Introdução
O principal objetivo de um acordo inter-regional1 entre a União Europeia (UE) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul) é estabelecer uma relação de cooperação e integração econômica entre as duas regiões, de forma a promover a expansão do comércio entre elas e a cooperação regulatória sobre práticas comerciais2. Além da relação comercial propriamente dita e dos objetivos relacionados ao desenvolvimento das regiões, que consideram investimentos em áreas estratégicas como transporte, energia, educação e cultura, o Acordo protagoniza3 o desenvolvimento sustentável, correlacionando os interesses econômicos aos sociais e aos ambientais.
O Mercosul é construído a partir de um processo de integração regional, que se inicia bilateralmente entre Brasil e Argentina, sendo concluído de forma multilateral a partir do Tratado de Assunção, assinado em 26 de março de 1991, por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai4. O objetivo principal foi criar, por meio de coordenação econômica, regulatória e política, um mercado comum de livre circulação de bens, serviços e capitais na região sul-americana5. A Venezuela passou a fazer parte em 2012 e foi suspensa em dezembro de 2016, por questões de "ordens técnicas, políticas e econômicas"6. Outros países da América do Sul fazem parte do bloco como associados, sendo que a Bolívia está em fase de adesão7.
Com a formação do bloco de livre-comércio no Cone Sul, surgiu a intenção mútua no estabelecimento de uma relação comercial entre a UE e o Mercosul. A UE possuía uma visão econômica e estratégica, mais voltada para a questão da competitividade e para a ampliação do mercado8. Além disso, o Mercosul é considerado como um potencial mercado para seus produtos industrializados, assim como um importante fornecedor de matéria-prima9. No âmbito do Mercosul, o principal interesse estava relacionado com o aumento da exportação dos produtos agrícolas dos países-membros do bloco, recentemente criado e com a melhoria do poder de negociação com outros países10.
Foram mais de 20 anos de tratativas, considerando as diversas paralisações11, até a conclusão das negociações políticas sobre o Acordo, que ocorreu em 28 de junho de 2019 com a publicação do texto inicial, denominado "Acordo de Princípio"12. Em 18 de junho de 2020, também foram dadas como finalizadas as negociações referentes ao diálogo político e de cooperação do Acordo13. Apesar da declaração de que as tratativas terminaram, ainda há questões em discussão e o texto do Acordo necessita passar por revisões técnicas e jurídicas14 e, por fim, pela aprovação e ratificação dos respectivos Estados participantes15.
O adiamento da finalização do acordo se deveu a inúmeros fatores de ordem política, social e ambiental, que estancaram o processo, impedindo o efetivo estabelecimento da parceria comercial e seus esperados benefícios. Embora o Acordo UE-Mercosul seja considerado um dos maiores já negociados, outros acordos comerciais de importância equivalente vêm sendo estabelecidos pela UE, que é considerada uma grande parceira comercial global16. Por meio desses acordos, a UE busca facilitar as relações comerciais entre os países signatários, reduzindo barreiras tarifárias e não tarifárias, que muitas vezes impedem o desenvolvimento econômico equitativo, sendo, portanto, importante desafio para o comércio internacional. A redução de barreiras gera benefícios econômicos e a simplificação de procedimentos17. Além disso, esses acordos possuem a capacidade de fomentar e fortalecer políticas e princípios do desenvolvimento sustentável, considerando a adoção de políticas que estejam alinhadas com os princípios de proteção ambiental e de respeito aos direitos humanos18.
Nesse sentido, este estudo busca analisar a construção do Acordo UE-Mercosul, sua condição atual e os diversos cenários políticos, econômicos e socioambientais da relação inter-regional proposta, para avaliar a possibilidade de que seja efetivamente concluído. Para o alcance do objetivo proposto, realizou-se sólido levantamento bibliográfico, documental e de revisão histórica dos fatos relacionados ao Acordo, partindo da pesquisa sistemática em bases de dados acadêmicos, por meio de palavras-chave, que permitiram a seleção e análise das fontes consultadas. A pesquisa está suportada por livros, teses e artigos relevantes e confiáveis para o desenvolvimento da temática proposta. Foram priorizadas publicações científicas relacionadas ao Acordo estudado, considerando todo o seu período, desde as primeiras negociações até a atualidade.
