Introdução
A expressão década perdida foi designada pela Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL) para caracterizar o desempenho econômico na América Latina nos anos 1980, o qual foi de baixo crescimento e queda do PIB per capita na maior parte dos países da região[1].
Desde então, a expressão tem sido comumente utilizada para descrever períodos de baixo crescimento econômico em uma economia. No contexto da economia brasileira, dois períodos são denominados como décadas perdidas.
A primeira década perdida compreende o período de 1980 a 1989. Esse período foi caracterizado por altas taxas de inflação, instabilidade econômica, elevado endividamento externo e políticas econômicas errôneas. Esses problemas econômicos foram agravados na década seguinte. Apesar do Plano Real em 1994, o período de 1990 a 1999 é considerado a segunda década perdida para o Brasil. Nesses anos, observam-se baixas taxas de crescimento do PIB, desigualdade persistente e problemas estruturais na economia brasileira.
A década de 1980 foi marcada pela hiperinflação, enfraquecimento da moeda (Cruzeiro, Cruzado e, no final da década, Cruzado Novo) e, portanto, redução do poder de compra dos salários. Para controlar o aumento dos preços, foi implementada uma série de planos de estabilização, como os planos Cruzado e Bresser. Todavia, esses planos não obtiveram êxito e resultaram em desequilíbrios na economia e na instabilidade política. Do lado do endividamento, o Brasil enfrentou dificuldades de pagar seus empréstimos internacionais e os juros dessa dívida externa, o que significou a renegociação dessa obrigação financeira e a perda de autonomia na condução da política econômica. Com efeito, os credores internacionais impuseram um conjunto de políticas liberais com o objetivo de ajustar a economia brasileira e garantir o pagamento dos juros.
Já nos primeiros anos da década de 1990, a hiperinflação chegou a mais de 2.000% ao ano. Esse problema só foi resolvido com a implementação do Plano Real, que, ao substituir o Cruzeiro Real pelo Real, conseguiu a estabilidade dos preços. Para controlar o crescimento das contas públicas, o governo ampliou as políticas de austeridade, realizando reformas no setor público, cortando os gastos sociais e privatizando empresas estatais.
Todavia, com a desregulamentação financeira no flanco externo, as recorrentes ameaças e fugas de capitais levaram à prática de juros elevados, que limitavam o crescimento econômico e faziam crescer o serviço da dívida pública. Trata-se, portanto, de um leque de políticas inconsistentes - até mesmo nos próprios termos da ortodoxia. O resultado dessas medidas foi o aumento do desemprego, da desigualdade social e da concentração da renda. Para tentar obter algum crescimento econômico, o governo realizou a abertura comercial e financeira, mas sem grandes resultados.[2]
Depois de uma década marcada pelo crescimento econômico proporcionado pelo boom das commodities, de estabilidade de preços e políticas sociais que reduziram a desigualdade de renda no Brasil, a economia brasileira volta a apresentar taxas de crescimento similares às das duas décadas perdidas.[3]
Os anos de 2010 a 2019 constituem o que este estudo define como a terceira década perdida, na qual a taxa média de crescimento foi inferior às taxas apresentadas nas décadas de 1980 e 1990. Assim, o objetivo principal deste projeto é o de analisar os anos de 2010 a 2019 e apresentar elementos que permitam denominar esse período como a terceira década perdida. Como objetivos específicos, busca realizar uma revisão histórica sobre as principais medidas de políticas econômicas adotadas nas décadas de 1980 e 1990, de modo a identificar os elementos responsáveis pelo baixo crescimento da economia brasileira nesse período. Entender as semelhanças e diferenças entre diferentes períodos da economia brasileira é fundamental para o processo de formulação de políticas econômicas, o que justifica a importância deste artigo.
Para alcançar os objetivos, o presente trabalho se divide em quatro seções além desta introdução. As duas seções seguintes apresentam uma análise histórica das duas décadas perdidas da economia brasileira. A quarta seção analisa os principais indicadores dos anos de 2010 que possam caracterizar ou não o período de 2010 a 2019 como a terceira década perdida. Por fim, as considerações finais.
A Primeira Década Perdida na Economia Brasileira: 1980 a 1999
Antes da década de 1980, o Brasil passou por um período de forte crescimento econômico que ficou conhecido na literatura como "milagre econômico", no qual a taxa média de crescimento do PIB foi de 11% a.a. Segundo Silva (2018), esse crescimento foi resultado da política de maior abertura ao capital estrangeiro que ocorreu depois do golpe militar em 1964, além dos fortes investimentos estatais através do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND).
No entanto, o custo do crescimento econômico do milagre econômico seria pago nas décadas seguintes. Para acelerar o crescimento, o Brasil recorreu a empréstimos internacionais, elevando a dívida externa do país. A inflação na década de 1980, em parte, também foi outra herança da década anterior. No final dos anos 1970, a economia brasileira começou a mostrar sinais de estagnação, a dívida externa havia aumentado, assim como a inflação. Esse era o cenário no qual se iniciava a década de 1980.
O final da década de 1970 foi marcado por acontecimentos externos que contribuíram para o baixo crescimento nos primeiros três anos da década de 1980. Primeiro, ocorreu o segundo choque do petróleo em 1979, que provocou um processo inflacionário, principalmente nas economias periféricas. Segundo, para controlar o crescimento dos preços, os países passaram a elevar suas taxas de juros, o que, combinado com a elevação unilateral da taxa de juros estadunidense, passou a ter um efeito global[4]. Terceiro, diante do endividamento externo crescente, ocorreu o racionamento de crédito externo aos países com endividamento elevado, como o Brasil. Esses três acontecimentos impactaram diretamente o saldo do balanço de pagamentos da economia brasileira, sendo negativo nos primeiros anos da década de 1980.
Diante dos primeiros sinais da recessão mundial, a taxa de juros paga pela dívida externa brasileira quase que dobrou entre 1978 e 1982, passando de 10,9% para 19,5% no período, aumentando a dívida externa do Brasil[5]. Esse aumento da dívida externa poderia ser financiado com o acúmulo de reservas adquiridas via exportação. No entanto, as relações de troca do Brasil com o resto do mundo despencaram em meados dos anos 1980, caindo de um índice de 100 em 1977 para um índice de 54 em 1982. Embora essa deterioração tenha sido provocada pela elevação do preço do petróleo, ela também foi o resultado da imposição de preços maiores dos produtos de países ricos em relação aos produtos exportados pelos países em desenvolvimento. Isso significava que seria necessário exportar cada vez mais para poder importar a mesma quantidade de bens e serviços e, caso contrário, teria que ser financiado por reservas internacionais[6].
