Qual era a representação que os vassalos portugueses faziam da natureza e da humanidade da América portuguesa em finais de Setecentos? Em que autores se baseavam para fundamentar teorias e imagens sobre o lugar do “seu” Novo Mundo na história da humanidade? Como é que a elite científica reinol e colonial participou neste debate protagonizado por Lineu, Buffon e Robertson? De que modo a origem do continente americano e dos seus habitantes foi equacionada por uma intelectualidade que, em grande parte, tinha nascido nos espaços coloniais portugueses e era formada na Universidade de Coimbra pós-1772? Este artigo pretende refletir sobre estas questões, centrando-se exclusivamente na figura de Alexandre Rodrigues Ferreira e na memória “Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamíferos observados nos territórios dos três rios das Amazonas, Negro e da Madeira com descrições circunstanciadas que quase todos eles deram os antigos e modernos naturalistas e principalmente com a dos tapuios”, que me parece merecer uma releitura à luz do modo como a elite científica portuguesa participou nos debates científicos sobre o Novo Mundo.
O naturalista, nascido em Salvador da Bahia em 1756, protagonizou uma das maiores, mais relevantes e melhor estudadas “viagens filosóficas” aos espaços imperiais portugueses ao percorrer as capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá entre 1783 e 1792.
Este artigo encontra-se estruturado em três partes. A primeira refere-se à polémica do Novo Mundo e aos esforços desenvolvidos pelos pensadores europeus para explicar, conceptualizar e classificar a diversidade biológica, social e cultural dos seres humanos e o lugar que os povos nativos americanos ocuparam nas escalas hierarquizadas civilizacionais da humanidade. A segunda considera as críticas que criollos e luso-brasileiros fizeram, a partir das periferias imperiais, às teorias filosófico-científicas sobre a natureza, os habitantes e a história da América em função dos seus conhecimentos e experiências. A terceira aborda um estudo de caso centrado em Alexandre Rodrigues Ferreira e nas observações sobre o homem americano, considerados como exemplos de como as elites intelectuais portuguesas estavam informadas e participaram no debate científico. O objetivo central consiste em perceber como é que a proveniência de Ferreira enquanto luso-brasileiro e o conhecimento empírico que adquiriu enquanto viajante-científico foram determinantes para equacionar a “Amazónia” no debate científico europeu de Setecentos.
Tenho, contudo, a perceção clara de que a contribuição do naturalista teve um eco escasso, porque os seus textos não foram publicados por largo período de tempo. O facto de a produção associada à “viagem filosófica” ter permanecido inédita até ao século XX condicionou a incorporação das reflexões de Ferreira sobre a humanidade e a natureza da fronteira colonial do norte e oeste brasileiros num debate transcultural que pôs em diálogo e confronto a Europa e a América, os teóricos europeus e os homens de ciência nascidos nas colónias.
A polémica do Novo Mundo e a sua importância para a América portuguesa
A integração do continente americano numa História Universal escrita em função de uma perspetiva eurocêntrica e cristã levantou, desde a descoberta do Novo Mundo, problemas teórico-filosóficos relacionados com a humanidade dos americanos. De facto, os debates em torno das origens do povoamento dos diversos espaços coloniais ocuparam um lugar central no pensamento europeu da Modernidade e lançaram o desafio de criar sistemas explicativos que abarcassem a diversidade de povos e culturas encontrados a nível global (Gerbi 15-246). Assim, um dos problemas centrais para os pensadores e teóricos europeus consistiu em interpretar, conceptualizar e classificar a variedade biológica, social e cultural a nível global, conhecida a partir dos contactos estabelecidos pelas grandes navegações e por testemunhos verbais, textuais e iconográficos dos viajantes (Bucan e Burnett 4).
Filósofos, teólogos, naturalistas, médicos e outros pensadores desenvolveram, num largo arco temporal que abrange desde o século XV ao século XIX, inúmeras teses que refletiam a forma como os europeus lidavam com essas diferenças, o modo como explicavam as diversidades encontradas e justificavam a singularidade humana no contexto dos imaginários ocidentais. Formularam-se explicações evolucionistas que dividiam as sociedades em etapas com o objetivo de interpretar a evolução sociocultural das civilizações em função da religião, costumes e instituições. Contudo, nas discussões que giravam em torno do Novo Mundo, a natureza e a humanidade americanas ocupavam um lugar muito claro em relação ao Velho Mundo: eram vistas como débeis, inferiores, imaturas, nalguns casos degeneradas (Chaves).
A formulação científica da tese sobre a debilidade do continente americano foi feita por Francis Bacon ainda no século XVII (Nova Atlântida, 1627). Mas, conforme Devin Vartija notou, foi com o “humanismo e o racionalismo iluminista” que as diferenças físicas da humanidade se tornaram num problema intelectual e científico. Foi durante este período que pensadores e filósofos refletiram sobre o lugar da espécie humana no mundo natural e consideraram a classificação racial como parte da história da humanidade (Vartija). Este debate avivou-se com os contributos de notáveis pensadores, entre eles o naturalista sueco Carlos Lineu (1707-1778), o filósofo escocês David Hume (1711-1776), o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), e sobretudo George-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788) (Sloan). Na Histoire naturelle (1749), este naturalista francês procurou explicar a existência de variações ou raças no interior das espécies através de explicações geográficas e climáticas; e, para além da natureza e da história natural, incluiu o homem e o mundo político, económico e social. Nestas reflexões a América teria destaque na ordem global (Morgan).
A centralidade que o continente americano ocupou no pensamento europeu de Setecentos pode explicar-se pela crescente importância política e económica que o Atlântico teve para os impérios coloniais europeus a partir do século XVII. Mas justifica-se igualmente nas alterações científicas que ocorreram na Europa e que levaram a que notáveis pensadores, como os anteriormente citados, sistematizassem ideias sobre as diferenças humanas e desenvolvessem teorias sobre hierarquias raciais. A partir de meados do século XVIII raça tornou-se num termo comum, utilizado em construções teóricas que punham a “raça branca ou europeia” na posição cimeira de uma hierarquia onde os que não eram europeus ocupavam uma posição de inferioridade (Wigger e Hadley 85). Contudo, os participantes neste debate não chegaram a concordar sobre o número de raças existentes, nem acerca dos critérios que as distinguiam e classificavam, acreditando apenas na superioridade intelectual e cultural europeia. Para alguns pensadores, apenas a intervenção dos europeus seria capaz de trazer os outros povos, mais primitivos e ociosos, a estádios superiores civilizacionais, um argumento que legitimava o domínio colonial; outros, como Kant, acreditavam que esses “povos inferiores” seriam extintos (Wigger e Hadley 86).
