INTRODUÇÃO
A indústria farmacêutica possui um amplo espectro de setores de atuação, em que o maior foco é prover saúde à comunidade. Dentre os setores, a farmácia magistral é uma opção favorável para o público, uma vez que os preços são acessíveis para uma grande parcela da população, assim como o processo de manipulação pode ser inserido dentro do conceito de uso racional de medicamentos, por exigir prescrições adequadas, dispensação correta com o consumo nas doses indicadas, havendo uma oferta de serviços a uma faixa de custo alcançável [1].
No entanto, as farmácias magistrais necessitam de um padrão de controle de qualidade alto, desta forma há uma prevenção e redução dos riscos, garantindo a segurança do produto final. Portanto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) N.° 67/2007, onde dispõe sobre as "boas práticas de manipulação de preparações magistrais e oficinais para uso humano em farmácias" [2].
Ao longo dos anos, o crescimento da indústria mostra-se evidente, voltada aos cuidados estéticos e à higiene pessoal. Com isto, a busca pela melhora do autocuidado estendeu-se às farmácias com manipulação, onde o cosmético pode ser manipulado de acordo com as preferências de cada indivíduo [3].
Dessa forma, é necessário prover a estabilidade para cada produto manipulado, seguindo as exigências listadas pela Anvisa, para que, quando comprovada a estabilidade, seja possível analisar o desempenho e eficácia do cosmético para dispensação [3].
A emulsão pode ser definida como um sistema de duas fases não imiscíveis entre si, uma fase dispersa dentro de uma fase contínua, em que através de um agente emulsionante será formado um sistema homogêneo e estável [4, 5]. A forma farmacêutica creme-gel se trata de uma emulsão com elevado percentual de água e percentual de óleo muito baixo [5].
Essa formulação cosmética se mostra uma opção interessante para o público de pele oleosa ou acneica, por se tratar de um veículo leve, não comedogênico, de rápida absorção e que promove uma sensação de toque seco na pele [6].
Dentre os ativos escolhidos para efetuar a manutenção da elasticidade da pele e exercer função hidratante, o ácido hialurônico (AH) é uma opção popular para ser associado a formulação, uma vez que o composto age na pele sendo responsável pela formação de novos capilares sanguíneos e fibroblastos, além de atuar na redução de linhas de expressão, principalmente aquelas formadas pela perda de água da pele [7].
O AH possui fórmula molecular (C14H21NO11)n e é um polímero natural não-ramificado pertencente ao grupo dos glicosaminoglicanos (GAGs) [8], este grupo possui uma estrutura química composta por unidades de dissacarídeos (N-acetil-D-glucosamina) e ácido glucurônico [7].
Este princípio ativo é uma molécula encontrada no corpo humano e possui um alto grau de ligação com moléculas de água presentes no organismo, podendo reter até 100 vezes o próprio peso molecular, o que resulta na formação de uma estrutura coesa capaz de preencher finas linhas de expressão e rugas. Outra característica apresentada pelo AH, é o efeito antioxidante que exerce sob a pele, atuando no sequestro de radicais livres e melhorando a proteção da pele contra radiação ultravioleta [9].
Portanto, o presente estudo tem como objetivo analisar a qualidade de creme-géis manipulados a base de AH de diferentes farmácias com manipulação da cidade de Campo Grande-MS, através de análises laboratoriais físico-químicas e de análise de rótulos.
MATERIAL E MÉTODOS
A quisição da amostra
Para a realização do controle de qualidade, foram adquiridos quatro creme-géis à base de ácido hialurônico 5% em abril de 2021 e a aquisição foi feita a caráter de consumidor. Todos os quatro eram provenientes de farmácias magistrais e foram identificados como A, B, C e D. As identificações foram feitas com o objetivo de não expor os fabricantes. As análises ocorreram durante o prazo de validade estabelecido nos rótulos dos produtos.
Equipamentos
O desenvolvimento do estudo envolveu a utilização dos seguintes equipamentos: balança analítica modelo AG200 Gehaka®; pHmetro de bancada pH Meter TEC-2 Tecnal®, centrífuga modelo Combate Celm®.
Controle de qualidade dos produtos
Os produtos foram analisados quanto a determinação das características organolépticas, pH, densidade, teste de centrífuga, espalhabilidade e análise de rótulos.
