Introdução
No Nordeste do Brasil, a cidade de Fortaleza, capital do Ceará, despontava a partir da segunda metade do século XIX como um importante polo económico da região, sobretudo pelo desenvolvimento da cotonicultura, em especial durante a Guerra de Secessão estadunidense. Em paralelo, o governo imperial brasileiro iniciou largo processo de modernização da infraestrutura nacional, criando condições para a iniciativa privada atuar na construção de estradas de ferro e nas melhorias portuárias, a fim de permitir o escoamento dos principais produtos de exportação daquele momento: açúcar, algodão, café, sal, etc. As elites governantes cearenses aproveitaram essa situação para concentrar o fluxo económico em um único porto, reafirmando o status de capital de Fortaleza, mas a situação físico-geográfico de sua linha costeira trouxe diversos desafios para a criação de um porto que, não raro, estiveram presentes no cerne das preocupações dos Poderes Públicos1. O artigo objetiva analisar as ações empreendidas pelos engenheiros em suas intervenções no porto de Fortaleza entre 1869 e 1934, focalizando os efeitos e as consequências do emprego de técnicas e de tecnologias na linha costeira da cidade.
De acordo com os dados técnicos levantados pelo Departamento Nacional de Portos e Navegação (DNPN, 1932), a localização e a situação físico-geográfica do porto de Fortaleza se encontraram aquém dos requerimentos mínimos para a constituição de uma estrutura portuária de grande porte: encontrava-se em uma enseada aberta, sem proteção contra os ventos e as marés, exceto um pequeno conjunto de arrecifes em grés calcário na faixa litorânea (Departamento, 1932).
Os pontos assinalados pelo relatório permitem estabelecer o que foi merecedor de constante atenção por parte dos profissionais envolvidos nas operações portuárias. As profundidades do leito submarino, localização e registro dos canais, marés, correntezas e dos afloramentos rochosos, em suma, foram elencados como passíveis de intervenção técnica ou de controle das condições para a navegabilidade. O relato de José Barbosa Gonçalves, de 1912, distante vinte anos, mostra com detalhes certas similitudes narrativas encontradas:
O porto de Fortaleza consta de uma enseada aberta, distante cerca de três milhas da ponta do Mucuripe, que o resguarda mais ou menos dos ventos de leste. O ancoradouro, propriamente, se compõe de uma faixa desimpedida de duas milhas ao longo do litoral. Dessa distância, mar a fora, se encontram diversos estorvos à navegação, como baixios, bancos e recifes. Antes das primeiras obras de melhoramento, o principal embaraço ao movimento das embarcações consistia no recife chamado do Porto, o qual, começando próximo à praia, se alongava obliquamente numa extensão de 300 metros. (Gonçalves, 1912a: 157)2
A presença desses relatos serviu, com certa frequência, como introdução aos textos legislativos locais (do Ceará, no caso) e nacionais, cuja diferença reside apenas no maior detalhamento das condições físico-geográficas, incluindo nomenclaturas, dados de medição, entre outros. Porém, a maior característica do porto de Fortaleza, segundo os textos, é justamente a enseada aberta e desprotegida, cuja inexistência de paredões de rocha naturais dificultava a ancoragem de navios em períodos de ventos fortes, marés bravias e tempestades. As palavras do presidente José Julio de Albuquerque Barros, em 1879, resumem essa questão:
A província como sabeis, não possui bons portos. Sua extensa costa é mais ou menos bravia, e as barras dos principais rios, os ancoradouros e suas entradas acham-se em grande parte obstruídos pelas areias que os ventos, pondo em constante movimento as dunas das praias, e as correntes fluviais e marítimas, neles depositam. (Barros, 1879: 17)
O problema do porto era, inclusive, conhecido internacionalmente e visto como lição sobre a ação das forças naturais. Na obra de Pierre Berthot (Figura 1), a Ponta do Mucuripe (circulado em azul), se localiza, aproximadamente, a seis quilómetros do núcleo central de Fortaleza (em vermelho). Como a direção do vento reinante (seta em amarelo) atravessa as dunas do Mucuripe em direção à cidade, a tendência de assoreamento é maior na baía. Ademais, como os ventos determinam a ação das ondas, a ponta da enseada oferecia melhor abrigo.
Com base nas lições de engenharia hidráulica de Leverson Francis Vernon--Harcourt, nem sempre é possível estabelecer um porto num local propício, i.e., naturalmente abrigado, decorrente de circunstâncias diversas. No caso de Fortaleza, questões estratégicas do período colonial impeliram o surgimento do aglomerado urbano defronte ao mar aberto. A solução proposta por Vernon-Harcourt para a construção de um porto artificial foi a única solução para a capital cearense: "Nessas circunstâncias, portos têm que ser melhorados ou criados; e, ocasionalmente, muitos lugares não favoráveis ou expostos têm que ser usados, nos quais as habilidades do engenheiro são exigidas ao máximo para providenciar abrigo onde ondas e correntezas têm reinado supremas" (Vernon-Harcourt, 1885: 3)3.
Ao longo de fins do século XIX e com maior ênfase nas primeiras décadas do XX, diversos foram os projetos e ações de criação de um porto artificial para a cidade. A efetivação desse longo processo, iniciado com as primeiras intenções projetuais em 1869 até sua conclusão definitiva em 1940, todavia, teria impacto direto no meio ambiente a partir das sucessivas obras portuárias e modificação da linha costeira. O artigo se divide em três partes, além dos caminhos metodológicos. Inicialmente, trata dos primeiros projetos no período imperial até a constituição de empresa privada de melhoramentos na Primeira República. Em seguida, discute os problemas enfrentados pelo avanço das areias no porto e as alternativas encontradas e, por fim, uma opção escolhida frente à inexorável marcha dos elementos naturais e à nova configuração híbrida das diversas obras na orla da cidade.