Era desta forma que o contacto com grupos humanos que detinham hábitos, costumes e aparências diferentes e habitavam noutros continentes aperfeiçoou a construção de discursos que fundamentavam ideologicamente o domínio e a submissão de uns grupos humanos por outros, respondendo, assim, à necessidade colonial de compreender a “condição humana” e governar indígenas, escravos e súbditos coloniais. “Este tipo de argumento aliado a uma certa visão da humanidade particularmente etnocêntrica, moldará a forma com a qual a civilização ocidental - leia-se europeia - tratará a diversidade das culturas e etnias humanas” (Pires Jr. 321). Note-se ainda que a forma como os europeus setecentistas passaram a olhar para as populações nativas americanas se afastou de classificações que dividiam a humanidade em “chaves explicativas binárias” - presentes, por exemplo, na legislação colonial -, que opunham índios bons, aliados e amigos a índios inimigos, cristãos a pagãos, civilizados a selvagens (Raminelli e Silva 324; Perrone-Moisés; Cardim).
No âmago destas hierarquias classificatórias encontram-se conceitos como razão, progresso, raça, civilização e barbárie (Pires Jr. 320; Morgan 137). São usados nos escritos dos teóricos e pensadores setecentistas como instrumentos poderosos que estão na base da “invenção da diferença”. Contudo, é importante clarificar que não tinham o mesmo significado que hoje lhes damos. Bruno da Silva defende, por exemplo, que o conceito de raça, tal como foi utilizado nos séculos XVII e XVIII, era uma referência entre outras possíveis (a par, por exemplo, de nação e tribo), usada pelos filósofos e agentes coloniais para explicar o processo de degeneração que colocava os indígenas americanos num patamar de desigualdade em relação aos europeus (Silva, “Inventários” 22). Conforme sabemos, seria, contudo, o conceito de raça que prevaleceria sobre os demais, sobretudo na sua relação com os processos classificatórios dos povos que habitavam o globo e com a ideia da degeneração dos homens americanos.
De acordo com a maioria dos filósofos das Luzes, as diferenças humanas eram pensadas segundo um conjunto lógico de unidade que englobava toda a história da humanidade, abrangia todos os tempos e espaços, e punha em evidência a oposição entre a imobilidade dos selvagens americanos e o dinamismo dos europeus, detentores dum papel decisivo na civilização e na colonização da América. Na busca duma explicação histórica e sociológica para a fraqueza e selvageria dos americanos, encontramos a noção de evolução social como perfetibilidade ou carácter adquirido biologicamente. Este era o paradigma em torno do qual gravitavam as diferentes teorias que abordavam as noções de raça e desenvolvimento humano.
De entre elas, destaque-se a de Carlos Lineu. A obra Systema naturae (1735) significou, provavelmente, o ponto de partida para se pensar a existência de uma hierarquia das espécies organizada em três reinos (animalia, vegetalia e mineralia). De igual modo, Lineu dividiu e classificou a raça humana em americana, europeia branca, africana negra, asiática e em “seres monstruosos” desfigurados pelo clima ou pela intervenção humana (Raminelli e Silva 327). Sendo uma única espécie, a humanidade percorria um trajeto evolutivo linear, natural e universal, em cujas extremidades se situavam os nativos americanos - considerados como selvagens e primitivos - e os europeus - caracterizados como civilizados e cultos. Imputava estas diferenças à dispersão dos homens depois da criação do mundo, ao clima, à temperatura, às condições geográficas e à alimentação. Os homens americanos ocupavam o “primeiro estádio” nesta escala evolutiva: o dos caçadores-recolectores, que não detinham noção de propriedade. Em Lineu, “cultura e sociedade opõem-se ao mundo primitivo e selvagem, o mundo da história e da civilização choca-se com um mundo sem história e imóvel” (Sebastiani, “L’Amérique” 341)3.
Um outro autor determinante na polémica do Novo Mundo foi, como mencionei, o conde de Buffon, que defendia a “infantilidade e a debilidade do continente americano” (Pires Jr. 328; Dugatkin). Para ele, o Novo Mundo tinha sido o último continente a emergir das águas e, por isso, era, em sentido geológico e figurativo, um Novo Continente, ainda húmido, frio e em estado de putrefação, onde as espécies animais eram mais pequenas e débeis, com exceção dos répteis e dos insetos. De igual forma, a humanidade era dominada por esta natureza hostil, fria e húmida, o que explicaria a frieza dos americanos (Silva, “A construção”; Silva, “Inventários”). A natureza fria e húmida do continente americano também fundamentava as teorias dum outro filósofo notável, o holandês Cornelius de Pauw (1739-1799), que nas Recherches philosophiques sur les Américains (1768-1769) desenvolveu argumentos em relação à inferioridade física e mental destes povos, que considerava serem estúpidos, inertes, indolentes e em tudo inferiores aos europeus. Aqueles que imigravam para a América e os seus descendentes seriam igualmente afetados pelo clima pernicioso (Dugatkin).
Esta controvérsia sobre a natureza e a humanidade americanas estava claramente imbuída de uma componente propagandística e duma política antimigratória, nalguns casos disfarçada com argumentos científicos, que refletia os interesses das potências europeias. E repercutia igualmente as rivalidades ideológicas, políticas, militares e económicas que eram sentidas entre as novas potências e entre estas e as Coroas ibéricas, que detinham ainda extensos domínios coloniais e controlavam parte substancial do comércio transoceânico (Morgan 137; Domingues, “In a World”; Domingues, “Oficiais”). De facto, não deixa de ser interessante ter a perceção de que esta reflexão sobre a humanidade ecoava na Europa e influía em juízos de valor em relação aos vassalos dos diferentes reinos.
