com base em quatro metas: formação dos profissionais e dos membros do grupo de reabilitação, mapeamento das residências, fortalecimento da rede local, implantação dos quintais produtivos. Cada uma dessas metas envolveu pessoas das diversas instituições comunitárias do território.
A formação foi realizada por meio de supervisões clínicas, palestras, trocas de experiências, exposições de áudio e mídia, debates, e rodas de conversas sobre a ecosol, direitos humanos e saúde mental, estratégias de redução de danos, técnicas agrícolas sustentáveis e soberania alimentar e nutricional. Em seguida foi realizado o mapeamento das residências adequadas para a implementação dos quintais, através das visitas domiciliares.
O fortalecimento da rede local articulou o serviço, as famílias e os usuários com as parcerias interinstitucionais: setores públicos da saúde e da assistência agrária, organizações não governamentais, instituições de cunho religioso e o comércio local. Foram organizados alguns eventos abertos à comunidade: no dia nacional da Luta Antimanicomial ocorreu um torneio de pipas na orla central da cidade; foram apresentadas três performances artísticas nos pontos mais frequentados para o consumo e a distribuição de drogas; e foram oferecidas duas oficinas de culinária na cozinha do CAPS.
Os quintais produtivos foram implementados em três etapas: uma inicial que contou com as visitas técnicas locais aos outros quintais produtivos existentes nas Organizações não Governamentais, escolas, residências de produtores autônomos, centros comunitários e comunidades terapêuticas (figura 1).
Na segunda etapa os usuários, familiares, profissionais e pesquisadores construíram um quintal comunitário na área externa da secretaria municipal de saúde de Porto Nacional sob a orientação de uma engenheira agrônoma da rede. A última etapa foi a preparação das áreas de cultivo e a construção do quintal piloto na residência de um dos participantes com a inserção da cultura de hortaliças, ervas medicinais e alguns tubérculos (figura 2).
Ao final da realização das metas, foram apresentados os resultados do projeto durante a plenária de avaliação semestral do CAPS, o qual envolve os participantes da rede de saúde mental, usuários, familiares e técnicos do serviço.
Análise dos dados
A análise dos dados baseou-se na Avaliação multicultural: Dimensionamento Dinâmico Individual e Contextual proposto por Roysircar (2014). Os dados coletados com os instrumentos da pesquisa foram datados, identificando os sujeitos envolvidos, local, situações observadas, as condições que puderam interferir na observação e as influências da rotina e das normas institucionais. O conteúdo dos registros foi analisado por pares e as imagens fotográficas ilustraram as observações descritas no diário de campo. As filmagens possibilitaram registrar a linguagem verbal e não verbal dos participantes da inserção, bem como, a análise fílmica dos elementos das cenas: cenário, atores, expressões/emoções e movimento. Com os dados transcritos os pesquisadores construíram o mapa ecológico diagramado no conjunto de sistemas do modelo bioecológico: microssistema, mesossistema, exossistema, macrossistema e cronossistema (Roysircar, 2014).
Foram seguidas as cinco condições básicas para o desenvolvimento de uma inserção ecológica: (1) a equipe e os participantes interagem e se envolvem em uma atividade; (2) as reuniões ocorrem a longo prazo; (3) as reuniões informais progridem para conversas mais complexas; (4) a postura da equipe deve ser informal e permitir o desenvolvimento de conversas além do objetivo da pesquisa; e (5) os tópicos abordados na pesquisa devem interessar aos participantes (Coscioni et al., 2019).
Ética da pesquisa
O projeto foi aprovado e encaminhado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Luterano de Palmas, parecer N° 45/2010, seguindo as normas da Resolução N° 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde que trata de ética em pesquisa com seres humanos conforme constou no TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido). Foi garantido o sigilo da identidade de todos os envolvidos na pesquisa.
Resultados
Nesta sessão serão apresentados os resultados referentes à diagramação do mapa ecológico (figura 3). As varáveis do micro, meso, exo e macrossistemas foram avaliadas pelas ocorrências da observação, dificuldades na adaptação, vulnerabilidade social, relação com o ambiente e o engajamento comunitário (Roysircar, 2014). Os pesquisadores mantiveram durante a análise dos dados o seguinte questionamento: "Quais forças das atividades econômicas solidárias influenciam nas interações em um sistema particular ou nas interações com outro sistema?".