Todavia, o choque de juros e a deterioração dos termos de troca resultaram no déficit em transações correntes, agravado pela queda das exportações devido à recessão mundial no período. Assim, a crescente necessidade de financiamento externo não se deveu ao crescimento das importações, mas ao duplo choque (dos juros nos EUA e o segundo choque do petróleo) que ocorreu no final da década de 1970 e em meados da década de 1980.
Com efeito, a dívida externa líquida do Brasil passou de US$ 17,2 bilhões para US$ 65,7 bilhões entre 1977 e 1983[7]. Desse modo, sem possibilidades de honrar seus compromissos externos, uma vez que as reservas internacionais praticamente deixaram de existir, o país teve que recorrer a um empréstimo junto ao FMI em 1982. Segundo Salomão (2016), isso significava a perda de autonomia da política econômica pelo governo, bem como a adoção de políticas que agravariam a recessão da economia brasileira.
Além disso, a inflação começou a se acelerar por fatores relacionados ao lado da oferta, como a queda da taxa de lucro e a desaceleração dos investimentos estatais do II PND. Como consequência desses problemas, em 1980 a taxa de crescimento do PIB foi de 9,11%, caindo para uma taxa negativa de -4,39% em 1981, próxima de zero em 1982 e de -3,1% em 1983.
Diante do crescimento da dívida externa e do recrudescimento inflacionário, Castro e Souza (1985) mostraram que havia duas opções para a economia brasileira: promover o ajuste externo, gerando recessão para reduzir as importações e gerar as divisas necessárias para o pagamento da dívida, ou continuar com a política de substituição de importações da década anterior.
A segunda opção foi a escolhida pelo então Ministro da Fazenda, Delfim Netto, que passou a implementar uma série de medidas econômicas com o objetivo de obter ao mesmo tempo o crescimento econômico e o controle da inflação. No final do primeiro triênio da década de 1980, ocorreu o contrário do que se esperava da política econômica. As medidas de política monetária e de corte do investimento público acabaram sobrepondo as políticas de estímulo ao crescimento econômico, que, aliada à recessão da economia mundial, contribuiu para as taxas negativas obtidas no início dos anos 1980.
No triênio seguinte, 1984 a 1986, ocorreu um forte crescimento da economia, impulsionado principalmente pelo mercado doméstico. Após um impasse na política da Nova República, os economistas ligados à Unicamp e à PUC-RJ passaram a implementar políticas econômicas que tinham por prioridade conter o crescimento inflacionário, mas sem deixar de lado o crescimento econômico.
A redução da taxa de juros foi a principal medida adotada para aquecer o mercado interno, o que aumentou a liquidez e o crédito do setor privado da economia. Em uma economia operando com capacidade ociosa, a queda da taxa de juros permitiu às empresas atender à demanda crescente que surgiu.
Ao reduzir a taxa de juros e aumentar o crédito, a economia pôde crescer em decorrência do aumento do consumo, o qual, por sua vez, devido à capacidade ociosa, permitiu às empresas produzir mais sem precisar realizar novos investimentos, gerando emprego e aumentando a participação da massa salarial na renda. Além disso, o governo concedeu sucessivos aumentos no salário real, elevou os gastos sociais e o investimento público, resultando em crescimento da economia acima de 5% em 1984 e quase 8% em 1985 e 1986.
No entanto, apesar do crescimento econômico, a inflação ainda não tinha sido estabilizada. Em 1986, o governo colocou em prática o Plano Cruzado, que ao congelar os preços, extinguir a correção monetária e substituir o Cruzeiro pelo Cruzado quebrou a inércia inflacionária, conseguindo controlar a inflação.
Todavia, esse controle da inflação foi temporário, uma vez que o Plano não resolveu seu principal problema: a dívida externa. Além disso, o crescimento da economia ocorreu sem a realização de novos investimentos, de forma que com o fim da capacidade ociosa, os preços seriam pressionados para cima novamente. Isto é, a inflação, que era decorrente de fatores externos, passou a ser também de demanda. Com efeito, como demonstrado em Solnik (1987), no momento em que o governo retirasse o congelamento de preços, a inflação retornaria aos níveis anteriores ao Plano Cruzado[8].
Assim, a inflação permaneceu no triênio 1987 a 1989, sendo substituída por outros planos de estabilização como o Bresser e o Plano Verão, que também não conseguiram estabilizar o crescimento dos preços. Em consequência da inflação do período, Barbosa e Cal (2023) mostram que o poder de compra das famílias diminuiu, desaquecendo a demanda interna. Além disso, a inflação alta elevou os juros reais, que por sua vez também contribuíram para a desaceleração do crescimento na segunda metade da década de 1980.
Assim, terminava a primeira década perdida. Nos dez anos analisados, em três anos a taxa foi negativa (1981, 1983 e 1988), tendo uma taxa média de crescimento de 1,77% ao ano durante a década. A dívida externa aumentou de US$ 64,2 bilhões para US$ 116,4 bilhões no período. Depois de ter alcançado 32% do PIB em 1986, a produção industrial entrou em declínio, configurando o que muitos autores[9] passaram a denominar como início do processo de desindustrialização no Brasil. Entre 1981 e 1989, o número de pessoas abaixo da linha de pobreza aumentou de 29,5 milhões para 40 milhões. Por outro lado, a participação do setor financeiro passou de 7,8% da renda nacional para quase 20% em 1989. Com efeito, a concentração de renda também se agravou, o índice de Gini passou de 0,59 para 0,65 no período analisado[10]. Esses são os problemas que seriam enfrentados na década seguinte, os quais são descritos na próxima seção.
A Segunda Década Perdida na Economia Brasileira: 1990 a 1999
No final da década de 1980, foi realizada em Washington-EUA uma reunião com os principais agentes internacionais, entre eles o FMI, Banco Mundial, grandes bancos e acadêmicos que produziram um documento conhecido como "Consenso de Washington". Entre as principais indicações de política econômica estavam a abertura econômica, a desestatização, a desregulamentação e a flexibilização das relações de trabalho.