Se, desde a obra pioneira e sistemática de Antonello Gerbi, O Novo Mundo. História de uma polémica (1750-1900), os historiadores têm debatido as teorias e argumentos científicos desenvolvidos ao longo do século XVIII para explicar a natureza e o lugar do homem no mundo, e para fundamentar a interferência redentora dos europeus junto das sociedades extraeuropeias, consideradas como menos evoluídas, não deixa de ser revelador que semelhantes princípios e hierarquias fossem aplicados igualmente entre os europeus. Assim, britânicos e franceses consideravam que os espanhóis e os portugueses não eram iguais a eles. Consideravam-se mais capazes, desenvolvidos e aptos e, por isso, entendiam que detinham maior capacidade para executar a missão de civilizar os que eram menos civilizados, mais preguiçosos, menos desenvolvidos e tolhidos por regimes políticos absolutistas ou pelos dogmas da religião católica (i.e. espanhóis e portugueses). Assim é que, ao longo de Setecentos, encontramos na literatura de viagens e nas reflexões de teóricos, homens de ciência e filósofos dos países do norte da Europa argumentos de natureza política, religiosa e científica-tecnológica que são evocados para legitimar planos de anexação territorial e interferências expansionistas em relação aos domínios coloniais ibero-americanos. Parece, portanto, que os “princípios científicos” que legitimavam a interferência de povos que se autodenominavam como mais civilizados e evoluídos eram aplicados não apenas aos extraeuropeus, como tantas vezes se tem notado, mas eram também usados para marcar as desigualdades económicas e culturais entre os europeus e para legitimar a expansão das novas potências imperiais do norte da Europa no mundo ibero-americano e no espaço atlântico4.
A ressonância da polémica dentro dos espaços coloniais ibéricos
Nas periferias imperiais americanas começavam a evidenciar-se elites intelectuais que contribuíram para a renovação da polémica do Novo Mundo (Soto Arango, Puig-Samper e González-Ripoll; Rodríguez García; García Redondo). Jorge Cañizares-Esguerra foi pioneiro na chamada de atenção para a participação das elites criollas neste debate. Tal como Gerbi, em Como escrever a história do Novo Mundo (2005) Cañizares-Esguerra é modelar na análise das representações da América e dos americanos pelos pensadores europeus setecentistas ao evidenciar a importância das fontes dos séculos XVI e XVII, que colocariam em perspetiva as questões debatidas no centénio seguinte sobre o Novo Mundo; e quando valoriza a contribuição dos intelectuais americanos no surgimento de “epistemologias patrióticas” (Kalil 385; Oliveira 1-14). De acordo com o autor, as bases do pensamento racial moderno encontram-se na controvérsia que ocorreu entre os teóricos europeus e os intelectuais que tinham conhecimento direto dos domínios coloniais americanos (Cañizares-Esguerra 20-24, 253s.; Silva, “Inventários” 19).
Nesta renovação do discurso sobre a “ciência do homem” tiveram protagonismo os americanos Cañizares detentores duma cultura ilustrada criolla, que construíram discursos alternativos aos que eram produzidos na Europa, e os jesuítas, que exerciam o seu múnus na América e que regressariam ao continente europeu depois de 1759, quando se iniciou a extinção da Companhia de Jesus na América ibérica (Sebastiani, “L’Amérique” 328; Souza Jr.). Criollos e jesuítas tiveram um papel decisivo na reconfiguração das Luzes ibéricas católicas ao porem em destaque perspetivas originais sobre a fertilidade da natureza e as potencialidades da terra e dos americanos (Cañizares-Esguerra 21-24; Noelli e Ferreira). Quando comparados aos europeus, os seus discursos distinguiam-se porque criticavam a erudição livresca e refutavam abertamente a imagem negativa da América e dos americanos apresentada por Robertson, Buffon e De Pauw. Censuravam as teorias apresentadas por “filósofos de salão” que, sem nunca terem abandonado a segurança dos seus países e o conforto dos seus gabinetes, se rodeavam de livros, mapas, globos e coleções de produtos naturais e artefactos, e se propunham escrever sobre realidades que desconheciam e não tinham observado nem experimentado. A experiência e a observação eram, pois, um desafio ao pensamento europeu. E muitos argumentos elaborados pela Ilustração europeia e nos discursos imperiais ibéricos eram usados em prol dos interesses pessoais e identitários criollos (Rodríguez García).
Silvia Sebastiani refere como exemplos destas “vozes” que se erguiam do outro lado do Atlântico, Thomas Jefferson (1743-1826), Benjamin Franklin (1706-1790), Samuel Stanhope Smith (1751-1819) e Benjamin Smith Barton (1766-1815), que esta autora considera serem representativos das opiniões dos criollos norte-americanos sobre a natureza e a história do Novo Mundo (“L’Amérique” 345-346, “Cuando América”). Para os espaços ibero-americanos, os historiadores têm centrado a sua atenção em personalidades paradigmáticas que tinham em comum o facto de considerarem que não eram recetores passivos das ideias que vinham das metrópoles. Mas, ao invés, produziam informação que contribuía para a construção de discursos sobre a América, marcados pela isenção de preconceitos em relação às terras, habitantes e “monstruosidades naturais” do Novo Mundo. Na opinião destes eruditos, a Europa tinha tanto a aprender com as Américas, como as Américas aprendiam com a Europa (Meléndez e Stolley 2-4; Soto Arango, Puig-Samper e Gonzalez-Ripoll 9-12).
Um exemplo dos americanos ilustrados que participaram ativamente neste debate é o jesuíta criollo Francisco Javier Clavijero, que escreveu a Storia antica del Messico (1780-1781) baseada no conhecimento direto do território e da natureza. Clavijero analisava a ascensão e queda do império azteca e o período anterior à conquista hispânica, incorporando na sua narrativa os saberes tradicionais e ancestrais das populações indígenas e elementos da cultura material e imaterial mexicana, como a iconografia, os códices, o calendário mesoamericano e as línguas. Valorizava a observação direta, a proximidade, os conhecimentos locais, adotando “uma voz de missionário, testemunha e americano para ridicularizar e considerar provincianas as histórias produzidas pelos intelectuais de gabinete duma Europa supostamente ilustrada” (Sebastiani, “Cuando América” 9).
Um outro modelo pode ser encontrado em José António de Alzate, sacerdote, historiador, geógrafo e cartógrafo de Nova Espanha, que se integrou na rede global científica devido à sua notável obra. Tentou obter reconhecimento internacional através da elaboração de mapas que, aliando o registo geográfico à representação iconográfica, renovaram o saber geográfico, cartográfico e científico-natural do continente americano (García Redondo).
