1. Introdução
A exclusão por motivos de gênero na tecnologia da informação e comunicação (TIC) é um fenômeno que passa despercebido em função da sua sutileza, afetando atividades em que dificilmente se imaginaria a existência de julgamentos e atribuições baseadas no sexo biológico e não, na aptidão ou vocação. Na ciência e na tecnologia, as comunidades acadêmicas, científicas e profissionais mantêm um regime sexista dissimulado, ainda que forte. Na tecnologia, a exclusão das mulheres é especialmente complexa pela ideia de “neutralidade” associada com estas atividades. Apesar de que nas TIC os avanços femininos são notórios, ainda existem condições que dificultam ou restringem o acesso e o aproveitamento destas tecnologias pelas mulheres, fenômeno que temos nomeado como Exclusão Digital de Gênero (EDG).
Uma das formas comuns de excluir as mulheres do panorama das TIC tem sido o negligenciamento persistente das suas conquistas históricas na computação (Light, 2013; Margolis & Fisher, 2003; Obama-White-House, 2018); outra é o desestímulo da sua participação nas áreas de formação básica e superior da Ciência da Computação e disciplinas correlatas, o campo nomeado em inglês como STEM (Science, Technology, Engineering, Mathematics) (Flores-Solano, 2016; Laboratoria, 2018; Rapkiewicz, 1998); no campo laboral, há exclusão em salários e posições hierárquicas (Ahuja, 2002; Guzmán-Acuña, 2013; Prescott & Bogg, 2011). Assim mesmo, a pesquisa sobre a EDG não é impulsionada, nem a articulação globalizada de grupos de discussão ao redor da problemática. Contudo, a EDG é uma área de trabalho forte na Espanha, Reino Unido, Canadá e EUA, mas na América Latina a produção é escassa, pouco citada e desarticulada (Berrío-Zapata, Marín-Arraíza, Ferreira-da-Silva & das-Chagas-Soares, 2017; Berrío-Zapata & Gonçalves Sant’Ana, 2017).
Este artigo resgata a problemática da EDG, apresentando um resumo articulado dos trabalhos mais importantes relativos a este domínio, com o alvo de criar um mapa mental que integre conceitualmente o fenômeno, para que sirva como plataforma de consulta e debate para aqueles interessados em pesquisar sobre TIC e gênero na América Latina, um tema central na Sociedade da Informação.
2. A Exclusão Digital e os Estudos de Gênero: introdução ao domínio
Para entender a EDG é necessário caracterizar a literatura que se localiza na interseção entre os domínios da exclusão digital e os estudos de gênero. Identificar este corpus de literatura foi o alvo da análise de Berrío-Zapata (2015) nos documentos mais citados sobre exclusão digital em três línguas: inglês, espanhol e português. O trabalho incluiu 810 documentos, 1.276 autores, 621 instituições, 25 áreas disciplinares e 74 países. O assunto da exclusão digital afetando às mulheres, aqui nomeado como EDG, foi identificado como uma das oito temáticas mais relevantes enquanto citação e produção, sob o assunto do “empoderamento”. No entanto, a produção de publicações assim como sua citação foi bem menor ao patamar dos outros temas identificados (1 % contra 13 % da área da Computação, inglês; 12 % contra 42 % no assunto de desenvolvimento, espanhol: 0 % em português).1 Os estudos se concentraram nos EUA, Canadá, UK e Espanha e os autores mais citados são todos de língua inglesa: Joel Cooper, do Departamento de Psicologia da Universidade de Princeton e Tracy Kennedy e Barry Wellman, do Departamento de Sociologia da Universidade de Toronto. Em espanhol, a autora mais citada foi Cecilia Castaño Collado, do Departamento de Economia Aplicada da Universidade Complutense.
As instituições mais produtivas foram: Michigan State University, Johns Hopkins University, University of Illinois, Temple University, University of Calabar, University of Alabama, National Cancer Institute, e University of Maryland, todas elas de língua inglesa. Na citação, a Universidade Complutense liderou na Espanha, enquanto em inglês, as universidades de Princeton, Toronto, Temple, Michigan State, Warwick e as Nações Unidas foram as mais citadas (Berrío-Zapata, 2015).