Todo esse ideário passou a ser denominado de neoliberalismo, orientando a política econômica do governo Collor que se iniciara em março de 1990. De início, esse receituário estava no pacote econômico elaborado pela Ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, chamado de Plano Brasil Novo, mais conhecido como Plano Collor. Dentro deste Plano, segundo Batista (1994), havia o entendimento de que a inflação era decorrente da fragilidade financeira do setor público, a qual levava os oligopólios a remarcarem preventivamente os preços com o objetivo de manterem suas margens de lucro.
Assim, para alcançar esses dois objetivos simultaneamente, o governo passou a privatizar as empresas estatais e bloqueou por 18 meses a conversão de ativos em moeda corrente, o que significou na prática o sequestro de quase 80% do meio circulante do país. Consequentemente, ao mesmo tempo que saneava as finanças públicas, a retirada de moeda de circulação provocaria uma forte queda da demanda que evitaria a remarcação de preços por parte dos oligopólios. Para evitar essa remarcação, o governo também acelerou a abertura da economia, reduzindo drasticamente as tarifas de importação para diversos produtos estrangeiros. Já a nova política salarial, ao reduzir o poder de compra do trabalhador, contribuiria também para evitar a remarcação de preços.
No entanto, o resultado do Plano Collor foi uma violenta recessão em 1990, com uma queda de -3,1% no PIB, leve crescimento em 1991 e uma queda de 0,5% em 1992. O Plano Collor, ao reduzir a quantidade de moeda em circulação, reduziu o consumo e, portanto, o crescimento do PIB. Por outro lado, com a queda do salário real, a relação lucro/salário poderia aumentar, elevando a taxa de lucro das empresas e, assim, o investimento. Não obstante, como a economia brasileira é do tipo wage-led, a queda da demanda foi tão significativa que a taxa de lucro diminuiu, provocando a queda da produção e do emprego. O Plano Collor II e seu forte ajuste fiscal, bem como as medidas econômicas tomadas pelo novo Ministro Marcílio Marques Moreira, não foram suficientes para reverter a recessão nos primeiros anos da década de 1990[11].
Com a economia em recessão e o recrudescimento da inflação, buscou-se acelerar o processo de abertura da economia, de privatização[12] e atrair capitais estrangeiros. Mas essas medidas não tiveram o efeito desejado. Primeiro, a queda das tarifas de importação não aumentou as importações, uma vez que a economia estava em recessão e o câmbio desvalorizado. Segundo, as principais empresas estatais estavam sob a proteção de leis ou da Constituição. Terceiro, o capital estrangeiro não tinha interesse em realizar investimentos em países que estavam em recessão ou em crises políticas. No entanto, como apontou Baumann (2001), embora não tenha conseguido realizar esses objetivos, o governo Collor preparou as bases para atrair capital estrangeiro e para as privatizações no governo posterior.
Depois do impeachment de Collor, Itamar Franco assumiu a presidência em outubro de 1992. Inicialmente, Itamar buscou reativar a economia, reduzindo a taxa de juros e aumentando os gastos públicos que, aliado à melhora do cenário externo, conseguiu gerar um crescimento da economia superior a 4% em 1993.
Não obstante, junto com a reativação da economia veio o crescimento da inflação, ocorrendo uma pressão política para que a prioridade da economia voltasse a ser o combate à inflação. Esse combate foi feito através das políticas econômicas anteriores: corte de gasto público, taxa de juros elevada e corte salarial. Itamar cedeu às pressões e, em junho de 1993, aceitou Fernando Henrique Cardoso (FHC) como seu Ministro da Fazenda, submetendo seu programa econômico ao ideário neoliberal.
Segundo Silva (2020), FHC praticamente deu continuidade à política econômica preconizada pelo Consenso de Washington, na qual o controle da inflação passaria pelo controle das contas públicas. Para isso, foi construído o Plano Real que se sustentava em três âncoras: monetária, fiscal e cambial.
O governo renegociou a dívida externa com o objetivo de atrair recursos estrangeiros que permitissem o lastro para a nova moeda, o que seria conseguido elevando a taxa de juros. Por outro lado, ao mesmo tempo que as reservas aumentavam, o déficit público também crescia, uma vez que aumentavam os encargos financeiros da dívida pública.
O Fundo Social de Emergência, cujo objetivo era obter recursos que deveriam ser destinados ao enfrentamento de determinados problemas sociais, na verdade se tornou uma estratégia para realizar um ajuste fiscal e liberar recursos com o objetivo de evitar o crescimento do déficit público. Isto é, para financiar a política de juros elevados, fato esse que depois foi reconhecido pela própria equipe econômica, que mudou o nome para Fundo de Estabilidade Fiscal[13].
Antes de implementar a nova moeda, o governo estabeleceu a Unidade Real de Valor (URV), que tinha o papel de realinhar os preços e salários, recuperando a credibilidade da moeda nacional. Em julho, a URV foi convertida no Real e estabeleceu um teto máximo para a taxa de câmbio, a paridade de R$ 1,00 para US$ 1,00. Diante disso, o Banco Central vendia dólares sempre que o câmbio estivesse acima de R$ 1,00, mas não interviria se ficasse abaixo. Tratava-se de um regime de câmbio semifixo. Essa era a âncora cambial.
Todavia, Bacha (1998) mostra que essa arquitetura do Plano Real não foi suficiente para segurar a estabilidade dos preços por muito tempo. Primeiro, o equilíbrio das contas públicas não foi alcançado devido à política monetária de juros altos colocada em prática para garantir a paridade da moeda. Por outro lado, os juros altos, ao reduzir o crescimento do investimento e o consumo, reduziram o crescimento da economia e, portanto, levaram à queda da arrecadação fiscal. Assim, diante da ausência de garantias de que as margens de lucro iriam permanecer conforme alinhadas com as estratégias das empresas, logo após a implementação da nova moeda, os grandes grupos econômicos passaram a remarcar seus preços e, portanto, a elevar a inflação.
Para tentar conter esse crescimento dos preços, foi realizada uma nova rodada de redução das alíquotas de importação, resultando no crescimento das importações, que também foi favorecido pela taxa de câmbio valorizada. O objetivo era de que as importações ao aumentar a competitividade, evitaria a remarcação de preços, controlando a inflação e ao mesmo tempo modernizando a indústria nacional.