Caminhos metodológicos
A partir dos pressupostos teórico-metodológicos da História Ambiental Urbana, o artigo centra questões relacionadas à história da vida urbana a partir das intervenções humanas no meio ambiente, intermediadas pelo emprego da tecnologia. De modo mais específico, considera-se aqui a região portuária e sua dinâmica inconstante e, por vezes, imprevisível como agente não-humano que possui diferentes níveis de tensões com o meio construído. No caso particular dos portos, as alterações antró-picas se tornam ainda mais visíveis, conquanto o meio natural se faz presente. Essa nova paisagem, amalgamada, pode ser compreendida mediante a ideia de Sara B. Pritchard (2011: 19) sobre a existência de um "envirotechnical landscape", uma paisagem constituída por fatores humanos e não humanos, um espaço híbrido de cultura e meio ambiente que se integram a partir do emprego de tecnologia usada para criar essa paisagem. Essa paisagem amalgamada é concebida por um "envirotechnical system", ou seja, "(...) configurações cultural e historicamente entrelaçadas por sistemas 'ecológicos' e 'tecnológicos', que podem ser compostos por artefatos, práticas, pessoas, instituições e ecologias" 4.
Trata-se, portanto, de um sistema que lida com diversas esferas que interagem, mediante um intermediário, a tecnologia, com um determinado fim, e estabelecido por um "envirotechnical regime", uma série de regulamentações organizadas em torno de "(...) instituições, pessoas, ideologias, tecnologias e paisagens que, juntas, definem, justificam, constroem e mantêm um envirotechnical system específico como uma normativa" (Pritchard, 2011: 23)5. Portanto, ao instrumentalizar os conceitos de Pritchard, analiso um sistema, o portuário, instrumentalizado por um regime homónimo (representado pelas instâncias administrativas do governo brasileiro, pelas necessidades económicas do país e pelo quadro de profissionais aptos a agir de maneira propositiva às demandas) em um dado espaço físico-geográfico - o litoral cearense da costa do Brasil.
Esse estudo consubstancia-se, fundamentalmente, da pesquisa documental que envolve temas atrelados à natureza, à técnica, ao espaço urbano e aos planos de execução de melhoramento do porto de Fortaleza entre 1870 e 1940. As fontes documentais usadas são compostas por tipos variados e foram divididas de acordo com o seu teor: a) relatórios técnicos elaborados por engenheiros; b) mensagens ministeriais e governamentais; c) publicações diversas elaboradas por engenheiros; e d) manuais, nacionais e estrangeiros, sobre construção/operacionalização portuária do período. Para compor a análise e preencher algumas lacunas sobre o cotidiano das obras de melhoramento, recorri a publicações periódicas que circularam naquele momento, divididos aqui em dois grupos: os de cunho técnico-científico, veiculados pelas principais associações profissionais do período ou as de âmbito mais geral, porém voltadas para um público específico.
No que se refere à iconografia, analisei mapas - com ênfase aos "projetos de melhoramentos portuários" - a fim de compreender, de maneira mais inteligível, o uso gráfico da modernização portuária como forma de representação técnica e igualmente subjetiva. Afinal, se para Brian Harley (2009: 9) "as dimensões do regime político e do território são compiladas em imagens que, assim como o ordenamento jurídico, fazem parte do arsenal intelectual do poder", os mapas técnicos traduzem visualmente tanto o saber técnico, como em suas entrelinhas, carregam em si formas de demonstração dos poderes dominantes.
Res non verba
É possível apontar dois marcos importantes no processo de melhoramentos portuários no Brasil no último quartel do século XX: a ação do governo imperial brasileiro para as melhorias portuárias, o decreto de número 1.746 de 1869 estabeleceu as normas para a construção dos portos imperiais; e a consolidação do Ensino Superior Técnico, com a criação da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, aos moldes franceses, em 18746. Contudo, as iniciativas para o melhoramento portuário do país se mantiveram, no período imperial, apenas na esfera projetual. Os diversos projetos apresentados na segunda metade do século XIX possuíam duas características distintas. O primeiro grupo focava nas questões relacionadas à escolha do local. A costa exposta defronte à Fortaleza, agravada pela ação dos ventos que carregavam areia das dunas (Figura 1). Essa situação se tornou argumento para os que defendiam a construção de um novo porto para Mucuripe, enquanto que um segundo grupo insistia na criação de infraestrutura portuária na cidade. O projeto do engenheiros Zozimo Barroso e John James Foster - 1866 - se enquadram na primeira categoria; por sua vez o do engenheiro militar Francisco Antonio Pimenta Bueno - 1870 - se insere no segundo conjunto de projetos, (Albuquerque, 1870; Bueno, 1870).
A segunda questão envolvia o segundo grupo e como era o aproveitamento dos parcos arrecifes existentes na orla da cidade. A fim de aclarar, recorro ao projeto de Bueno, uma vez que este serviria de base para os projetos subsequentes. Em linhas gerais, a proposta teria como elementos o uso do afloramento rochoso como alicerce, a destruição de uma parte dele (a que se enraíza na praia) e a estrutura em cimento que serviria de ancoradouro. As palavras de Pimenta Bueno permitem a interpretação de que os meios naturais e os não naturais podem coexistir:
Sem cansarmos a razão, deparamos logo com os traços os mais salientes, delineados pela natureza, parecendo antes ter sido começado e concluído o mais difícil, pois estão formandos n'um mar agitado e a flor dágua as bases para uma doca, com superfície e profundidade suficientes para o serviço marítimo da província - resta aos homens concluírem a obra. (Bueno, 1870: 1)
A forma como essa interação entre o meio natural e o construído pode ser melhor compreendida no projeto de Charles Neate e Zozimo Barroso de 1870 (Figura 2). Chamo a atenção aos três cortes - ou secções - presentes no projeto: A.A, B.B e C.C. Neles, é possível vislumbrar três maneiras de como as intervenções interagem no meio ambiente. De certa forma, são três possibilidades de que um profissional dispõe no planejamento de obras de intervenção em áreas naturais. No primeiro corte, a obra consistiu num maciço de concreto protegido por quebra-mar de pedra bruta lançada. No segundo, o uso de elementos naturais para complementar as obras, no caso o uso dos arrecifes como base para a construção do ancoradouro. Por fim, o terceiro, buscou harmonizar o meio, com a implementação de um viaduto vasado para deixar as correntes marítimas livres.