Em todo este panorama, o achado mais relevante foi encontrar que na América Latina não existia produção amplamente citada, a qual parecia incompatível com a promoção de uma Sociedade da Informação igualitária na região. Um estudo posterior (Berrío-Zapata et al., 2017) confirmou que a pesquisa sobre EDG na America Latina é escassa, de qualidade heterogênea e desarticulada. Não obstante os estudos sejam poucos, eles verificam os problemas já considerados na literatura mundial, como a exclusão na socialização tecnológica no lar e na educação básica e superior, assim como desigualdades nas condições de emprego no mercado laboral, problemas que serão tratados neste artigo.
A importância de articular os trabalhos feitos fora da América Latina e mapear seus conceitos mais relevantes radica em que, ainda sendo populações distintas, as observações recolhidas tem todo sentido quando aplicadas na nossa região, e se tornam insumos importantes para entender a situação de exclusão da mulher latina no que diz respeito às TIC.
3. O desencontro entre a Ciência da Computação e os Estudos de Gênero
A primeira razão para a persistência da EDG na informática parece ser um desencontro entre a Ciência da Computação e os Estudos de Gênero. Este desencontro nasce na associação da Ciência e a tecnologia com o masculino, o que cria pedagogias epistemologicamente excludentes com a mulher em ciências altamente tecnologizadas como a Computação (Kirk & Zander, 2002). Para Kirk e Zander, a “masculinização” da ciência se consolidou com a ideia de “domínio sobre a natureza”, ficando a natureza associada com o feminino. A tecnologia tornou-se a ferramenta necessária para disciplinar a “natureza-fêmea” e fazê-la funcionar na sua relação com o homem. A participação da mulher em atividades de ciência e tecnologia foi desacreditada, e as mulheres cientistas na Tecnologia Informática (TI) terminaram encarando estruturas semióticas masculinas que desvalorizaram a perspectiva feminina, instalando uma cultura machista de competição e depredação. Como resultado, temos um baixo número de mentoras na ciência da computação e na TI, e a permanente sensação de “dificuldade” por parte das estudantes mulheres, sempre reforçada pelos estereótipos sobre as “incapacidades naturais” da mulher.
Países como China, EUA, Alemanha, Reino Unido, Espanha, Itália e Irlanda, tiveram um declínio na porcentagem de mulheres ingressando na área de informática das universidades na década de 2000 (Gil-Juárez, Feliu & Vítores-González, 2010, 2012). Aparentemente, a EDG tinha sido enfraquecida pelo acréscimo do acesso feminino às TIC; mas detrás disso, as mulheres estão cada vez mais infrarrepresentadas nos setores de educação e nos empregos referentes à TI, e ausentes das suas altas hierarquias. Mesmo que a inclusão digital feminina “aumente em número”, em termos relativos continua sendo bem inferior à masculina (Enoch & Soker, 2006).
Nos estudos de usuários, a única atividade na qual as mulheres superam os homens em tempo de uso é na busca de informação médica na web, como insumo informacional para ser aplicado aos cuidados de familiares (Kennedy, Wellman & Klement, 2003). As mulheres tendem a usar a internet predominantemente como uma atividade de comunicação e interação, enquanto que os homens focam mais na busca de informação e na lúdica dos jogos online (Castaño-Collado, Fernández & Martinez-Cantos, 2011; Cotten, Anderson & Tufekci, 2009; Jackson, Ervin, Gardner & Schmitt, 2001; Kennedy et al., 2003). Estas tendências de uso não implicam a incapacidade feminina no domínio das TIC, e no entanto, essa conclusão terminou sendo implantada pelo discurso patriarcal. Kennedy et al. (2003) conclui que enquanto o mundotiver papéis de gênero excludentes, a Internet reproduzirá estes papéis.