Em relação aos luso-brasileiros, o interesse pela botânica, a natureza e as potencialidades económicas do mundo natural foi evidenciado nas obras de personagens ilustres e na atividade de instituições culturais. O padre João Daniel (1722-1776) é disso um exemplo. Este jesuíta viveu por largo período de tempo nos rios Tapajós e Amazonas e foi preso e deportado por ocasião da expulsão da Companhia de Jesus destes territórios5. Daniel dedicou os últimos anos da vida a escrever o Tesouro descoberto no rio máximo Amazonas (1757-1776) com base na experiência que possuía daquele imenso espaço. Com esta obra, que foi escrita por alguém que viveu na Amazónia pré-pombalina e assistiu às alterações que ocorreram depois da implementação das reformas pós-1755, o jesuíta pretendeu compor um tratado histórico-geográfico e natural da Amazónia onde exaltava a natureza, os indígenas e seus costumes, a caça, as frutas, as madeiras, as ervas, os minerais e misturava observações empíricas, alusões à mitologia greco-romana e pregações moralistas católicas, embora se centrasse menos no debate sobre o Novo Mundo (Pádua). Considerava que as condições ambientais, técnicas e sociais da Amazónia eram fatores de abundância e riqueza que favoreciam a fixação portuguesa numa região que em tudo se assemelhava ao paraíso terreal (Costa).
Um papel igualmente relevante foi desempenhado pelas academias eruditas. Aqui construíram-se narrativas que articulavam as teorias europeias sobre o mundo natural com as práticas e saberes americanos (Cañizares-Esguerra e Safier 137-138). Por exemplo, Iris Kantor estudou o papel que a Academia Brasílica dos Esquecidos (1724) e a Academia Brasílica dos Renascidos (1759) tiveram como espaços de socialidade e diálogo entre intelectuais ibero-americanos que tinham criado laços de amizade e aprofundado afinidades intelectuais e ideológico-políticas nas academias, sociedades científicas e universidades dos dois lados do Atlântico e através de correspondência6. As academias criadas em solo colonial deram, pois, enquadramento institucional a estas elites de filhos da terra que, a partir de perspetivas locais e regionais, interpretavam o passado do continente americano; e refletiam, de modo coerente e lógico, sobre como integrar a história das colónias americanas na História Universal da cristandade, posicionando-se em defesa do continente e contra a inferioridade natural e humana dos americanos (Kantor 182-183).
O debate protagonizado pelos que nasceram ou viveram na América está igualmente relacionado com um novo paradigma: o dos cientistas e filósofos ilustrados criollos. Muitos deles tinham sido formados no âmbito das estratégias intelectuais e académicas dos agentes da Coroa no contexto das reformas da Universidade e das academias militares e da Marinha (Domingues, “Museus” 271). Procuraram sistematizar a natureza e os povos das periferias coloniais, marcados pelos discursos em voga na Europa e pela experiência pessoal e observação direta, questionando a posição hegemónica dos europeus e as interpretações tradicionais baseadas em ordens e escalas que eram estritamente europeias (Pratt 55-62). Contestavam, portanto, a escrita da história do Novo Mundo à distância, evocando o conhecimento que tinham dos nativos, das línguas e dos documentos. Argumentavam contra as teorias de Buffon, De Pauw e Robertson (Sebastiani, “L’Amérique” 328; Petroff). Por um lado, estavam a par das mais atualizadas discussões científicas nos centros culturais europeus e podiam estabelecer uma “interlocução intelectual” permitida pela sua formação universitária e pelo conhecimento das teorias científicas debatidas no cenário europeu. Por outro, tinham um conhecimento relacionado com a sua origem americana, baseado na vivência direta e empírica da natureza e da humanidade.
Um filho da terra toma a palavra: as “Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamíferos observados nos territórios dos três rios das Amazonas, Negro e da Madeira”
Como é que os debates referidos se plasmam nos escritos dos naturalistas luso- brasileiros quando descreviam e interpretavam a natureza e os homens americanos? De que forma esta elite científica formada na Universidade de Coimbra e noutras universidades europeias, frequentadora das academias e sociedades científicas internacionais e integrada na república das letras se posicionava em relação às obras de Lineu, Buffon e Robertson? Como é que os temas que estavam na moda na Europa iluminista sobre a origem da humanidade eram equacionados por estes vassalos da Coroa portuguesa e compreendidos numa lógica da “narrativa civilizacional moderna”? Responder de forma cabal a estas questões parece ser, neste momento da investigação, impossível. Para além disso, evidencio que este artigo propõe contribuir com um estudo de caso, conquanto que emblemático, para entender o modo como a polémica do Novo Mundo foi equacionada por um luso-brasileiro. Assim sendo, as “Observações gerais e particulares”, datadas de 28 de fevereiro de 1790, são tomadas como exemplo de como as elites formadas em Coimbra marcaram posição nas reflexões filosófico-científicas sobre a humanidade e o homem americano, a cultura e a natureza (Caraccioli 140). Considero igualmente que não são apenas as opiniões expressas pelo naturalista que revelam a sua contribuição ao debate, como também os diálogos que estabelece com os autores que são citados no texto.
Uma referência breve ao percurso formativo de Alexandre Rodrigues Ferreira ajuda-nos a contextualizar esta questão. O trajeto de Ferreira é, aliás, bem conhecido. Nasceu na Bahia a 27 de abril de 1756, proveniente duma família abastada ligada ao comércio. Fez a sua formação na Universidade de Coimbra reformada em 1772. Inscreveu-se em Instituta (1770), Leis (1773), Matemática (1775) e Filosofia Natural (1774). Foi nesta área científica que obteve o título de doutor em 1779 (Raminelli e Silva; Pereira e Cruz; B. Ferreira, “Memória”). Destacando-se como preparador na Universidade de Coimbra e no Real Gabinete de História Natural da Ajuda, foi nomeado para coordenar uma viagem que duraria nove anos e o levaria aos confins do sertão amazónico e mato-grossense entre 1783 e 1792. Produziu diários de viagem, relatos, memórias, ofícios, cartas; recolheu inúmeros espécimens animais, vegetais e alguns minerais; coletou artefactos provenientes das comunidades amazónicas; refletiu sobre a natureza, os animais e os homens daquele território. A representação que o naturalista construiu dos indígenas brasileiros fez-se com muitos desses textos, aguarelas, artefactos, amostras, que foram enviados dos sertões amazónico e mato-grossense para as instituições de ciência portuguesas (Domingues, “Museus” 271; Domingues, “No trilho”).
