INTRODUÇÃO
A depressão apresenta elevado impacto social e econômico à sociedade moderna [1,2]. Sua prevalência cresceu 18,4% entre 2005 e 2015 e é a terceira causa global de incapacidade [3]. Dentre as estratégias para o enfrentamento da enfermidade, o tratamento farmacológico é o mais utilizado [4,5 ], especialmente com uso de antidepressivos (AD). Os AD são uma das classes de medicamentos que mais cresce em prescrição no mundo, principalmente nos países de alta renda [6-8]. Sua indicação é diminuir os sintomas depressivos e melhorar a qualidade de vida [9] na depressão maior, mas sua prescrição para o tratamento da ansiedade e transtornos de dor também é bastante frequente [6].
A eficácia dos AD sobre os sintomas da depressão veio sendo discutida ao longo da última década, pois aproximadamente 50% dos pacientes tratados com AD não alcançam uma adequada resposta [10,11] e seu efeito sobre sintomas depressivos leves não se mostra melhor que o observado com placebo [12]. Entretanto, estudos recentes demonstram haver consenso de que há efeito dos AD sobre sintomas depressivos e de ansiedade na depressão maior quando comparados ao uso de placebo [4, 13], efeito esse que é proporcionalmente semelhante ao observado para outros medicamentos de uso geral no tratamento das suas indicações [14].
O efeito dos AD na qualidade de vida percebida por seus usuários ainda continua controverso, apontando tanto melhora na qualidade de vida [4, 15, 16] quanto resultados negativos sobre a sua percepção entre os usuários de AD [17, 18]. Avaliações sobre desfechos relacionados à qualidade de vida tem ficado em segundo plano nos ensaios clínicos para depressão e os estudos existentes carecem de metodologias mais consistentes [4,17-19], o que tem dificultado o entendimento do papel dos AD na qualidade de vida dos pacientes.
Uma maneira simples e eficaz de medir a qualidade de vida percebida pelos usuários de medicamentos é a autopercepção de saúde (APS) ou Self-rated health [20, 21] , a qual consegue ser um bom indicador preditor de morbimortalidade e que traz a sensação do paciente sobre sua saúde [22]. A APS é também um bom preditor do uso futuro de medicamentos e está relacionada a maior incidência de doenças psiquiátricas quando negativa [23, 24].
Diante dos pressupostos apresentados, o objetivo deste trabalho foi verificar relação entre o uso de antidepressivos e a autopercepção de saúde em população de 40 anos ou mais em município de médio porte.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo longitudinal, de base populacional, o qual seguiu as recomendações do Strobe [25] para o relato de estudos observacionais.
O estudo foi realizado com população urbana adulta de 40 anos ou mais integrante do estudo Vigicardio-Doenças Cardiovasculares no Paraná, o qual buscou mapear a mortalidade, perfil de risco, terapia medicamentosa e complicações dos agravos cardiovasculares em residentes do município de Cambé, região metropolitana de Londrina, norte do Paraná, Brasil. O projeto teve apoio do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e da Secretaria de Saúde do Município de Cambé [26]. O Vigicardio foi desenvolvido em dois momentos: a primeira fase em 2011 (baseline) e a segunda fase em 2015 follow-up) e os dados, nos dois momentos, foram obtidos por meio de entrevistas domiciliares, além da aferição de parâmetros fisiológicos e coleta sanguínea para exames laboratoriais.
A amostra foi definida com margem de erro de 3%, intervalo confiança de 95%, prevalência do desfecho de 50% (considerada a que permite o maior tamanho amostral), calculada com uso do software StatCalc, do programa Epi Info 3.5.3, considerando a população de 40 anos ou mais em 2007 segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (última contagem disponível previamente à coleta de dados de 2011). A população do município em 2007 era de 92 888 habitantes, com 30 710 com 40 anos ou mais.
A partir destas informações, a amostra calculada foi em 1066 e, com adição de possíveis perdas (25%), de 1332 pessoas. Foram incluídos na pesquisa todos os setores censitários da área urbana do município. O número de pesquisados em cada setor foi definido de acordo com a distribuição proporcional dos residentes por sexo e faixa etária, constituindo uma amostra final, após arredondamentos, de 1339 pessoas. Detalhes do processo amostral e coleta de dados são encontrados em Souza et al. (2013) [26].
Em 2015 todos os participantes de 2011 foram procurados para participar do seguimento do estudo, com o agendamento da nova entrevista, por meio de contato telefônico ou visita à residência, quando necessário.