A indústria das TIC não percebe a EDG como um problema relevante: nem na formação profissional ou de pesquisa, nem no plano laboral. Desse jeito a pesquisa neste quesito é considerada desnecessária e assim, se perpetua a naturalização do patriarcado tecnológico e seu vazamento nas arquiteturas informacionais dos produtos da indústria da TI. Predomina a percepção da tecnologia como uma atividade desprovida de interesses e valores. No entanto, sabemos que esta apreciação é inconsistente com os fatos, pois a tecnologia é um fenômeno social com capacidade para moldar e regular as percepções, rotinas e espaços humanos, com o qual se torna uma cultura (Lévy, 1999; Wajcman, 1996). O uso que se faz da tecnologia determina o desenvolvimento profissional e vital das pessoas. Cada vez que um sujeito “interage” com a TI está interagindo com o gênero, e assim fica reproduzindo um mundo onde as experiências tecnológicas foram historicamente monopolizadas por homens. As barreiras que atingem as mulheres no mundo físico são conduzidas ao mundo virtual, e ali espelham sua ação limitadora (Castaño-Collado, Fernández, Vásquez-Cupeiro & Martinez-Cantos, 2008).
Para explicar melhor esta situação, é necessário entender os fenômenos de difusão tecnológica e como eles imprimem uma trajetória histórica de exclusão em certos grupos sociais, questão que será discutida na continuação.
4. Difusão Tecnológica e a história da exclusão da mulher na TI
Da mesma forma em que um vírus se espalha com velocidades diferentes em uma comunidade, a tecnologia penetra de forma desigual nas sociedades devido a fatores históricos, econômicos, contextuais e individuais. A Teoria da Difusão Tecnológica (Rogers, 2003) estima que uma mínima quantidade de privilegiados, menos de três por cento, conseguem dominar as tecnologias mais novas no seu estágio de introdução. Um segundo grupo, mais numeroso, conseguirá usar essas tecnologias uma vez terminada sua fase de introdução; superada a fase de correção de erros e ajustes, a tecnologia já esta amadurecida para virar parte das rotinas deste coletivo. Contudo, a maioria da população ficará atrasada e distante da aplicação tecnológica intensiva, incapacitada de usufruir todos os benefícios dela. Os atrasados ficam limitados para evoluir adaptativamente no novo paradigma, seja pelo seu perfil econômico e educacional fraco, sua relutância à mudança, ou sua insegurança frente ao novo território tecnológico.
As condições de difusão da tecnologia são um elemento chave para entender a exclusão da mulher na TI. As curvas de penetração tecnológica favorecem aos grupos privilegiados social e economicamente, que têm historicamente desenvolvido práticas de adoção e troca de paradigmas tecnológicos por conta das suas rotinas enriquecidas de socialização tecnológica, aprendizagem e desaprendizagem. As mulheres foram sistematicamente banidas destes grupos e espaços, mesmo as de estrato socioeconômico alto. Este “gap de conhecimento” explica a persistência e acréscimo da exclusão, pelo ritmo diferente em que os “privilegiados” e os “não privilegiados” apropriam conhecimento e tecnologia (Bonfadelli, 2002; Evers, 2002; Tichenar, Donahue & Olien, 1970). Nos países não desenvolvidos, esta brecha de conhecimento é reforçada adicionalmente por formas de produção anacrônicas, falta de infraestrutura, e culturas resistentes às mudanças de papel que os novos paradigmas tecnológicos trazem (Carveth & Kretchmer, 2002).
As mulheres foram afastadas do desenvolvimento tecnológico e científico desde antes da Revolução Industrial, sendo limitadas a trabalhos básicos ou do lar, e seu ingresso nas atividades laborais associadas ao domínio da TI foi relativamente recente. Essa condição as deixou atrasadas da articulação social que a comunidade masculina foi construindo com a TI durante todo o século XX, ao ponto que ainda hoje, continuam lutando contra os conflitos que o papel social feminino espera de las, como irmãs, filhas, mães e esposas, que simultaneamente devem manter suas atividades profissionais e científicas, que demandam amplo domínio das TIC. As mulheres são vítimas da manifestação digital da atribuição de gênero, no que tange à divisão social do trabalho e à socialização tecnológica. Assim, o coletivo feminino integra a casta dos “info-pobres”, condenados a reciclar permanentemente desigualdades sociais (Sebastian & Ayuso García, 2011).
