Introdução
Este artigo discute os impactos da cooperação bilateral entre o Brasil e a Guiné-Bissau, via Agência Brasileira de Cooperação (ABO), para o embate contra a criminalidade transnacional, no eixo do Atlântico Sul. Tais ilícitos são frequentes nas diferentes rotas entre esses países, sendo importantes questões de segurança no contexto das relações Sul-Sul (United Nations Office on Drugs and Crime - UNODC, 2011). Ambas as nações são parceiras na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (cPLP), que também conta com Cabo Verde e Angola, dentre outros Estados. A CPLP busca, além de projeção internacional, ampliar as capacidades dos seus signatários, especialmente, os do continente africano, a fim de gerar desenvolvimento e segurança sustentáveis (Bernardino; Leal, 2011). Cabe destacar que as relações de Brasil e Guiné-Bissau foram estreitadas a partir da reaproximação brasileira com o continente africano, em 2003, no princípio do primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva (Relações..., 2021).
Além das ações por meio da CPLP, o Brasil possui projetos bilaterais com a Guiné-Bissau, gerenciados pela ABO, órgão subordinado ao Ministério das Relações Exteriores (MRE), criado em 1987, sendo importante partícipe e, por vezes, coordenador de reuniões, capacitações, seminários e negociações internacionais (Brasil, 2022). É importante frisar que, no século XXI, o Brasil teve a alternância de poder entre outros três governantes, além da mencionada gestão de Lula, o que gerou distintas priorizações em suas relações exteriores, principalmente em políticas de Defesa e Segurança (Loureiro, 2020).
Em relação à Guiné-Bissau, preliminarmente, é pertinente citar a sua alcunha pejorativa de primeiro "narco-estado" da África (Cordeiro, 2007). Tal conceito remete a qualquer país cuja economia depende da comercialização das drogas (Holligan, 2019), dinâmica pertinente à Guiné-Bissau que, desde o início dos anos 2000, tem sido conectada com o narcotráfico pelos parceiros internacionais, com crescentes apreensões de cocaína (Nau, 2021; ONU, 2019). Há mais de uma década, essa nação não consegue deter o seu papel no comércio internacional de drogas, estando organizada em torno da facilitação do tráfico, com expressivos carregamentos de cocaína da América do Sul, que cruzam continuamente o Atlântico (Insight Crime, 2019).
No Atlântico Sul, espaço em que o Brasil busca projetar a sua liderança estratégica, o Estado africano em análise é componente central na conexão entre os produtores de cocaína e os mercados consumidores europeus (Global Organized Crime Index, 2019). Vale salientar que, na América do Sul, países como a Bolívia, a Colômbia, o Equador, o Peru e a Venezuela estreitam os referenciados elos com a África Ocidental. Com isso, a Guiné-Bissau tem demonstrado papel central nas dinâmicas envolvendo os ilícitos em análise, tanto em sua própria região quanto nos direcionamentos para a União Europeia (Andres, 2007).
Cabe evidenciar que o tráfico marítimo no Atlântico Sul, no qual está parte do entorno estratégico das nações em estudo, ocorre majo-ritariamente ao longo das costas sul-americanas e do próprio continente africano, como no caso do comércio transatlântico de drogas (Pimentel, 2018). Para incrementar o apoio brasileiro à contenção desses fluxos ilícitos, a ABO realizou, desde o início dos anos 2000, quatro projetos na esfera da Defesa em parceria com a Guiné-Bissau, sendo duas capacitações e duas cooperações técnicas, e dez projetos no setor da Segurança, além de possuir, também, outras duas iniciativas em execução com o mesmo Estado, no campo da Defesa e Segurança, cujo destaque cabe para o Centro de Formação das Forças de Segurança da Guiné-Bissau (Brasil, 2022). Perante tal situação, o presente artigo busca responder à seguinte questão: a relação entre o Brasil e a Guiné-Bissau, por meio da ABO, auxilia na capacitação do Estado guineense para dirimir os fluxos dos crimes transnacionais?
Como argumento da pesquisa, estima-se que essa cooperação bilateral fortalece institucionalmente a nação africana, particularmente as suas Forças de Segurança, colaborando em alguma medida para o combate aos ilícitos recorrentes no espaço geográfico compreendido entre as fronteiras do Estado brasileiro e do território guineense, via Oceano Atlântico. Nesse contexto, o objetivo do artigo é apresentar as áreas de cooperação brasileira, por meio da ABO, junto à Guiné-Bissau, de 2003 até 2021, que possam ter favorecido a capacitação do Estado guineense, principalmente no combate aos tráficos internacionais, abrandando as suas demandas securitárias.
Dessa maneira, entre os objetivos específicos consta identificar as interações da ABO junto à Guiné-Bissau, no referenciado recorte temporal; apresentar acontecimentos de circulações ilícitas de drogas, de armas e de seres humanos vinculados ao eixo e ao período em análise; e, por fim, recomendar possibilidades de ações brasileiras que contribuam para a capacitação e o fortalecimento da Guiné-Bissau contra os tráficos observados e que, consequentemente, possam direcionar novos esforços da ABO, impactando efetiva ou potencialmente para esse enfrentamento transnacional. Destaca-se que o termo transnacional é próprio do que ocorre em um plano diferente do estatal, deixando de respeitar os limites impostos pelas fronteiras dos Estados, não tendo como atores os governos ou os seus representantes, mas sim interesses particulares característicos, lícitos e ilícitos (Werner, 2009).
Em termos metodológicos, essa pesquisa se estrutura a partir da apresentação de dados qualitativos sobre a evolução das relações institucionais entre o Brasil e a Guiné-Bissau, no decorrer do século XXI, sob a liderança da ABO, com atenção ao campo da Segurança. Para subsidiar a consecução dos objetivos anteriormente assinalados, serão reveladas as informações dos principais projetos, concluídos e em andamento, entre o Brasil e a Guiné-Bissau, a partir de consultas ao site da ABO, que possivelmente têm beneficiado e fortalecido as instituições guineenses.
Essa ferramenta institucional de pesquisa permite obter e expor dados quantitativos, que serão apresentados através de dois quadros, além de qualitativos, com a descrição das atividades realizadas. Tais iniciativas foram, especialmente na área da Defesa e Segurança, relevantes contra o narcotráfico ao longo do século XXI, em razão de evidenciarem a contribuição brasileira para a capacitação dos diferentes agentes de segurança daquele país.
Ademais, serão utilizados dados qualitativos, de sites de Organizações Internacionais, a fim de identificar e estabelecer uma provável relação entre os países em estudo, alguns ilícitos existentes e a demanda pela capacitação das forças de segurança da Guiné-Bissau. Como exemplos, foram pesquisados relatórios globais disponíveis sobre o tráfico de drogas, além das apreensões de armas e tráficos de seres humanos.