Conforme nota Almir Carvalho Jr., Ferreira é simultaneamente portador do “olhar imperial”, ligado às exigências da governação colonial assentes no mapeamento, controlo e exploração do território; e do olhar científico “ancorado na especificidade do universo intelectual português” relacionado com a sistematização do mundo natural e sua classificação de acordo com as taxonomias em voga na Europa (39-47).
As observações que fez nos diários de viagem e nas memórias foram, portanto, realizadas através da perspetiva dum luso-brasileiro culto que olhava a humanidade amazónica como objeto de estudo e parte integrante do mundo natural e do império colonial português. Participou na polémica do Novo Mundo no duplo papel de vassalo leal e agente da Coroa; e enquanto naturalista e homem de ciência ilustrado, munido duma autoridade que lhe era conferida simultaneamente pela formação teórica adquirida ao longo da formação científica (aulas na universidade, leitura das obras científicas, realização de pequenas viagens de treinamento às minas de Buarcos) e pela execução da viagem (ou seja, a experiência direta do território brasileiro, da natureza e humanidade). Acreditava que era através do conhecimento histórico e científico que o norte do Brasil podia ser governado e integrado no império colonial e nos sistemas epistemológicos europeus (Irving-Stonebraker 76).
Foi sobretudo nas “Observações gerais e particulares” que Ferreira expressou a sua opinião sobre a polémica do Novo Mundo, colocando o homem americano no centro do texto. Noto que grande parte dos registos textuais produzidos por ele versam sobre uma informação de natureza diferente, constituída por diários da viagem e descrições dos trajetos, impressões sobre espécies naturais e comunidades indígenas específicas (memórias de zoologia, botânica, antropologia), participações sobre a presença colonial no norte da América portuguesa, ofícios trocados entre o naturalista e os agentes da Coroa e órgãos da administração central7. Contudo, a natureza, objetivo e precisão destes textos, as intenções do naturalista, o público-alvo desta documentação são diferentes das “Observações gerais”, aqui consideradas como “um relato abrangente e erudito das observações histórico-naturais, ecológicas, etnográficas e filosóficas de Ferreira e da sua equipa […] durante os seus sete anos na Amazónia” (Safier, “Every Day”). Um texto que, provavelmente, é o exemplo mais acabado, fundamentado e ordenado cientificamente, provavelmente destinado pelo autor a ser publicado (Carvalho Jr. 67). Contudo, isso não viria a acontecer. Breno Ferreira explica esta questão quando sublinha que as memórias escritas por Ferreira, tal como pela generalidade dos viajantes científicos seus contemporâneos, permaneceriam inéditas por largo período de tempo. E nota que as “Observações” só foram publicadas integralmente no século XX (B. Ferreira, “Alexandre” 2-3).
A memória remete para a leitura de uma vasta bibliografia que é determinante na forma como a narrativa se constrói, citada com a precisão de quem teve acesso às obras elencadas, disponíveis na biblioteca móvel do naturalista e nas bibliotecas do quinto governador e capitão-general da capitania de Mato Grosso, João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (?-1796) e do bacharel da Universidade de Coimbra Joaquim José Cavalcanti de Albuquerque Lins, secretário do governo da capitania (Simon 144; Safier, “Every Day” 124). Tal como aponta para citações de autores que foram extraídas indiretamente de outras obras. É desta forma que Luís Pinto de Sousa Coutinho8, Grantz e Louis Godin são citados a partir de The History of America de William Robertson.
Na construção das “Observações”, Ferreira usa, pois, uma panóplia vastíssima de informação que abrange uma ampla cronologia: desde a Antiguidade, passando pelos séculos XVI e XVII, até à sua contemporaneidade. Tal como faz referência a várias regiões e populações do globo: desde a Lapónia e a Groelândia, passando pelos rios da Guiné, até ao Canadá, golfo do México e cordilheira andina. Refere os teóricos e cientistas que nunca tinham saído do conforto e segurança dos seus lares, mas que tinham especulado sobre o Novo Mundo e a sua humanidade (Lineu, Buffon, Robertson); e confronta-os com os relatos dos que tinham experiência de viagem e conhecimento direto do território americano, amazónico e dos seus habitantes, Ferreira incluído.
Neste contexto, a memória desenvolve-se como se fosse uma evidência empírica destinada a demonstrar ou a refutar as principais teorias relacionadas com a polémica do Novo Mundo, já referidas neste artigo (Morgan 151). Os autores citados são os “antigos e modernos naturalistas” que inspiram Ferreira porque têm referências e experiências diferentes dos teóricos europeus: “só quem por aqui viaja é que pode formar uma justa ideia” (A. Ferreira, “Observações” 71). Assim, usa os escritos de marinheiros, aventureiros, missionários, cronistas, viajantes, tal como se cita a ele próprio: “eu vi”, “eu ouvi falar e averiguei a sua existência”, “eu já escrevi” (A. Ferreira, “Observações” 85, 92, 94, 105, 138; Pataca), entrando no debate científico-natural numa posição de paridade com os outros naturalistas-viajantes, mas considerando-se como uma referência que se sobrepunha a qualquer outra para “a questão da Amazónia”, legitimada pelos seis anos e meio de viagem e pelo elencar de 24 memórias e pela referência às participações que constituem o Diário da viagem filosófica (A. Ferreira, “Observações” 123-126; A. Ferreira, Viagem filosófica ao Rio Negro).