5. O eterno ciclo de criação e destruição das brechas tecnológicas
Além de existir um antecedente histórico que deixa às mulheres em desvantagem, o contínuo avanço das TIC cria novas ondas de exclusão. Linda Jackson nos seus estudos sobre a EDG nos EUA percebeu que a exclusão era um fenômeno evolutivo, não no sentido meramente estatístico, mas nas suas formas de ação (Jackson et al., 2003). As diferenças persistem porque as novas ondas tecnológicas são afetadas por seus antecedentes históricos. Por exemplo, a telefonia celular nos EUA reduziu a exclusão de acesso feminino, pois muitas mulheres adquiriram o aparelho e começaram a dominá-lo. No entanto, ainda que as novas gerações reportem menos diferenças a respeito do uso, na capacidade técnica de manipulação interna destes dispositivos e seu desenho, os homens dominam. A mulher fica restrita ao papel de usuária do celular como ferramenta de comunicação, e não de manipuladora ou criadora de paradigmas tecnológicos (Cotten et al., 2009; Jackson et al., 2001, 2008) na telefonia móbil, no comércio eletrônico ou no entretenimento, como é o caso dos homens. Assim se limita o aproveitamento econômico e o protagonismo feminino nos campos tecnológicos em expansão, favorecendo o privilégio tradicionalmente masculino.
Estas diferenças de atribuição afetam as oportunidades das cidadãs em melhorar sua autonomia econômica e nível de vida, alavancadas nas TIC (Edet-Ani, Uchendu & Atseye, 2007; Hill & Dhanda, 2004). As TIC se converteram em veículos para obter serviços diferenciados e ampliar o escopo da empregabilidade, e assim, a EDG gerou um gargalo na procura de novas oportunidades para as mulheres.
A exclusão digital se define como um ciclo permanente de criação e destruição de brechas de uso nas tecnologias novas; as brechas e tecnologias posteriormente se tornam parte da cotidianidade ou mesmo da natureza dos grupos excluídos (Liff, Shepherd, Wajcman, Rice & Hargittai, 2004). O caráter sociotécnico e histórico da tecnologia faz da gestão de informação, conhecimento e conectividade, um contínuo comunicativo e informacional em que a equação de inclusão e exclusão muda permanentemente (Hargittai, 2002; Warschauer, 2002, 2004). Acessar uma tecnologia é diferente de dominar suas técnicas associadas, e de fazer que estas competências sejam socialmente reconhecidas e aceitas para que o sujeito possa ser integrado à “comunidade de prática” (grupo de expertos reconhecidos socialmente).
A rede social na qual se inserem as competências adquiridas determinará seu desenvolvimento ou extinção, colocando a disposição do sujeito os meios para fazer deles elementos úteis e valorados socialmente, ou não. Assim, a representação social facilita ou dificulta o desempenho das mulheres em penetrar no novo paradigma tecnológico, independente de quão fortes sejam elas no seu domínio. A percepção social de baixa aceitabilidade sobre o papel da mulher no contexto tecnológico dificulta o empenho de utilizar e criar TIC, exercendo pressão para que a pessoa abandone sua tentativa de ser aceita pela comunidade de prática, e de se identificar com a TI como seu projeto de vida. Nesta dinâmica criam-se associações fortes entre gênero, nível econômico, idade e nível educacional e a construção da falta de autoconfiança sobre a capacidade própria de dominar a tecnologia ou chegar a ser reconhecida nesse campo (Haughton, Kreuter, Hall, Holt & Wheetley, 2005; Liff et al., 2004).
Inserir na cabeça das mulheres a ideia de que não são boas em tecnologia nem pertencem ao campo das TIC, determina um isolamento info-comunicacional que se dissemina ao resto da população feminina. Isto pode ser verificado em programas de difusão da informação dirigido a mulheres, como os programas para controlar o câncer de mama. Os fatores de exclusão sociotécnica são tão fortes, que neste tipo de campanhas, têm sido necessário retroceder a meios “mais tradicionais” como o rádio, pois ferramentas como o e-mail não foram eficientes em populações de mulheres de baixa renda (Gustavfson et al., 2005). A TI dá conforto ao homem enquanto mantém uma relação complicada com as mulheres (Cotten et al., 2009).