De modo geral, percebe-se que há descontinuidade de dados precisos sobre o tema, que permitam quantificar os impactos para as relações lideradas pela ABO em favor da Guiné-Bissau. Com efeito, serão recomendadas algumas possibilidades de ações brasileiras colaborativas, que contribuam para a capacitação dos agentes e o fortalecimento da Guiné-Bissau contra os tráficos observados.
Com a manipulação e a compilação dos dados obtidos, esses elementos permitirão responder à pergunta do trabalho, buscando identificar se a relação entre o Brasil e a Guiné-Bissau, por meio da ABC, auxilia na capacitação do Estado guineense para dirimir os fluxos dos crimes transnacionais. Assim, o argumento formulado encontrou sustentação na análise das fontes, sob o aspecto de quais ações foram desenvolvidas pela ABO junto à Guiné-Bissau, com especial repercussão no domínio da Defesa e Segurança, diante do conflito contra os trânsitos irregulares de entorpecentes, armamentos e pessoas, segundo as referências selecionadas para o trabalho.
Para isso, a pesquisa priorizou a busca de dados qualitativos da atuação da ABO e das ocorrências dos crimes internacionais, conforme as definições temporal e geográfica sinalizadas. Dessa forma, tais levantamentos permitiram identificar a cooperação brasileira, que otimiza a atuação da Guiné-Bissau para enfrentar os traficantes, norteando uma resposta ao problema em estudo, ratificando o argumento referenciado. Sequencialmente, haverá a identificação de aspectos da formação da Guiné-Bissau, a apresentação de algumas ocorrências de crimes transnacionais, na rota e período delimitados, e o apontamento dos atos brasileiros liderados pela ABO.
A fragilidade da formação guineense potencializada pelos crimes transnacionais
Essa seção tem por finalidade identificar aspectos da origem da fragilidade estatal da Guiné-Bissau e alguns crimes no eixo proposto, entendidos como fundamentais ao presente estudo, em razão da debilidade institucional, da violência e da insegurança causadas. Preliminarmente, há uma percepção de que as entidades policiais e judiciárias na região da África Ocidental são carentes de melhor preparo para as suas funções, o que estimula as atividades das máfias internacionais (Andres, 2007). O dinamismo da criminalidade organizada transnacional abarca um conjunto de áreas, como os tráficos de drogas, de seres humanos e de armas, que sejam cometidos em ao menos dois Estados ou através de um crime cometido em um Estado, mas cuja preparação tenha ocorrido em outro (Nau, 2021).
Essa forma de interação aumentou entre as nações a partir das repercussões da globalização, interferindo no crescimento do fluxo de pessoas, dinheiro e informação, franqueando mais espaço às ocorrências dos crimes internacionais (UNODC, 2009). Como exemplo mais recente, as redes criminosas inovaram ao efetuar o tráfico e o comércio de drogas por modernas ferramentas de difusão de informações como o WhatsApp e o Telegram, proporcionando melhores comunicações internas e com os locais de venda. Isso evoluiu de uma simples compra na rua, para entregas em locais indicados pelo consumidor ou, ainda, por via postal, com empresa de remessa de encomendas (Ferro, 2019).
Nesse contexto, o Brasil e a Guiné-Bissau sofrem ações constantes do crime organizado transnacional, que engloba várias modalidades de delitos ameaçadores da segurança coletiva, como os já citados tráficos de narcóticos, de armas e de pessoas, dentre outros (Werner, 2009).
Outrossim, a agenda securitária internacional das chamadas novas ameaças inclui, entre outros, o combate aos já referenciados tráficos (Pereira, 2020). Salienta-se que, nos últimos anos, 25% da produção mundial de cocaína passou por essa região, destinada ao continente europeu, o que preocupa as autoridades brasileiras e integra a agenda de Defesa e Segurança do país no Atlântico Sul, fomentando a cooperação com os Estados africanos (Pimentel, 2018). Em considerável medida, a fragilidade das nações desse continente advém do passado, como no caso da Guiné-Bissau, que era uma colônia de tráfico e contou com um tratamento desigual da sua metrópole, Portugal, diante das demais colônias (Carvalho, 2016).
A exploração na colonização da África contribuiu para que os europeus obtivessem exportações baratas, por meio do abuso da mão de obra local, e adquirissem recursos naturais a baixo custo, impulsionando a falta de equilíbrio entre os Estados independentes (Amin, 1972). Contra essa violência, a Guiné-Bissau manteve um consenso coletivo anticolonial, que potencializou as tensões e os conflitos para a expulsão dos colonizadores portugueses (Chazan et al., 1999). Desde então, a sua estrutura de Defesa foi prejudicada e passou a refletir, possivelmente, uma consequência organizacional advinda dessa guerra colonial, travada a partir de 1963, contra o regime exploratório imposto pelos portugueses (Pereira, 2020).
Paralelamente, é significativo frisar que o supracitado desequilíbrio continental contrastou com o desejo de união entre os Estados e favoreceu os interesses pela formação de uma comunidade comum, a qual foi denominada Organização da Unidade Africana (OUA), em 1963, visando a aceitação da igualdade por todas as nações (Cervenka, 1977).
A mencionada intenção de união também refletiu um ideal pan-africanista, sendo essencial nas lides contrárias ao colonialismo e para o comprometimento do continente nas disputas internacionais, que estavam em curso no transcorrer da Guerra Fria (Oliveira, 2014). Nesse período, a segurança nacional estava estruturada com esforços voltados para a proteção da soberania dos Estados, sendo esses os próprios atores responsáveis por fazerem a gestão e proverem as respectivas seguranças domésticas (Nau, 2021). No mesmo sentido, a partir do contexto da Guerra Fria, o sistema internacional passou por relevantes mudanças, precisando adaptar-se às necessidades globais, majoritariamente decorrentes das imposições das principais potências dominantes, o que não incluía qualquer membro da OUA (Castillo, 2008).
No entanto, apesar de todo o esforço conjunto no processo da OUA, a África continuou sendo habitualmente enquadrada à margem do sistema mundial em diversos assuntos da agenda internacional, provavelmente como reflexo das opressões pretéritas suportadas (Amin, 1972). Ademais, embora não tenham existido conflitos bélicos notáveis entre as nações do continente, em grande parte devido à fundação da OUA, uma considerável quantidade de Estados africanos permaneceu com capacidade limitada para contornar problemas internos de segurança, expondo as suas fragilidades institucionais (Pereira, 2020).