Nota. A teoria dos sistemas ecológicos de Bron-fenbrenner (1986, 1995) é a base para a diagramação dos mapas dos usuários. O cronossistema é a influência do tempo sobre cada um dos sistemas ecológicos.
Figura 3 Mapa ecológico dos resultados da inserção ecológica
Sistema individual
Este sistema compreende as informações emocionais e clínicas dos usuários. A natureza interacional do conjunto de sistemas da teoria ecológica de Bronfenbrenner (1986) aponta o sistema individual como capaz de identificar elementos dos sistemas mais distantes. Entretanto, a resposta destes elementos não descredencia o efeito das interações ocorridas em sistemas particulares (Roysircar, 2014).
Em relação à drogadição, cinco indivíduos ainda faziam uso do álcool em interação com a intervenção medicamentosa distribuída pelo ambulatório, quatro eram usuários ativos de crack e os demais estavam em abstinência. Sobre a religiosidade, o grupo se dividia entre católicos (3), protestantes (10) e não praticantes (2). Quanto ao status familiar, quatro indivíduos viviam com o (a) companheiro (a) dos quais três tinham filhos, três moravam sozinhos, dois residiam com a família dos irmãos e quatro ainda viviam na residência dos pais. Dos quinze participantes, cinco eram beneficiários de programas assistenciais do governo e os demais dependiam da ajuda de familiares. Todas as famílias tinham renda inferior ou igual a um salário-mínimo.
As falas obtidas pelas filmagens remeteram-se ao sentimento desses indivíduos quanto aos seus papéis na família e na sociedade e sobre o estigma à condição de serem dependentes químicos. De modo geral essas manifestações demonstraram as atitudes que ajudaram os pesquisadores a identificar a percepção do lugar deles no mundo. De acordo com os registros dos diários de campo, nos períodos anteriores a implementação do projeto de construção dos quintais produtivos, os pesquisadores observaram os comportamentos de apatia, silenciamento, pouca interação grupal e desmotivação nos encontros do grupo de reabilitação.
Microssistema
O delineamento deste processo na inserção ecológica levantou informações sobre a maneira que os usuários interagem no sistema mais próximo (Roysircar, 2014; Silveira et al., 2009). Neste nível foram investigadas as estruturas e os vínculos familiares, as relações fraternas, a relação afetiva com a equipe do CAPS, a comunidade local e os próprios pesquisadores. Observaram-se as rotinas dos usuários na família, no CAPS e a rede de apoio. Foi identificada a sobrecarga dos familiares em relação ao cuidado, os recursos afetivos da equipe e a qualidade da interação com os equipamentos no território.
A privação econômica nos sistemas familiares eram forças associadas a precarização dos vínculos. Observou-se que quanto mais tênue era a dependência química da pessoa, mais disfuncionais eram os padrões nos sistemas familiares. Dentre eles foram narrados eventos de conflitos no convívio familiar e pouca interação afetiva entre os membros, além da reprodução intergeracional do sofrimento psíquico, incluindo o abuso de drogas como comorbidade. "Lá em casa não tem comunicação. Eu já tentei de tudo, fiz o que era possível, mas eu não sei mais o que fazer. Eu vejo o corpo dele se acabando e ele não para" (Esposa do usuário 4). "Eu não vivo mais com ninguém da minha família. As minhas filhas as vezes me ligam, mas eu sinto muita vergonha de falar com elas. Agora só o meu irmão que aparece e as vezes me leva aqui no médico do CAPS para eu me consultar [...] é uma vida muito solitária" (Usuário 5).
Mesossistema
No que se refere às interações entre as unidades do microssistema (familiares, profissionais e pesquisadores) têm se a organização do mesossistema (Bronfenbrenner & Morris, 2007). A partir das atividades de formação e dos mutirões para a construção dos quintais foi possível identificar as diferenças entre os grupos familiares e as interações de cada um durante os encontros. Os conflitos entre os microssistemas atuaram como fonte de sofrimento para os usuários (Roysircar, 2014). A compreensão dos conflitos e das harmonias entre os sistemas foram base para acessar as experiências dos participantes em seu contexto social tais como a relação com o trabalho na horta e com outras atividades remuneradas.