Além da pesquisa bibliográfica, foram consultadas fontes não acadêmicas, mas fundamentais ao acompanhamento histórico dos processos de negociações e que fornecem uma perspectiva mais recente das discussões, que permitem acompanhar a evolução e dinâmica do cenário do Acordo e as probabilidades de finalização. As informações coletadas foram analisadas e sintetizadas, de forma a comparar todo o processo com as diferentes perspectivas e interpretações. O artigo foi então estruturado seguindo a introdução, a análise do acordo comercial que vem sendo estabelecido, avaliando a construção das relações comerciais entre a UE e a América do Sul, o contexto de surgimento da proposta de um acordo comercial mais amplo, assim como as negociações que culminaram na divulgação da finalização das negociações, em julho de 2019. Em um segundo momento, com base nas referidas informações, analisou-se o contexto da nova paralisação, após 2019, assim como as dificuldades para a aprovação definitiva do Acordo, considerando, sobretudo, as possíveis implicações ocasionadas por impasses políticos e socioambientais relacionados à sua concretização, bem como pelas crises sanitária, econômica e política, que afetaram os países de forma acentuada.
Por fim, avaliou-se o estado da arte do Acordo, com a finalidade de compreender os atuais movimentos para sua finalização, o que mudou nesse cenário e as possíveis implicações no âmbito socioambiental, considerando, sobretudo, sua potencialidade como instrumento para desenvolvimento econômico, social e ambiental de ambas as regiões.
Acordos de comércio livre inter-regionais e relações entre a UE e o Mercosul
Os acordos de comércio livre (ACL) inter-regionais são pactos estabelecidos entre duas ou mais regiões econômicas. O objetivo é a liberalização do comércio de forma a facilitar o fluxo de bens e serviços, o que ocorre principalmente por meio de redução de barreiras tarifárias e não tarifárias. Os ACL também podem tratar de questões que não estão diretamente relacionadas às transações comerciais, mas que podem ser impactadas por elas, como no caso do meio ambiente, direitos humanos, compliance, compras governamentais, patentes, entre outros temas relacionados.
No âmbito desses acordos, evidencia-se o Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta), estabelecido em 1994 entre Estados Unidos, Canadá e México, para eliminar gradualmente barreiras tarifárias e não tarifárias entre os países-membros, criando uma área de livre circulação de bens e serviços, de forma a reduzir custos e aumentar a competitividade19. Em 2018, o Nafta foi substituído pelo Tratado entre México, Estados Unidos e Canadá (T-MEC)20, que aperfeiçoou o anterior, incluindo novas áreas, como no caso do comércio eletrônico, e ampliando regras relacionadas ao combate à corrupção, ao meio ambiente e a questões laborais21.
Outro importante ACL inter-regional é o Tratado de Parceria do Pacífico (TPP), negociado entre alguns países da Ásia (Brunei, Cingapura, Japão, Malásia e Vietnã), da Oceania (Austrália e Nova Zelândia), da América do Norte (Canadá, Estados Unidos e México) e da América do Sul (Chile e Peru)22. Trata-se de um grupo bem diversificado no contexto geográfico e político, bem como no âmbito do desenvolvimento econômico. O consenso foi alcançado em 4 de outubro de 2015, após sete anos de negociações, sendo considerado como um acordo "megarregional"23, com o objetivo de aumentar a competitividade, promover o desenvolvimento econômico e tecnológico das partes, reduzir a pobreza, melhorando os padrões de vida e a proteção ambiental, bem como garantir a transparência e a conformidade, através da boa governança24. Em 23 de janeiro de 2017, sob o governo de Donald Trump, os Estados Unidos da América deixaram o TPP25.
Diversos outros acordos inter-regionais têm sido estabelecidos no âmbito da UE, alguns já em vigor e outros em fase de negociação. No âmbito da América Latina, a UE, estrategicamente, vem estabelecendo alianças de cooperação com diversos grupos regionais, como no caso do acordo com a América Central, de 2013, e com Colômbia-Peru, firmado em 2013, ingressando o Equador em 201726.
Com relação ao Mercosul, as relações comerciais e políticas com o bloco europeu remontam ao início dos anos 1960, quando, no âmbito da Comunidade Económica Europeia (CEE) e da América Latina (AL), iniciaram-se os diálogos sobre comercio e cooperação econômica entre as duas regiões27. A CEE basicamente objetivava aumentar suas exportações e investimentos, bem como garantir matéria-prima e a AL buscava diversificar seus parceiros comerciais28. No entanto, diante do ambiente interno de estruturação, relacionado à integração econômica europeia e à entrada de novos membros no bloco, bem como do cenário político vivenciado no período, principalmente por questões relacionadas à fragilidade democrática na AL, a aproximação comercial não obteve grandes avanços29.