A inflação não explodiu e garantiu a eleição de FHC para Presidente, mas embora se tenha tido ganhos de produtividade[14], a modernização da indústria não ocorreu, como evidenciado em Brito (2002). Pelo contrário, o aumento das importações reduziu o mercado para as empresas nacionais e a taxa de juros alta tornou inviável o investimento, colocando a indústria nacional em dificuldades e acelerando o processo de desindustrialização como demonstrado em Morceiro (2021).
Em 1995, o Plano Real passa a enfrentar dificuldades, o câmbio apreciado reduziu o crescimento das exportações e aumentou as importações, gerando déficit no saldo da balança comercial depois de sucessivos superávits. As empresas estrangeiras também demandavam divisas para remeter seus lucros às suas matrizes fora do Brasil. Assim, as reservas cambiais começaram a se reduzir, gerando dificuldades para o pagamento das importações e, portanto, para o próprio Plano Real. A crise no México em 1995 agravou toda essa situação, o capital especulativo passou a fugir do Brasil em busca de países mais seguros, provocando a diminuição das reservas cambiais e aumentando a fragilidade das contas externas brasileiras.
Isso significava na prática, como apontado por Batista Jr. (2002), dificuldades de manter a paridade cambial entre o real e o dólar, dada a desregulamentação dos fluxos financeiros internacionais de curto prazo. Para evitar isso, o governo voltou a aumentar a taxa de juros e a fazer algumas desvalorizações cambiais, ocorrendo uma melhora nas reservas e preservando o Plano Real no início do governo FHC. Todavia, essa melhora não foi suficiente para evitar a deterioração do passivo externo, sendo necessária a venda de empresas estatais para garantir o pagamento das importações. Diante de tudo isso, a economia cresceu 5,0% em 1994, 4,0% em 1995 e cresceu apenas 2,2% em 1996.
Em 1997, o déficit em transações correntes ficou acima de 3,0% do PIB, considerado de alto risco pela possibilidade de afugentar o capital estrangeiro e reduzir as reservas cambiais, uma vez que o movimento de natureza especulativa não precisa de fundamentos para ocorrer. No segundo semestre de 1997, a economia brasileira se depara com o segundo choque externo, a crise dos tigres asiáticos. Desse modo, o déficit em transações correntes passou dos 4,0% do PIB, levando o governo a aumentar a taxa de juros para conter a fuga de capitais.
Para garantir o pagamento desses juros, cortaram-se os gastos públicos e aumentaram-se os impostos. Além disso, o governo fez um primeiro empréstimo com o FMI. Todo esse esforço para manter o real valorizado e impedir o crescimento da inflação. Apesar do crescimento do PIB de 3,3% em 1997, no ano seguinte foi de apenas 0,3%. Ferrari-Filho (2001) mostra que ocorreu uma estabilização sem crescimento, mas que garantiu a reeleição de FHC em 1998.
Mesmo com esse baixo crescimento da economia, as importações não diminuíram devido ao câmbio valorizado. O cenário externo se complicava com a crise na Rússia, reduzindo as exportações e aumentando a fragilidade das contas externas brasileiras. Diante disso, o governo não teve outra opção e deixou a taxa de câmbio flutuar livremente, ocorrendo a substituição do Plano Real pelo Sistema de Metas de Inflação (SMI).
A desvalorização do real só produziria os efeitos esperados no ano 2000, quando a economia cresceu acima de 4,0%, impulsionada pelas exportações, embora ainda não tenha gerado um superávit na balança comercial devido, principalmente, às baixas tarifas de importação que prevaleciam. Isso sinalizava para o Banco Central aumentar a taxa de juros com o objetivo de atrair capitais e cobrir o déficit em transações correntes, mas também para gerar a apreciação da taxa de câmbio e conter a inflação. Por outro lado, o aumento da taxa de juros implicava no aumento da dívida pública, sendo necessário gerar superávits primários para evitar sobrecarregar o endividado setor público. Essa era a engenharia, de acordo com Serrano (2010), de funcionamento do SMI.
Dessa forma, criava-se o que a literatura[15] denominou de tripé de política econômica, baseado em três instrumentos principais: câmbio flutuante, metas de inflação e metas de superávit primário. Esse tripé de política macroeconômica permaneceu na década seguinte, em que depois de fazer dois acordos com o FMI, este passou a exigir superávits primários maiores. No entanto, a mudança de cenário externo e o boom das commodities derivado do efeito China interromperam duas décadas de estagnação. Não obstante, os acontecimentos econômicos e políticos nos anos de 2010, que resultaram em baixo crescimento da economia, indicam que o país viveu uma terceira década perdida.
A Terceira Década Perdida na Economia Brasileira: 2010 a 2019
Entre a segunda década perdida e os anos de 2010, o Brasil passou por um período de forte crescimento, com exceção da crise financeira de 2008-09,[16] impulsionado em parte pelo aumento dos preços das commodities e em parte por políticas que estimularam o aumento do consumo, principal componente da demanda agregada. A combinação da melhora do cenário externo com políticas de estímulo ao consumo[17], gerou um crescimento médio de 3,4% nos anos entre 2000 e 2009.
O esperado era que esse crescimento continuasse na década seguinte, uma vez que a taxa de crescimento em 2010 foi de 7,5%. No entanto, quando se compara o crescimento médio entre 2010 e 2019 com as últimas três décadas, verifica-se uma média mais baixa, de apenas 1,44%, como pode ser visto na Figura 1[18].
Isso significa que, em termos de crescimento médio do PIB, a década de 2010 é a que apresentou o menor valor. O período de 2011 a 2014, ou seja, o primeiro governo Dilma, foi de desaceleração planejada do crescimento em relação à década anterior, uma vez que havia o entendimento de que o crescimento baseado no consumo estaria esgotado devido ao crescente endividamento das famílias.
Para isso, foi colocado em prática o que se denominou "Nova Matriz Macroeconômica", que tinha por objetivo estimular o crescimento pela via das exportações e do investimento privado. Isso seria conseguido através da desvalorização cambial, redução da taxa de juros e uma política fiscal de elevação dos gastos, concessões de subsídios e intervenção nos preços. Além disso, o governo adotou um conjunto de medidas macroprudenciais de restrição de crédito para tentar conter o consumo e, portanto, reduzir o crescimento do endividamento das famílias.[19] .