O naturalista identifica temas que são estruturantes no debate científico-natural do Iluminismo e marcantes na cultura científica do período, tais como a pequenez, inferioridade e debilidade dos animais da América meridional; a idade geológica do globo; a origem do povoamento do continente americano; a primazia da descoberta do Novo Mundo; a influência das causas físicas nas variações da cor da pele dos humanos; os atributos físicos e morais dos Tapuias; o lugar que a natureza americana e os habitantes originários ocupavam na história do Mundo e da Humanidade (A. Ferreira, “Observações” 68-157; Kury 118-120). Mas para além do reconhecimento destas questões que mostram a atualidade dos interesses do naturalista, Ferreira também usa a memória para integrar a América portuguesa no debate científico internacional. As citações dos imensos autores e as comparações e referências que são feitas a nível global ultrapassam o mero exercício de erudição e têm como objetivo “conquistar” um lugar para a Amazónia no cenário do conhecimento global numa altura em que os instrumentos de precisão, a quantificação e a observação in loco provocavam uma alteração epistemológica do conhecimento científico. Senão vejamos.
Podemos dividir as “Observações” em três partes. Na primeira, baseando-se essencialmente em Lineu, Ferreira estabeleceu as diferenças entre mamíferos, vegetais e minerais. Comparou a vida animal e vegetal na América, enfatizando a exuberância e profusão das plantas, insetos e répteis neste continente. Descreveu as ordens entre os mamíferos e, fundamentando-se em Buffon, pronunciou-se pela pequenez dos animais americanos.
Na segunda parte, centrou o seu estudo no homem natural e nos Tapuias, considerando-os na sua diversidade física (cor, feições, pele), moral e espiritual (comportamento, usos, religião, relações entre os géneros) e política (instituições, governança). Para esta parte, a sua referência teórica é William Robertson e as observações sobre os “índios espanhóis”. Mas estabelece igualmente comparações entre os americanos, africanos e europeus. Surgem referências a, entre outros, Jean Baptiste Thibault de Chanvalon (1725-1785) sobre os indígenas da Martinica; António de Ulloa (1716-1795) e Louis Godin (1704-1760) sobre as populações do Peru9; Miguel de Venegas (1680-1746) sobre os californianos e mexicanos; Pierre Barrère (1690-1755) sobre os povos guianenses; Charles Marie de La Condamine (1701-1774), Willelm Piso (1611-1678), Georg Marcgraf (1610-1644), António Vieira (1608-1697), José de Anchieta (1534-1597), Luís Figueira (c. 1574-1643), Jean de Léry (1534-1611) sobre as comunidades da América portuguesa. E, sobretudo, dava destaque às suas observações sobre as populações indígenas - mencionando Mura, Mauá, Puru, Pacé, Tucunas, Macuxis, Manaus, Catauixi -, africanas e brancas, habitantes das povoações de Marajó, Belém, Barcelos, Moreira, Carmo, Príncipe da Beira, etc. Usa profusamente a “Participação geral do Rio Negro” e as memórias antropológicas quando descreve as comunidades que habitavam os rios Solimões, Japurá, Branco, Negro, Purus, Apaporis e Amazonas. Valoriza o que viu, observou, testemunhou ou lhe foi contado pelos que tinham conhecimento direto da realidade amazónica (A. Ferreira, “Observações” 95).
Finalmente, na terceira parte da memória, o naturalista inventaria os mamíferos e identifica 71 espécies ou variações de espécies, divididas em 25 géneros (B. Ferreira, “Alexandre” 7). Inicia com a descrição do homo sapiens, detendo-se sucintamente na descrição dos “monstruosos” por artificio e natureza. Destaca os Cambeba, que deformavam as cabeças das crianças para distinguirem os elementos da sua comunidade dos grupos antropófagos; os Uerequena, que introduziam paus, resinas, pedras, madeiras nas orelhas que eram furadas por forma a distenderem-se até aos ombros; os Miranha, os Caripuna e os Gamela, que perfuravam os narizes ou os lábios e introduziam penas de aves, pedras, resinas, rodelas de madeira; os Juripixuna, que tatuavam a pele ao redor da boca com cinzas de pupunheira; os Mauá, que espartilhavam a cintura com cascas de árvores para se fazerem temidos pelos adversários na guerra. Quanto às deformidades naturais - e apesar de citar alguns exemplos, com os Catauixi, que possuíam a pele dos pés e das mãos mais clara -, defendia, baseando-se em Robertson, que os seres monstruosos e fantásticos descritos por “viajantes crédulos” desapareciam à medida que a América era conhecida e observada por “olhos mais exercitados”: “todas essas províncias onde pretendiam ter achado habitantes de forma extraordinária, são realmente habitadas por povos que em nada diferem dos outros americanos” (A. Ferreira, “Observações” 133-137).
Seguidamente, nomeia e descreve fisicamente as diferentes espécies dos três reinos da natureza, referindo em primeiro lugar o nome indígena ou comum, e menciona a utilidade económica, terapêutica e dietética. Socorreu-se das classificações e descrições de naturalistas e zoólogos para definir a variedade de nomenclatura de cada espécie consoante os locais onde se encontravam. Seguia de perto Lineu e Buffon e citava (por vezes indiretamente) Marcgraf e Piso; tal como usava informação atribuída a Mathurin Jacques Brisson (1723-1806), Albertus Seba (1665-1736), e relatos de viajantes, marinheiros, cartógrafos - William Dampier (1651-1715), Reynaud Des Marchais (1683-1728), La Condamine, Thevet -, testemunhos de missionários - frei José de Santa Teresa Ribeiro (1730-1782), Joseph Gumilla (1686-1750), Claude d’Abeville (1590-1632) -, e agentes da Coroa - o funcionário judicial e vigário-geral José Monteiro de Noronha (1723-1794), o ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio (1741-1814) -; e, surpreendentemente, refere ainda a Alexander Olivier Exquemelin (1646-1707) e a sua Histoire d’avanturiers qui se sont signalez dans les Indes (1678).
Esta terceira parte, que foi estudada pormenorizadamente por Breno Ferreira, serve sobretudo para chamar a atenção para a imensa riqueza natural e para os recursos da Amazónia. Aqui podiam-se encontrar os mamíferos descritos pelos viajantes para outras partes da América e ainda muitos outros animais que não tinham sido mencionados nas obras consultadas, mas eram observados e descritos por Ferreira. Os indígenas eram especialmente visíveis quando se tratava de descrever a utilidade das espécies. Por outro lado, e apesar de na generalidade seguir a classificação de Lineu - “com o devido respeito a tão grande mestre, nem em todas as classes seguindo a ordem” -, tinha uma perspetiva crítica que o levava a optar pela classificação de Giovanni Antonio Scopoli (1723-1788), adaptada para englobar todos os animais que tinha observado (A. Ferreira, “Observações” 128; B. Ferreira, “Alexandre” 11-12).