O processo de globalização econômica e a mudança do cenário político, voltado à democratização dos países latino-americanos30, proporcionaram a alteração do modelo de desenvolvimento, permitindo a ampliação das perspectivas de negociações comerciais transfronteiriças31. Torna-se importante ressaltar que esse novo contexto não representa a perda da soberania estatal, mas a necessidade de adaptação da forma como o poder é exercido32, o que a torna um conceito relativo33, influenciado pelo desenvolvimento econômico, social, tecnológico e informacional34.
A mudança no cenário desperta o interesse na aproximação e melhoria das relações comerciais entre a CEE e a América Latina, assim como da política externa que vinha sendo desenvolvida até então, permitindo a concretização dos denominados "acordos de segunda geração"35, que, além do comércio, previam a cooperação para o desenvolvimento. Nessa perspectiva, a partir dos anos 1990, são reforçados os movimentos com o Cone Sul por alianças comerciais, com fins de ampliar o acesso aos mercados e serviços, garantindo maior inserção da UE na região36 e, consequentemente, melhorando sua competitividade global37.
A competitividade pode ser considerada um importante impulso ao interesse de aproximação comercial entre a então UE, pós Tratado de Maastricht (1992)38, e o Mercosul, principalmente porque alianças vinham sendo construídas para fomentar o livre-comércio entre outros países e regiões, como no caso da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), proposta pelos Estados Unidos da América, em 1994, estabelecendo uma área de influência destes na América Latina39. O Mercosul se torna então um "eixo estratégico de política externa"40, que possibilita o estreitamento e fortalecimento das relações comerciais com a UE, considerando que, em 1992, ou seja, um ano após a criação do Mercosul, os dois blocos já assinavam um acordo de cooperação técnica41.
Uma proposta de cooperação para o livre-comércio
O interesse na aproximação comercial entre a UE e o Mercosul continuou a crescer e em 22 de dezembro de 1994, dois anos depois do Acordo de Cooperação Técnica, foi publicada a Declaração Conjunta do Conselho Europeu, da Comissão Europeia e dos Estados-Membros do Mercosul. Tratava-se de uma proposta para a construção de uma associação inter-regional. O objetivo central foi facilitar o diálogo político, de forma a garantir uma aliança capaz de criar, gradualmente, uma área de comércio livre entre as duas regiões42.
A proposta foi estratégica para os dois lados, considerando que Mercosul é reputado como o bloco econômico mais relevante da América Latina, por extensão territorial, que chega a 14.869.775 km2. A população atualmente está em 295.007.000 milhões de habitantes e o PIB de 2,79 trilhões de dólares, alcançando 76% do PIB de toda a América do Sul. O Mercosul representa atualmente a 5a maior economia do mundo43. A UE, por sua vez, é responsável por 20% do PIB global44, sendo considerada como uma "potência comercial do mundo"45.
As duas regiões possuem grande importância na economia global. Os interesses se fundamentam em questões geopolíticas e econômicas46. A parceria vislumbra uma associação que gera uma dimensão fortalecida no cenário global para os dois blocos, reforçando as cadeias de valor, através da melhoria nas negociações comerciais47. A parceria da UE com o Mercosul é estratégica também para enfrentamento conjunto de assuntos que demandam ações multilaterais, considerando que a UE exerce um importante poder de influência internacional48, fator que contribui para o fortalecimento da governança global das temáticas comuns discutidas no contexto das Nações Unidas (ONU), como no caso dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), considerando, sobretudo, o contexto global de enfraquecimento do multilateralismo nos últimos anos49 e o comprometimento do Mercosul, desde a sua formação, com os princípios democráticos defendidos pela UE50.
O primeiro passo dado, no sentido de formalização do Acordo, foi em dezembro de 1995, com a assinatura do Acordo-Quadro de Cooperação Econômica e Comercial, considerado como uma preparação para a obtenção das condições necessárias para uma futura associação comercial da UE com o Mercosul51.