Após as independências dos países, alguns dos governantes responsáveis pelo estabelecimento da OUA conseguiram manter o seu poder por mais de vinte anos (Claphan, 1996). Sendo assim, com a crença nos ideais firmados na Organização, esses diferentes líderes concordaram na manutenção dos limites fronteiriços existentes, decorrentes das divisões demarcadas ao longo do período colonial, o que garantiu em grande proporção a segurança contra eventuais invasões territoriais de vizinhos e o respeito à soberania de cada país (Cervenka, 1977).
Cabe lembrar que, na África daquela época, os debates em torno do poder não estavam fundamentados no domínio das extensas terras existentes, já que elas eram bastante disponíveis diante de uma coletividade diminuta (Oliveira, 2014). Apesar de não ter grande extensão territorial para administrar, o governo da Guiné-Bissau teve a sua história marcada, desde a sua independência de Portugal, em 1974, por grandes restrições e desestruturações estatais (Zeni, 2018). Isso levou essa nação a carregar consigo a notoriedade de ser um dos Estados mais pobres da África Ocidental e do mundo, em decorrência dos problemas internos e da evolução limitada durante o seu período pós-independência (Nau, 2021).
Na perspectiva de progresso comum no continente, com o foco sobre o potencial da administração pública e do capital humano formado para isso, apropriado para o período de evolução dos Estados recém-independentes, a Guiné-Bissau se destaca como um exemplo de nação que não desenvolveu uma base social e educacional, sobretudo de escolas com ensino regular. Isso resultou na necessidade de imigração de pessoas de Cabo Verde e de outros países para serem os servidores do seu governo (Carvalho, 2016).
Em relação às infraestruturas públicas necessárias, alguns chefes de Estados já haviam apontado deficiências, de modo geral, no continente desde a idealização da OUA, como os empecilhos advindos das demandas por melhores telecomunicações, estradas e ligações aéreas. Essas melhorias alavancariam as integrações regionais, o aumento do comércio e, desse modo, as evoluções das nações (Cervenka, 1977). Contudo, mesmo após décadas, no século XXI a Guiné-Bissau ainda é o reflexo de uma sociedade que assume a sua falta de capacidade de dar resposta a muitas necessidades emergenciais em diversos setores da gestão estatal (Guiné-Bissau, 2014).
No campo econômico, a reforma monetária pós-independência criou o peso guineense em 1976, com a característica de ser uma moeda de elevado custo para a conversão, mantendo a pauta exportadora voltada prioritariamente para o comércio da castanha de caju, além da grande dependência de importações, o que elevou a inflação e agravou a pobreza, abrindo caminho para a busca popular por atividades laborais alternativas, entre elas, as ilícitas (Rodrigues, 2016).
Nesse sentido, mais especificamente sobre o domínio da Defesa e Segurança no Estado guineense, a debilidade tem sido caracterizada pelos problemas estruturais enfrentados nas suas Forças Armadas, bem como pela falta de modernização das suas organizações policiais, que permanecem com limitada capacidade de proteger o seu próprio território (Pereira, 2020).
Além disso, um quadro político bastante desfavorável também gerou instituições manipuladas e promoveu o narcotráfico no país, em razão das entidades precárias e com gestores supostamente fáceis de corromper (Carvalho, 2016). Dessa maneira, os tráficos de drogas, de seres humanos e de armas serão abordados, a fim de explicitar ocorrências impactantes para a Guiné-Bissau, bem como a possibilidade de serem dirimidas a partir de interações bilaterais junto ao Brasil.
O tráfico de drogas
O tráfico de drogas persiste como um relevante problema da África Ocidental, pelo elevado consumo dos seus produtos e pelos grandes montantes apreendidos (Nau, 2021). Conforme as avaliações do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, o mercado da cocaína traficada através da mencionada região progrediu a partir dos anos 2000, representando um valor comercial de quase US$ 2 bilhões anuais já no final da primeira década do século XXI, muito próximo ao PIB da Guiné-Bissau (UNODC, 2011; 2022).
Referente às outras categorias de narcóticos encontradas nesse país africano, a heroína e as drogas sintéticas são contrabandeadas em menor volume e não refletem uma significância de lucros tal qual o movimento financeiro decorrente do comércio da cocaína, sendo que essa demanda uma infraestrutura expressiva para o seu transbordo para outros pontos da África, para a Europa e para os mercados americanos do Norte (Insight Crime, 2013; Global Organized Crime Index, 2019).
Um documento do Centro Africano de Estudos Estratégicos também apontou a situação da Guiné-Bissau, relatando como as organizações do tráfico de drogas da América do Sul se estabeleceram naquele país, com destaque para a sua disseminação, enquanto os criminosos buscam novas rotas para os entorpecentes destinados ao continente europeu (O'Regan & Thompson, 2013). Essas vias de transportes de entorpecentes que passam pela África Ocidental ganharam maior significância a partir de meados de 2000, por estarem estrategicamente situadas entre a América do Sul e a Europa, facilitando as circulações do tráfico pelos aeroportos, portos marítimos e por vários trajetos costeiros (Nau, 2021).
Em relação ao consumo dessas drogas transportadas até a Europa, presumivelmente tendo passado pela África Ocidental, estima-se que, apenas em 2020, cerca de 1 milhão de cidadãos europeus adultos fizeram uso de heroína, 3,5 milhões de pessoas utilizaram a cocaína e mais de 22 milhões usaram a cannabis (União Europeia - UE, 2021). Nesse continente, a Holanda possui destaque nas dinâmicas do narcotráfico, pois a capilaridade da sua extensa malha de transportes facilita a circulação dos entorpecentes, além da proximidade com vários mercados lucrativos, o que torna o seu território propício ao fluxo global de drogas ilegais, impulsionadas a partir da América do Sul e da África (Holligan, 2019).
A título de exemplo, o ano de 2017 foi marcado pela apreensão de 142 toneladas de cocaína na União Europeia, Noruega e Turquia, sendo que a Bélgica e a Espanha detiveram 60% desse montante, enquanto Portugal ficou com quase 3 toneladas (Ferro, 2019). Em 2019, o recorde de 213 toneladas de drogas apreendidas assinalou um aumento da oferta na União Europeia, seja por meio da corrupção das autoridades portuárias ou da variação das vias e métodos para o contrabando (UE, 2021). Nessas adaptações evasivas, em 2020, 12 toneladas de cocaína foram acondicionadas e alocadas para transporte desde o Paraguai, sendo apreendidas na alfândega alemã (Brasil, 2023). Dessa forma, reitera-se a conexão entre o narcotráfico da América do Sul até a Europa que, por vezes, passa pelo território brasileiro e pela Guiné-Bissau.
Voltando a atenção ao Oeste do Oceano Atlântico, bem como aos guerrilheiros sul-americanos próximos das fronteiras, principalmente colombianos, nota-se que, no decorrer dos anos 2000, ocorreu uma proteção ao tráfico e à produção de narcóticos que seguiram sendo exportados mundialmente por itinerários que envolviam variadas nações, ampliando cada vez mais as redes do crime organizado internacional (Castillo, 2008).