As análises foram realizadas conforme preconizado pelo Guia de controle de qualidade de produtos cosméticos [3], no entanto, o estudo da espalhabilidade se baseou em uma metodologia proposta por Muenzel et al. [10] com adaptações descritas por Ferreira-Silva et al. [11], uma vez que este teste não se encontra no guia.
Análise das características organolépticas
Para a realização da análise organoléptica, a amostra foi colocada em um vidro relógio e sua análise foi feita com o auxílio de uma lupa, verificou-se aspectos como aparência, cor e odor.
Determinação do pH
A solução foi preparada com 1g de amostra e 10 mL de água destilada, em seguida a determinação do pH foi feita por potenciometria utilizando o pHmetro de bancada.
Determinação da densidade
A determinação da densidade foi realizada em picnômetro e em quatro passos: primeiramente, o picnômetro vazio foi pesado e o seu peso foi anotado (M0); em seguida, preencheu-se o picnômetro com água purificada e pesado novamente, o peso foi anotado (M1); com a vidraria limpa e seca, o picnômetro foi preenchido uma última vez com a amostra, pesou-se e anotou-se o peso; por fim, as anotações foram empregadas no seguinte cálculo:
d = (M2 - M0) / (M1 - M0)
Onde:
d: densidade
M0: massa do picnômetro vazio, em gramas;
M1: massa do picnômetro com água purificada, em gramas;
M2: massa do picnômetro com a amostra, em gramas.
Teste de centrífuga
Para o teste de centrífuga, transferiu-se a amostra para um tubo tipo falcon, levou-se para a centrífuga durante 30 minutos a 3300 rpm, a fim de observar a ocorrência de separação de fases.
Teste de espalhabilidade
Empregou-se uma metodologia proposta por Muenzel et al. [10] com adaptações descritas por Ferreira-Silva et al. [11]. O teste de espalhabilidade foi realizado colocando-se 0,3 g da amostra sobre uma placa de vidro e cobriu-se a amostra com uma folha de acetato A4.
Em seguida, foi adicionado um peso padrão de 50 g sobre o acetato e aguardou-se 3 minutos, após esse tempo mediu-se os diâmetros do círculo com o auxílio de uma régua e calculou-se a sua média; este mesmo processo foi repetido utilizando pesos maiores de 150 g, 250 g e 350 g. Ao final, a espalhabilidade foi calculada pela fórmula:
Ei = di2 • π / 4
Onde:
Ei: espalhabilidade da amostra para o peso i (mm2);
di: diâmetro médio (mm).
Análise de rótulos
A análise foi feita com os rótulos dos produtos provenientes das farmácias com manipulação. Apesar das amostras se tratarem de produtos cosméticos, observou-se que as farmácias magistrais onde as aquisições foram feitas seguiram o padrão de rotulagem para preparações magistrais estabelecido pela RDC N.° 67/2007 [2] e, por isso, optou-se para que as análises fossem executadas seguindo a mesma resolução.
A fim de auxiliar o processo de avaliação, elaborou-se um check-list para verificar se os rótulos continham as informações necessárias preconizadas pela RDC N.° 67/2007 citada anteriormente.
RESULTADO E DISCUSSÃO
Todas as amostras possuíam como base da formulação o creme-gel, entretanto, não foi encontrado um produto industrializado nesta mesma base farmacêutica contendo ácido hialurônico a 5%, que preenchesse os requisitos para realizar uma análise de comparação com as amostras magistrais adquiridas.
O controle de qualidade foi iniciado pela avaliação das características organolépticas (figura 1), na qual observou-se que não constavam desvios de qualidade quanto aos aspectos organolépticos. Todas as amostras se apresentaram com aspecto homogêneo, em que não havia presença de grumos e textura consistente, coloração branca e opaca e odor característico da essência.
Em um estudo sobre controle de qualidade de um gel-creme antiacneico feito por Ferreira-Silva et al. [11], o resultado obtido foi satisfatório, no qual a amostra não possuía grumos, com uma boa homogeneidade, mantendo-se estável, comprovando a estabilidade dos creme-géis e se assemelhando ao resultado obtido no presente estudo.
A adição de algum tipo de fragrância à formulação é um fator de risco aos pacientes que possuem hipersensibilidade, uma vez que esses tipos de substâncias podem gerar reações alérgicas.
Em diversas áreas industriais o uso de fragrâncias é difundido com o intuito de fornecer um produto mais atrativo ao público, proporcionando uma maior aceitabilidade por conta do fator olfativo mais agradável, e a indústria cosmética não é isenta de utilizar tal prática [12].