Os instrumentos de coleta utilizados em 2011 e 2015 foram compostos por 136 e 180 questões respectivamente. O tempo médio de duração da entrevista foi de 30 e 40 minutos em 2011 e 2015, respectivamente. Para a obtenção de informações sobre o uso de medicamentos, bem como a identificação deles, foi solicitado que entrevistado apresentasse a prescrição médica ou a embalagem primária ou secundária ou a bula do medicamento em uso.
A variável dependente foi a autopercepção de saúde em 2015, obtida por meio da pergunta: "Como o(a) senhor(a) classifica seu estado de saúde?", a qual permitia as respostas "muito bom; bom; regular; ruim; muito ruim". Essas respostas foram usadas na construção das categorias APP (autopercepção positiva), que incluiu as classificações "muito bom" e "bom", e APN (autopercepção negativa), que incluiu as respostas "regular", "ruim" e "muito ruim".
A variável independente foi o uso de antidepressivos (AD). A identificação da classe de antidepressivos foi realizada por meio da classificação Anatomical Therapeutic Chemical da Organização Mundial de Saúde [27]. Todos os medicamentos classificados como N06A (terceiro nível-subgrupo terapêutico/farmacológico) foram considerados AD. O uso de AD foi classificado em quatro categorias: "usavam somente em 2011", "usavam somente em 2015", "usavam em 2011 e 2015" e "não usavam".
As variáveis de ajuste foram: sociodemográficas (sexo-feminino, masculino; idade -contínua; escolaridade (anos de estudo), 8 anos ou menos, mais de 8 anos; e situação conjugal, com companheiro somente em 2011 , com companheiro apenas em 2015, com companheiro em 2011 e 2015, sem companheiro em 2011 e 2015); condições de saúde (hipertensão arterial: sim, não; diabetes mellitus: sim, não; atividade física no lazer, apenas em 2011, apenas em 2015, em 2011 e 2015, inativo; e depressão: sim, não). Para as variáveis sexo, idade e escolaridade foram utilizados os dados de 2011 (baseline). Para a hipertensão arterial, diabetes mellitus e depressão foram considerados os dados de 2015 (follow-up).
Na atividade física os pesquisados se declaravam ativos ou inativos no tempo livre baseados na pergunta "Em uma semana normal (típica), o(a) Sr.(a) faz algum tipo de atividade física no seu tempo livre?". Para este estudo não foi considerada a frequência, intensidade ou duração da atividade física.
Para a hipertensão arterial foram realizadas medidas respeitando-se o intervalo de tempo e os passos preconizados nas VI Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial [28]. Nesse procedimento, foi utilizado o monitor de pressão arterial automático Omron HEM-742INT, devidamente calibrado. Foram considerados hipertensos àqueles com média aritmética simples da segunda e terceira medida ≥140 mm Hg para a pressão sistólica e/ou ≥90 mm Hg para pressão diastólica e/ou uso de medicamento anti-hipertensivo.
A presença de diabetes mellitus foi classificada como "sim" para os entrevistados com glicemia de jejum ≥126 mg/dL ou uso de medicamento para diabetes mellitus. O material (sangue) foi coletado por agendamento após a entrevista domiciliar e os exames realizados pelo Laboratório de Análises Clínicas do Hospital Universitário de Londrina. A quantificação bioquímica da glicemia foi realizada por equipamento Dimension®, Newark, NJ, EUA, usando kits Siemens, com uso do método da hexoquinase.
Indivíduos que referiram o diagnóstico médico de depressão em 2015 foram considerados "sim" para a variável.
Os dados coletados em 2011 e parte dos coletados em 2015 foram duplamente digitados no programa Epi Info 3.5.3. e posteriormente comparados, com correção das discrepâncias. A outra parte dos dados de 2015 foi coletada em formulário eletrônico do ODK Collect (Open Data Kit) e concomitantemente enviado pela internet para armazenamento no servidor ONA (https://ona.io/vigicardio) e depois exportados para banco de dados do programa Microsoft Office Excel®, não necessitando de transcrição. Após a construção do banco final (2011 e 2015), estes foram analisados com o uso do programa Statistical Package for the Social Sciences" (SPSS) versão 19.0.
Para a análise da relação entre uso de AD e Autopercepção da Saúde, incialmente foram realizadas análises univariadas (não-ajustadas), considerando como categoria de referência o não uso de AD em 2011 e 2015 e a APP da saúde. Em seguida, foram construídos modelos ajustados com as variáveis separadas em três grupos (modelo 1: sexo, idade -contínua, escolaridade e situação conjugal); modelo 2 (variáveis do modelo 1, mais hipertensão arterial, diabetes mellitus e atividade física); modelo 3 (variáveis do modelo 2, mais depressão). Para a análise desta relação foi utilizada a regressão de Poisson com variância robusta, com cálculo da razão de prevalência (RP) como medida de associação. O nível de significância estatística estabelecido neste estudo foi de 5% (p<0,05).