Com o passar dos anos, o aperfeiçoamento dos métodos empregados pelos criminosos evoluiu os modos de transporte das drogas que, no presente, são vários e muito criativos para a dissimulação dos volumes, sendo a maior parcela decorrente da ingestão feita pelo próprio indivíduo transportador e, com menor representatividade, a partir dos fundos das malas carregadas (Nau, 2021).
No continente americano, os entorpecentes integram a agenda de segurança regional das principais autoridades, que consideram grave a situação da articulação internacional para o crime, pois os "chefes" das drogas da América do Sul enviam os seus produtos para a África Ocidental, onde está a Guiné-Bissau, e aliciam jovens da região para comporem as suas forças de trabalho longe da América (Holligan, 2019). Além disso, um corredor de transporte mal monitorado liga o Brasil e a Venezuela com o supracitado país africano, com consideráveis fluxos de saída de cocaína para a Europa (Insight Crime, 2013). Em 2019, durante a ocorrência de uma ação cooperativa entre a Polícia Federal do Brasil (PFB), as Forças Armadas do país e a Drug Enforcement Administration (DEA),1 dos Estados Unidos da América (EUA), foram encontrados cerca de 940Kg de cocaína em uma embarcação na costa brasileira (Brasil, 2019b). Em relação à colaboração externa para o combate ao narcotráfico no espaço do subcontinente sul-americano, ressalta-se a existência de uma base estadunidense na Colômbia, com múltiplas outras finalidades, o que torna o país latino um importante aliado dos EUA na região (Castillo, 2008).
Ademais, como exemplo da importância de colaborações exógenas, tal qual esse artigo pretende demonstrar pelas iniciativas brasileiras, na Guiné-Bissau, país por vezes intermediário do percurso mundial das drogas conforme até aqui exposto, um ex-chefe da marinha guineense foi detido por agentes dos EUA, em 2013. Estes, que estavam disfarçados de membros das FARO, receberam a cobrança de US$ 1 milhão por cada tonelada de cocaína que passasse pelo território guineense (Insight Crime, 2019).
Em que pese a existência de ações corruptivas por parte das autoridades bissau-guineenses, no transcorrer de 2015, o governo do país destinou cerca de US$ 20 milhões para as despesas das suas Forças de Segurança, incluindo as verbas para o combate aos tráficos, o que representou um declínio de cerca de US$ 4 milhões em relação ao ano de 2014, sem contar os prováveis valores desviados para outros fins (Pereira, 2020). Desse modo, os reflexos da corrupção podem potencializar o agravamento da criminalidade naquele país.
Nesse contexto, há evidências de que a corrupção esteja presente entre funcionários públicos, em vários níveis do aparato estatal, com conexões junto ao crime organizado transnacional, especialmente no que concerne ao lucrativo mercado da cocaína (Global Organized Crime Index, 2019). A existência de dinâmicas corruptivas, associadas à fragilidade do sistema de justiça bissau-guineense, têm contribuído para a prosperidade do tráfico de drogas (O'Reagan; Thompson, 2013).
Além do possível envolvimento de atores políticos e empresariais nacionais, há também indícios de participação de militares de alto escalão nas dinâmicas de narcotráfico, o que tem permitido aos narcotraficantes o acesso não apenas a recursos que potencializam suas práticas, mas também a instalações militares do país e mesmo ilhas desabitadas, como no Arquipélago dos Bijagós (Global Organized Crime Index, 2019).
Em razão da fragilidade da governabilidade na Guiné-Bissau, além da ocorrência de crises políticas e militares, os diferentes Chefes de Estado não conseguiram elaborar uma estratégia para apontar as prioridades nacionais no domínio da Defesa, tampouco programar uma gestão específica contra o tráfico de drogas e os seus agentes externos promotores (Pereira, 2020). As presenças de atores estrangeiros, como dos países vizinhos ou mesmo latino-americanos, vinculados ao narcotráfico, também prevaleceram no cenário criminal dessa nação (Global Organized Crime Index, 2019).
Como paliativo, na Guiné-Bissau, o plano de governo 2014-2018 assinalou o combate a esse tráfico e ao crime organizado entre as prioridades da política externa nacional, visando uma coordenação de esforços com outros países, ainda que sem propósitos bem ajustados com os seus vizinhos mais próximos do Golfo da Guiné (Guiné-Bissau, 2014).
Na Guiné-Bissau, grande parte das apreensões (98%) ocorrem em sua capital, Bissau, principalmente na região do Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira, e o restante (2%) nas fronteiras do país (Nau, 2021). A cannabis é uma das drogas mais apreendidas e tem sido consumida, fundamentalmente, pelo público jovem guineense, sendo também bastante traficada para os mercados europeus. Ela é plantada e concentrada ao longo da fronteira com o Senegal, onde é preparada para a venda ao exterior (Global Organized Crime Index, 2019). Nesse último país citado há um escritório regional do DEA que, assinalando a atuação do narcotráfico sul-americano, revela atenção às remessas significativas de cocaína que utilizam a África como base de trânsito, cujo destino são os EUA ou a Europa (EUA, 2023b). Portanto, é válido considerar que o narcotráfico impacta amplamente nas interações dos países em foco neste artigo, demandando efetivas ações cooperativas entre eles.
Os tráficos de seres humanos e de armas
Preliminarmente, ambos os tráficos em tela podem impactar na rota em análise, pois geram tensões em muitas partes do globo terrestre. É essencial saber que, atualmente, a pobreza e a vulnerabilidade interna dos Estados estimulam o tráfico humano em toda a África Ocidental, o que aflige a Guiné-Bissau, podendo também ser caracterizado como uma espécie de escravidão moderna, inclusive com situações que envolvem a prostituição infantil, a partir de recrutamentos que estimulam a ambição dos menores, sob a ilusão de serem modelos ou jogadores de futebol, como no considerável número de crianças guineenses que vivem nas ruas do Senegal (Pereira, 2020). Segundo a Central Intelligence Agency (CIA), dos EUA, os traficantes de seres humanos empregam como forma mais prevalente de ação a exploração de vítimas guineenses, crianças, para a mendicância (EUA, 2023c).
Cerca de um terço dos menores que vivem nas ruas do referenciado país vizinho são guineenses, contrastando com as ocorrências de exploração sexual de outros em áreas turísticas, como nas pousadas, áreas atrativas para a interceptação de crianças que sobrevivem por meio da mendicidade (ONU, 2016). Nessas situações, as meninas são sujeitas ao tráfico sexual e, ainda, podem ser coagidas a atuarem como vendedoras ambulantes, o que evidencia essa nação como uma das origens da exploração laboral envolvendo menores de idade, sendo forçados a mendigar, além de trabalhar nas minas e no setor agrícola das nações lindeiras, como o Senegal (Global Organized Crime Index, 2019).