Apesar do interesse inegável que o continente americano e o mundo ibero- americano tinham entre as elites cultas e curiosas de Setecentos, Ferreira considerava que estas sabiam muito pouco da história geológica, da geográfica e dos mamíferos do Novo Mundo. Na sua opinião, estes conhecimentos não recuavam muito para lá do descobrimento do continente americano. Inspirando-se em Antonio de Léon Pinelo (1590-1660), “a quem se devia o epitome da biblioteca oriental e ocidental que contem os escritos das Índias Orientais e Ocidentais” (A. Ferreira, “Observações” 107)10, nomeava os autores de manuscritos e impressos disponíveis sobre um Brasil que geograficamente compreendia entre o rio Amazonas e o rio da Prata. Dividia-os em historiadores que “se dedicaram a outro qualquer ramo da história que não tenha sido a natural” e especialistas em história filosófica, sublinhando a importância da cartografia, da náutica, da exploração de mares e sertões, da medicina, das ciências naturais, da história e da diplomacia.
Vimos que as referências bibliográficas usadas nas “Observações” são profusas, complexas e têm múltipla proveniência. Sobretudo parece ficar claro que, para Ferreira e em relação à América portuguesa, os escritos dos teóricos-filósofos dependiam da validação dada pelos testemunhos de governantes, viajantes, aventureiros, missionários, cientistas, indígenas, moradores; daqueles que conheciam o globo, o continente americano e a América portuguesa. E para fazer essa validação, Ferreira utilizava informação impressa, manuscrita e oral, para além de evidenciar os seus textos e a sua experiência enquanto naturalista em viagem.
Muitas das referências que usa eram da autoria de patrícios de Ferreira, que provinham de abastadas elites coloniais formadas na Universidade de Coimbra e nas academias militares e da Marinha, membros da Real Academia das Ciências, que procuravam inserir o Brasil “no cenário do conhecimento mundial” (Elias, Martins e Moreira 175). De entre eles, cite-se o engenheiro-cartógrafo Teodósio Constantino de Chermont (1761-?), o matemático-astrónomo António Pires da Silva Pontes (1750-1805), o cirurgião da expedição de demarcações António José de Araújo Braga, o arquiteto, desenhador e naturalista amateur Giuseppe Antonio Landi (1713-1791). Eles contribuíram com memórias, relações e descrições das capitanias do Maranhão, Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso, Cuiabá e Rio de Janeiro, dos rios do vale amazónico ou acerca de temas relacionados com a economia, a agricultura, o comércio, as doenças, a história do território (A. Ferreira, “Observações” 107-113). Tal como Ferreira, executavam missões de exploração, risco e aventura ao serviço da Coroa portuguesa. Encontravam-se com o naturalista nos rios e sertões da Amazónia, Mato Grosso e Cuiabá, trocavam experiências de viagem e espécies naturais e contribuíam com os seus conhecimentos específicos para superar problemas técnicos e limitações cognitivas relacionados com domínios de saber alheios ao naturalista (Domingues e Alves-Melo 165-169).
Valorizar a contribuição dada por esta elite luso-brasileira para a renovação científica do Brasil setecentista tomando como referência a Ferreira e as “Observações” é, como sabemos, um objetivo deste artigo. Outro consiste em considerar que a estratégia narrativa seguida na memória pretende incorporar o Brasil nas discussões científicas internacionais. As “Observações” destinavam-se a ser publicadas. É desta forma que explico o debate que Ferreira abre com os “autores antigos e modernos”, nacionais e estrangeiros, já referido. Tal como é assim que justifico a referência que faz expressamente ao compromisso de Robertson em ampliar The History of America para incluir a colónia portuguesa (A. Ferreira, “Observações” 113). E que considero a ênfase dada à atuação de vice-reis, de governadores e capitães-generais ilustrados - como Luís Pinto de Sousa Coutinho (1735-1804), D. António de Almeida Soares Portugal, primeiro marquês do Lavradio (1600-1760), D. Luis de Vasconcelos e Sousa, quarto conde de Figueiró (1742-1809), Luís de Albuquerque de Melo Pereira Cáceres (1739-1797), José Teles da Silva, Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro, sexto visconde de Barbacena (1754-1830). E de elites científicas e agentes da Coroa - entre outros, Joaquim Veloso de Miranda (1733-1815), José da Silva Lisboa (1756-1835), Luís Pereira da Cunha, Serafim Francisco de Macedo. Desenvolveram a história natural no Brasil, realizaram inúmeras missões científicas, estabeleceram hortos botânicos, gabinetes mineralógicos, bibliotecas, constituíram coleções de espécies naturais, fizeram observações astronómicas, renovaram a cartografia nas capitanias de Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Bahia, Rio de Janeiro, Maranhão (A. Ferreira, “Observações” 113-123). Com o seu sacrifício, dedicação e património prestavam à Coroa serviços em prol do conhecimento da América portuguesa e da ciência.
As “Observações” são inegavelmente a “memoria na qual Ferreira desenvolveu mais profusamente a sua visão sobre os animais da América portuguesa, em particular os mamais (mamíferos), aí compreendidos os povos indígenas” (B. Ferreira, “Alexandre” 2, 5). Breno Ferreira já analisou competentemente o lugar dos “animais não-humanos”, identificando “elementos reveladores das escolhas, conceções e formas de pesquisar e escrever do naturalista” (“Alexandre” 2). Eu quero centrar-me no lugar que o homem americano ocupou nesta narrativa.
Para este assunto e criticando abertamente os autores que retratavam os indígenas como “menos humanos que nós”, Ferreira encontrava o paradigma científico em Lineu, Buffon e Robertson. Mas confrontava a teoria com o saber feito com as observações que realizou durante a viagem. As influências dos teóricos revelavam-se quando, por exemplo, inspirando-se no Systema naturae de Lineu, referia que os povos indígenas eram dotados duma constituição física (corporal e espiritual), moral (psicológica e comportamental) e política que era comum a todos. Contudo, valendo-se da sua experiência, afirmava que esta constituição se caracterizava pelo vigor e agilidade e menos pela força; e conseguia matizar a descrição geral dos Tapuias com as especificidades de cada grupo: os Mura distinguiam-se porque tinham cabelos crespos e barba; os Uerequena distendiam artificialmente as orelhas; os Miranha e Caripuna furavam o nariz; tal como mencionava outras comunidades que alteravam a sua estrutura física com procedimentos determinados por questões identitárias e culturais (A. Ferreira, “Observações” 81s.).