O projeto Vigicardio foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina, no baseline (2011) com CAAE 0192.0.268.000, e nofollow up (2015) com CAAE 39595614.4.0000.5231.
RESULTADOS
Dos 1180 entrevistados em 2011, houve 295 perdas para 2015 (108 mudanças de endereço, 87 recusas, 51 óbitos e 49 não foram encontrados após 3 tentativas de contato em dias e horários alternados), fazendo parte deste estudo 885 pessoas (figura 1).
A maioria era de mulheres, idade média de 54,2 anos (desvio padrão= 9,8 anos), mínimo de 40 e máximo de 89 anos, com menos de 8 anos de estudo, referindo ter companheiro em 2011 e 2015, inativos fisicamente no tempo livre e sem hipertensão arterial, diabetes mellitus ou depressão (tabela 1).
A prevalência de APN foi de 44,9% dos entrevistados e do uso de AD foi de 17,6% (2015). A incidência no uso de AD entre 2011 e 2015 foi de 9,9%. Os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) foram os principais AD utilizados (61,4%), com destaque para fluoxetina, que representou 36,4% do total dos ISRS, seguidos pela paroxetina (9,1%) e sertralina (9,1%). A segunda classe mais utilizada foram os antidepressivos tricíclicos (25,0%) e seu representante mais utilizado foi a amitriptilina (22,7%).
A maior prevalência de APN da saúde foi encontrada entre os indivíduos do sexo feminino (p<0,001), que referiram 8 anos ou menos de estudo (p<0,001), com hipertensão arterial (p<0,001), diabetes mellitus (p<0,001) e depressão (p<0,001). Também se verificou maior frequência de APN entre aqueles inativos fisicamente no tempo livre em 2011 (tabela 1).
Em relação à uso de AD, a APN da saúde foi maior nos indivíduos que utilizavam apenas em 2015 e em 2011 e 2015 em toda amostra analisada. Entre as mulheres, verificou-se maior APN para uso de AD em 2015 e em 2011 e 2015. Entretanto, não houve diferenças quanto a APN e o uso de AD nos indivíduos do sexo masculino (tabela 2).
RP = razão de prevalência; IC = intervalo de confiança. modelo 1: ajustado por sexo, idade, escolaridade e situação conjugal.
Modelo 2: ajustado por variáveis do modelo 1 + hipertensão, diabetes e atividade física. Modelo 3: ajustado por variáveis do modelo 2 + depressão.
Os modelos 1, 2 e 3 para feminino e masculino não foram ajustados pela variável sexo.
*p<0,05; **p<0,01; ***p<0,001.
Na análise ajustada (tabela 2), o uso de AD apenas em 2015 permaneceu associado à APN da saúde em todos os modelos de análise, considerando toda população estudada. O uso em 2011 e 2015 perdeu significância estatística nos modelos 2 e 3. No sexo feminino o uso de AD em 2011 e 2015 deixou de ser significativo nos modelos 2 e 3 e o uso somente em 2015 deixou de ser significativo no modelo 3, com a adição da variável depressão. Entre os homens não houve associação do uso de AD com a APN em qualquer modelo de análise.
DISCUSSÃO
No presente estudo o uso de antidepressivos influenciou a percepção de saúde para o grupo que estava em uso somente em 2015 na população geral e esteve relacionado à APN, demonstrando uma pior percepção da saúde neste grupo. A prevalência de APN encontrada neste estudo é semelhante à observada em outros estudos no Brasil para população geral [29] e idosos [30, 31].
Melhoras dos sintomas depressivos com moderadas mudanças positivas na percepção da qualidade de vida têm sido relacionadas ao uso de AD para os pacientes que respondem ao tratamento [4, 15, 16, 32, 33], principalmente quando o uso de AD está associado à Terapia Cognitiva Comportamental (TCC) [4] . Para àqueles que não respondem ao tratamento, há, além da piora dos sintomas depressivos, frustação com o tratamento e prescritor, comprometimento das relações sociais (familiares e trabalho), maior risco de mortalidade e piora na percepção sobre a vida [17, 18, 34].
A associação da APN com o uso de AD apenas em 2015 pode apontar para usuários com dificuldade de resposta adequada ao tratamento ou principalmente ao fato de o tratamento ainda estar em sua fase inicial. Destaca-se que a melhora dos sintomas depressivos ocorrem em até 6 a 8 semanas do início de uso dos AD [9].