No entanto, apesar da depreciação cambial e da redução da taxa de juros, o investimento não reagiu da forma que se esperava. A taxa de crescimento do investimento das empresas cresceu 9,8% em 2011, caiu 0,9% em 2012, voltou a crescer 5,2% em 2013 e caiu 3,8% em 2014. Silva (2016) mostra que essa flutuação no crescimento do investimento das empresas pode ser explicada pela redução do ritmo de crescimento do consumo derivado das medidas de ajustes criadas pelo governo Dilma. A taxa de crescimento do consumo passou de 4,7% em 2011 para 3,5% nos dois anos seguintes e para apenas 1,1% em 2014.
Sendo o consumo o componente com maior peso na demanda agregada, a taxa de crescimento do PIB caiu, como pode ser observado na Figura 2. Passou de 3,97% em 2011 para apenas 0,50% em 2014.
Segundo Lara (2015), o consumo das famílias corresponde a 55% do PIB, de modo que o crescimento da economia brasileira dificilmente ocorrerá de forma robusta sem a contribuição desse componente. Portanto, não existe trade-off entre investimento e consumo das famílias, como entendia o governo Dilma. Sendo o investimento pró-cíclico, a desaceleração do consumo e, portanto, do PIB tende a provocar a redução do crescimento do investimento por parte das empresas, como ocorreu no primeiro governo Dilma. Entre 2011 e 2014, a taxa média de crescimento do PIB foi de 2,3%, metade da média obtida no segundo governo Lula, configurando assim uma desaceleração do crescimento econômico no início da década de 2010.
O desaquecimento da economia se refletiu na criação de empregos formais, que depois de ter alcançado 2,5 milhões de postos de trabalho em 2010, passou a reduzir seu ritmo de crescimento nesses primeiros anos de 2010. Em 2014 (Figura 3), o país teve um saldo líquido de apenas 391 mil empregos formais.
O indicador de criação de emprego é calculado comparando o número de empregos criados em determinado período com o número de empregos perdidos durante o mesmo período. Assim, esse baixo dinamismo no mercado de trabalho, evidenciado na Figura 3, resultou no crescimento da taxa de desocupação e de subutilização da força de trabalho do Brasil.
Conforme a Figura 4, a taxa de desocupação se manteve em torno de 7,0% no primeiro ano do governo Dilma. Todavia, nos dois anos do segundo governo Dilma, a economia brasileira entra em recessão, tendo uma taxa de crescimento média do PIB negativa superior a 3% em 2015 e 2016, resultando em uma taxa de desocupação de 8,4% e 11,4%, respectivamente.
A taxa de subutilização é especialmente útil porque inclui não apenas os desempregados, mas também aqueles que estão subocupados por insuficiência de horas trabalhadas e os desalentados, que desistiram de procurar emprego devido à falta de oportunidades. Portanto, é mais abrangente e capaz de retratar não apenas o desemprego aberto como também aquele oculto. A trajetória dessa taxa é similar à da taxa de desocupação, mas com aumentos percentuais maiores de uma para outra, o que significa um agravamento no mercado de trabalho, ou seja, um número considerável de pessoas desempregadas, subocupadas por insuficiência de horas e desalentadas.
Depois de uma vitória apertada de Dilma nas eleições em 2014, criou-se uma instabilidade política derivada da não aceitação da derrota do candidato Aécio Neves, de manifestações de parte da população nas ruas e de vazamentos ilegais da Operação Lava Jato.
No campo econômico, a Presidente Dilma demite o Ministro da Fazenda Guido Mantega e, em seu lugar, assume Joaquim Levy, de escola liberal. No Planejamento, Dilma escolhe Nelson Barbosa, de corrente desenvolvimentista, tentando encontrar um equilíbrio entre a política de austeridade fiscal e uma política social ativa. Com isso, o governo Dilma pretendia controlar o crescimento da dívida e manter o combate à redução da pobreza. Em outras palavras, uma tentativa de agradar ao mercado financeiro (uma preocupação que não ocorreu no primeiro governo Dilma) e parte de seus eleitores.
No entanto, a combinação do ajuste fiscal com a política de juros elevados provocou o crescimento acelerado da dívida em relação ao PIB. Em 2014, a relação dívida/PIB era de 39%, passou para 47% em 2015 e, em 2016, já era superior a 55%. Se por um lado o ajuste fiscal gerou o desaquecimento da economia, provocando a queda do PIB, por outro lado o aumento da taxa de juros gerou o crescimento da dívida, além de seus efeitos negativos sobre o lado da demanda. No final de 2010, a taxa de juros que estava em 11,75% passou para 14,25% no final de 2015, caindo para 13,75% em 2016.
Sem apoio popular e político, a Presidente Dilma tentou modificar a orientação da política econômica, demitindo Joaquim Levy no final de 2015 e colocando em seu lugar Nelson Barbosa. Todavia, não havia mais tempo. Eduardo Cunha, Presidente da Câmara dos Deputados, já tinha rompido com o governo. Medidas econômicas importantes do governo deixaram de ser apreciadas pelo Congresso e, ao mesmo tempo, o pedido de impeachment foi aceito em dezembro de 2015.
A base de fundamentação do impeachment envolvia principalmente questões fiscais e orçamentárias, em que o governo Dilma II havia praticado "pedaladas fiscais" e emitido decretos de crédito suplementar sem a devida autorização do Congresso Nacional. Em paralelo, as denúncias de corrupção na Petrobrás realizadas pela Operação Lava Jato e que teve como resultado a prisão de empresários como Marcelo Odebrecht e de políticos como o ex-presidente Lula, paralisaram o setor da construção civil. Esse setor, que corresponde em média a 6% do PIB e do emprego gerado no Brasil, teve queda de 7,6% e 5,1% em 2015 e 2016, respectivamente[20].
Nesses dois anos do governo Dilma II, o PIB caiu 3,55% em 2015 e 3,28% em 2016, sendo determinado pelo consumo das famílias (que caiu -3,2% e -3,8% no período) e o investimento que teve queda de 13,2% em 2015 e de 12,1% em 2016. A taxa de desemprego passou de 6,9% em 2014 para 11,4% em 2016. O número de demissões foi maior que o número de empregos formais criados, gerando um saldo negativo de mais de 2,8 milhões de pessoas desempregadas nesses dois anos analisados. A taxa de inflação, que era de 6,4% em 2014, passou para 10,67% em 2015, caindo para 6,2% em 2016. Com a demanda deprimida e a queda da produção industrial, o grau de capacidade instalada caiu de 83% em 2014 para 76% em 2015 e 74% em 2016. O índice de Gini, que é sensível a mudanças nas faixas intermediárias da distribuição da renda, aumentou de 0,51 em 2014 para 0,53 em 2016. Já o índice de Theil, que é sensível a desigualdades nas faixas extremas, passou de 0,54 em 2014 para 0,57 em 2016. Os indicadores de pobreza também aumentaram no período de 2014 a 2016, passando de 22,8% para 25,5% no caso de pobreza e de 4,5% para 5,8% no caso do indicador de extrema pobreza.