Na telefonia celular, a pesquisa sobre EDG indica diferenças de gênero nos usos, como já foi estudado nos computadores. A mulher tende a focar na troca de mensagens de texto e na utilização das possibilidades multimídia. E ainda que nos usuários jovens esta tendência seja débil, padrões de exclusão associados com a história da telefonia tendem a surgir. Nos seus primórdios, o telefone fixo foi criado com uma perspectiva produtivista masculina e, ainda assim, ganhou o status de “aparelho feminino”. O telefone celular herdou essa simbologia, porém, misturou-a com a retórica do gadget masculino, reduzindo a divisão de gênero nos jovens usuários. Contudo, ainda na atribuição de “domínio técnico no uso do aparelho”, os homens se mostram mais confiantes que as mulheres (Cotten et al., 2009).
A interação com a tecnologia celular também está fortemente associada ao nível de educação e ao status socioeconômico, o que afeta indiretamente às mulheres no seu capital tecnológico. Elas estão ancoradas no lar, tendem a receber menos ingressos do que os homens e ter piores trabalhos, e participam de sistemas educacionais preconceituosos. A nova tecnologia celular está se alimentando de exclusões históricas e contextuais (Brock, Kvasny & Hales, 2010; Samal et al., 2010) e a cada novo paradigma perpetua o atraso feminino no domínio das TIC.
6. EDG, Lacunas de desenvolvimento e a justaposição de exclusões
Considerando a distribuição geográfica de desenvolvimento no mundo, o panorama mais preocupante é aquele das mulheres nas “lacunas de desenvolvimento” de regiões desenvolvidas ou subdesenvolvidas, pois se produz uma justaposição de exclusões que soma as carências em infraestrutura, serviços públicos, saúde e educação, comuns nos ecossistemas da pobreza, com as limitações impostas pelos sistemas socioculturais e religiosos locais, criando ecossistemas incapacitantes para estas mulheres (Gilbert, Masucci, Homko & Bove, 2008).
Nestas “descontinuidades geográficas”, as políticas para atacar a exclusão fornecem infraestruturas mínimas ou recicladas para atingir limitações que são sistêmicas, ocultando sob as “melhoras quantitativas de acesso” a persistência de exclusões qualitativas complexas e de longo prazo. Para Gilbert et al. (2008), o avanço inicial destas mulheres no aproveitamento das TIC foi enorme, pois contrastava com sua condição de exclusão múltipla inicial. No entanto, estes avanços batem contra a impossibilidade posterior para obter uma condição igualitária, visto que as capacidades desenvolvidas entram em conflito com o patriarcado dominante nas comunidades de prática. Ainda que hoje seja crítica a aquisição de competências digitais (Ragnedda, 2018), tais capacidades terminam vedadas para as mulheres nestes espaços de baixa renda e pobreza (Castaño-Collado, 2008b, 2008a; Castaño-Collado et al., 2008). Neste contexto, a EDG é um fenômeno resistente enquanto acesso e apropriação de TIC.
7. Socialização, educação e acesso na construção da EDG
A brecha de acesso às TIC é somente o primeiro degrau de uma estrutura de exclusão de múltiplos níveis (Clark & Gorski, 2001, 2002a, 2002b). A “Exclusão de Segundo Nível” (Hargittai, 2002) se estende a populações com acesso, e se configura a partir de uma série de variáveis sociais, culturais, históricas e educacionais que explicam o amplo leque de formas excludentes, sua sutileza e persistência. Clark e Gorski (2002a) afirmam que a educação e a socialização feminina induzem a brecha por meio da alienação, que instala nas meninas o desinteresse pelas atividades relacionadas com tecnologia e ciências. Simultaneamente, desestimular e desvalorizar a atividade feminina na TI constrói ambientes hostis a sua intervenção no espaço digital e na cibercultura.