De igual forma, baseando-se em Robertson, argumentava que os povos indígenas partilhavam dum mesmo carácter e modo de vida, assentes na caça, pesca e agricultura. Mas valorizava Louis Godin porque
de todas as observações que se tem feito a respeito deste assunto, a que mais se conforma com o que tenho visto é a de Mr. Godin. Razão de sobra teve para fazê-las, visto que se trata de um talentoso; reuniu experiência de 35 anos entre os quais viveu 15 anos com os índios do Peru e 20 na colónia francesa de Caiena onde manteve relação com os índios do Orenoco. (A. Ferreira, “Observações” 84)
Tal como evocava a sua experiência junto de indivíduos e comunidades da capitania do Rio Negro como forma de mostrar a sua observação e rigor científico (“Observações” 90-94, 96-100).
Atestava que os naturais da Amazónia portuguesa pertenciam à espécie humana e ao grupo dos Tapuias, que definia da seguinte forma: “há, com efeitos, em todos eles uma certa combinação de feições e um certo ar tão privativamente seu que nele se deve estabelecer a característica de uma figura americana”. O tapuia encontrava-se na base da escala evolutiva da humanidade, mas era “tão homem como o europeu, o asiático e o africano” e “não tem outras diferenças senão as que são acidentais ao ser humano” (A. Ferreira, “Observações” 74; B. Ferreira, “As fontes”)11. E, mais uma vez pensando na própria experiência, defendia que a impressão que deixavam nos espíritos dos europeus recém-chegados se resumia à constatação da diferença, da novidade e da variedade: “um homem de uma cor, feições, línguas, usos e instituições diversas” (A. Ferreira, “Observações” 74-75), organizado em diferentes nações, tribos, raças12.
Esta diversidade explicava-se por condições externas e naturais às quais os Tapuias estariam expostos. Notava que fisicamente, apesar de terem a mesma cor, cobre ou castanho, apresentavam variedades que os diferenciavam: “uns eram mais retintos que outros”. Estas variações de cor encontravam explicação na natureza: clima, altitude, humidade, grau de saúde ou exposição ao sol e outros elementos. No que respeitava às diferenças nos costumes, no vestuário, na alimentação e nas técnicas utilizadas na produção de tecidos, armas, casas, canoas, cerâmicas, adornos e outros artefactos, eram explicadas pela cultura, pela história e pelo determinismo geográfico; e eram consideradas como indícios do grau de organização social das comunidades que, devido aos seus atributos físicos e desenvolvimento artesanal, se podiam agrupar em Tapuias gentios e selvagens e Tapuias domésticos e mais próximos da civilização (Carvalho Jr. 60). Estas divisões atuavam como uma taxonomia através da qual eram identificados aspetos físicos-anatómicos e culturais-morais que representavam as diversidades. Assim, em memórias individualizadas, descrevia Yurupixunas, Maués, Curutus, Uerequenas, Cambebas, Guaicurus, Muras, Miranhas, Cautauixis, Jurupixunas, que também eram representados em aguarelas pelos desenhadores científicos da expedição e pelos artefactos recolhidos e enviados para o reino (A. Ferreira, Viagem filosófica pelas capitanias).
Neil Safier argumenta que um dos principais objetivos de Ferreira consistia na apresentação ao seu leitor metropolitano duma representação genérica do homo americanus com base em registos pormenorizados dos aspetos físicos e socioculturais destas comunidades da Amazónia portuguesa. Salienta que a metodologia utilizada residia nos desenhos executados por Joaquim José Codina e José Joaquim Freire, nas peças etno-antropológicas recolhidas pela equipa expedicionária, preparadas com a cooperação dos indígenas José da Silva e Cipriano de Souza e, sobretudo, nos textos escritos pelo naturalista ao longo da expedição, que mostram claramente as mudanças que aconteciam nas suas reflexões - e na complementaridade que a conjugação desta informação permitia estabelecer (Safier, “Masked”; Carvalho Jr. 61). As representações dos corpos, as alterações físicas, tanto as provocadas como as naturais, os ornamentos, o vestuário ou a sua ausência, e os artefactos distinguiam os vários povos contactados (A. Ferreira, Viagem filosófica pelas capitanias; B. Ferreira, “A crítica”). Estas diferenças revelavam identidades e pertenças a grupos específicos e determinavam o estádio que cada povo ocupava na escala evolutiva da humanidade. Assim se media a complexidade da organização social de cada nação.
Memórias, participações, imagens e artefactos mostravam as diferenças e o exotismo dos indígenas da Amazónia. Nos discursos políticos-ideológicos de Setecentos, cabia aos europeus promover o progresso e a inserção destes povos na civilização em função dum programa de transformação dos índios em vassalos do rei (Domingues, Quando; Coelho 166-168). Sendo os indígenas detentores duma cultura própria, esta era concebida como um estádio inicial do desenvolvimento humano. E trazer estes povos a um patamar de desenvolvimento superior era justificativa suficiente para a interferência dos portugueses no sentido de educar os índios e torná-los produtivos e integrados na “ordem imperial” (Coelho 166).
Se a formação do naturalista determinava os modelos e padrões através dos quais olhou os índios, a observação direta levá-lo-ia a confrontar e a contradizer muitos destes princípios. Textos como as “Observações” mostram como houve assimilação e diálogo entre os teóricos e o naturalista, tal como existiram divergências. A memória pretende integrar os povos amazónicos na história da humanidade e mostrar que Ferreira queria marcar a sua posição nos principais debates filosófico-científicos, reclamando o seu lugar de referência sobre a Amazónia. Penso que se confirma a afirmação de Lorelai Kury de que, “do ponto de vista de ideias e conceitos manipulados pela elite ilustrada luso-brasileira, não havia descompassos qualitativos em relação aos congêneres europeus” (113). A dicotomia que Ferreira estabelece entre natureza, cultura e raça anteciparia a discussão que ocorreria nos séculos seguintes nas áreas da sociologia, antropologia e biologia.