As negociações do acordo e suas suspensões
Em 21 de junho de 1999, aconteceu a primeira Cimeira no Rio de Janeiro, quando ficou determinado o início das negociações para a efetivação do acordo inter-regional52. No mesmo ano, em 1 de julho, foi aprovada a Declaração Conjunta Mercosul-UE, estabelecendo o mês de novembro como um marco para o início das negociações. Contudo, não ficou definido um prazo para a conclusão do Acordo, considerando, sobretudo, que o processo de abertura comercial ocorreria de forma progressiva53.
O Acordo é sustentado por três pilares: "diálogo político, cooperação e livre-comércio"54, com a proposta de melhorar as relações institucionais e a segurança, reduzir gradualmente barreiras tarifárias e não tarifárias, fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico, investir em formação educacional, cultural e na modernização de transportes e energia, propriedade intelectual, concorrência e desenvolvimento sustentável55. Na linha do tempo, apresentada na Figura 1, demonstra-se o histórico do acordo, que iniciou oficialmente sua primeira rodada de negociações em 200056. Contudo, o processo sofreu várias paralisações, em razão de impasses relacionados a questões importantes.
Nova paralisação, pós-fechamento das negociações em 2019
Apesar do anúncio do fim das negociações, importantes questões ainda impedem seu desfecho, deixando pontos de discussão mais sensíveis em aberto, como no caso da concorrência entre os dois blocos sobre as exportações de produtos agrícolas, sobre a propriedade intelectual e sobre a lisura e equidade nas compras públicas, além da temática ambiental, acerca da qual os países europeus buscam mais garantias, com relação ao cumprimento das metas e compromissos relacionados às questões climáticas57. Além disso, há a preocupação de que o Acordo garanta os direitos humanos, através da responsabilidade social das empresas e do comércio, bem como o respeito aos direitos trabalhistas58.
Logo após o anúncio do fim das negociações do Acordo UE-Mercosul, o mundo foi surpreendido com uma crise sanitária, decorrente da pandemia da covid-19. A UE enfrentou, ainda no auge dessa pandemia, a saída do Reino Unido do bloco, que ocorreu em 31 de janeiro de 2020. O Brexit59 foi um processo longo de negociações, que demandou a atenção do bloco europeu e que gerou grandes impactos políticos e financeiros para a UE60.
Somado à crise epidemiológica global, em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia iniciou um conflito contra a Ucrânia, fato que, além dos efeitos geopolíticos61, contribuiu para a alteração do cenário das relações externas, modificando as prioridades dos países, que passaram a focar em soluções para o enfrentamento das crises, no aumento da resiliência interna e na redução da dependência de outros países, como no caso da energia proveniente da Rússia para a UE62.
Outro fator que contribuiu para a paralisação das negociações foi a falta de consenso entre os países do Mercosul63. Divergências políticas e tensões sobre temas específicos também surgiram como obstáculos ao Acordo. Alguns países da UE, como França e Áustria, posicionaram-se contra a sua ratificação. A principal resistência foi com relação às preocupações ambientais e climáticas, associadas ao desmatamento da Amazônia, bem como as relacionadas à proteção dos direitos humanos na região64.
No lado do Brasil, o presidente à época, Jair Messias Bolsonaro, declarou que o Acordo poderia acarretar impacto negativo sobre a indústria automobilística e sobre a agricultura brasileiras. Um outro ponto foi o próprio enfraquecimento institucional do Mercosul, que já vem ocorrendo por algumas décadas, mas que se intensificou durante o governo de Bolsonaro, justamente pelas políticas externas adotadas pelo Brasil nesse período65.
Estado da arte e novas perspectivas sobre a conclusão do acordo
Com os efeitos do enfrentamento da covid-19, a economia mundial tem passado por forte desaceleração. A inflação global foi de 7,5% em agosto de 2022, contra a média de 2,1% na década que antecedeu à pandemia66. Muitos países apresentaram crescimento econômico negativo em 202067. O Gráfico 1 apresenta a projeção de crescimento com tendência de queda, em comparação com 2021.
Com a redução das contaminações pelo coronavírus, a economia iniciou um processo tímido de recuperação69. Claro que essa recuperação dependeu e depende ainda de muitos aspectos que variam entre países e regiões. Alguns desses fatores são o próprio recrudescimento da contaminação em algumas regiões, em razão do surgimento de novas cepas do vírus, a resposta econômica e fiscal oferecida no enfrentamento da crise sanitária70, a população atingida e seu empobrecimento71, o nível de desenvolvimento social e econômico e fatores externos, como no caso da guerra na Ucrânia e o contexto econômico na China72. A projeção de crescimento é tímida, em relação a 2023, com índices de inflação ainda altos, conforme demonstra o Gráfico 2.