A exploração infantil, nesse contexto, é a maneira mais recorrente de tráfico de seres humanos no país, com situações de migração clandestina ao longo da costa oceânica, impulsionando grande número de jovens a fugirem para outras regiões em busca de melhores expectativas para as suas vidas (ONU, 2017).
Nas áreas do interior, o trabalho dos contrabandistas de seres humanos inicia com a seleção, em seguida passa pelo aliciamento e possibilita, entre outras tarefas, a função de guia, como ocorre nas regiões administrativas guineenses, de Norte à Leste, denominadas Oio, Bafatá e Gabu, a fim de conduzir os traficados para além das fronteiras nacionais, seja também pelas rotas do norte para a Líbia ou por meio do deserto, via Mediterrâneo Central (Global Organized Crime Index, 2019).
Desse modo, conforme a CIA, os meninos são transportados para o sul do Senegal, a fim de realizarem trabalhos forçados, e as meninas são submetidas ao serviço doméstico, além disso, também são alvos da prostituição infantil na Guiné, no Senegal e em Gâmbia (EUA, 2023c).
Esse mercado é importante fonte de recrutamento de jovens, com organizações criminosas que exploram o tráfico de pessoas vulneráveis (Ferro, 2019). Já no Oeste, em parte dos casos, alguns donos de hospedarias na Guiné-Bissau são agentes importantes que, notadamente, no Arquipélago dos Bijagós, empregam intermediários da região para indicar e cooptar as propensas vítimas, visto que dentre as pouco mais de 85 ilhas, em torno de 20 são desertas e sem fiscalização, motivando maior insegurança, o que pode estimular as ocorrências desse e de outros tipos ilícitos, como o tráfico de armas (Nau, 2021; Pereira, 2020).
No contexto do tráfico mencionado, o relatório de 2020 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime abrangeu 81 países e registrou a apreensão de 550 mil armas de fogos em parte da década de 2010, com a estatística de quase quatro armas curtas, como pistolas ou revólveres, em cada dez confiscadas (UNODC, 2020).
Na Guiné-Bissau, a maioria dos armamentos foi adquirido por meio do apoio externo, como os recebidos no período da Guerra Fria e no final dos anos 1990, quando ocorreu uma guerra civil, e teve como impacto o aumento das negociações de armas curtas para as ações dos delinquentes envolvidos com gangues e disputas políticas pelo poder, fato este que afetou intensamente a gestão da segurança pública do país (Pereira, 2020).
Para o combate ao tráfico de armas, em 2021, a polícia guineense recebeu uma capacitação da Interpol, que é uma organização intergovernamental de cooperação policial, envolvendo 194 países em trabalho conjunto para apoios técnicos e operacionais, que possui a meta de lutar contra a criminalidade organizada transnacional (Instituto Camões, 2021; Werner, 2009). Dessa maneira, quase trinta dos integrantes da polícia da Guiné-Bissau concluíram um curso que visou o aprimoramento nas áreas vinculadas à investigação desses crimes e de outros relacionados (Polícias..., 2021).
Ainda na África, entre os países membros da CPLP, os ilícitos são recorrentes. Como exemplo, Angola, situada ao Sudeste da Guiné-Bissau, está na frente em número de apreensões de armas leves (UNODC, 2020). No Noroeste guineense, no arquipélago de Cabo Verde, há indícios da entrada dissimulada de ilícitos provenientes do tráfico estrangeiro, a partir dos seus principais portos, gerando a demanda pelo aumento da fiscalização, o que fica sob encargo do Centro de Operações de Segurança Marítima (COSMAR) (Cabo Verde, 2023).
Igualmente, na Guiné-Bissau o tráfico de armas está agrupado, sobretudo, na faixa de fronteira, além da capital, e foi possivelmente decorrente da ligação regional de décadas com grupos do Golfo da Guiné, oriundos das intensificações dos conflitos na própria África Ocidental (Global Organized Crime Index, 2019).
Em relação ao outro espaço de interesse deste artigo, na América do Sul, que tem ligação com a Europa, passando pela África Ocidental, o UNODC aponta que a maior quantidade de armas traficadas foi encontrada na Colômbia e na Argentina, considerando que não há dados consistentes sobre o Brasil, segundo o mesmo levantamento da entidade (UNODC, 2020). Desse modo, no eixo em foco, infere-se, parcialmente, que tanto o tráfico humano quanto o de armas podem ter consequências para a parceria da Guiné-Bissau com o Brasil, embora não tenham o mesmo impacto que o tráfico de entorpecentes, exposto na subseção anterior, em razão da expressiva evolução do narcotráfico nas regiões mencionadas nesse texto.
As ações da ABO para a capacitação guineense contra os ilícitos transnacionais
Esta parte derradeira do desenvolvimento do artigo tem o objetivo de discorrer sobre a cooperação brasileira com o Estado guineense, por meio da ABO, e as concomitantes dificuldades impostas pelo narcotráfico na área da Defesa e Segurança. Para isso, é importante notar que o crime organizado transnacional pode ser definido como uma associação estratégica de pessoas que opera de modo supranacional, com a finalidade de auferir lucros por meio das atividades ilícitas (Werner, 2009).
Diante disso, a cooperação internacional, como a executada pelo Brasil junto à Guiné-Bissau, é imprescindível para o enfrentamento dos ilícitos nos âmbitos local e global, principalmente quando consideramos os investimentos em tecnologia necessários para conter os diferentes grupos criminosos existentes, a partir de Estados que tenham mais capacidades, recursos e meios disponíveis (Andres, 2007; UNODC, 2009).
Nesse contexto, de acordo com a Agência de Inteligência dos EUA, a falta de controle do governo guineense nas ilhas perto da capital, Bissau, facilita o tráfico de drogas (EUA, 2023c). Vale ressaltar que esse tráfico repercute, em âmbito mundial, uma imagem negativa da América do Sul, da qual o Brasil é integrante. Ele aparece como uma ameaça para a população civil, demandando um forte movimento antidrogas em seus Estados (Organização dos Estados Americanos - OEA, 2022). Apesar de a América do Sul estar afastada dos conflitos internacionais capitais, aparentemente fora da esfera de interesses das maiores potências, ela tem sido impactada pelo crescimento das atividades do crime organizado, especialmente atinentes ao narcotráfico (Castillo, 2008).