As famílias que apresentaram maiores níveis de coesão, tanto na estrutura quanto na dinâmica, foram aquelas mais participativas nas ações do projeto. Outras famílias com maiores níveis de vulnerabilidade e barreiras na comunicação intrafamiliar, apresentaram maior dificuldade em cumprir as atividades previstas. Os diários de campo indicaram ausências nas reuniões quando havia a ocorrência de recaídas ou conflitos familiares.
"Para mim, cooperação é a ajuda que recebo da minha família que sabe o sufoco que passo quando pego no dinheiro (choro). Eu queria poder trabalhar sem o medo de voltar para o bar" (Usuário 4).
Exossistema
No contexto do grupo de reabilitação, as supervisões clínicas com os profissionais, as parcerias interinstitucionais com outros segmentos e a captação de recursos no comércio local agiram indiretamente nas relações proximais dos usuários. As formações proporcionavam a escuta qualificada sobre os desafios e as reações da equipe frente a implementação do projeto, a evolução do quadro clínico dos usuários e o engajamento da família na atividade e no tratamento.
A articulação da rede trabalhou com outros núcleos interacionais dos usuários no território e permitiu a descentralização das tomadas de decisões na instituição, assim como ampliou as interações possíveis no microssistema, o que permitiu o trânsito entre outros dispositivos (figura 4).

Figura 4 Competição de pipas organizada pelo CAPS de Porto Nacional-TO com a participação do grupo de reabilitação
A compreensão das variáveis do exossistema permitiu a alocação dos recursos comunitários apropriados e favoreceu o entendimento dos contextos e das interações existentes nos diversos microssistemas. "O pastor ajuda muito a gente aqui no grupo. Na reunião passada ele falou para a gente que os quintais vão fazer bem para o tratamento" (Usuário 2).
Macrossistema
Este sistema incorpora os valores, as condutas, as legislações e as crenças de uma sociedade (Bronfenbrenner & Morris, 2007). Foram analisadas a Lei Brasileira de Drogas, que não inclui propostas ou programas específicos para as atividades de geração de trabalho e renda (Lei No 11.343/2006, 2006). O Projeto de Lei (PL) 4.685/2012, que dispõe sobre a Política Nacional de Economia Solidária também foi estudado (Projeto de Lei No 4.685/2012, 2012).
O projeto de implementação dos quintais produtivos nas residências dos usuários do CAPS promoveu a geração de renda e a ressocialização. As parcerias da assistência técnica agrícola demandaram o estudo sobre a Lei No 11.326/2006 que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar (Lei No 11.326/2006, 2006).
Em decorrência da extensão dos terrenos, da cobertura vegetal nas propriedades, da forte cultura agrícola nas famílias e do distanciamento dos pesquisadores com as políticas sociais desse contexto, a instrumentalização legal norteou a atividade dos quintais produtivos como fonte de subsistência. Ademais estas informações caracterizam o nível cultural dos usuários, a formação política dos envolvidos na pesquisa, bem como a habilidade destes para navegar em um novo sistema de leis, expectativas e crenças.
"Depois que vocês (pesquisadores) apareceram aqui com esse povo da horta (membros da rede) eu até achei ele mais animado. Antes ele acordava e ia para o boteco, agora ele acorda e já vai cedo raste-lar o terreiro ou tirar o mato lá do terreno, o tempo passa e ele se sente útil" (esposa do usuário 3).
Cronossistema
Os aspectos dos registros direcionados ao nível do cronossistema incluíram as alterações das respostas no grupo de reabilitação antes do projeto e no decorrer dos procedimentos. Assim, identificamos as interações na família, na comunidade e na instituição e as mudanças provenientes do estigma social da dependência química. "Eu participo do grupo (de reabilitação) há doze anos e tenho muitos amigos aqui, e a gente sempre se ajuda quando falta o arroz, o feijão [...]. As atividades na horta e as conversas aqui me fazem querer voltar amanhã" (Usuário 1).