Todos esses indicadores mostram que o segundo governo Dilma não conseguiu seu objetivo, pelo contrário. A política econômica de austeridade fiscal e aumento da taxa de juros provocou o crescimento da dívida pública e aumentou a desigualdade e a pobreza no Brasil.
A instabilidade política e econômica resultou na destituição de Dilma da Presidência do Brasil em 31 de agosto de 2016. Em seu lugar, assume Michel Temer com rótulo de golpista[21] dado pela esquerda. Com isso, Nelson Barbosa é substituído por Henrique Meirelles na Fazenda, que deu continuidade à política econômica iniciada por Levy, porém sem o contrapeso no Planejamento.
Segundo Barbosa Filho (2017), a solução para a crise econômica da economia brasileira deveria passar inicialmente pela busca de estabilização da relação dívida/PIB, o que podia ser feito através de uma política crível de superávits primários. Para isso, o governo Temer conseguiu aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do teto dos gastos públicos. [22].
A PEC 241/55 estabeleceu um teto para os gastos primários do governo federal, definido com base no valor do ano anterior corrigido pela inflação. Isso significava, na prática, que os gastos federais, em termos reais, não poderiam crescer acima da inflação. A partir de 2017, a PEC teria uma vigência de 20 anos, congelando os gastos públicos em termos reais por duas décadas.
Assim, para a estratégia do governo, a criação da PEC foi um passo importante para reduzir o déficit primário, sinalizando uma política de geração de superávit primário no futuro e, ao mesmo tempo, a reforma previdenciária que ocorreria em 2019 dava confiança de que o teto seria respeitado. No entanto, o governo perdia um instrumento de política fiscal para estimular a economia, além de sucatear os serviços públicos e agravar a desigualdade social no país.
Como mostra a Figura 5, o baixo crescimento, elevação dos gastos, a concessão de subsídios e o controle de preços dos combustíveis no primeiro governo Dilma deterioraram as contas públicas, revertendo um superávit de 1,4% do PIB em um déficit de -0,4% em 2014.
A recessão nos dois anos seguintes aumentou ainda mais esse déficit. Com a PEC 55, o governo perdeu o uso da política fiscal como um instrumento anticíclico, limitando o gasto do governo ao teto estabelecido. Na expectativa de que esse teto não fosse cumprindo, o governo cortaria ainda mais os gastos discricionários. Diante dessa nova regra, o déficit primário iniciou uma tendência de queda, passando de -2,6% do PIB em 2016 para -1,3% em 2019.
Todavia, esse ajuste fiscal baseado na hipótese de que o corte de gastos públicos elevaria a confiança do setor privado, aumentando o investimento e o consumo, não se refletiu em um crescimento econômico robusto[23]. No entanto, essa contração fiscal expansionista obteve uma taxa de crescimento de 1,3% em 2017 e 1,7% em 2018.
Além disso, a taxa de desemprego permaneceu acima de 10% nesses dois anos (Figura 4). E mesmo com a reforma trabalhista aprovada no final de 2016, a qual possibilitou uma série de flexibilizações no mercado de trabalho, não se traduziu no aumento de emprego formal, como pode ser observado na Figura 3. Já a taxa de subutilização aumentou, refletindo o aumento da precarização do trabalho.
Entretanto, a desaceleração do crescimento da dívida interna, a inflação[24] sob controle e um mercado de trabalho desaquecido forneceram as condições para que ocorresse a queda da taxa de juros nesses anos do governo Temer. Depois de alcançar 14,25% no final de 2015, a taxa Selic caiu para 6,5% no final de 2018 (Figura 6).
Diante de uma taxa de juros menor, esperava-se um aumento do investimento privado, o que pode ser verdadeiro quando a economia se encontra próxima do produto potencial e os empresários esperam que a economia continue crescendo. O que não era o caso da economia brasileira, que estava desaquecida e operando com capacidade ociosa. Assim, essa queda da taxa de juros, ao aliviar o endividamento das famílias e permitir o crescimento do consumo de 2,0% em 2017 e 2,4% em 2018, teve como consequência imediata o aumento do grau de utilização da capacidade instalada, que passou de um índice de 74 para 76 entre 2016 e 2018, Figura 7.
No final de 2018, Bolsonaro venceu as eleições no segundo turno com 55% dos votos válidos em relação a Fernando Haddad que teve 45%. No lugar de Meirelles, Bolsonaro colocou Paulo Guedes que passou a concentrar o Ministério da Fazenda, do Planejamento, Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, além do Ministério do Trabalho em uma única pasta, o Ministério da Economia. O "posto Ipiranga" de Bolsonaro passou a ter um superministério sobre seu controle.
Segundo Carneiro (2019), Bolsonaro-Guedes adotaram uma agenda econômica ultraliberal, baseado em três eixos: fiscal, macroeconômico financeiro e produtivo. No primeiro, englobava a reforma da previdência, a reforma tributária e um novo regime fiscal. No eixo macroeconômico financeiro, o objetivo era implementar um Banco Central independente, liberalização cambial e um novo padrão de financiamento, desmontando os bancos públicos. No eixo produtivo, a defesa era uma maior abertura comercial, privatizações e uma nova rodada de reforma trabalhista (desregulação) sem uma política de valorização do salário mínimo definida. Assim, em sua essência a redução da ação estatal na economia era a principal diretriz que norteava a política econômica do governo Bolsonaro, como apontado por Araújo (2023).
Assim, o governo Bolsonaro aprofundava a política liberal iniciada no governo Temer, comprometendo-se com uma agenda de consolidação fiscal e reformas previdenciária, administrativa e tributária. Em 2019, o governo conseguiu aprovar a reforma previdenciária, estabelecendo o aumento da idade mínima de 65 anos, aumento progressivo das alíquotas de contribuição, reduzindo o valor dos benefícios entre outras medidas que empurravam os trabalhadores para a previdência complementar.