São obras que contam com três características específicas, mas que não se sobrepõem, sendo, portanto, complementares: a) o tipo completamente artificial; b) o parcialmente artificial; e c) o artificial fluido. Os dois primeiros tipos possuem maior impacto espacial com a interrupção ou a alteração das forças naturais ali presentes. O terceiro tem impacto menor, ao manter o equilíbrio das forças, buscando usá-las ao seu favor. Eles se conformam, nesse sentido, num conjunto completo de um en-virotechnical system portuário. Todavia, nenhum projeto foi aprovado ou concedido e o Governo Imperial se limitou a encarregar o engenheiro Antonio Gonçalves Justa Araujo para os serviços de conservação do porto (Barão de Taquiry, 1872).
Em 1874, o proeminente engenheiro hidráulico John Hawksahw foi convidado pelo Governo Imperial para realizar uma série de projetos e levantamentos sobre diversos portos no Brasil. No que se refere à Fortaleza, Hawkshaw (1875) não tencionou usar os arrecifes como base, mas como elementos suplementares de proteção do quebra-mar, cuja face interna serviria como ancoradouro (Figura 3). É possível que essa diferença entre a proposta do engenheiro e a de Pimenta Bueno consistisse numa preocupação com a composição dos rochedos, bem como na falta de continuidade dos arrecifes. Assim, para evitar problemas futuros, o envirotechnical system portuário manteria seu aspecto híbrido, porém adotando a reorganização espacial de seus elementos formativos.
Era um projeto viável, chancelado pelo eminente engenheiro, com boas chances de atrair investimentos via decreto 1.746 de 1869. Embora os termos propostos fossem favoráveis, o governo não conseguiu, de imediato, atrair investidores para o empreendimento, limitando-se à conservação do porto e esparsos estudos, interrompidos em 1877. Mesmo a contratação de outro engenheiro estrangeiro, o estadunidense William Milnor Roberts para examinar os portos e as vias de navegação brasileiros não foi suficiente para atrair investidores. O efeito dessa apatia pode ser visto no jornal "Pedro II" ao noticiar, em 28 de abril de 1881, a vinda de Roberts à
Fortaleza para avaliar os últimos projetos propostos. O articulista escreveu, em tom fatalista, o que aconteceria com o relatório do engenheiro estadunidense:
Mas já antevemos que o estudo do notável engenheiro americano, como os outros já feitos, por não menos notáveis engenheiros, há de ficar arquivado por meses, senão anos, até que o governo resolva meter a ombros a tal empresa, sem a qual em breve tempo o nosso porto se achará em condições de imprestabilidade pela acumulação das areias. ("Melhoramento do porto de Fortaleza", 1881: 1)
Para reforçar a indignação, o articulista recorreu ao editorial de 11 de julho de 1880, endereçado ao senador cearense Leão Velloso, e reafirmou seu posicionamento frente à grande quantidade de estudos e que "(...) coisa alguma se há feito; um só passo não se há movido para a sua realização". No final, o autor empregou o provérbio "res non verba" 7 para exigir o início imediato dos melhoramentos ("Melhoramento do porto de Fortaleza", 1881: 1). As constantes reclamações nos jornais pareceram ter surtido efeito um ano depois.
Em 1882, a autorização do Governo Imperial de garantia de juros a 6% a.a. e paridade cambial por dez anos (Lei 3.141, de 30 de outubro de 1882), permitiu a abertura de licitação pública para as obras de melhoramento da capital e da construção do prédio da alfândega, tendo como base o projeto Hawkshaw. O comendador Tobias Laureano Figueira de Mello e o engenheiro Ricardo Lange venceram a concorrência. A companhia contava com capital e assessoria inglesas e foi constituída sob a denominação de Ceará Harbour Corporation Limited, sob concessão de 33 anos (Barão de Guajará, 1883; D'Avila, 1883).
O contrato entre o Governo Imperial e a Companhia foi aprovado somente em 12 de maio de 1883, via decreto de número 8.943. Em 23 de setembro daquele ano, foi apresentado o esboço inicial dos projetos, com modificações propostas pelo engenheiro fiscal Augusto Teixeira Coimbra - alterações em parte aprovadas pelos signatários. De acordo com o presidente da província, Carlos Honorio Benedicto Ottoni, o representante inglês responsável pelas obras foi o engenheiro F. R. Mahons. A única obra iniciada naquele momento, de fato, foi o assentamento dos trilhos que partiam da cidade em direção a Mucuripe para extração das pedras destinadas ao quebra-mar (Ottoni, 1885).
O período das obras foi marcado por outros reveses. Três anos depois de celebrado o contrato, a Ceará Harbour Corporation Limited conseguiu aprovar os planos de revisão dos estudos em 27 de fevereiro de 1886. O ano era o último que a companhia tinha para iniciar oficialmente as obras. Houve, ainda nesse momento, tentativa infrutífera de levantamento de crédito no valor de 1.500 libras esterlinas, afetando o andamento das obras constantes no projeto (Figura 4): a) viaduto de ferro sobre esteios de parafuso com 228,50 metros de extensão; e b) molhe8 curvo com 670 metros de comprimento (e 175111 de raio) que serviria de quebra-mar e de cais de desembarque - nas faces externa e interna, respectivamente (Almeida, 1886; Prado, 1886).