Considerando o cenário atual de instabilidade econômica, o foco se mostra ainda na solução de questões internas, como a adoção de políticas econômicas e monetárias eficientes e sustentáveis74. Contudo, também há a retomada das atenções para as relações externas, sopesando que as crises são oportunidades de reformulação das políticas adotadas75.
Especificamente no âmbito do Mercosul, a partir de outubro de 2022, aconteceu uma importante mudança no cenário político. O Brasil realizou eleições presidenciais, elegendo Luiz Inácio Lula da Silva. Nesse contexto, surgiu a expectativa de alteração do contexto das relações externas, que vinham sendo praticadas pelo governo anterior, considerando que o presidente Lula já governou o Brasil em outros dois mandatos e conseguiu eleger sua sucessora, Dilma Rousseff, que possuía política similar e, em princípio, partilhava das políticas sociais, ambientais e externas dos governos Lula76.
Durante seus governos, o presidente Lula sempre adotou a estratégia do diálogo, acreditando e fortalecendo as negociações multilaterais77. Além disso, ele é um grande apoiador do Mercosul e do Acordo UE-Mercosul, o que abre uma perspectiva de mudança no cenário das negociações tanto no bloco sul-americano quanto no âmbito da UE, bem como fortalece o multilateralismo em um "efeito cascata"78.
Desde que tomou posse, Lula tem adotado uma política externa mais pragmática, deixando claro que as prioridades do seu governo são as áreas social e ambiental, e o fortalecimento das relações multilaterais79. Um dos seus primeiros atos nesse sentido foi retomar o diálogo com os países integrantes do Mercosul, buscando fortalecer o bloco e enfatizando que a prioridade seria concluir de vez o Acordo com a UE80.
O comprometimento efetivo dos países do Mercosul com a agenda ambiental global, em especial a relacionada com as questões climáticas, pode contribuir decisivamente para a conclusão do Acordo. Em novembro de 2025, o Brasil sediará a COP 30 (Acordo de Paris+10)81, o que demonstra grande mudança na política ambiental do país, considerando que o presidente à época, Michel Temer, se recusou em sediar a Conferência Climática da ONU de 2019 (COP-25), que acabou ocorrendo em Madri. O Brasil apresentou como justificativa que a Conferência traria custos elevados ao país, mas já ficava claro que a desistência havia sido influenciada pela pressão de Jair Bolsonaro, que assumiria a gestão em 201982.
Essa posição do novo governo Lula, notadamente mais voltada ao diálogo e à defesa das questões sociais e ambientais, torna-se um elemento positivo para a conclusão do Acordo, que, por sua vez, pode ser um instrumento de benefício para agendas socioambientais importantes, como no caso dos ODS, fortalecendo ações multilaterais e contribuindo para a harmonização e implementação efetiva dos objetivos e metas propostos a respeito do capital natural comum83.
Embora haja uma perspectiva positiva para a efetiva conclusão do Acordo ainda em 2023, Lula alertou, durante uma conferência para a imprensa na Cimeira UE-Co-munidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, realizada em 17 e 18 de julho de 2023, em Bruxelas, que o Acordo deve refletir uma parceria igualitária e sem protecionismo84. Lula reforçou ainda que, da mesma forma que a França protege sua produção agrícola e comercial, os países do Mercosul também defendem os seus produtos, e afirmou que, para que o Acordo se concretize, concessões serão necessárias. Por fim, o presidente do Brasil deixou claro que não concorda com a carta adicional (side letter) emitida pela UE, após a finalização das negociações do Acordo. A referida carta é considerada por Lula como uma "ameaça"85, ponderando ser "inadmissível" que parceiros estratégicos construam negociações com base em desconfiança e sanções86.
Outra preocupação tem sido o novo cenário político da Argentina, em razão das eleições ocorridas em outubro e novembro de 2023, que elegeram Javier Gerardo Milei como presidente. Um governo de extrema direita ou "nova direita"87, em um país-membro do Mercosul, pode ocasionar diversos impactos para o Bloco, bem como para o Acordo a ser firmado com a UE, considerando, sobretudo, que as posições anunciadas por Milei, franco apoiador de Trump e aliado de Bolsonaro, são negacionistas quanto às questões ambientais e climáticas88. Além disso, ele defende a liberalização do uso de armas e a militarização das prisões e se diz favorável a políticas que diminuam os direitos dos trabalhadores, em troca de benefícios às empresas89. Milei também declarou publicamente que não se relaciona com Lula, porque o considera socialista90 e que colocaria a Argentina fora do Mercosul91.