O ambiente onde os integrantes do grupo de reabilitação moram e os equipamentos públicos da assistência são permeados por arranjos complexos de vários fatores que interagiram sobre o tempo. Esse sistema foi importante para identificar as transformações na percepção sobre o acesso do dependente químico ao dinheiro e sobre o conceito de organização do trabalho. A estagnação ou a transição em diferentes estágios experienciais permitiu compreender as mudanças no contexto e como os usuários as vivenciaram no decorrer do tempo através dos vários níveis ecológicos.
Discussão
A teoria dos sistemas ecológicos (Bronfenbrenner, 1986; Bronfenbrenner & Morris, 2007) pode auxiliar as pesquisas de RBC e alertar para as possíveis consequências negativas das políticas de "soluções" fáceis e rápidas face aos problemas sociais e emocionais relacionados ao uso abusivo de substâncias (Fonseca & Bastos, 2012). Os pesquisadores deixam de ser sujeitos passivos às técnicas aplicadas no ambiente para agentes ativos de todas as etapas do estudo (Bucher-Maluschke, 2016). Através da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano, a avaliação dos quintais produtivos ampliou a compreensão da dinâmica de desenvolvimento, além de ter o processo como elemento fundamental da RBC nos mais variados contextos e com os mais diversos públicos.
O retorno dos resultados do projeto aos participantes foi uma fase importante, tanto no sentido de verificar com os participantes se os resultados encontrados faziam sentido para seus processos de vida quanto para contribuir para a melhoria dos processos e contextos de vida e desenvolvimento. A Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano e a inserção ecológica não só devem contribuir para o avanço das ciências através de subsídios e produções científicas, mas também comprometer-se com a transformação das políticas públicas e a superação das vulnerabilidades que atravessam a vida e o desenvolvimento das pessoas (Coscioni et al., 2019).
A inserção ecológica dos pesquisadores no ambiente do grupo foi um processo lento, necessário para conquistar a confiança, e trazer a compreensão de que os princípios da economia solidária, como a cooperação e a solidariedade, são forças presentes no cotidiano (Girelli et al., 2017). A interação entre o indivíduo e o trabalho solidário se remeteu à análise da maneira como os sujeitos vivenciaram e deram sentido às experiências com os pares. A aproximação entre a equipe de pesquisadores e os participantes favoreceu a construção de processos proximais. Por um lado, os participantes se sentiram mais próximo dos pesquisadores e, por outro lado, os pesquisadores começaram a entender melhor a dinâmica que permeava os fenômenos que estavam sendo estudados. Além disso, permitiu um contato progressivo com o campo de pesquisa (Coscioni et al., 2019).
Ao analisar duas experiências de economia solidária para a ressocialização de pessoas com dependência de álcool e drogas em dois Estados brasileiros, Barreto et al. (2013) identificaram a dificuldade do paciente em lidar com o dinheiro. Ele é especialmente perturbador para o toxicômano que o utiliza prioritariamente para saciar o vício. Assim, a remuneração advinda de qualquer atividade pode ser um fator de risco para o tratamento (Barreto et al., 2013). Entretanto, o valor central da ecosol é o trabalho, o aprendizado e a criatividade em detrimento do capital dinheiro e da propriedade privada (Guareschi & Veronese, 2009). Os modos de trabalhar nos quintais produtivos sem a lógica do trabalho remunerado produziram novas aprendizagens para a comunidade nos aspectos da alimentação, arte, agroecologia e educação.
Esta pesquisa identificou que a atividade laboral contribuiu para a aproximação dos vínculos afetivos dos usuários com a família e com o CAPS, o que provocou melhoras na autoestima. A participação dos representantes religiosos nas atividades do projeto mediou positivamente à articulação deles com os equipamentos no território e a adesão aos encontros no grupo. A utilização da inserção ecológica para compreender as experiências dos indivíduos em vulnerabilidade social foca nos aspectos saudáveis do desenvolvimento psicológico das pessoas em detrimento das patologias individuais e sociais (Silveira et al., 2009).