Mesmo com o início das obras da Alfândega e do viaduto em 10 de agosto e 6 de novembro de 1886, respectivamente, o desenvolvimento não foi o esperado. O principal fator de atraso foi o ramal ferroviário, o qual ligava o porto à estação de Munguba - distante 28km da capital - de onde as pedras para o quebra-mar eram carregadas. Os atrasos e as infrutíferas tentativas de captação de recursos no exterior podem ser reflexos do tipo de obra executada (Torreão, 1887: 105). Um porto aberto, sem abrigos naturais, era um desafio de engenharia, mesmo num local de mares calmos, como observado pelos relatórios. Ainda assim, em 1888, embora a construção dos prédios estivesse parada por falta de material, o viaduto se encontrou quase concluído (faltando o calçamento e os corrimãos laterais) e haviam começado as obras do quebra-mar.
Todavia, um problema detectado pelo engenheiro-fiscal, Augusto Teixeira Coimbra em 1888 daria graves contornos à continuidade da execução das obras. O relatório do ministro dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Rodrigo Augusto da Silva, mencionou acúmulo de areia no litoral. A solução proposta pelo engenheiro-fiscal foi a construção de uma guia-corrente9 e escavação de canal ao lado, ao custo de 234:9oo$ooo - Duzentos e trinta e quatro contos e novecentos mil-réis (Silva, 1889). A partir desse ano, os relatórios provinciais/estaduais se silenciaram a respeito das obras de melhoramento dos portos do Ceará, uma circunstância inquietante, por se tratar de um momento delicado que, posteriormente, selaria o destino acerca de sua localização.
O porto soterrado e a alternativa Souza Bandeira
Os relatórios ministeriais do período inicial republicano citaram os problemas da Ceará Harbour Corporation Limited em angariar recursos para as obras. Com o andamento prejudicado, a situação se agravou, porque as correntezas alteradas pela construção do viaduto e do quebra-mar fomentaram contínuo depósito de areia no local. As constantes reclamações forçaram a União a enviar o engenheiro Alfredo Lisboa para verificar o estágio das obras e seus efeitos. A breve descrição da fala do engenheiro, constante no relatório ministerial de 1895, demonstra a relação entre o assoreamento e as estruturas construídas e revela, igualmente, a nova conformação do envirotechnical landscape do porto:
A antiga enseada que se estendia entre a cidade da Fortaleza e a linha dos recifes, abrangendo o porto, estava então obstruída pela acumulação da areia que invadiu, ameaçando assoberbar as obras em andamento; as areias, movendo-se ao longo da praia, com ventos reinantes (entre SE e NE), avançaram sobre o mar; a praia alteou consideravelmente, ao mesmo tempo alagando-se até atingir as linhas dos recifes; a leste do viaduto, a linha ou marca de baixa-mar de águas vivas avançou rapidamente desde 1884, contornando as executadas e abrangendo os recifes. As areias, penetrando no ancoradouro interno, deram lugar a formação de bancos que foram em progressivo aumento. (Pires, 1895: 398)
O engenheiro, então, apontou quais seriam as causas desse fenómeno: "a) a ação dos ventos sobre um solo mobilíssimo e a correnteza da água marinha; b) a resistência oposta às correntes do litoral por empecilhos levantados pela ação do homem"" (Pires, 1895: 398, grifos nossos). A segunda causa reitera a afirmação inicial da tese em que, longe de casuísmos ou determinismos, há relação direta das intervenções humanas e do comportamento das forças naturais. Mais ainda, reflete a conformação do envi-rotechnical system (portuário) e de como esse novo espaço híbrido age em conjunto, não podendo, assim, separá-los diante de uma análise histórica.
O assoreamento em franca ação desde 1891 e de maneira tão rápida que o ministro Olyntho Pires assim observou o Porto de Fortaleza: "(...) de todo afogado em areia". Os dados levantados pelo ministro desvelam a escala desse "afogamento": em 1890, o depósito de areia foi de 700.000m3; três anos mais tarde, contou com 2.000.000m3 de área obstruída. As ações por parte da companhia entre 1890 e 1894 se limitaram à dragagem da bacia para contornar a situação sem, contudo, alcançar o resultado esperado (Pires, 1895: 398). Da enseada original, restou apenas uma pequena área de águas estagnadas, denominada posteriormente de Poço da Draga10.
Isso forçou a Ceará Harbor a apresentar um projeto de contingência, prevendo a criação de uma bacia de 12 acres, limitada ao norte pelo quebra-mar, a oeste pelo terreno em talude natural e ao sul, por um paredão de concreto, ligado a um molhe de madeira. Essa bacia teria um canal para o mar com 20 metros de largura por 166 metros de extensão, formado pelo quebra-mar e por um guia-corrente construído em madeira e pedra. O projeto proposto pela companhia foi rejeitado pelo governo, concomitante ao que foi encaminhando para análise, elaborado pelo eng. Saboia, para a construção de porto acessível a navios de cinco metros de calado, dentro do orçamento existente. A questão e os serviços se arrastaram até 1900, quando a União encampou as obras do porto da Fortaleza, mediante compra, pelo valor de 100.000 libras esterlinas em três de março, após a promulgação do Decreto n.3.602 de 20 de fevereiro (Maia, 1900; Murtinho, 1897).
Ao longo de quase oito anos não se registrou informações sobre o andamento dos serviços do porto, quando o ministro Miguel Calmon du Pin de Almeida criou em 1908 uma subcomissão a partir da comissão fiscal do porto do Rio de Janeiro, sob o comando do engenheiro de primeira classe Manoel Carneiro de Souza Bandeira (Almeida, 1908). Os estudos iniciais da comissão compararam os realizados por Hawkshaw e por Saboia e Silva para melhor compreender o fenómeno de arraste das areias e a situação geológica dos arrecifes. Com relação ao primeiro, o relatório esclareceu: "a areia que se encontra no litoral e no mar, vem de longe e está em movimento contínuo impelida pelo arrasto do litoral, ou pelas correntes de mar e pelo vento na praia, formando dunas mais ou menos altas ao longo da mesma" (Almeida, 1909).
Apesar de não ser uma observação nova, o posicionamento da comissão expós de que forma a dupla ação das correntes e dos ventos impeliam as areias. A solução do assoreamento, portanto, deveria abarcar e resolver o fluxo (aéreo e marítimo) das areias do Mucuripe. Segundo, a comissão observou a relação entre as correntes e os afloramentos rochosos existentes, os quais agem como obstáculos de retenção ou de direcionamento dos sedimentos.
Os recifes são constituídos por pedras isoladas ou por grupos de rochedos, dentre os quais se destacam os da Estrela, Meireles, Coroa Grande e Velha. Estes recifes dividem a corrente que dobra a ponta de Mucuripe em três ramos principais: um acompanha a costa e é reforçado pelo movimento das ondas, criado pela direção da vaga inclinada sobre a praia, seguindo mais ou menos as linhas de fundo de 3 a 5 metros; o segundo passa por fora da pedra do Meireles e entre os recifes da Coroa Grande e da Velha, na linha de fundos de 8 metros, e o terceiro por fora do recife da Velha numa profundidade superior a 10 metros. (Almeida, 1909: 25)
As prospecções da comissão não visaram somente o conhecimento da situação costeira, mas também estudar a nova conformação litorânea criada pela construção do viaduto e do quebra-mar pela Ceara Harbor. Ou seja, a existência de um envirotechnical landscape exigia novo olhar dos engenheiros, principalmente na sua relação com as forças naturais em ação. As palavras do ministro Almeida não deixam dúvidas a esse respeito:
O insucesso, porém, do projeto Hawkshaw aconselha muita prudência e circunspe-ção na execução de trabalhos naquela localidade e, por isso, seria conveniente que se começasse pela construção do quebra-mar de proteção e guia na Coroa Grande e, só depois de reconhecido o seu esperado efeito, se empreendessem então as obras propriamente do porto. (Almeida, 1909: 27, grifos nossos)
A prudência mencionada por Almeida desvela, novamente, duas importantes características da práxis de engenharia, a flexibilização e a adaptação. Ao contrário da rigidez positivista da ciência como resposta única e inconteste, temos uma abordagem mais prática cuja proposição não consiste exclusivamente na solução a partir da técnica, mas na criação de possibilidades como meio eficaz para gerir um problema. Nesse caso, a adoção de etapas construtivas que acompanhariam o comportamento das correntezas e de reajustes projetuais, se necessários, poderiam viabilizar, em definitivo, o porto de Fortaleza.
As razões acima expostas sugerem melhor receptividade ao projeto elaborado por Souza Bandeira, aqui sintetizado:
Paralelamente, a atual linha de baixa-mar, que é por sua vez paralela à direção das correntes que passam entre o litoral e a Coroa Grande, será prolongado o quebra-mar existente (Hawkshaw) numa extensão de 852 metros, no fim dos quais voltará para terra, onde se enraizará, com uma extensão de 300 metros, constituindo uma grande bacia para o porto com uma entrada de 200 metros de largura em frente à Coroa Grande. (Almeida, 1909: 26)
De acordo com a memória do projeto, o assoreamento provocado pela construção do quebra-mar Hawkshaw se estabilizou, tornando exequível a proposta. Incluiu, ainda, dois atracadouros, similares aos concebidos por Charles Neate em 1870: um de 400m de extensão para navios de oito metros de calado no citado quebra-mar e o outro, ao lado do litoral, com 280m de comprimento para embarcações de três metros. A ideia foi fechar o porto, criando uma bacia de atracação para evitar novo assoreamento.
Se não for adotada essa forma de bacia fechada, mesmo construindo o último alinhamento do molhe paralelo à corrente, é muito possível que esta, obedecendo à lei dos molhes, contorne a ponta do quebra-mar aberto, depositando as areias no recinto por ele abrigado, como sucedeu no quebra-mar Hawkshaw. (Bandeira, 1910: 83) 11
Por fim, seria construído um segundo quebra-mar (curvo) no recife da Coroa Grande, com 900m de extensão e 796m de raio com três finalidades: a) abrigar a bacia das vagas; b) orientar as vagas a leste, mantendo a agitação necessária para o transporte de areia; e c) desviar as correntes que seguem entre os recifes. O custo total das obras seria de 16.018:775$960 - cerca de mil libras esterlinas. O orçamento foi aprovado em 8 de setembro de 1910 (decreto n.8.204), adotando os termos da lei de 1869; porém aberta a concorrência, nenhuma empresa se dispós a participar e o edital teve que ser modificado em 1912 (Bandeira, 1910; Del Vecchio, 1912).
Sem o interesse do setor privado, o governo manteve os trabalhos por parte da subcomissão. A dragagem foi efetuada por duas dragas de sucção e uma Priestman, de escavação, cada uma com funções diferentes; enquanto a Priestman executou serviços para conservação da profundidade do canal, movendo-se sobre a muralha do quebra-mar, a "Fortaleza" (de sucção) operou ao abrigo deste, na bacia do ancoradouro. A outra draga de sucção, a "Ceará" encontrava-se inoperante não por questões de manutenção, mas por subdimensionamento. Por conta de seu calado, foi incapaz de ser usada na parte interna da bacia; e nem fora dela, devido à agitação do mar e risco de naufrágio (Gonçalves, 1912b). O material dragado, entre 1911 e 1912, foi de 176.530m3 e foi lançado ao mar ou usado para aterrar depressões na faixa contígua ao cais.
Em 31 de julho de 1914, o Governo Federal extinguiu a Subcomissão de Estudos e Melhoramentos dos Portos de Fortaleza e Camocim e criou a Fiscalização dos Portos do Estado do Ceará (Lyra, 1915). A medida foi adotada no sentido de oficializar as ações da subcomissão, ante a desanimadora perspectiva de conseguir nenhuma empresa privada para levar adiante os planos de Souza Bandeira. Com a Grande Guerra, os recursos envolvidos permitiram modesta dragagem e continuidade dos serviços de fixação das dunas, quase paralisando em 1917. Tamanho foi o problema que aviltou a reputação das instalações portuárias no exterior, como bem observou Ernest Charles Buley (1914: 96): "Fortaleza, a capital e principal porto do Ceará, é um dos piores portos do norte do Brasil"12.
Para agravar ainda mais a situação, as forças naturais ameaçaram constantemente a própria existência do porto de Fortaleza, uma vez que "as condições de embarque e desembarque de passageiros tornam-se cada vez mais difíceis e perigosas, e bem assim os serviços de carga e descarga". Diante das críticas acerca da inviabilidade técnico-financeira, após o término do conflito europeu, o inspetor interino Manoel Carneiro de Souza Bandeira afirmou:
O resultado obtido pelos estudos técnicos feitos em Fortaleza demonstrou cabalmente que o insucesso do projeto Hawkshaw, que tanta desconfiança fez gerar sobre a inexequibilidade de qualquer obra de melhoramento naquele porto, foi devido em parte à deficiência de observações e estudos, e em parte a circunstâncias inteiramente independentes das condições locais. Os estudos feitos durante um período longo dão base segura para o delineamento de um projeto que resolve, técnica e economicamente, o problema do Ceará; isso mesmo demonstraram os fatos posteriormente aos trabalhos executados de fixação de dunas e de algumas dragagens na bacia interna. (Rio, 1920: 201)
Souza Bandeira deu indícios de como o fracasso do projeto Hawkshaw impactou negativamente nas obras do porto, demonstrando a dificuldade em se criar uma estrutura em local desabrigado. Ao se referir às circunstâncias, o engenheiro adota posição defensiva ao culpar a falta de maiores observações e de "circunstâncias" diversas - provavelmente se referindo à crónica falta de recursos. Na realidade, é possível perceber uma fala revestida pelo argumento de autoridade, cuja intenção é a mesma encontrada em Hawkshaw, uma chancela para a execução do porto. Além disso, basta lembrar que o projeto proposto e aceito foi elaborado pelo próprio Souza Bandeira.
Aceito - mas não executado - até 1920, quando uma nova proposta foi apresentada e aprovada pelo decreto n. 14.555 de 17 de dezembro. Consistiu num projeto suplementar ao de Souza Bandeira, considerado de elevado custo em sua execução e inadequado num período em que o problema dos efeitos das secas demandava a execução de obras de açudagem, "(...) exigindo grande massa de material a importar" (Bicalho, 1922). Para atender os interesses estaduais - ou melhor, comerciais -, e com orçamento enxuto, a proposta contemplou um
maciço de alvenaria, construído em águas profundas, longe da praia, com parede em muro de cais para o lado de terra e com parede de quebra-mar para o lado de fora, maciço que se ligará a costa por uma ponte ou viaduto, sobre colunas finas de concreto armado, entre a quais as águas carregadas de areia passarão livremente, sem o perigo de ocasionarem o aterramento do litoral. (Rio, 1921: XXXVIII-XXXIX)
As exposições dos quatro pareceres anexas ao relatório de 1921 abordaram a relação entre o viaduto, o assoreamento e o projeto de Souza Bandeira, respondendo às seguintes perguntas: 1) O projeto preliminar poderia causar assoreamento?; 2) O projeto preliminar poderia atrapalhar o elaborado por Souza Bandeira?; e 3) Caso afirmativo, deveriam as obras se deslocarem a leste para aumentar o canal previsto ? (Bicalho, 1922). Com relação aos dois últimos quesitos, somente o parecer do engenheiro Ernesto de Otero afirmou a existência de conflitos entre os dois projetos. Todos concordaram com a disposição do viaduto proposto, sendo a principal preocupação dele. A unânime inquietação foi um reflexo do posicionamento do engenheiro Bicalho acerca da causa real do assoreamento dos serviços executados em 1874:
O grande mal desse projeto Hawkshaw consistiu na manifesta deficiência da secção livre, já pelos seus vãos reduzidos, já pelo seu pequeno alcance apenas até a curva de um metro em maré baixa, que não se manteve suficiente franquia da corrente litorânea, provocando sua retenção e consequente depósito, gradativamente crescente, das areias em movimento, as quais acabaram por aterrar rapidamente toda a obra. (Bicalho, 1922: 106)
Contudo, a exposição de Bicalho não revelou o que, de fato, foi o problema. Inclusive, foi desconsiderado o relato do ministro da Viação e Obras Públicas, José Barbosa Gonçalves em 1912, o qual havia esclarecido esse ponto:
Devido à alteração dos vãos do viaduto de 15 metros para 9111,15 e a construção de pontas para a Alfandega, normais à direção da marcha das correntes, ficou embaraçada no porto a livre circulação das areias que começaram a se acumular rapidamente em torno das construções, entulhando o ancoradouro. (Gonçalves, 1912a: 158)
Logo, como essa diminuição exigiu maior quantidade de pilares de sustentação, diminuindo o espaço por onde passariam as marés e acabou por dificultar o fluxo das águas, acarretando o assoreamento. A mudança foi provavelmente feita visando o barateamento dos custos, uma vez que vãos maiores exigem pilares e vigas de sustentação igualmente maiores. O erro, nesse sentido, não foi de natureza técnica, mas económica. Diante da exposição de Bicalho e das observações dos quatro engenheiros, a peça-chave para o sucesso ou o fracasso do projeto não foi somente o viaduto, mas a disposição dos pilares de sustentação e sua influência no fluxo das marés. Como a extensão do mesmo era considerável, foi imprescindível a abordagem técnica no critério de escolha do tipo de material. Portanto, o uso do concreto armado foi adotado por permitir vãos e espaçamento entre pilares maiores, ocasionando em menor quantidade de obstáculos à correnteza.