Esse panorama pode fazer com que as negociações sobre o Acordo retrocedam ao patamar existente no anterior governo brasileiro, considerando que algumas pautas defendidas pelo atual presidente argentino contrariam as políticas socioambientais propostas no âmbito da UE e no próprio Acordo UE-Mercosul. O atual ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad, inclusive considerou que a conclusão do pacto antes das eleições teria sido um antídoto contra decisões políticas de Milei, que possam afetar o comércio na região, as relações com a UE e o próprio Acordo UE-Mercosul92.
Outro fator que também pode dificultar a concretização do Acordo é a mudança política ocorrida em Portugal, em 2024. O país, que tem sido considerado um grande defensor do pacto no âmbito da UE, atuando fortemente ao lado do atual governo do Brasil, no sentido de contribuir para o encerramento das questões e impasses para a obtenção do consenso93, pode ver alterada essa dinâmica com a vitória do partido de centro-direita e com a ascensão da extrema-direita no parlamento94.
Embora governos de centro-direita tendam a apoiar o livre-comércio, a crescente influência da extrema-direita, que geralmente adota uma postura protecionista, negacionista e nacionalista95, pode levar a concessões políticas que dificultem o avanço das negociações. Pressões por políticas protecionistas para proteger a agricultura e as indústrias portuguesas, por exemplo, representam um obstáculo que pode surgir para o Acordo. Assim, considerando que a governabilidade do atual governo de centro-direita pode ser comprometida pela necessidade de atender às demandas da extrema-direita, o atual governo de Portugal pode adotar uma postura mais cética com relação ao acordo UE-Mercosul, terminando por afastar Portugal de sua posição proativa nas negociações. Além disso, a nova configuração política portuguesa pode introduzir barreiras significativas à conclusão do acordo, somando esforços com outros países em sentido contrário à ratificação do pacto, situação que acaba refletindo a complexidade das negociações internacionais influenciadas por dinâmicas políticas internas.
Conclusões
A finalização do Acordo UE-Mercosul está ainda sem definição. O processo todo leva mais de 20 anos, apesar da declaração sobre a conclusão das negociações realizada em 2019. Questões relevantes permanecem em discussão, como as preocupações acerca do meio ambiente, principalmente no que se refere às políticas ambientais do Brasil e ao desmatamento da Amazônia.
Diante da análise realizada, sobre a origem e o histórico das negociações do Acordo, bem como da sua potencialidade para os dois blocos econômicos e para a governança global dos temas socioambientais, percebe-se um contexto de melhoria nas expectativas sobre a aprovação do Acordo, considerando, sobretudo, a recente mudança no contexto político do Brasil e as diversas forças que têm sido realizadas no sentido de promover a sua conclusão definitiva. Contudo, torna-se importante considerar que as negociações são permeadas por influências políticas e cenários dinâmicos que podem inviabilizar o consenso pretendido, como no caso da falta de unidade no âmbito do Mercosul e das recentes mudanças no contexto político da Argentina e de Portugal. Notadamente, a fragmentação política e a crescente polarização tornam a implementação de políticas comerciais consistentes mais difícil, exigindo um esforço diplomático considerável para harmonizar interesses divergentes e alcançar um consenso que beneficie todas as partes envolvidas.
Portanto, apesar de bem encaminhado o Acordo, sua efetiva conclusão e aprovação dependerá de uma série de fatores políticos, econômicos e ambientais, que têm sido negociados em busca de se alcançar consenso sobre temas controvertidos, como agricultura, protecionismo, investimentos e mudanças climáticas. Além disso, há importantes questões relacionadas à aplicação e efetividade dos compromissos assumidos no âmbito do Acordo a ser firmado, que é um ponto relevante para futuras discussões, em especial aquelas sobre os possíveis reflexos da política verde europeia e de como essa questão complexa será solucionada, de forma a garantir a coerência das práticas socioambientais adotadas pelas duas regiões no campo do livre-comércio inter-regional a ser estabelecido entre a UE e o Mercosul.