As principais frustrações dos pacientes com o tratamento da depressão são o impacto negativo na qualidade de vida e os efeitos adversos ou falta de eficácia do tratamento [17]. Estudos recentes demonstram que mesmo diante da melhora dos sintomas da doença nem sempre há sensação de melhora da qualidade de vida percebida pelo paciente em tratamento [4,17-19].
A prevalência do uso de AD (17,6%) encontrada esteve acima do observado em população urbana adulta nos Estados Unidos da América (12%), Brasil (7,7%) e Holanda (9,3%) [7,35,36] e população idosa na Inglaterra (10,3%) [6]. Mas foi inferior ao encontrado em idosos em Ontário (26,8%), Taiwan (23,4%) [6] e em Arroio Trinta no Sul do Brasil, dos quais 20% usavam AD [37]. A incidência do uso de AD pela população estudada (9,9%) foi superior a estudo realizado em Quebec e Montreal (4,7% de incidência em 5 anos) [6], mas menor que observado na Itália, entre 2000 e 2011, período no qual o uso de AD quadruplicou [38] e em população idosa de Bambuí (MG), no período de 1997 a 2012, que registrou aumento de consumo de AD de 8,4% para 31,6% [39].
As diferenças observadas entre as incidências e prevalências podem estar relacionadas a faixa etária estudada, uma vez que idosos são os maiores usuários de AD [35, 36, 40] e a diferenças metodológicas. Somente Aarts et al. (2016) trabalhou com dados extraídos de uma coorte de adultos; os demais são um estudo transversal em amostra populacional no Brasil [37]; coortes de idosos no Canadá (Ontário, Montreal e Quebec), em Taiwan, na Inglaterra [6] e no Brasil [39] e avaliações realizadas em bases de dados de saúde e de medicamentos nos Estados Unidos [36] e Itália [38].
Fontes de dados oficiais de medicamentos, sejam de consumo ou de farmacovigilância, oferecem informações mais fidedignas quando comparadas a entrevistas, pelo volume de dados e sua representatividade, sendo que tal fato pode explicar os valores de prevalência mais altos que no presente estudo. No Brasil, somente a indústria farmacêutica possui informações sobre consumo de AD em massa, e estas não estão acessíveis [41]. Resultados inferiores podem estar relacionados a práticas prescritivas mais conservadoras, como na Inglaterra, ou mesmo quando liberais, como no caso de Quebec e Montreal, a uma prática prescritiva que respeita as diretrizes clínicas de começo e fim dos tratamentos [6].
Esse aumento nas prescrições de AD tem sido observado em países como o Reino Unido [42], a Holanda [43], os Estados Unidos [36] e o Brasil [39] e pode estar relacionado com o aumento da prevalência de depressão, a melhoria do diagnóstico de depressão pelo profissional prescritor, o uso prolongado de AD para evitar recaídas e a indicação dos AD para outras condições clínicas como ansiedade, distúrbios da dor, entre outras [43].
Este estudo não avaliou a opinião dos pacientes sobre o tratamento e nem resultados clínicos baseados no uso de AD, mas a não relação entre AD e APP da saúde e sua relação com APN em pacientes que iniciaram o uso durante o período estudado demonstra a necessidade de alternativas de tratamento que visem melhora de condições subjetivas relacionadas autopercepção de saúde dos pacientes.
Alguns aspectos metodológicos deste estudo devem ser destacados: não houve controle temporal do início do uso de AD e não foi possível identificar quais os motivos da sua utilização, o que pode dificultar a compreensão da relação entre AD e percepção da saúde. Porém, são raros os estudos longitudinais que avaliam esta temática, especialmente em população com 40 anos ou mais, além do Vigicardio constituir um estudo de base populacional. Além disso, este é o primeiro trabalho que relaciona diretamente o uso de AD e qualidade de vida por meio da autopercepção de saúde no Brasil.
A qualidade de vida por meio da autopercepção da saúde é importante proxy para indicar o tratamento da depressão bem sucedido, pois é um fator protetor contra futuros episódios depressivos e um melhor preditor de remissão da doença que a redução de sintomas [19]. Assim, seria importante que médicos e outros profissionais de saúde acompanhassem os tratamentos com AD não somente pela diminuição dos sintomas depressivos e de ansiedade, mas também pela autopercepção de saúde dos pacientes visando incluir tratamentos não farmacológicos ou mudanças de condutas, quando necessário, para diminuir os riscos futuros de recaídas e agravamentos dos quadros, como também aumentar a satisfação com o tratamento e a qualidade de vida o paciente.