Como os recursos foram direcionados para a construção de açudes no interior do estado, o Governo aproveitou os dispositivos de outro decreto, o 14.435, de 22 de outubro de 1920, para contornar esse problema. De acordo com a ementa, foi celebrado "contrato com Norton Griffiths & C°. Ltd., para administração de serviços de construção de barragens, de canais de irrigação e de outras obras julgadas preparatórias e complementares da sua execução no Nordeste Brasileiro". O artigo 29 deixou claro quais seriam as obras complementares - as dos portos de Fortaleza, Natal e Paraíba -: "(...) muito embora sejam julgadas preparatórias e complementares à execução do plano geral de açudagem e irrigação do Nordeste" (Brasil, 1920: 17.946).
Os serviços da Northon Griffiths se iniciaram em 1922 e se estenderam pela primeira metade da década de 1920, com a construção do viaduto, ponte provisória e demais obras, com prazo final em 1925, salvo imprevistos (Góes, 1925: 8). Foi uma obra considerada tecnicamente desafiadora, conforme mencionou o governador do estado, José Moreira Rocha:
Os serviços de construção constituem um notável trabalho de engenharia, tanto pelas dificuldades técnicas como pelo vulto da obra, representada por uma estrutura toda de concreto armado, de 220 metros de comprimento por 11 de largura, com uma área de 2440m2,00, um elegante abrigo para passageiros, de 24 metros de comprimento, por 17 de largura, com 4081112,00 de área, e uma praça de mercadorias, com uma área de 4601112,00. (Rocha, 1927: 23)
A Fiscalização contou com tripla jornada de tarefas, auditando a firma inglesa, executando a fixação e a conservação das dunas do Mucuripe - cujo plantio em 1922 consistiu em 148.328 metros lineares de grama, 284.380 mudas de tamarindo, além de oró e murici - e realizando sondagens hidrográficas ao longo das obras para verificar o desenvolvimento do assoreamento (Bicalho, 1924; Góes, 1925). A falta de recursos promoveu a paralisação das obras dois anos mais tarde, mantendo apenas os da Fiscalização. Isso gerou um problema imediato. Sem o prosseguimento das obras do molhe e a adequada manutenção, a estrutura antes existente começou a se deteriorar rapidamente. A ponte metálica da Alfândega - construída entre 190206 - se encontrava em péssimo estado de conservação e "a ponte [provisória, de madeira] para embarque de pedras encontra-se hoje em mau estado por se achar atacada por Teredo navallis, de modo que já não se presta ao serviço ao qual foi destinado" (Góes, 1926: 54)13.
O problema se estendeu até 25 de janeiro de 1927, quando o contrato com a Nor-thon Griffiths foi rescindido pelo governo e o material entregue à Fiscalização, a qual continuou os serviços de conservação e o plantio nas dunas. Parte desse material foi entregue ao estado para construção da ponte metálica de desembarque, sob a responsabilidade do engenheiro Francisco Saboya de Albuquerque ("Inspectoria...", 1927; Góes, 1928). O Viaduto Desembargador Moreira foi inaugurado em 24 de fevereiro de 1928, e executado de acordo com o projeto abaixo descrito:
Uma estrutura de concreto armado, com cerca de 200 metros de comprimento, por 14 de largura, capacidade para resistir ao tráfego dos mais pesados veículos, sendo a mesma provida de uma linha dupla, de modo a dar rápido escoamento às mercadorias. Lateralmente, dois passeios para pedestres, a fim de que o movimento destes e o de cargas se operassem sem dificuldades. (Rocha, 1928: 76)
Contudo, as consequências das diversas intervenções antrópicas resultantes desde o fracasso na execução do projeto Hawkshaw e o consequente assoreamento modificaram a faixa litorânea em frente à Fortaleza, alterando-a significativamente. Ao se comparar a Figura 5, e com maior detalhe a Figura 6, com o levantamento de 1875 (Figura 3), é possível ver sensíveis alterações, como aumento da praia e desaparecimento dos arrecifes.
Fonte: Hor-Meyll (1920). Projecto das muralhas de caes para o porto de Fortaleza. Nota: Editado pelo autor.
O projeto Souza Bandeira visou justamente recuperar essa faixa para uso do porto. Certamente, os projetos possuíam escalas, intenções e propostas de representação diferentes, mas a abordagem técnica em sua feitura permitiu extrapolar as observações e apontar como se processam as intervenções técnicas em áreas naturais, criando envirotechnical landscapes.
A opção Mucuripe
A situação ganharia novos contornos após 1930. O então engenheiro encarregado, Augusto Hor-Meyll (1932), elaborou relatório entre outubro de 1930 e abril de 1932, com a mudança do porto para o Mucuripe. Não há, no relatório, justificativas, mas é bem possível que as fracassadas tentativas anteriores e a incapacidade de conter as areias possam ter influenciado tal decisão.