Tal qual o Estado brasileiro, a situação na Guiné-Bissau também parece agravada pelo fato de os traficantes contarem com redes de apoio informais, por meio das conexões com pessoas influentes cooptadas, que são atraídas pelos significativos lucros decorrentes do fluxo comercial dos narcóticos, o que potencializa a imagem negativa desse país africano junto à comunidade internacional (Pereira, 2020). Além disso, a participação de parcela dos militares no narcotráfico da Guiné-Bissau não deixa margem para dúvidas na sociedade civil nacional (Santos, 2014).
Outro dado alarmante, conectando as regiões em análise, consta no relatório do Centro Africano de Estudos Estratégicos, que apontou a entrada no território guineense de até 25 toneladas de cocaína provenientes da América do Sul, em 2012 (O'Regan & Thompson, 2013). A Guiné-Bissau, nesse sentido, serviria como um país de trânsito da cocaína sul-americana rumo à Europa (EUA, 2023c). Com isso, em um dos prováveis destinos do tráfico, como o território europeu da Holanda, pode existir uma movimentação contínua e clandestina de bilhões de euros decorrentes do comércio das drogas (Holligan, 2019).
Para conter a propagação dos supracitados ilícitos, no âmbito da CPLP estabeleceram-se acordos e convenções, por meio do Protocolo de Cooperação em Segurança entre os membros da comunidade (Nau, 2021). O Brasil, que participa de importantes organizações internacionais, tem uma diplomacia atuante em variados setores, como da segurança cooperativa, a fim de garantir os interesses próprios e dos seus colaboradores, principalmente com a assinatura de acordos com os membros da CPLP (Castillo, 2008).
Um exemplo disso aconteceu em 2008, com o Simpósio entre as Marinhas dos membros desse fórum que, a partir de 2015 recebeu a denominação de "Conferências das Marinhas da CPLP", cujos custos foram partilhados entre o Brasil e Portugal, evidenciando a relativa dependência dos membros africanos (Pimentel, 2018). Assim, representado pela sua Marinha, o Brasil fortaleceu seu papel de líder e mediador nessa cooperação regional, buscando implementar políticas de segurança mais abrangentes na região do Atlântico (Werner, 2009).
Da mesma forma, ao longo das últimas décadas, o apoio da ABC em outros setores contribuiu, em certa medida, para mitigar a fragilidade institucional da Guiné-Bissau, com muitos projetos conjuntos executados (Brasil, 2022). Na esfera educacional, em 2020, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNI-LAB) contava com cerca de 600 estudantes guineenses (Brasil, 2020). Em 2022, a Universidade Federal da Paraíba recebeu dois estudantes guineenses para cursarem a graduação em Relações Internacionais, através de uma ação conjunta do MRE e do Ministério da Educação brasileiro (Guedes, 2022). No quadro 1, a seguir, há exemplos de iniciativas em quinze distintas áreas, como administração pública, ciência e tecnologia, comunicações, meio ambiente e pesca.
Área | Total | Exemplo de projeto | Ano inicial |
---|---|---|---|
Administração Pública | 05 | Missão de apoio ao Governo da Guiné-Bissau para apresentação a Comissão de Construção de Paz da ONU | 2008 |
Agricultura | 09 | Curso Internacional de Produção Sustentável de Hortaliças | 2011 |
Ciência e Tecnologia | 01 | Apoio à Inclusão Digital na Guiné-Bissau | 2010 |
Comunicações | 01 | Missão de prospecção a Países em Desenvolvimento de Língua Portuguesa no âmbito da comunicação social | 2009 |
Cooperação Técnica | 02 | Missão de Prospecção para Elaboração de Projeto de Cooperação Técnica nas áreas de Desenvolvimento Agrário, Desenvolvimento Social, Pesca e Aquicultura, Agricultura, Minas e Energia, e Educação. | 2010 |
Desenvolvimento Social | 07 | Fortalecimento e capacitação na área de saúde, nutrição, cidadania e educação em Moçambique e Guiné-Bissau - Pastoral da Criança. | 2017 |
Educação | 35 | Missão para Apoiar a Reabertura da Universidade Amílcar Cabral | 2009 |
Indústria e Comércio | 01 | Apoio à Formação de Quadros de Comunicação Institucional para os Parlamentos dos Países de língua Portuguesa: Técnicas de Jornalismo e Relações Públicas | 2006 |
Justiça | 08 | Intercâmbios de conhecimento entre o Brasil e a Guiné-Bissau no Âmbito Eleitoral | 2017 |
Legislativo | 03 | 2008 | |
Meio Ambiente | 03 | Apoio à gestão e ao monitoramento de recursos hídricos nos países da CPLP | 2016 |
Pesca | 01 | Fortalecimento dos Setores Pesqueiros e Aquícola em Países Africanos | 2015 |
Relações Internacionais | 01 | Curso de Capacitação em negociações comerciais internacionais para países de língua portuguesa | 2008 |
Saúde | 09 | Fortalecimento do Combate ao HIV/ AIDS na Guiné-Bissau | 2012 |
Trabalho e Emprego | 04 | Apoio à realização do curso de capacitação "Contextos e desafios para a conquista do trabalho decente" | 2011 |
Total de projetos | 90 |
Fonte: Elaborado pelo autor com dados de Brasil (2022)
Percebe-se, no quadro 1, que o Brasil exerce uma relevante atuação em projetos nas áreas da agricultura, da saúde, da justiça e do desenvolvimento social. Nesses setores, a ABC colaborou com ações para combater o HIV e em prol da transparência dos pleitos eleitorais, da cidadania e da sustentabilidade. De modo semelhante, porém em maior extensão, o Estado brasileiro também manteve mais de trinta projetos voltados para o campo educacional, como a missão para apoiar a reabertura da Universidade Amílcar Cabral, ocorrida quase no final do segundo mandato de Lula (Brasil, 2022).
Além das referenciadas iniciativas da ABC, em âmbito mundial, o final da primeira década do século XXI foi marcado pelo pedido de ajuda do Secretário Geral das Nações Unidas para os Estados da região do Golfo da Guiné, da qual a Guiné-Bissau faz parte (Pereira, 2020). Sequencialmente, Angola assumiu a presidência da CPLP e apoiou a reforma do setor de Defesa e Segurança guineense, com uma missão estabelecida em Bissau, a partir de março de 2011. Isso evidencia que a instabilidade política guineense é uma preocupação que requer ajuda diplomática para reduzir as suas debilidades internas e externas, além de receber a cooperação de apoio técnico-militar dos membros da comunidade (Carvalho, 2016).