O governo Bolsonaro também conseguiu uma mini reforma trabalhista na qual instituiu a carteira de trabalho verde amarela, estabelecendo medidas de precarização do trabalho como contratos temporários, alíquota de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) de 2% em vez de 8%, diluição das férias e decimo terceiro salário nos salários mensais[25].
Inspirado no governo Temer, em 2019 o governo Bolsonaro fez mudanças no FGTS, autorizando saques das contas inativas através de novas modalidades (emergencial e saque-aniversário), injetando dinheiro na economia para aumentar o consumo das famílias. Com efeito, R$ 26 bilhões passaram a circular na economia, elevando o consumo e o crescimento do PIB. Porém, o crescimento não passou de mais um "voo de galinha", a economia brasileira cresceu apenas 1,41% em 2019.
Paulo Guedes afirmou que um crescimento maior somente seria possível com a aprovação de algumas reformas. Assim, no final de 2019 e meados de 2020 o governo enviou ao Congresso Nacional três propostas de emenda constitucional que revogariam despesas mínimas obrigatórias com saúde, educação, fundos públicos para financiamento setorial e regional, redução da jornada de trabalho do serviço público com redução equivalente dos salários. Todavia, essas PECs foram deixadas de lado com as primeiras consequências da pandemia da covid-19.
Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a condição de pandemia da covid-19, sendo o contágio e a letalidade maiores na China e em parte da Europa. Um mês antes, o Brasil já havia confirmado o primeiro caso da doença na cidade de São Paulo, exigindo o início de medidas de restrição de circulação de pessoas, que eram as únicas formas conhecidas no momento de enfrentamento do vírus e que vinham sendo adotadas por diversos países.
Essa crise global impactou a economia tanto pelo lado da oferta quanto pelo lado da demanda. No primeiro caso, a restrição de circulação de pessoas afetou o funcionamento das empresas em diversos setores, aumentando o desemprego e reduzindo a renda do setor informal da economia. Além disso, a covid-19 também desarticulou as cadeias globais de produção, uma vez que os contágios do vírus ocorreram em períodos diferentes nos diversos países, ou seja, as medidas de restrição e seu posterior relaxamento também se deram em momentos distintos, prejudicando a coordenação entre os países no que diz respeito à produção. Pelo lado da demanda, a pandemia afetou principalmente o consumo e as exportações. Esses efeitos diretos e indiretos da pandemia da covid-19 sobre a economia e sobre a vida da população tratam-se da maior externalidade negativa que o mundo já conheceu, cujos efeitos ainda não foram totalmente mensurados.
Assim, além da crise sanitária, o mundo entra em recessão econômica. Nesse momento, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que a economia brasileira estava decolando[26] antes da pandemia, mas os indicadores sugerem o contrário. O crescimento do PIB em 2019 foi menor do que o apresentado em 2018, o que indica na verdade uma desaceleração da economia.
O governo Bolsonaro subestimou a gravidade da crise sanitária e econômica, sendo contra as medidas de isolamento social e promovendo um falso dilema[27] , entre salvar a saúde coletiva ou a economia. No entanto, tais medidas foram implementadas pelos governadores e prefeitos para diminuir o contágio e a superlotação dos hospitais e, portanto, evitar o colapso da saúde pública e privada no país.
A economia praticamente parou, sendo a indústria e o setor de serviços os mais impactados pela pandemia. A taxa de desemprego aumentou para 13,7% em 2020; a informalidade caiu, mas foi provocada pelo isolamento social implementado no período. Pelo lado da demanda, o consumo das famílias caiu 5,4% e as exportações 2,3%. Com efeito, o PIB do país caiu 4,0% em 2020.
Para enfrentar as duas crises, o Congresso Nacional aprovou o estado de calamidade pública que autorizava o governo a descumprir a meta do resultado primário de 2020. O Congresso também aprovou o chamado "orçamento de guerra", um conjunto de despesas primárias que ficaram fora do teto de gastos públicos. Esses recursos foram direcionados para o Sistema Único de Saúde (SUS), para estados e municípios e para o pagamento de um auxílio emergencial destinado aos trabalhadores que tiveram sua renda afetada pela pandemia.
No que diz respeito a esse auxílio, foi pago um valor de R$ 600 iniciando em abril e válido por três meses, beneficiando 61 milhões de pessoas (equivalente a mais de quatro vezes o número de beneficiários do Bolsa Família). Depois, foi prorrogado até dezembro de 2020 em valor menor, R$ 300[28].
Para tentar preservar os empregos, o governo aprovou outra medida provisória (MP n° 936/2020) que permitia às empresas reduzirem a jornada de trabalho e o salário de seus empregados em até 70%, mas recebendo um benefício complementar pago pelo governo. Para ampliar a liquidez e o crédito, dentre outras medidas, o Banco Central cortou a taxa de juros, alcançando a taxa mínima histórica de 2% ao ano no final de 2020 (vide Figura 6).
Se, por um lado, os gastos do governo aumentaram com a pandemia, por outro lado a pandemia provocou uma forte queda na arrecadação. Esses dois efeitos contrários elevaram o déficit primário de 1,3% do PIB em 2019 para quase 10% em 2020 (Figura 5). A dívida líquida passou de 64,3% do PIB para 74,3% no mesmo período.
No entanto, a pandemia da covid-19 provocou uma melhora superficial e temporária em alguns indicadores devido às condições impostas pelo vírus, como o pagamento de auxílio emergencial e as medidas de isolamento. O índice de Gini caiu para 0,524 devido ao pagamento do auxílio emergencial que melhorou a distribuição de renda, uma queda de 0,019 em relação a 2019. Todavia, na ausência dos benefícios sociais, o índice teria crescido 0,013. Da mesma forma, para a taxa de pobreza e extrema pobreza, tem-se uma melhora temporária devido aos benefícios sociais; quando desconsiderados, observa-se um crescimento de 3,9 pontos percentuais e 2,9 pontos percentuais nos indicadores de pobreza e extrema pobreza, respectivamente. A taxa de informalidade, que vinha crescendo desde 2014, caiu de 47,5% em 2019 para 46,3% em 2020. O mesmo ocorreu com a economia subterrânea, que caiu de 17,3% para 16,6% no mesmo período. Nos anos seguintes, esses indicadores iriam mostrar uma piora em seus resultados, evidenciando a melhora temporária causada no contexto da pandemia.