Com base nas sondagens realizadas e nas observações das vagas e das correntezas, Hor-Meyll retomou os princípios básicos para a construção de um porto, o levantamento de dados:
O conhecimento da natureza do fundo era indispensável para a organização de um projeto definitivo para o porto em Mocuripe, não só para a localização do cais como para determinação da zona a dragar e seu orçamento. Todo projeto, tal o que apresentamos em 1930, só poderia ser em caráter provisório, isto é, um anteprojeto, até que o conhecimento mais completo da natureza do subsolo marítimo permitisse uma solução mais ou menos definitiva. (Hor-Meyll, 1932: 25)
A ação do engenheiro era válida, uma vez que todos os estudos anteriores focaram o porto de Fortaleza. Naquele momento, com a mudança em definitivo, se fazia mister entender o comportamento dos fluxos do Mucuripe para então elaborar o projeto (ou anteprojeto como exposto). Nesse sentido, a proposta (Figura 7) abarcou três pontos essenciais: a) proteção; b) acostagem; e c) comunicação intermodal. Com relação aos dois primeiros, seriam construídos o quebra-mar com pedras e um cais com 700 metros de extensão, para navios de até oito metros de calado, "porém, apenas 500m serão dragados nesta profundidade ficando os 200m restantes com a profundidade de 5m para embarcações de menor calado" (Hor-Meyll, 1932: 44).
Com relação ao terceiro item, o projeto estipulou uma avenida com cinco quilómetros de extensão por vinte e dois metros de largura ligando o porto à Rua Pessoa Anta, sendo traçada pela prefeitura naquele momento. Em paralelo, uma ferrovia passaria pela via marítima. Posteriormente, essas vias de circulação se tornariam os vetores de expansão de Fortaleza, transformando as dunas fixadas em áreas urbanas integradas à cidade, a partir da segunda metade do século XX. O projeto previu ainda a construção de um aeroporto no prolongamento do cais, além de áreas destinadas à sua operação, num período que a aviação começava a despontar como alternativa à navegação. A proposta teve prazo de conclusão estimado em seis anos e 250 dias ao custo de 30.707:447$ooo, boa parte destinado ao quebra-mar (com 76im3 de volume de pedra) e aparelhamento (Hor-Meyll, 1932).
À guisa de conclusão: Mucuripe e as consequências para a capital cearense
Mesmo com os estudos propostos para Mucuripe, o Governo insistiu em manter o antigo projeto na cidade, por meio da aprovação, em 20 de dezembro de 1933, do decreto n.23.605, concedendo ao governo cearense a execução das obras. A justificativa foi de ordem económica, sobretudo, ao destacar a necessidade de se aproveitar as obras já empreendidas no porto defronte à cidade.
Contudo, após uma série de divergências sobre a localização do porto - relembrando aqui as discussões do último quartel do século XIX - uma comissão formada pelos engenheiros Manuel Antonio de Morais Rego, Armando Xavier Carneiro de Albuquerque e José Domingues Belfort Vieira, do Quadro Técnico do Departamento Nacional de Portos e Navegação, decidiram em 1938 por Mucuripe, ficando a cargo da execução a Companhia Nacional de Construções Civis e Hidráulicas -CIVILHIDRO (Burlamanqui, 1936, 1941). Esse foi o fim das inúmeras tentativas de construção do porto da cidade, predominando a argumentação técnica e, de certa forma, corroborando as opiniões de diversos engenheiros do século XIX, como Sir John Hawkshaw, Charles Neate, Zozimo Barroso e suas preferências pela enseada em detrimento a defronte à capital cearense.
Concluído na década de 1940, o novo porto de Fortaleza passou por diversas modificações, alterando por completo a fisionomia de Mucuripe. Para ter ideia de como as sucessivas tentativas de construção do porto - as pontes, viadutos, molhes, guias-correntes, entre 1807 e 1966, alteraram a linha costeira desde a capital cearense até o novo porto da cidade - , recorro ao artigo de Luís P. Maia, José A. Jiménez, Jordi Serra, Jader O. Morais, Agustín Sánchez-Arcilla (1998) (Figura 8). A partir dos dados levantados pela equipe de pesquisadores, o processo de sedimentação foi direcionado para áreas distantes do núcleo original, mas manteve o processo de assoreamento. Isso decorreu, sobretudo, com o avanço urbano em sua direção; a erosão da praia surgiu como novo problema para a cidade, ameaçando vias, infraestrutura e prédios.
A partir do exposto, é possível entender que as diversas tentativas de melhoramento do porto demandaram extensos estudos, os quais, em muitos casos, se transformaram em intervenções materializadas nas guias-correntes e quebra-mares. As dificuldades do porto de Fortaleza, desde os primeiros estudos de 1870, sempre se mostraram presentes, e assim o é até os dias de hoje. A falta de área natural abrigada exigiu a criação de uma alternativa artificial, mesmo que as consequências do assoreamento e da erosão dificultassem a conclusão do porto. O envirotechnical system portuário não se restringiu a um único ponto. Se, a princípio, duas paisagens híbridas foram criadas, afetando áreas naturais e urbanas, o avanço de Fortaleza em direção ao novo porto resultaria em uma terceira paisagem com mais de seis quilómetros de extensão. A necessidade de constituição de um porto em resposta às demandas político-económicas fomentou as ações técnicas, mas as forças naturais se revelaram um desafio à engenharia.
A perspectiva apontada ao longo do artigo desvela a complexidade existente entre o meio natural e o construído. A complexidade dessa questão resulta, de um lado, uma busca de controle da natureza mediada pela tecnologia, mas, por outro, a imprevisibilidade de uma área extremamente dinâmica. As condições adventícias (vento, correntes marítimas, marés) ali presentes possuem delicada cadeia cuja perturbação antrópica resulta em novos rearranjos, soluções. Nesse sentido, a finalidade última do melhoramento do porto é a maior integração em uma economia-mundo, no qual o meio deve ser subjugado frente aos interesses económicos, entretanto, como visto, o controle é sempre ilusório, uma vez que somente com o contínuo dispêndio de recursos - humanos e financeiros - conseguem apenas conter provisoriamente as forças da natureza e sua inexorável marcha.