Ao longo dos anos nota-se que os diferentes blends de essências podem conter ingredientes que acarretam irritações cutâneas ou alergias por contato; em primeiro instante, os indivíduos podem não experienciar tais efeitos colaterais, porém, é um fator que pode vir a ser desenvolvido de acordo com a exposição contínua [12].
De acordo com Oliveira de Melo e Maia-Campos [13], a pele possui um caráter levemente ácido por toda estrutura corporal, entre a faixa de 4,5-5,8, variando de acordo com a região, portanto a característica ácida possui uma função preventiva bactericida e fungicida. Com isto em consideração, o pH em formulações torna-se de suma importância, pois é um fator diretamente relacionado com a estabilidade do produto e com a compatibilidade fisiológica do tecido de aplicação [14].
Em produtos cosméticos, nos quais são utilizados como base creme-gel, deve-se ter como faixa de pH entre 6,0-7,0 [15]. No entanto, pode haver variação em relação aos valores, quando se utiliza um princípio ativo de natureza ácida à composição final, sendo o caso do ácido hialurônico, em que para obter melhor estabilidade é necessário estar entre 5,5-7,5 em cosméticos [16].
Desta forma, as análises de determinação do pH encontraram-se dentro do padrão, entre os valores estabelecidos de 5,5-7,5; e apresenta destaque para o exemplar C, que obteve um resultado bastante próximo ao valor máximo preconizado (tabela 1).
Características físico-químicas | Amostras | |||
---|---|---|---|---|
A | B | C | D | |
pH | 5,7 | 6,8 | 7,3 | 6,8 |
Densidade (g/cm3) | 0,98 | 0,92 | 0,94 | 0,97 |
Teste de centrífuga | N | N | N | N |
Legenda: N: normal; M: modificada.
Fonte: autoria própria.
A densidade de emulsões deve ficar dentro do espectro de 0,95-1,05 g/cm3, faixa esta estipulada de acordo com a média encontrada em outros estudos desenvolvidos sobre creme-géis, onde duas das amostras analisadas (B e C) não estavam dentro do padrão estipulado. Para isto, um dos fatores que pode interferir com a densidade do produto final é a incorporação de ar durante a manipulação, resultando na diminuição significativa dos valores da densidade [11].
O ensaio de centrifugação submete a amostra ao estresse e simula um aumento na força da gravidade, possui a finalidade de antecipar possíveis instabilidades do sistema que podem se apresentar na forma de separação de fases, como cremeação, floculação, coalescência e entre outros [3].
Após a execução do teste de centrífuga, nenhuma amostra deu sinais de instabilidade na formulação, não apresentando separação de fases e, portanto, mantiveram a sua integridade, como mostrado na figura 2.
Em seu trabalho intitulado Protocolo de para ensaios físico-químicos de estabilidade de fitocosméticos, Isaac et al. [17] realizaram o teste de centrifugação com dois sistemas emulsionados, água em óleo (A/O) e óleo em água (O/A), ao final do processo não houve relato de anormalidades e as amostras também permaneceram estáveis.
De acordo com Morais [18], a separação de fases é um sinal de instabilidade do sistema e pode ser percebida através de alterações de aparência, de consistência e na performance do produto; a separação de fase ocorre por diversos mecanismos como: cremeação, coalescência, floculação e sedimentação, além disso, podem levar a uma instabilidade química que será refletida na alteração do pH e na hidrólise de tensoativos da formulação, assim também como promover a contaminação microbiana.
Siqueira [19] encontrou instabilidades ao realizar o teste de centrifugação em suas amostras de emulsão cosmética cold cream. A autora relatou leve separação de fases em duas amostras, classificando-a como uma separação do tipo coalescência, além disso, outras duas amostras já haviam sido eliminadas anteriormente ao teste por apresentarem instabilidade e separação de fases, tornando-as impróprias para o uso.
A espalhabilidade está relacionada à aceitação do usuário, e se baseia na capacidade de expansão da formulação sobre o local de ação onde será aplicado [20]. Dessa forma, considera-se importante que um produto cosmético possua uma boa característica de espalhamento, uma vez que irá influenciar na percepção do usuário sobre o produto [11].
Conforme mostrado na figura 3, as amostras apresentaram resultado satisfatório no teste da espalhabilidade, uma vez que o valor de espalhabilidade aumentou à medida que pesos maiores eram adicionados. A amostra D teve maior destaque, se mostrando com maior capacidade de espalhabilidade do que as demais, enquanto a amostra B obteve o menor desempenho neste teste.