Fica induzida a falta de empatia feminina com a tecnologia, que por suposto não é natural (Cooper, 2006; Cooper & Weaver, 2003). Os computadores são sentidos pelas mulheres como objetos geradores de ansiedade, e não máquinas de diversão ou entretenimento. Para Cooper (2006) esta condição se alimenta nos estereótipos sobre o que é apropriado para cada gênero, e na dinâmica destrutiva na “atribuição de resultados” (attributional patterns) predominante na mulher. A “atribuição de resultados” é a forma na qual uma pessoa explica seu próprio sucesso ou fracasso. Para os homens, o sucesso na TI é atribuído a sua habilidade, e seu fracasso a má sorte. No caso feminino, o sucesso passa por sorte ou grande esforço, enquanto o fracasso é previsível pela “natureza feminina”. O padrão masculino é autoprotetor, enquanto o feminino é autodestrutivo.
Na socialização tecnológica das crianças, os videogames são o primeiro contato com as TIC, em um contexto de integração transgeracional. Os adultos participam dos videogames, compartilhando os jogos e patrocinando sua execução, dentro dos papéis de gênero aceitos: os meninos brincarão com o console, em jogos violentos, competitivos e demandantes; as meninas deverão se ocupar das bonecas, colaborar na cozinha, e talvez brincar com videogames de afazeres de casa ou bichinhos fofos.
Cooper (2006) comenta que estes estereótipos nos videogames foram transportados para a sala de aula quando eles começaram a ser utilizados como meio pedagógico nos EUA, no final do século XX. Primaram as qualidades motivacionais dos videogames, porém nunca foram questionadas suas características sexistas. Características como a violência ou a competitividade faziam-se atrativos para os meninos, mas pouco interessantes para as meninas. Assim se reforçou na aula o desdém feminino pelas atividades de computação, aumentando sua futura insegurança e o estresse frente à TI.
Os computadores terminaram como “brinquedos masculinos”, ou o que Cooper chamou de “boys toys”: um território onde as meninas sofrem zombarias pelos seus gostos, ações e desempenho. Como os desenvolvedores de videogames também são maioria homens, a ideia era que usuário final seria masculino, assim que os videogames e o software educativo não foram pensados para mulheres, e os softwares “para meninas” caíram em estereótipos associados com atividades como cozinhar, costurar ou cuidar dos outros. Esta socialização tecnológica sexista é reforçada com estereótipos familiares, que acham que os homens são aqueles com habilidades para as TIC, desestimulando a exploração tecnológica das meninas.
Para Cooper, assim se prepara o terreno para o fenômeno da “Profecia autocumprida” (self-fullling prophecy) no comportamento tecnológico: a insegurança e rejeição feminina pela TI levam a resultados fracos no manuseio destes dispositivos, e assim se comprova que a TI não era para elas. Cria-se um “Efeito Pigmaleão”: o efeito induzido pelos estereótipos dos adultos, que intencionadamente ou não, criam condições de desvantagem para as meninas, que ao ficarem excluídas e sem apoio caem na mediocridade, e assim perpetuam o estereótipo. As mulheres são vítimas desta expectativa de fracasso tecnológico no seu meio familiar e social, que capitaliza os mínimos erros para comprovar suas expectativas sexistas.
As competências tecnológicas do sujeito são enriquecidas pela exposição permanente a videogames, o que favorece aos meninos; a privação desse contato deixam as meninas em desvantagem (Terlecki & Newcombe, 2005). Este cenário sexista tem um efeito devastador em idade precoce, sendo mais forte do que as variáveis de corte econômico. No entanto, os efeitos vão cedendo na medida em que com o tempo, as decorrências do contexto vão reforçando ou fragilizando a exclusão (Broos & Roe, 2006).
Conclui-se que o problema do acesso as TIC é a ponta do iceberg. As diferentes formas de uso entre homens e mulheres, ainda que não impliquem a incompetência de nenhum dos gêneros, em certas culturas podem se tornar vias de perpetuação de um estado de desigualdade (Kennedy et al., 2003). O sexo biológico está culturalmente associado com uma divisão sexista do trabalho, e os papéis tradicionais femininos, centrados no cuidado do lar e na maternidade, afastam as mulheres do mundo tecnológico e depredam seu tempo de contato com a TIC. Menores conhecimentos e habilidades em informática darão como resultado um menor acesso a altos cargos e ingressos significativos (Sebastian & Ayuso-García, 2011), o que por sua vez realimenta a exclusão.