O fato é que o desempenho da economia no ano de 2020 foi influenciado pela pandemia da covid-19, a maior externalidade negativa que o mundo conheceu. Não obstante, a pandemia colocou o governo Bolsonaro em uma situação excepcional na qual teve um orçamento de guerra e um Congresso Nacional fornecendo todas as condições necessárias ao governo para combater o vírus. Isso significa que, embora não se possa culpar o governo Bolsonaro pelo crescimento econômico em 2020, este teve todos os instrumentos de política econômica livres de regras para tentar amenizar os efeitos negativos da pandemia da covid-19.
Se tivesse feito a escolha de combater o coronavírus apoiando o uso de máscara, o isolamento social e a busca mais rápida possível por uma vacina, as externalidades negativas da covid-19 teriam sido menores, principalmente no que diz respeito à vida da população brasileira. No entanto, mesmo retirando o ano de 2020, diferentemente do argumentado por Couto e Couto (2021), o crescimento médio da economia brasileira nos anos de 2010 continuaria sendo o menor das décadas perdidas, 0,79%, configurando a terceira década perdida da história econômica do Brasil.
Considerações Finais
Depois de um período de forte crescimento econômico na década de 1970, as duas décadas seguintes foram marcadas pela denominação de décadas perdidas. Embora a restauração da democracia após o fim da ditadura militar e as transformações culturais ocorridas no país tenham sido importantes, foi na esfera econômica que esse significado passou a ser atribuído.
Essa denominação pode ser explicada devido a pelo menos quatro problemas econômicos: i) estrangulamento externo derivado do segundo choque do petróleo e da diminuição dos financiamentos internacionais; ii) crise fiscal e financeira do país, gerando dificuldades no pagamento dos juros da dívida e, consequentemente, elevando o endividamento do Estado; iii) processo inflacionário e os planos fracassados até a implementação do Plano Real; iv) sucessivos empréstimos com o FMI que levaram à perda de autonomia da política econômica.
Entre esses problemas, o principal era a inflação. Para tentar resolver, vários planos de estabilização foram implementados (Cruzado I e II, Bresser, Verão e "Feijão com Arroz") que não tiveram o efeito esperado, em que o congelamento de preços só alimentava novas expectativas de intervenção nos preços para reduzir o processo inflacionário. Com efeito, crescia também o endividamento externo.
A estabilidade de preços foi alcançada com o Plano Real nos anos 1990, mas a base dessa estabilidade estava ancorada na taxa de câmbio, sendo necessário ter reservas internacionais para manter o câmbio apreciado. Todavia, essa ancoragem era muito instável, uma vez que os agentes econômicos especulavam na desvalorização, a qual se acentuou diante das sucessivas crises internacionais da década de 1990. Tudo isso demandou mais reservas internacionais e três empréstimos ao FMI, até que o Plano Real foi substituído pelo SMI. Consequentemente, passou a ser implementada a política econômica proposta pelo FMI, que consistiu no tripé de política macroeconômica. Isso resultou em taxas de crescimento relativamente baixas durante toda a década de 1990.
Entre 2010 e 2019, o Brasil apresentou uma taxa de crescimento média de 1,44%, o que permitiu questionar se esse período pode ser também denominado de década perdida. Os problemas econômicos não são os mesmos, uma vez que a inflação esteve controlada e não houve crises de balanço de pagamentos por escassez de reservas internacionais. Mas a crise fiscal e financeira do Estado, evidenciada pela diminuta arrecadação e pela incapacidade de reverter o déficit público, associada às complicações externas resultantes da instabilidade na geopolítica internacional, juntamente com uma taxa de formação bruta de capital fixo em relação ao PIB insuficiente e uma alta taxa de desemprego, foram os principais problemas econômicos da década. Além da crise econômica, houve a crise política com o impeachment da Presidente Dilma e os escândalos de corrupção revelados pela Lava Jato, que paralisaram a construção civil no país[29]. Em seguida, a eleição de Bolsonaro que sucedeu Temer na Presidência, alterando a política econômica dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Todavia, a baixa taxa de crescimento nesse período se deve mais às escolhas de políticas econômicas do que aos condicionantes externos, dada a abundância de liquidez internacional e as vultuosas reservas.
A economia brasileira atualmente, na década de 2020, parece se encontrar em uma situação melhor do que a apresentada na década de 2000 para superar os problemas da última década perdida. O controle das contas públicas sem perder de vista a questão social e o investimento público passa pelo crescimento da economia nos anos de 2020, sendo fundamental para reduzir a desigualdade de renda e estimular o setor privado. A política econômica também deve buscar uma situação próxima do pleno emprego pari passu com uma política de valorização do salário para estimular o consumo, o componente mais importante da demanda agregada. A indústria de transformação é onde se encontram os melhores empregos e mais bem remunerados, além de possuir encadeamentos para trás e para frente, sendo, portanto, fundamental reindustrializar o país para alcançar o crescimento econômico de forma sustentável. Essas são algumas medidas que podem nortear a política econômica na década atual.
A equipe econômica do governo Bolsonaro tentou ir na direção contrária, colocando em prática o receituário liberal ultrapassado. Essas medidas econômicas que iniciaram no final da década de 2010 e permaneceram no início da década de 2020 tiveram como objetivo estimular o crescimento econômico via privatizações, ajuste fiscal, reformas estruturais e corte progressivo de todo e qualquer tipo de gasto público, sem qualquer tipo de ajuste real do salário. Com a pandemia do coronavírus, o governo teve à sua disposição um orçamento de guerra e a taxa de juros alcançou sua mínima histórica. A taxa de câmbio permaneceu desvalorizada. O resultado nesse contexto foi um baixo crescimento e elevado desemprego, combinado com o aumento da concentração de renda. A pandemia tem sua influência nesses resultados, mas mesmo que a pandemia não tivesse existido, a estimativa do PIB para o ano de 2020 era de 2,1% frente a um crescimento de 1,1% em 2019. Os resultados obtidos no governo Bolsonaro contribuíram para o retorno do PT e de um terceiro governo Lula.
Assim, cabe ao governo atual, Lula III, enfrentar os problemas econômicos herdados da década de 2010 de forma eficaz, melhorando as expectativas, retomando o investimento público e privado, gerando emprego, reduzindo a desigualdade de renda e aumentando a competitividade da indústria nacional. De um modo geral, uma política econômica que visa resolver os problemas de curto prazo, mas sem esquecer dos problemas estruturais para alcançar o crescimento econômico de forma sustentada no longo prazo e deixar as décadas perdidas apenas nos livros de história da economia brasileira.