No teste de espalhabilidade do creme-gel antiacneico à base do óleo de copaíba desenvolvido por Ferreira-Silva et al. [11], os autores obtiveram resultados semelhantes, em que foi observado o aumento da espalhabilidade conforme o peso adicionado, concluindo-se que o creme-gel antiacneico apresentou uma boa espalhabilidade.
De acordo com Favero [21], a espalhabilidade é um parâmetro importante em cosméticos, pois influencia na sua eficácia e na aceitação do produto pelo consumidor. Um cosmético com baixa espalhabilidade pode se espalhar de forma irregular, o que irá afetar a dose aplicada, comprometendo a penetração do princípio ativo na pele; além disso, a percepção do público sobre o produto também poderá ficar comprometida e provocar um baixo índice de aceitação.
As amostras apresentaram rótulos que estavam de acordo, em sua maioria, com as normas impostas da RDC N.° 67/2007, como pode ser visto na tabela 2.
Informações previstas na legislação | Amostras | |||
---|---|---|---|---|
A | B | C | D | |
Nome do prescritor | + | + | + | + |
Nome do paciente | + | + | + | + |
N° de registro da formulação no livro de receituário | + | + | + | + |
Data da manipulação | + | + | + | + |
Prazo de validade | + | + | + | + |
Componentes da formulação | - | - | - | - |
Peso ou volume contido | + | + | + | + |
Modo de uso | + | + | + | + |
Identificação da farmácia (CNPJ e endereço) | + | + | + | + |
Nome do farmacêutico responsável | + | + | + | + |
CRF do farmacêutico responsável | + | + | + | + |
Legenda: (+) presente; (-) ausente.
Fonte: autoria própria.
Entretanto, nenhum dos rótulos continha os componentes da fórmula, o que também consta na resolução citada, tendo-se conhecimento somente do princípio ativo, o AH. A presença da lista de componentes de formulação se faz importante uma vez que veículos, conservantes, entre outros excipientes empregados à formulação, na forma de produto acabado podem desencadear uma reação alérgica ou sensibilizante [22].
Um estudo realizado em Bambuí-MG por Bento e Henriques [23], relacionado à avaliação de rótulos de cremes manipulados contendo ureia 10%, também observou a ausência de itens preconizados pela RDC N.° 67 de 2007 em seus rótulos, como componentes da formulação e suas respectivas quantidades, a posologia e advertências necessárias.
Em seu estudo relacionado a estabilidade de formulações (creme e gel) manipuladas contendo vitamina C a 5%, Santos et al. [24] encontraram divergências nos rótulos de suas amostras. Os autores escolheram dois estabelecimentos de Teresina-PI, os denominaram como F1 e F2 e os avaliaram, dentre eles, os rótulos das amostras provenientes da farmácia F1 não continham a advertência de armazenamento em geladeira, assim como não informaram o CNPJ da empresa e o seu endereço completo.
Os estudos citados mostram que farmácias magistrais de outras cidades também constataram a ausência de itens em seus rótulos, demonstrando que os estabelecimentos farmacêuticos com manipulação necessitam de um maior cuidado neste tópico. A rotulagem inadequada pode ter como consequência a ocorrência de efeitos indesejados decorrentes do uso inadequado do produto, assim também como entendimento equivocado da sua finalidade de uso e das condições de armazenamento.
CONCLUSÃO
O estudo apontou com clareza através de análises laboratoriais que os produtos finais adquiridos em farmácias magistrais da cidade de Campo Grande-MS demonstraram poucos desvios de qualidade.
A partir das análises foi possível identificar um rígido controle de qualidade das farmácias com manipulação em muitos aspectos, entretanto, mesmo assim faz-se necessário uma maior atenção no preparo das formulações e uma maior preocupação com o rótulo dos produtos, para prover o melhor produto possível para o público.
O desenvolvimento deste estudo também mostra que todos os ensaios realizados possuem uma boa aplicabilidade nas farmácias magistrais, uma vez que são testes simples e que requerem a utilização de poucos materiais, estes últimos bastantes presentes na rotina magistral.
Devido à falta de pesquisas que abordem o controle de qualidade de produtos cosméticos a base de ácido hialurônico, sugere-se que mais estudos sejam desenvolvidos acerca deste tema, a fim de enriquecer a busca de dados sobre a aplicação do AH em cosméticos destinados ao uso na face.