Retornando ao outro extremo longitudinal do Atlântico, mais precisamente na área sul-americana, é relevante frisar que a Argentina, o Brasil, o Chile e o Paraguai são nações de trânsito e distribuição do tráfico de entorpecentes oriundos da Bolívia, da Colômbia, do Paraguai e do Peru, cujo destino visa atender ao mercado consumidor europeu, passando pelo território africano, onde está a Guiné-Bissau (Castillo, 2008). Entretanto, talvez para compensar a participação no problema em questão, o Brasil, por meio de projetos de cooperação, buscou viabilizar o desenvolvimento da capacidade de países parceiros, por meio da construção de uma academia de polícia na Guiné-Bissau, impulsionando esse país para uma maior autodeterminação dos caminhos a serem tomados nos seus assuntos de segurança doméstica (UNODC, 2009).
Além disso, o Brasil foi importante colaborador no processo inicial de modernização das Forças de Segurança da Guiné-Bissau, o que pode ser ratificado pelas informações constantes no quadro 2. O Brasil formou uma parte considerável dos agentes para a polícia guineense, por meio da ABC e da PFB, cuja dificuldade foi aumentada pela instabilidade política do país africano (Brasil, 2022; Nau, 2021; Pereira, 2020).
Área | Projeto | Objetivo | Período |
---|---|---|---|
Defesa | Capacitação de militares da Guiné-Bissau | Fortalecer as relações bilaterais e incrementar o intercâmbio com um militar guineense cursando a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) | 2011- 2012 |
Programa de Cooperação Técnica em Defesa | O Programa tem o intuito de transmitir aos militares estrangeiros conhecimentos específicos da experiência militar brasileira | 2016- 2019 | |
Programa de Capacitação para militares | Capacitar militares estrangeiros nas escolas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica | 2019-2023 | |
Segurança | Centro de Formação das Forças de Segurança da Guiné-Bissau | Formar uma polícia tecnicamente bem preparada, modernizar os meios para a manutenção da ordem interna, bem como a cooperação internacional na repressão ao crime organizado na Guiné-Bissau | 2009- 2025 |
Curso de capacitação em Operações de Inteligência Policial no Centro de Formação das Forças de Segurança da Guiné-Bissau | Realizar curso de capacitação em Operações de Inteligência Policial no Centro de Formação para as forças de segurança da Guiné-Bissau | 2014-2015 |
Fonte: Elaborado pelo autor com dados de Brasil (2022)
Nota-se no quadro 2 que a ABC vem exercendo outras atividades significativas junto ao Estado guineense. Como exemplo, em 2019, mais um militar da Guiné-Bissau ingressou no primeiro ano do curso da AMAN, que possui duração de quatro anos, fato que também havia ocorrido em 2007 e 2008 (Brasil, 2019a; Araújo, 2012). Em dezembro de 2020, ocorreu a cerimônia de declaração dos novos Aspirantes a Oficial no supracitado estabelecimento de ensino, que forma os oficiais combatentes do Exército Brasileiro, a qual também contou com outro formando da Guiné-Bissau (Barros, 2020; Moury, 2018).
Como projeto mais emblemático constante no quadro 2, por mais de uma década a PFB segue empenhada em contribuir para a formação dos agentes de segurança da Guiné-Bissau. Nesse sentido, essa instituição já formou mais de 1.500 policiais guineenses para a repressão ao crime organizado transnacional, em grande medida atinente ao narcotráfico (Plessmann, 2022).
Essa cooperação brasileira tem enfrentado desafios significativos no campo da Defesa, uma vez que as apreensões de drogas mais significativas ocorrem por vias marítimas e são realizadas por embarcações militares espanholas e americanas (Pimentel, 2018). No mesmo contexto, além do narcotráfico ser relativamente recente na história guineense, ocorreram eliminações de autoridades importantes e confrontos à margem das regras do Estado de Direito, alavancados pela corrupção estatal (Carvalho, 2016). Em 2009, o Secretário-Geral e o Conselho de Segurança da ONU apelaram para o aumento da cooperação da comunidade internacional na África Ocidental, em razão do recrudescimento do comércio de cocaína naquele período e dos seus reflexos sobre os Estados, como na Guiné-Bissau, em que os mais altos estamentos do governo estavam sendo corrompidos, com o recebimento de propina em troca da facilitação da entrada das drogas ao território (Global Organized Crime Index, 2019).
Anteriormente, em 2007, foi estabelecido um recorde de apreensão de 650 quilos de cocaína e, pouco mais de uma década depois, a polícia parou e inspecionou um caminhão que transportava peixe congelado, com cerca de 800 quilos da droga escondidos junto à carga (Insight Crime, 2019). Na década seguinte, grandes apreensões ocorreram em 2013 e em 2019, como no caso de 1,8 toneladas de cocaína escondidas em sacos de farinha, estabelecendo um novo recorde conquistado pelos criminosos transnacionais no espaço guineense (Nau, 2021; Insight Crime, 2019). O país em questão tem se mostrado tão vulnerável aos crimes internacionais que eles, por vezes, ocorrem de maneira simultânea e combinada, tal qual no Brasil, como na prática do tráfico de armas para suprir a segurança nas atividades dos narcotraficantes (Furto..., 2019).
Além disso, há um constante aumento do poder dos grupos criminosos, que fazem do tráfico de drogas a sua principal atividade geradora de renda, associando simultaneamente os tráficos humano e de armas (Ferro, 2019). Para conter as ações desses diversos traficantes, por meio dos órgãos de fiscalização domésticos, foram identificadas as pistas clandestinas para o pouso de aviões no território da Guiné-Bissau, incluindo uma que era mantida pelas próprias Forças Armadas, que também são suspeitas de acobertarem o narcotráfico no país (Pereira, 2020).
Ademais, há discrepâncias consideráveis entre a quantidade de drogas supostamente apreendidas pelo governo e o volume estimado existente no país, dado que há a possibilidade de 30 toneladas de cocaína circularem, anualmente, pela Guiné-Bissau, evidenciando ser pouco representativa qualquer tentativa de calcular as reais grandezas transportadas, provenientes das negociações criminosas transnacionais (Insight Crime, 2019).
Diante de todo o exposto, é crucial destacar que a cocaína está sendo exportada em abundância para a Europa a partir da América do Sul, atingindo preços acessíveis em locais como Amsterdã, Liverpool e Manchester. O lucro de cada grama negociado contribui para o financiamento do crime organizado das drogas (Holligan, 2019). Em 2020, por exemplo, foram apreendidos 316 kg de cocaína em Hamburgo, na Alemanha, provenientes de uma rede criminosa que enviava toneladas dessa droga do Brasil para a Europa, em um cartel integrado com outros países da América do Sul, cujo transporte marítimo era mascarado em cargas lícitas (Brasil, 2023).
Para o Brasil, o narcotráfico via Atlântico Sul revela um grande problema, que constitui uma das suas maiores provocações nos temas de segurança pública, demandando engajamentos bilaterais seletivos na complexa e multifacetada costa africana, diante da fragilidade demonstrada pelos seus países (Pimentel, 2018).