A aplicação das estratégias de prevenção terciária do uso de drogas na comunidade demanda a identificação das articulações do indivíduo nos sistemas ecológicos. A relação pesquisadora-objeto pesquisada e as observações sistematizadas (Bucher-Maluschke, 2016) contribuíram para a devolução sequencial dos resultados da pesquisa durante os processos da supervisão clínico-institucional e da articulação da rede. As supervisões de grupo são estratégias e espaços de debate importantes para fortalecer o processo de pesquisa e enriquecer os dados obtidos na inserção ecológica (Coscioni et al., 2019).
A cada dia torna-se mais premente agregar os esforços para possibilitar a construção de respostas satisfatórias para o problema-drogas (Alarcon et al., 2012). Na verdade, nenhuma droga pode ser em si mesma leve ou pesada, senão desencadeada pelas interações das diferentes opiniões sobre as questões de interesse comum, com funcionamento regular em uma matriz ideológica específica (Cervinka et al., 2011; Lehmann et al., 2018; Seifert, 2014). O julgamento pertinente derivou do processo entre a substância química, a pessoa, o contexto e o tempo, que ocorreu no microssistema e manifestou aspectos adequados ou inadequados conforme as regras da farmacodinâmica e da farmacocinética no corpo.
A triangulação das políticas sobre drogas, ecosol e agricultura familiar no macrossistema favoreceu a organização temporal dos vínculos afetivos no território e a inter-relação dos papéis. Os incentivos para a aquisição de gêneros alimentícios diversificados, produzidos em âmbito local e preferencialmente pelos empreendedores familiares, contemplaram os princípios dessas políticas públicas, que determinam a estruturação dos serviços mais próximos do convívio social dos usuários.
A rede de assistência às pessoas, que apresentam problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, é centrada na atenção comunitária organizada em uma rede de serviços de saúde, com ênfase na reabilitação e (re) inserção social dos seus usuários (Alarcon et al., 2012). A heterogeneidade, que marca a realidade brasileira, coloca desafios especiais às políticas públicas no combate às desigualdades. A inserção ecológica ofereceu aos profissionais do serviço possibilidades relevantes no âmbito da interação do Estado, com a dependência química, a diminuição gradativa das recaídas, fortalecimento das redes de apoio e estratégias para a redução de danos.
Este estudo teve por objetivo avaliar a implementação de um projeto de ecosol no contexto de um grupo de reabilitação para dependentes químicos. A experiência da inserção ecológica durante a construção de quintais produtivos nas residências das famílias dos usuários serviu como uma ferramenta terapêutica alternativa durante o processo de reabilitação. O estudo contribui como uma estratégia para a consolidação da Lei 11.343/2006, por meio da inclusão social, enquanto propostas alternativas às medidas de internação e abstinência total.
Optou-se pela implantação dos quintais produtivos, enquanto estratégia de RBC, que envolveu os usuários e as suas famílias no processo participativo do tratamento, e da articulação dos profissionais da rede. Ambos exerceram forte influência na (re) significação dos papéis e do lugar social dos indivíduos em situação de vulnerabilidade social agravada pelo abuso de drogas. O conjunto das metas para implementar o projeto de geração de renda, oportunizou a satisfação pessoal dos envolvidos por meio do aprimoramento das ações da rede em parceria interinstitucional, adesão terapêutica dos usuários, produção de interações menos adversas com a atividade laboral e produtiva. A inclusão social na comunidade lhes permitiu melhores condições de vida por meio do trabalho solidário e das práticas sustentáveis. A relação pesquisador-participante sofreu um estreitamento no campo das experiências compartilhadas, o que potencializou a conjunto de estratégias para os desafios.
Dentre as limitações deste estudo, destaca-se a ausência da análise interdisciplinar sobre os efeitos dos quintais produtivos na perspectiva da RBC, por meio da utilização de marcadores de dados neurobiológicos complementares de eficácia. Também não foram identificados estudos de inserção ecológica aplicados em grupos de reabilitação ou outros serviços de saúde mental para pessoas com dependência de álcool e outras drogas.
Estudos futuros poderão propor intervenções para os dependentes químicos relacionados aos seus quadros clínicos, instabilidade no prognóstico e no tratamento, levando em consideração a multicausalidade contextual dos possíveis agravos. Ademais, torna-se relevante o acompanhamento longitudinal dos empreendimentos solidários desenvolvidos na comunidade dos dependentes químicos, as suas experiências e transformações fundamentadas na Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano.