INTRODUÇÃO
Neste artigo constam algumas reflexões sobre as relações entre empresas no comércio exterior que são fruto da troca de experiência com alunos nas aulas ministradas no curso de pós-graduação em Técnicas de Negociação Internacional do Instituto de Educação Continuada (IEC) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Nessas aulas foram abordados, sob a ótica do Direito Comunitário, alguns aspectos relativos à quebra de empresas com repercussão transfronteiriça, e como o Direito Comunitário possui transversalidades inarredáveis com o Direito Internacional Público e, mais especificamente, como Direito Internacional Privado, os aspectos discutidos também se relacionam também com estes dois ramos jurídicos.
As aulas foram referenciadas em bibliografia producida sobre o tema principal e sobre questões incidentes que, a título de orientação aos leitores, estão indicadas no fim deste documento. No entanto, a análise é voltada, essencialmente, às normativas internacionais e comunitárias sobre a matéria, que, para facilitar a leitura, vão transcritas nas notas de rodapé do texto.
Portanto, neste ensaio foram utilizadas, predominantemente, fontes primárias, justamente em razão da carência de trabalhos que abordam o aspecto da quebra com repercussão extraterritorial, mesmo considerando que, em um ambiente de livre-mercado e em face das periódicas e freqüentes crises estruturais do modelo econômico concorrencial, a falência de empresas é recorrente e importa em questões relativas à segurança jurídica dos credores preferenciais e comuns e ao papel das políticas públicas de recupera ção empresarial, em face do princípio da função social da empresa.
O problema suscitado refere-se à aplicabilidade do territorialismo ou do universalismo jurídico no direito falimentar internacional e sobre a adequação de um ou de outro desses princípios em um bloco de integração comercial.
Até então, no Direito Internacional, tem vigorado, de forma absoluta, o princípio territorial, que leva tanto a pluralidade de jurisdição quanto a pluralidade da legislação empresarial, crediticia e trabalhista aplicáveis a matéria.
O juiz nacional do domicílio do devedor comerciante, pessoa física, ou da sede principal da empresa falida, tem competência exclusiva para o juízo de falência. Essa competência, no ámbito interno, tende a ser universal, isto é, atrai para si todas as demais ações conexas ao devedor e à massa falida. A competência internacional exclusiva do juiz nacional também coincide com a aplicação da lei material local, a lex fori, para resolver todas as questões relativas à quebra da empresa.
Nas últimas décadas, a flexibilização desse territorialismo estrito tem sido buscada, sem muito sucesso, pelos países europeus. Após sucessivas recusas de convenções sobre amatéria, a legislação comunitária vem conferir um novo perfil para o processo internacional de falências na União Européia.
Se na Europa a matéria tem despertado interesse jurídico, o mesmo não se pode dizer em relação ao espaço comunitário americano, onde as normas vigentes remontam ao século XIX e primórdios do século XX. As razões que levam a essa omissão precisam ser analisadas e compreendidas.
1. Direito falimentar e blocos comunitários
O Direito Comunitário americano é aquele produzido pelos organismos de integração regional sediados no centro e sul americano. Estados que, ao longo dos séculos, tem aprofundado seus laços comerciais, o que tem resultado em várias convenções multilaterais regionais, algumas vigentes desde o século XIX, bem como na instituição de organizações de cooperação e de integração regional cuja principal função tem sido aproximar o arcabouço jurídico nos Estados da América do Sul e Central.
O direito falimentar, desde os primórdios, tem sido regulado pelas convenções regionais de Direito Comercial e de Direito Internacional Privado, que consagraram a tese territorialista, que implica na pluralidade de jurisdição e de leis aplicáveis à matéria.
Mais recentemente, o principio universalista, que comporta a unidade de jurisdição com a universalidade dos seus efeitos jurídicos, começa a ser suscitado em documentos e na legislação comunitária européia. É a relativização do territorialismo no direito falimentar internacional em função do universalismo jurídico que, até então, caracteriza apenas o direito falimentar interno.
Em relação ao espaço comunitário americano, dois aspectos devem ser levados em considera ção em relação à quebra de empresas em um regime concorrencial: os efeitos do livre-comércio para empresas locais e a repercussão sócio-econômica da falência da empresa matriz em suas filiais localizadas nos Estados-membros.
Em economia de livre mercado, quando existem assimetrias acentuadas entre os Estados-Membros, empresas de setores mais sensíveis ficam suscetíveis à concorrência de empresas estrangeiras do bloco, o que pode ocasionar quebras. Para evitar conseqüências mais graves, os mecanismos de salvaguardas devemser eficientes e a agenda de integração flexível, embora rigorosamente planejada e negociada. No mesmo sentido, devem ser elaboradas legislações harmônicas sobre os diversos aspectos do processo de falência internacional e regulados meios jurídicos que levem em consideração a recuperação da empresa e do falido.
Quanto à relação da empresa matriz e suas filiais com sede em outros Estados do bloco, é de se esperar, em face do princípio de livre estabelecimento e de prestação de serviços, o deslocamento e expansão de empresas é esperado. Mesmo setores consolidados e de menor concorrência, no entanto, não estão imunes aos efeitos das crises de readequação econômica, que são periódicas e próprias do sistema. Nessas ocasiões empresas multinacionais, de grande ou de médio porte, podem ser afetadas. O princípio territorial protege as empresas filiais da bancarrota econômica da matriz, enquanto a universalidade da jurisdição falimentar atinge, mesmo que em procedimentos subsidiários, as filiais localizadas em outros países. Em face das peculiaridades da região, qual o sistema seria mais adequado?
2. Direito comunitário americano
Desde meados do século passado os Estados têm negociado tratados internacionais com o objetivo de constituir organismos de integração ou de cooperação internacional econômica.
Apesar das Comunidades Econômicas Européias terem iniciado o processo de integração comunitária, o fenômeno dos acordos internacionais de integração comercial entre Estados fronteiriços, ou de uma mesma região, é mais antigo.
Na Europa, a primeira experiência de sucesso foi o Zollvenrein, que, posteriormente, acabou resultando na integração política dos Estados alemães, em 1870. Na América, a primeira tentativa remonta a 1890 com a criação da União Panamericana, que, embora não tenha atingido o objetivo de criar uma zona de livre-comércio entre a América do Sul, a América Central e os Estados Unidos, resultou na primeira organização internacional consolidada na região, instituição que daria origem, quase um século depois, a Organização dos Estados Americanos (OEA), a diversas convenções e resoluções internacionais que procuravam harmonizar a legislação entre os Estados-membros, principalmente entre os Estados da América do Sul.
A aproximação do ordenamento jurídico entre os Estados da região é condição indispensável para o desenvolvimento do comércio entre empresas localizadas em um espaço de integração. Sob a égide da União Panamericana foram negociados e ratificados os dois Tratados de Montevidéu sobre Direito Comercial, e o Código de Bustamante, sobre regras de Direito Internacional Privado geral e especial, ambos vigentes até hoje, e, até o presente, as únicas normas a tratarem da falência internacional no espaço de integração jurídica da América do Sul e Central.
Na região, as experiências mais antigas de integração comercial são a Organização dos Estados Centroamericanos (ODECA), que deu origem, com a reforma de seus tratados institutivos, ao Sistema de Integração Centroamericano; o Pacto Andino, que originou a Comunidade Andina (CAN), também em reestruturação recente, e o Sistema de Integração Andino. O Mercosul, fenômeno mais recente, somente foi criado em 1991.
Tanto a CAN como o Mercosul são acordos de integração parcial firmados no âmbito da Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração (ALADI), organização regional que sucedeu a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (ALALC), criada pelo Tratado de Montevidéu de 1960, reformado em 1980. O Tratado de Montevidéu-80 estabeleceu a moldura para os sistemas de integração sul-americanos, levando à reforma do Acordo de Cartagena e das instituições andinas, além da criação do Mercosul. A estratégia instituída pela ALADI é, justamente, formar, paulatinamente, uma zona ampliada de Mercado Comum entre todos os países da América do Sul, o que implicaria na unifição das instituições do Sistema Andino com as do Mercosul.
Apesar das críticas que são feitas a esses organismos regionais, no sentido de que são pouco eficazes ao desenvolvimento econômico da região, o aprofundamento de suas relações diplomáticas e sócio-econômicas são inegáveis. Além disso, o desenvolvimento das instituições comunitárias e do seu arcabouço normativo, que efetivamente tem aproximado as legislações nacionais, demonstram que o processo é irreversível.
3. Antecedentes econômicos comuns
Os países da América do Sul e da América Central possuem, em suas características econômicas, vários pontos em comum.
Um desses aspectos é a sua industrialização, e conseqüente urbanização, tardia. Se na Inglaterra a denominada Revolução Industrial remonta a meados do século XVII, na França, ao século XVIII, na Prússia, Piemonte e Estados Unidos, ao início do século XIX, alguns países latino-americanos somente iniciaram o processo de industrializa ção em meados do século XX, enquanto que outros têm formado seu parque industrial apenas nos últimos anos, fatores limitantes ao intercâmbio empresarial na região.
O mercado externo, sempre voltado à exportação especializada de gêneros primários, com produção determinada, majoritariamente, pela demanda européia, constituía-se em força dinâmica a inibir as ações políticas no sentido de integrar comercialmente as regiões americanas.
Além da carência de produtos manufaturados essenciais ao consumo interno, o orçamento dos Estados dependia da importação desses bens e essa bilateralidade desigual, em razão do desequilíbrio de valores agregados, tem como efeito o déficit crônico da balança comercial dos países latino-americanos a acarretar o conhecido círculo vicioso: carência de capital interno capaz de impulsionar empreendimentos industriais, importação de bens e de capitais, déficit, debilidade do mercado interno.
Essa dependência congênita do mercado europeu e, mas recentemente, do norte-americano, ainda tem inviabilizado as tentativas de fortalecimento do comércio regional, o que dificulta e desencoraja o intercâmbio empresarial entre os países fronteiriços. Nos séculos anteriores, tais circunstâncias explicam os impasses em relação aos acordos de preferência tributária e de livre comércio negociados no âmbito da União Panamericana.
O processo de industrialização, em razão de tais elementos estruturais, foi iniciado como um projeto de Estado e desenvolvido em razão de empréstimos privados estrangeiros, do investimento direto desse capital, da importação de bens de produção, de know-how e de tecnologia estrangeiros e com o estabelecimento de empresas multinacionais, sediadas em países do hemisfério norte. Circunstâncias que dificultam a alteração substancial do perfil econômico da região.
Como efeito, os países da América do Sul e Central, mesmo quando industrializados, passaram a se constituir como grandes exportadores de capital, tanto sob a forma de remessa de lucros como na forma de pagamento dos juros relativos aos investimentos privados. Fatores igualmente inibidores do desenvolvimento econômico local.
Além dessas características, os Estados latino-americanos têm em comum uma história de instabilidade política e um árduo caminho na tentativa de consolidar instituições democráticas. Ao longo do século XX toda a região foi abalada por uma sucessão de golpes militares que, ao implantaram regimes fechados, adotaram uma política de isolamento recíproco, priorizando as tradicionais alianças econômicas e, mais uma vez, sufocando o potencial de diversificação da produção regional.
4. Espaço de integração e harmonização legislativa
O Direito Internacional, dentre outros objetos que lhe são inerentes, presta-se a harmonizar ou mesmo uniformizar a legislação entre os Estados que ratificam os tratados negociados nos foros internacionais ou incorporam as resoluções editadas pelas organizações internacionais ao seu ordenamento jurídico interno.
Tradicionalmente, em razão de sua força vinculativa reconhecida e legitimada por procedimentos internos, as normas internacionais têm originado, principalmente, de tratados. Nos seus primórdios jurídicos, os tratados internacionais possuíam nítida natureza contratual, pois estabeleciam obrigações oponíveis apenas em relação aos Estados vinculados, o que explica o fato de que até o século XIX os tratados serem exclusivamente bilaterais. Posteriormente, os tratados passaram a abranger matéria legal, ou seja, a criar normas suscetíveis de serem incorporadas ao ordenamento jurídico do Estado ratificador. Em face do conteúdo genérico e abstrato de seus dispositivos, as obrigações contraídas pelo Estado tornam-se passíveis de serem suscitadas por todos os seus destinatários: os demais Estados signatários, em foros internacionais ou internos, e pessoas físicas ou jurídicas legitimadas perante os tribunais locais.
No entanto, apesar dessa predominância, a edição de resoluções internacionais só tem aumentado e a sua força de vinculação, em relação aos Estados, têm sido alterada consideravelmente, o que vem ocorrendo desde o surgimento do Direito Comunitário europeu, que, por sua vez, coincide com o desenvolvimento do poder decisório dos demais organismos econômicos multilaterais.
As resoluções são fruto da atividade normativa dos organismos internacionais e alteram de forma substancial o sistema clássico de Direito Internacional. Sua força vinculativa é variável e estabelecida pela convenção institutiva da organiza ção internacional. Podem se constituir como direito supranacional ou como mera recomendação. Como direito supranacional estabelecem uma transversalidade até então inédita em um sistema internacional tradicionalmente resistente a instituições com competência para intervir em questões que, até meados do século passado, eram de alçada exclusiva do Estado.
O procedimento para a recepção de obrigações decorrentes de um tratado é compatível com o sistema dualista de atribuição de competências internas e internacionais diversificadas. Para que tenham força vinculativa e sejam oponíveis tanto no âmbito interno como internacional os tratados passam por procedimento complexo, através do qual é dada a oportunidade para que o Estado, por meio de órgãos variados, avalie a conveniência e oportunidade em assumir suas disposições.
Os tratados são fruto da diplomacia parlamentar: poder normativo de competência originária do Executivo e exercido pelo Ministério das Relações Exteriores, isto é, pelo Chanceler e corpo diplomático. Suas normas são negociadas e previamente aprovadas em foros internacionais para futura ratificação pelo Chefe de Estado.
A discricionariedade em se obrigar em relação às normas de um tratado caracteriza todo o processo de sua aceitação pelo Estado, tanto na fase internacional, desenvolvida junto aos órgãos internacionalmente competentes, como na fase interna, momento em que se passa à sua ratificação, procedimento regulado pelo direito nacional e que pode prever a intervenção de outrosórgãos estatais.
O constitucionalismo do século XIX incorporouao procedimento de edição de tratados o controle externo do poder legislativo, estabelecendo que, entre a assinatura do diplomata e a ratificação do Chanceler ou do Chefe de Estado, o Parlamento também deverá se manifestar sobre as obrigações internacionais acordadas. A partir de então, o procedimento de edição de tratados passou a prever três oportunidades para a avaliação do Estado sobre a conveniência em anuir com as obrigações jurídicas daí decorrentes: na autentica ção do texto, na aprovação pelo Parlamento e na ratificação do Executivo.
A edição e incorporação de resoluções internacionais tende a ser bem menos complexa. Geralmente as normativas são originadas de um Conselho de Ministros de Relações Exteriores ou de um Conselho de Ministros de pastas relacionadas ao objeto da resolução. O procedimento para que entrem em vigência e passem a vincular os Estados-membros da Organização Internacional, bem como a extensão de seus efeitos, a sua força vinculativa, sua forma e tempo de vigência, sua relação com o direito interno dos Estados membros são aspectos que devem estar previstos no tratado que institui a organização internacional em questão.
Possuem natureza de resolução, independentemente do nome com que são designadas pelos tratados constitutivos, os Regulamentos e Diretivas da União Européia, as Decisões tomadas pelo Conselho do Mercado Comum, as Resoluções do Grupo Mercado Comum e as Diretrizes da Comissão de Comércio do Mercosul 1 , assim como todas as fontes do direito secundário da Comunidade Andina, nos termos do Estatuto do seu Tribunal de Justiça2.
São também resoluções as decisões tomadas no âmbito do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e, a rigor, os Acordos negociados no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Diferentemente dos tratados, as resoluções geralmente não passam por ratificação do Estado-Membro, e, portanto, não estão, necessariamente, submetidas ao controle do Parlamento. Geralmente estão aptas para entrarem em vigência, vinculando os Estados, a partir de sua publicação pela Secretaria do organismo internacional que a emitiu. É o caso da União Européia e da Comunidade Andina. No Mercosul entram em vigência quando o Estado demonstrar que editou norma interna compatível com seu objeto ou determinou, por meio de ato interno, publicação de sua vigência3.
O fato é que o procedimento de incorporação das resoluções internacionais ao ordenamento jurídico dos Estados é mais simples e pode ser bem mais célere em relação ao procedimento de edição dos tratados, quando não automático. Em razão desses caracteres houve, de início, resistência dos Estados em relação à sua obrigatoriedade. Daí, a tradicional classifição das resoluções como soft Law, em contraposição à identificação dos tratados como hard law, em face aos seus efeitos vinculantes. Atualmente, o que se observa, é que entre a diversificada tipologia de resoluções internacionais ou comunitárias encontramos aquelas compoder de vinculação (hard law) e outras comfunção de mera recomendação (soft law) a seus destinatários.
Seja por meio de tratados ou por meio de resoluções, os blocos de integração econômica requerem a harmonização legislativa em todos os aspectos relativos às liberdades de trânsito que objetivam promover, ou seja, em todas as matérias que versam, diretamente ou incidentalmente, sobre comércio de mercadorias e serviços, deslocamento de trabalhadores, de empresas e de capitais, o que determina a harmonização não só do Direito Civil e Comercial, mas inclusive do Direito do Trabalho, do Direito Tributário e Econômico, e, fundamentalmente, das normas processuais relativas à cooperação judiciária internacional. Sem isso, a concretização de um espaço sócio-econômico integrado é inviável, por isso a necessidade de aproximação entre as legislações dos Estados-Membros é destacada nos seus tratados institutivos4.
Se no âmbito da Comunidade Andina e do Mercosul o avanço, nesse sentido, é notável muito mais foi feito na União Européia. No entanto, a resistência em tratar a questão da quebra de empresas e seus efeitos extraterritoriais é evidente. Mesmo na União Européia a matéria demorou a ser tratada. A Convenção relativa aos processos de insolvência, de 23 de novembro de 1995, não chegou a entrar em vigência. Outras tentativas de elaboração de tratados também fracassaram, o que levou o bloco a editar, em 2000, o Regulamento do Conselho Europeu sobre o assunto5.
Na América, o direito vigente continua sendo o dos antigos Tratados de Montevidéu e de Bustamante. O tradicional territorialismo tem inibido que questões sobre a matéria se aprofundem nos foros regionais. No entanto, a matéria é pertinente a uma região que tem experimentado, recentemente, uma inédita abertura de mercados, o que representa novos desafios para as empresas locais. Portanto, é de se considerar tanto os aspectos relativos à cooperação judiciária internacional nos processos de falência como a uniformização dos meios disponíveis à recuperação da empresa e à reabilitação do falido, posto que seja de interesse de toda a sociedade e, especialmente, dos seus trabalhadores, a manutenção das atividades da companhia e o seu saneamento financeiro.
5. O direito internacional de falência na América Latina
Desde o final do Século XIX têm sido realizados, na América Latina, diversos congressos internacionais nos quais são negociadas convenções que buscam uniformizar o ordenamento jurídico dos Estados da região, principalmente no que tange aos aspectos civis e comerciais frequentemente sujeitos à relações extraterritoriais.
No âmbito da União Pan-americana, o projeto negociado no Congresso de Lima, realizado em 1878, foi o único que previu a competência judicial universal em caso de falência com repercussão transfronteiriça, embora estabelecesse a possibilidade de quebras secundárias quando o devedor possuísse filiais sediadas em outros países da região. O Tratado de Lima não chegou a ser ratificado e sequer repercutiu nas normas editadas posteriormente no âmbito interno e regional. Aliás, disposições semelhantes, que recepcionam o princípio universalista do foro falimentar, somente voltaram a ser mencionadas na Convenção Européia relativa aos processos de insolvência, de 1995, que também não chegou a entrar em vigência.
O Tratado de Direito Comercial de Montevidéu, de 1889, foi a primeira codificação de Direito Internacional Privado que logrou êxito na região. Desta feita o instrumento adotou o princípio territorial, que, na falência internacional, tem como efeito a pluralidade de foros falimentares em relação ao mesmo devedor.
O direito falimentar vem tratado no Título De las falências, artigos 35 a 48 do tratado (RECHSTEINER: 2001). Segundo seus dispositivos o pedido de quebra deve ser apresentado no domicilio do devedor, contemplando-se a possibilidade de outros processos no caso do falido possuir estabelecimentos em países diferentes. Como o tratado consagrou a preferência dos credores locais em detrimento dos estrangeiros, a estes restava solicitar a declaração de quebra no seu próprio país, se esse sediasse estabelecimento do falido, abrindo-se um novo concurso que tramitaria de forma independente em relação ao procedimento estabelecido na sede principal do devedor. A reabilitação do falido somente se tornaria efetiva com o assentimento de todas as quebras.
O tratado foi ratificado pela Argentina, Peru, Colômbia, Paraguai e Uruguai.
Ocorre que o Brasil, ao contrário de seus vizinhos, não ratificou o Tratado de Montevidéu, adotando o Código de Bustamante de Direito Internacional Privado ou Tratado de Havana que foi editado na sétima Conferência Interamericana e trata da falência, concordata e reabilitação do falido nos seus dispositivos 414 a 422. Em termos semelhantes ao Tratado de Montevidéu, o Código de Bustamante estabelece procedimentos diferentes no caso do falido possuir um ou mais estabelecimentos localizados em outros países da região. Possuindo apenas um estabelecimento, o Código de Bustamante garante o reconhecimento extraterritorial da sentença declaratória de falência ou concordata pelas autoridades judiciais dos demais Estados-membros, o que se fará pelas regras processuais estabelecidas em cada um desses Estados, bem como o reconhecimento extraterritorial das faculdades e funções do síndico da massa falida, “sem necessidade de trâmite algum local”6.
O Tratado de Direito Comercial Terrestre Internacional, de 1940, também negociado em Montevid éu, no segundo Congresso Sul-Americano de Direito Internacional Privado, efetuou a revisão do tratado de 1889, muito criticado em razão de suas lacunas e pelas dúvidas que suscitava.
Esse segundo tratado prevê a unidade liquidativa, estabelecendo exceções quando o devedor possuir ativos em outros países. Nesse caso, poder á haver tantas quebras independentes quantas forem as suas filiais. Quando o devedor possuir um único estabelecimento, o juiz do lugar da sua situação será exclusivamente competente para conhecer do pedido e declarar a falência.
As regras de direito falimentar internacional estão em seu Título VIII - De las quiebras - em seus artigos 40 a 53. O segundo tratado de Montevidéu foi ratificado apenas pela Argentina, Paraguai e Uruguai, justamente os Estados parceiros do Brasil no Mercosul, no entanto não foi ratificado pelo Brasil.
A União Panamericana foi sucedida pela Organiza ção dos Estados Americanos (OEA) que, por sua vez, criou a Comissão Interamericana de Direito Internacional Privado, profícua na negocia ção e elaboração de Convenções sobre os mais variados aspectos de Direito Internacional Privado, embora a quebra de empresas com repercussão transfronteiriça continue sem alterações mais recentes.
Atualmente, as normas sobre direito comercial e cooperação judiciária internacional, por convergirem com os objetivos do bloco de integração, têm sido negociadas no âmbito dos espaços comunitários.
No Mercosul foram editados o Protocolo de Las Leñas sobre Cooperação Judiciária Internacional, o Protocolo de Ouro Preto sobre Medidas Cautelares, o Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual, o Protocolo de Montevidéu sobre o Comércio de Serviços, o Acordo sobre o benefício da Justiça Gratuita e Assistência Jurídica Gratuita entre os Estados-Partes, Acordo sobre Arbitragem Comercial Internacional, todos relativos à cooperação entre juízes e tribunais no âmbito comunitário.
A maioria desses instrumentos jurídicos, fontes de Direito Internacional Público e do Direito de Integração, tem como objeto o Direito Internacional Privado, isto é, são normas destinadas aos magistrados nacionais e definem sua competência para o julgamento de ações com conexão extraterritorial, além de estabelecer o procedimento para a cooperação judiciária entre os Estados-Membros, indicando, na falta de norma comunitária específica, a lei material de um dos Estados a ser aplicada na matéria litigiosa.
Sendo assim, na ausência de um direito uniforme entre os Estados, cumpre a norma de Direito Internacional Privado fixar a competência do juiz nacional e, com isso, determinar o direito aplicável ao processo, que será sempre a lex fori, e também indicar a lei que resolverá as questões de mérito relativas à matéria sub judice.
Tendo em vista as antigas convenções vigentes na região, nas ações declaratórias de falência será exclusivamente competente para conhecer do pedido o juiz do domicilio do devedor, aplicandose aos aspectos materiais a lei substantivado lugar onde foi aberto o processo falimentar, ou seja, aplica-se a lex fori concursus, tanto em relação ao processo quanto em relação as questões de mérito da falência.
Antigas, ultrapassadas e lacunosas, as normas sobre falência internacional, na América, podem gerar insegurança e se constituir em fator inibidor aos negócios nos blocos de integração.
O fato é que, apesar da instituição de órgãos comunitários com poder normativo e do desenvolvimento do direito de integração na região, ainda não temos normas adequadas a essa nova realidade. Nas décadas anteriores quase a totalidade dos Estados latino-americanos adotavam uma política protetiva em relação aos seus mercados internos. Além disso, os acordos comerciais eram preferencialmente dirigidos aos países europeus ou aos Estados Unidos, o que levava a uma limitação aos negócios entre empresas da região sul e centro-americana.
No entanto, os projetos de integração econômica, revitalizados nos últimos vinte anos, requerem outra perspectiva para as relações empresariais. A abertura de mercados, mesmo quando limitada ao comércio de bens e serviços, confere nova dinâmica às empresas, que passam a fornecer seus produtos a consumidores estrangeiros além de estreitar suas relações negociais com outras empresas da região, em face das facilidades de exportação.
Em contrapartida, também estarão sujeitas à concorrência internacional, às mudanças na política cambial comunitária, às necessidades de modernização tecnológica, enfim, a inúmeras variáveis que podem levar a desequilíbrios conjunturais e, eventualmente, até mesmo à quebra. Nesse aspecto, as pequenas e médias empresas podem ser as mais beneficiadas pelo livre-comércio, porém, também são as mais vulneráveis.
Embora o processo de integração regional sofra os efeitos das crises sistêmicas mundiais, ele é irreversível. Entretanto, apesar de impulsionar a economia intra-regional, a abertura de mercados também traz conseqüências deletérias para os setores mais vulneráveis da economia local. Apesar disso, o avanço normativo passa ao largo da matéria sobre falência internacional. O Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual, celebrado em 1994, expressa no seu art. 2º, 1: “o âmbito de aplicação do presente protocolo exclui: 1. As relações jurídicas entre os falidos e seus credores e de mais procedimentos análogos, especialmente as concordatas”.
Em face dessas omissões, uma declaração de falência que envolva empresas e credores de Estados-Membros do Mercosul ou da Comunidade Andina pode gerar conflitos insolucion áveis de leis incidentes sobre a matéria, em razão da diversidade de leis nacionais. Essas diferenças constituem entraves à consolidação da integração comercial, em face das dificuldades jurídicas que acarretam aos negócios na região.
6. Natureza jurídica do direito falimentar internacional
Como vimos, o Direito Falimentar Internacional insere-se no âmbito do Direito Internacional Privado. Nesse aspecto, a questão que ainda encontrase em aberto é a extensão da aplicabilidade do elemento de conexão lex fori concursus, que, a rigor, apenas determina que as leis processuais aplicáveis à falência são aquelas do lugar onde foi ajuizado o procedimento.
No entanto, na falta de regras claras, o elemento de conexão atinge, igualmente, os aspectos jurídicos substanciais inerentes ao regime falimentar tais como a extensão da massa falida, a responsabilidade do falido, as sanções que lhe são aplicáveis, as atribuições e responsabilidades do síndico, a relação dos credores com a massa falida e o regime de preferências creditícias.
As leis que regerão o processo falimentar, ou seja, os atos processuais, a atividade do juiz e dos serventuários da justiça, por se tratarem de normas de Direito Público, serão, necessariamente, aquelas vigentes no lugar onde o processo foi ajuizado. No entanto, as questões materiais deverão subsumir-se ao que estiver estabelecido pelas normas que tratam do conflito de leis materiais no espaço, normas que indicam o direito material, sempre de natureza privada, que deverá ser aplicado ao fato. É o caso do direito falimentar internacional em que os sujeitos são pessoas naturais ou empresas.
Ocorre que, em face da omissão legislativa e em razão das peculiaridades do direito falimentar internacional, as normas conflituais vigentes não são suficientes e adequadas para a solução da variedade de conflitos que podem se originar de um processo de falência. Conflitos relativos à universalidade da massa falida e aos seus bens móveis, imóveis e créditos, por exemplo, são regidos pelos critérios indicativos estabelecidos pelo estatuto real adotado no estado de jurisdição competente. Outras questões, relativas à responsabilidade civil do falido, do síndico e que versam sobre direitos preferenciais ou ordinários dos credores, são resolvidas pelo estatuto das obrigações legais e contratuais (lex celebrationis, lex executionis, lex loci delicticomissi, por exemplo).
O que tem levado os autores a confirmar a extens ão do elemento de conexão lex fori concursus, aplicando-o também como critério indicativo da lei que resolverá as questões materiais da falência é, justamente, a complexidade das questões que envolvem a massa falida e a extensão dos seus efeitos, que não são apenas civis, mas também trabalhistas e tributários. Daí decorre o princípio que estabelece, no âmbito da jurisdição interna, o juízo universal de falência, cujo efeito é, ainda no âmbito interno, a unidade de jurisdição.
O territorialismo estrito no direito falimentar internacional, que estabelece tanto a competência exclusiva do juiz do domicilio do devedor como a aplicação da lei material do foro para dirimir as questões de mérito, embora seja coerente como princípio da unidade do juízo no âmbito interno, contraditoriamente acarreta, na falência com repercussão transnacional, além da pluralidade de jurisdição, quando o devedor possuir estabelecimentos ou bens em outros países, também a pluralidade de leis aplicáveis à matéria falimentar, o que pode gerar conflitos infindáveis entre credores e a massa falida, além de propiciar soluções contraditórias entre juízes internacionalmente competentes.
Outra questão diretamente relacionada ao procedimento falimentar refere-se à condição jurídica do estrangeiro e ao seu direito de participar de um procedimento de insolvência aberto em território de outro país. Enfim, à extensão de sua capacidade de agir no domicílio do devedor, aspecto relativo ao estatuto pessoal do credor, seja pessoa física ou jurídica estrangeira. Nesse caso, os critérios para a determinação da lei aplicável à capacidade tanto do devedor como do credor, na América, é a do seu próprio domicílio ou residência habitual (lex domicilii), quando pessoa física, ou a lei do lugar de registro do contrato social e estatutos da empresa (lei da sede estatutária da pessoa jurídica). No entanto, em razão das peculiaridades do procedimento, a lei conflitual poderá estabelecer regra especial para a determina ção da capacidade, adotando como critério a lei da nacionalidade do credor pessoa física (lex patriae) ou a lei da sede dos negócios da pessoa jurídica. É possível, até mesmo, que a capacidade seja resolvida por critérios subsidiários relativos ao estatuto das obrigações, estabelecendo como elemento de conexão a lei do lugar do cumprimento da obrigação (lex loci solutionis ou lex loci executionis). É o critério preferido pela escola territorialista, pois envia à lei do devedor, ou lei do foro em que foi ajuizada a ação declaratória de falência, a definição da capacidade civil e processual do credor à habilitação do seu crédito.
O fato é que a aplicação das regras conflituais pelo princípio da territorialidade estrita pode levar a discriminações camufladas no processo de falência internacional, pois a lei do país do devedor pode estabelecer condições que dificultam ou impedem a participação dos credores estrangeiros comuns, ou seja, daqueles que não possuem garantias reais ou créditos trabalhistas. Um exemplo é a exigência da cautio judicatum solvi para os demandantes não residentes no país.
Em relação a esses aspectos, cumpre destacar que as normas constitucionais nos países americanos restringem ao máximo o tratamento diferenciado entre nacionais e estrangeiros. Mesmo assim, o tratamento é diferenciado e as leis internas ainda estabelecem restrições ao exercício de direitos civis aos estrangeiros, discriminação que tende a ser completamente abolida no âmbito do direito comunitário.
7. Os princípios da territorialidade e da universalidade
A falência internacional, isto é, o concurso de credores com elementos em conexão com sistemas jurídicos estrangeiros, é regida pelo princípio da territorialidade e pluralidade de foros falimentares. Porém, nos últimos anos, normativas comunitárias têm incorporado aspectos da universalidade do foro e unidade legal no processo de falência.
Ambos os princípios - territorialidade ou universalidade - referem-se ao alcance dos efeitos da declaração de falência. O primeiro restringe os efeitos aos limites territoriais do Estado onde foi aberto o processo, isto é, só atinge os estabelecimentos e bens do devedor situados no país onde foi aberto o concurso. O princípio da universalidade admite que os efeitos da declaração sejam também extraterritoriais, atingindo empresas filiais e bens situados em outros países, embora a jurisdição seja única ou, ao menos, predominante em relação às demais.
A unidade do juízo manifesta-se quando a lei determina que todas as questões jurídicas relacionadas ao procedimento falimentar serão decididas por uma única autoridade judicial. As decisões tomadas por esse juiz deverão ser reconhecidas por autoridades de outros Estados e atingirão bens e estabelecimentos ali localizados.
Enfim, o procedimento único alcança a totalidade do patrimônio do falido, independentemente do lugar onde se encontram, produzindo seus efeitos em todos os países em que estiverem radicados.
Ocorre justamente o contrário quando a lei adota o princípio territorial, pois, se os efeitos da declara ção estão restritas a um único território, haver á a justaposição de tantos processos quanto forem os estabelecimentos do falido situados em países estrangeiros. Ou seja, o princípio territorial leva à pluralidade de procedimentos falimentares, e, a depender dos critérios de indicação da lei material aplicável às questões incidentes ao procedimento, também à pluralidade da legislação incidente sobre o mérito.
Os argumentos favoráveis e contrários em relação a uma ou outra opção legal são variados. Para os que defendem o princípio da universalidade dos efeitos e unidade de jurisdição, que seria aquela onde o devedor tem o centro de seus interesses ou a sede de seu estabelecimento principal, o método tende a ser mais favorável aos credores, pois tanto garantiria o seu tratamento igualitário, independentemente de seu domicilio ou nacionalidade, como também possibilitaria, de forma mais efetiva, a satisfação do seu crédito, pois seu propósito é, justamente, atingir a totalidade dos bens do falido, independentemente do país em que se encontrem.
Seus defensores ainda argumentam que a universalidade da falência internacional é compatível com a natureza jurídica do procedimento pois: i) adéqua-se ao requisito da execução universal assegurando a divisão proporcional do patrimônio do devedor entre os credores, objetivo principal do procedimento; ii) é compatível com a unidade jurídica da massa falida, pois um só processo abrange a totalidade dos ativos e passivos do devedor; iii) possibilita o tratamento igualitário em relação a condição pessoal do devedor, já que a falência interfere no seu status, que, por sua natureza, deve ser indivisível.
Quanto à territorialidade do procedimento e pluralidade de jurisdições concursais, os autores destacam que a falência trata-se de instituição constritiva de direitos patrimoniais e pessoais do devedor e que, em razão de sua natureza executória, todas as normas que regulam o procedimento são de ordem pública, portanto, de caráter territorial, daí a necessidade de que o processo seja desenvolvido de forma autônoma no país do domicilio do devedor e, se for o caso, também de forma independente, nos Estados de situação dos seus bens, de forma que um procedimento não interfira em outro.
Nesse sistema, estariam satisfeitos tanto os direitos individuais do devedor como de seus credores, nacionais ou estrangeiros, uma vez que estes últimos poderão acompanhar de perto procedimento específico e de acordo com as leis de seu próprio país, não se submetendo a um processo distante e regulado por direito desconhecido por eles. Além disso, a existência de quebras localizadas evitaria problemas práticos como o desconhecimento do credor em relação ao início do procedimento concursal, pois ele pode não ter acesso às informações relativas sobre ao pedido ou à decretação de falência feita em país estrangeiro.
Em relação ao devedor, um aspecto favorável é que a pluralidade de quebras permite que o falido mantenha suas atividades em alguns países, em face da diversidade de legislações aplicáveis, o que garante sua reabilitação parcial.
Quanto às razões de índole prática, os defensores da unidade de jurisdição e universalidade dos seus efeitos afirmam que a técnica torna o procedimento mais rápido, econômico e eficaz, posto que o procedimento único facilita o desenvolvimento do processo e evitaria soluções contraditórias. Em contrapartida, os autores que apontam as vantagens da quebra territorial destacam que, com essa opção, o juiz local tem seu trabalho facilitado porque não se ocupa das atividades do falido em países estrangeiros. Da mesma forma o síndico, que também só realiza suas atividades em um único país, o que restringe seu deslocamento.
Nas últimas décadas, em razão dos blocos de integração, novas tendências têm se delineado no direito falimentar internacional relativizando a hegemonia do territorialismo ao acrescentar, por meio do direito comunitário, aspectos universalistas nos tradicionais procedimentos falimentares. O objetivo dessas mudanças é a garantia de reconhecimento dos procedimentos falimentares que se desenvolvem em país estrangeiro desde que cumpridos os pressupostos legais de ordem pública exigíveis nos outros países em que a declaração de quebra também deverá produzir efeitos. Outro aspecto é a equiparação de todos os credores que estão na mesma categoria do devedor, nacionais ou estrangeiros, evitando qualquer espécie de discriminação.
Nesse aspecto, as normas provenientes da União Européia são, mais uma vez, paradigmáticas, apesar da dificuldade que tem caracterizado a sua efetivação.
A Comunidade Européia, desde 1982, tem buscado uniformizar o procedimento de falência entre seus Estados-Membros. No âmbito do Conselho Europeu, desde então, foram apresentados projetos de convenções internacionais e de regulamentos comunitários sobre a matéria. O primeiro anteprojeto sofreu revisão em 1984, mas, mesmo assim, não foi adiante até que, em 1985, o Conselho suspendeu, por falta de consenso, as deliberações sobre ele.
Também não chegou a entrar em vigência a Convenção Européia relativa a Certos Aspectos Internacionais da Falência, conhecida como Convenção de Istambul, aberta para assinatura em 05 de junho de 1990. O mesmo destino teve a Convenção relativa aos Processos de Falência, de 23 de novembro de 1995, considerada bastante inovadora, uma vez que o prazo estabelecido para sua ratificação terminou sem a aprovação de um dos Estados-Membros, inviabilizando sua vigência7.
Todas essas normativas admitiam, ainda que de forma mitigada, a universalidade do procedimento falimentar prevendo a formação de um processo principal e de outros subsidiários. O processo principal seria aberto no centro de interesses do devedor ou de seu estabelecimento principal, o que não exclui a possibilidade de abertura de procedimentos de insolvência paralelos nos países do bloco em que o devedor também possuísse bens ou estabelecimentos comerciais. Esses outros procedimentos, chamados de complementares, estariam subordinados ao processo principal, flexibilizando o princípio da territorialidade estrita.
Em face dos insucessos recorrentes, o Parlamento Europeu tomou a iniciativa de requerer à Comissão Européia a apresentação de proposta de diretiva ou de regulamento sobre falências de empresas sediadas em Estados da Comunidade, o que resultou no Regulamento (CE) n. 1346 de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência8.
Ao recepcionar cláusulas dos projetos anteriores, o Regulamento estabeleceu que a competência para o processo principal é do Estado-Membro em que se situa o centro de interesses do devedor, ou seja, o local onde exerce habitualmente a administração dos seus negócios9. Esse procedimento tem alcance universal, abarcando todo o patrimônio do devedor, admitindo-se a possibilidade de processos secundários nos demais Estados-Membros onde possua outros estabelecimentos. Os efeitos desses últimos limitar-se-ão aos ativos situados no território desse Estado10. O processo secundário pode ser aberto tanto por iniciativa dos credores locais como pelos credores do estabelecimento situado nesse Estado, independentemente do seu domicílio. O síndico do processo principal também possui legitimidade ativa para todos os procedimentos subsidiários. Aliás, para que se assegure o papel dominante do processo principal, ao síndico desse processo são atribuídas outras possibilidades de intervenção nos processos simultaneamente pendentes.