É importante ressaltar que o Brasil enfrenta um aumento da violência interna relacionada ao tráfico de armas e drogas, que abastecem o crescente consumo dos dependentes, tornando o país um importante mercado para os entorpecentes, o que gera constantes atualizações dos métodos e práticas policiais para conter esses tráficos (Castillo, 2008).
Os ilícitos assinalados requerem uma estrutura de cooperação policial internacional, em que um sistema de conhecimento compartilhado, por meio dos profissionais de polícia, propicie a troca de informações e experiências (Werner, 2009).
Desse modo, a comunidade internacional depende de um amplo compromisso conjunto para combater o tráfico de entorpecentes, sendo esse um obstáculo que demanda a manutenção do empenho da ABC junto aos países da costa africana, a fim de tentar fortalecer a segurança dessa região (Andres, 2007; Pimentel, 2018). Adicionalmente, o DEA aponta que a escalada contínua do narcotráfico sul-americano para a Europa representa uma grave ameaça não só para os europeus, como também para os interesses estadunidenses naquela região (EUA, 2023b).
Por oportuno, conclui-se, de maneira parcial, que um esforço colaborativo internacional é imperativo para, reiteradamente, combater os reflexos do narcotráfico sobre a saúde dos cidadãos, nas governanças dos Estados afetados e na segurança mundial, tal qual a ABC segue realizando no século atual, conforme os projetos identificados nas Tabelas de cooperação expostas. Isso contribui para que nações, como a Guiné-Bissau, enfrentem com melhores condições as adversidades presentes e vindouras (ONU, 2021).
Conclusão
As sensibilidades geradas pela formação do Estado guineense e as diversas ocorrências de crimes transnacionais merecem a atenção da comunidade mundial, em especial das autoridades governamentais da própria Guiné-Bissau e do Brasil, aliado da CPLP e de ações bilaterais relevantes por meio do MRE e, particularmente, coordenadas pela ABC.
Cabe frisar que a delimitação espacial proposta neste artigo derivou, inicialmente, de uma percebida fragilidade institucional de ambos os Estados, por serem prováveis regiões de passagem dos tráficos que partem da América do Sul com destino ao continente europeu. Nessa situação, o território brasileiro pode ser tanto a zona de origem quanto de trânsito das drogas traficadas a partir dos entornos fronteiriços das suas nações vizinhas.
Em síntese, é admissível presumir que os grandes volumes de contrabandos de narcóticos apreendidos ratificam a fragilidade institucional dos países em estudo, além das suas deficiências de estruturas fiscalizatórias adequadas na área da Defesa e Segurança. Ainda, o progresso nos dois referenciados aspectos integra os obstáculos ao combate da criminalidade organizada internacional, considerando também a corrupção estatal em alguma proporção instalada nos campos público ou privado.
As informações expostas neste artigo indicam que a interação com o Brasil constitui o rol das prioridades do governo da Guiné-Bissau, em razão dos cerca de 100 projetos verificados. Além dessa comprovada assistência em diversas áreas, é importante destacar o desenvolvimento e o aperfeiçoamento dos mais de 1.500 agentes formados para as suas Forças de Segurança estatais, gerando maior autodeterminação ao Estado guineense. Portanto, essa é uma resposta pertinente à pergunta de pesquisa apresentada na parte introdutória, que buscava apurar se a relação entre ambos os países, por projetos de cooperação da ABC, auxilia na capacitação estatal para dirimir os fluxos dos crimes transnacionais.
Tendo em vista a fragilidade institucional, a vulnerabilidade do aparato fiscalizatório e a existência de dinâmicas de corrupção, observa-se que essa cooperação bilateral é extremamente vulnerável aos variados tráficos internacionais, que impactam na gestão dos setores de Defesa e Segurança dos governos do Brasil e da Guiné-Bissau. Os volumosos tráficos de drogas confrontam os poderes estatais e atravessam as porosas fronteiras, tanto da América do Sul quanto da África Ocidental, transitando sobre a área do Oceano Atlântico. Além disso, dados atinentes aos tráficos de armas e de seres humanos, expostos no desenvolvimento, apontam para a mobilização do crime organizado internacional, revelando respectivamente a possibilidade de exploração de menores e os fluxos ilícitos de armas curtas.
Constata-se que, na Guiné-Bissau, os impactos são potencializados pela reduzida capacidade estatal de controle marítimo dos tráficos costeiros transatlânticos. Diante do exposto, novas oportunidades de ações bilaterais, conduzidas pela ABC, seriam eficazes entre as forças navais de ambos os países, como no caso de exercícios militares conjuntos, seja somente em fases de planejamentos, do tipo jogos de guerra, ou com o emprego real de embarcações. Dessa forma, a primeira opção de adestramento reduz significativamente quaisquer custos operacionais, já a segunda é mais dispendiosa por envolver amplos meios e demandas logísticas, podendo ocorrer integrada em ações multilaterais com outras nações da CPLP ou potências militares atuantes no Atlântico Sul, como os EUA e os seus demais aliados.
Verifica-se, ainda, que o temor de violências, como as geradas pelo tráfico humano, força o deslocamento de muitas pessoas para outros países em busca de melhores perspectivas para as suas vidas. O supracitado crime pode ser reduzido a partir da manutenção do auxílio de instrutores brasileiros, representados pelo esforço da PFB, para a formação de mais profissionais da Guiné-Bissau aptos aos patrulhamentos fronteiriços. Ademais, os aportes de maiores investimentos em tecnologias para a identificação biométrica ou o reconhecimento facial de criminosos em aeroportos, além das vias de circulação terrestres, no contexto da cooperação bilateral em Defesa e Segurança, traçada pela ABC, poderia aperfeiçoar o combate das distintas redes atinentes aos tráficos internacionais de pessoas nessa rota.
Enfim, a contínua formação de novos agentes de segurança guineenses incrementará as ações de contenção do trânsito dos ilícitos transnacionais, o que impactará principalmente o narcotráfico, em razão da intensificação das medidas fiscalizatórias nas fronteiras terrestres e nas zonas portuárias da Guiné-Bissau, bem como nos seus aeroportos. No mesmo sentido, terão maior relevância as interações bilaterais além da CPLP, estabelecidas pelo MRE e pela ABC, contribuindo para atenuar a insegurança no espaço do Atlântico Sul. Com efeito, a disseminação de campanhas para o desarmamento civil, a conscientização dos prejuízos atrelados ao comércio das drogas, nos quais o Brasil pode partilhar exemplos domésticos, em determinado grau, positivos ou negativos, denotam capacidades para as parcerias em variadas áreas que, igualmente, poderão mitigar as ameaças de futuras instabilidades na Guiné-Bissau.