Qualquer credor que tenha residência habitual, domicílio ou sede empresarial em países da União Européia tem o direito de reclamar seus créditos em cada processo de insolvência proposto. O mesmo se aplica às autoridades fiscais e aos organismos de seguridade social dos Estados-Membros da Comunidade.
O Regulamento também prevê o reconhecimento imediato, por autoridades estrangeiras, das decisões jurisdicionais relativas à abertura, tramitação e encerramento dos processos de insolvência abrangidos pelo seu âmbito de aplica ção, bem como de todas as decisões judiciais proferidas em conexão direta com esses procedimentos.
Quanto a lei aplicável, continua a imperar o critério absoluto da lex concursus, ou seja, aplica-se a lei do Estado-Membro em cujo território a falência foi requerida. Assim, a lex fori regulará as questões processuais, tais como: condições de ajuizamento da ação, sua tramitação, o encerramento da insolvência, a forma de imputação das custas e as normas referentes a nulidade, anula ção e impugnação de atos prejudiciais aos credores. A lei local também será aplicada às questões de natureza substantiva, expressamente relacionadas no art. 4º do Regulamento, o que torna imprescindível, portanto, a harmonização das leis nacionais sobre falência11.
As mudanças são, de fato, tímidas, mas procuram compatibilizar os direitos do devedor com aqueles de seus credores. No entanto, a demora em apresentar resultados concretos e a resistência dos Estados em aprovar as medidas que alteram os procedimentos falimentares tradicionais traduzem a dificuldade em empreender essa convergência de interesses.
De fato, a questão sobre quebras de empresas é mais complexa do que atender ao interesse do devedor em recuperar seus negócios e o dos credores em ver seus créditos satisfeitos, mesmo que a custa da bancarrota do empresário, posto que o direito falimentar, na atualidade, deve ainda levar em conta a função social da empresa, enfim, o interesse que tem os seus trabalhadores e a sociedade em geral em sua preservação.
Essa preocupação foi manifesta no parecer emitido pelo Comitê Econômico e Social Europeu endereçado à Comissão, ao Conselho e ao Parlamento intitulado “Superar o estigma do insucesso empresarial: por uma política de segunda oportunidade”12. O relatório apresenta um dado relevante: das 931.435 empresas criadas em 1998 na Espanha, Finlândia, Itália, Luxemburgo, Suécia e Reino Unido sobreviveram, dois anos depois, apenas 73%, e, do mesmo grupo de empresas, pouco menos da metade (49,1%), até 2003.
Para emitir seu parecer o Comitê Econômico e Social adotou como parâmetro de referência a legislação de falência dos Estados Unidos. Justifica essa escolha em razão do suposto equilíbrio que a lei norte-americana procura estabelecer entre devedores, credores e trabalhadores da instituição falida, considerando, ainda, os interesses da sociedade em geral na recuperação e manutenção da empresa.
CONCLUSÃO
O objetivo focal dos blocos de integração econômica é a abertura de mercado entre países de uma mesma região, países estes situados em diferentes patamares de desenvolvimento comercial e industrial, suscetíveis, portanto, a uma concorrência empresarial que pode desestabilizar setores pouco competitivos e ainda incipientes da economia local.
Assim, ao invés de resultar em um crescimento sócio-econômico integrado e complementar, os blocos de integração também podem acentuar as assimetrias internas, perpetuando a dependência de alguns mercados em relação a outros e, inclusive, desmontando alguns setores da economia local em favor daquele correspondente em país parceiro do bloco.
Para equacionar esses desequilíbrios estruturais, medidas efetivas devem ser empreendidas pelos órgãos comunitários em conjunto com os Estados-Membros do organismo de integração. Nesse aspecto, é essencial a harmonização da legislação sobre quebras e sobre as medidas de saneamento de empresas em processo de falência.
Apesar disso, tanto nos blocos de integração americanos como na União Européia, apesar das diferenças entre os países que integram um e outro, observa-se uma grande dificuldade em se alterar as regras tradicionais, vigentes desde o século XIX, apesar da complexidade das relações econômicas contemporâneas.
Em uma economia cada vez mais integrada, globalizada, frequentemente inovada por recursos tecnológicos e altamente dependente da estabilidade do setor financeiro mundial são várias as causas que podem levar empresas à bancarrota.
Urge, portanto, a elaboração de uma legislação falimentar que leve em consideração essa realidade, muito diferente daquela que inspirou as tradicionais normas sobre insolvência e que não levam em consideração os novos desafios que recaem sobre o empresário e nem os aspectos sociais que envolvem a quebra de uma empresa. O fato é que, no contexto atual, uma falência não é causada, necessariamente, por atos fraudulentos ou irresponsáveis do falido, mas por uma série de circunstâncias alheias a administração da empresa, que está sujeita, diuturnamente, aos riscos inerentes ao sistema mundial de mercados.
Para responder a essa nova realidade o desafio é empreender mudanças substanciais nas legislações sobre insolvência, de forma a incorporar dispositivos que protejam, efetivamente, os interesses de todas as partes envolvidas. Uma das preocupações é de se estabelecer um processo judicial simples, rápido e que possibilite tanto a maximização do valor dos ativos da massa falida como a restrição das proibições legais e das desqualificações que recaem sobre o devedor não fraudulento.
Além disso, as autoridades competentes ainda devem estabelecer políticas públicas eficientes de recuperação da empresa e reabilitação do empresário falido, disponibilizando meios eficazes para um novo arranque, já que o sucesso empresarial de um interessa a toda a economia do país. Nos momentos de crise estas questões ficam ainda mais evidentes.