Assim se explica o escasso número de mulheres pesquisadoras e executivas de alto nível no setor da computação, ainda que o número de cibernautas femininos tenha crescido. Pensar na TI como um “espaço neutro” permite a subsistência institucionalizada do sexismo digital, e perpetua a crença de que a mulher é “biologicamente inferior” ao homem no pertinente a tecnologia.
8. EDG e a construção dos “capitais intangíveis”
As relações entre exclusão digital e o capital intangível, por exemplo, o “capital humano” (nível de qualificação das pessoas, conhecimento e competências) e o “capital social” (articulação social das pessoas) na educação e no contexto laboral e familiar, foram estudadas por Korup e Szydilik na Alemanha reunificada (Korupp & Szydlik, 2005). Os autores confirmaram que os fatores familiares e culturais são mais poderosos que o fator econômico, partindo de uma acumulação histórica de capital intangível na forma de conhecimento e relações sociais. Certamente o elemento econômico determina o acesso à Internet, e visto que as mulheres têm ingresos menores que seus colegas homens, a condição feminina define indiretamente o fator econômico, que por sua vez determina a restrição informática, retroalimentando um círculo vicioso de exclusão. Mas também a mulher é vista como uma subordinada na cultura, e por isso tem menores chances de subir na escala laboral e aumentar seu capital intelectual, o que leva novamente a desvantagem a respeito do seu capital humano e econômico (Cheong, 2007; Enoch & Soker, 2006). O gênero termina definindo a apropriação das TIC direta e indiretamente.
Outro tipo de capital intangível pode ser o “capital técnico” (a capacidade para explorar e dominar novas técnicas e paradigmas tecnológicos nas TIC) e o “capital social profissional” (capacidade para articular com uma comunidade de prática e os seus conhecimentos, habilidades e recursos). Estes capitais definem a capacidade das mulheres de construir uma posição dentro da ordem social e um status que assegure seu reconhecimento social (Brock et al., 2010). O estudo de Brock et al. (2010) demonstrou que a TI, no caso das mulheres negras nos EUA, pode contribuir individualmente para desenvolver capacidades e habilidades tecnológicas que empoderem a autonomia pessoal. No entanto, este empoderamento não é coletivo para “as mulheres” como categoria social, pois na cultura, as mulheres e principalmente as mulheres negras, carecem de protagonismo em relação às TIC. Qualquer mudança fica limitada a casos individuais, mas no coletivo não há transformação.
A fraqueza dos capitais intangíveis gera baixa autoestima na hora de acreditar nas capacidades tecnológicas próprias na tecnologia e exibi-las (Cheong, 2007). No momento de avaliar seus conhecimentos, as mulheres tendem a subestimar seu domínio e eficiência no trabalho com as TIC, pois não existe uma reivindicação social coletiva que resgate sua capacidade tecnológica. Parte deste imaginário está relacionado à conciliação das tarefas do lar e do trabalho. O cuidado do lar e da família é visto como uma tarefa exclusivamente feminina, assim que é comum que as mulheres caiam em uma disjuntiva: ou são profissionais dedicadas ou são mães e esposas, mas as duas coisas não podem coexistir juntas. Aliás, profissões de tecnologia como a engenharia fazem temer a algumas mulheres pela perda da sua feminilidade (Rodríguez-Navia, 2008; Urbina-Gutiérrez, 2017).
A TI poderia ter um papel fundamental na harmonização da atividade profissional e na vida do lar por meio do teletrabalho, mas as atividades às quais uma mulher pode aspirar no patriarcado são genéricas e presenciais, enquanto as mais especializadas e de melhor renda são masculinizadas (Castaño-Collado, 2008b, 2008a; Castaño-Collado et al., 2008). Os trabalhos mais mal remunerados, mais demandantes e com menores chances de progressão, ficam nas mãos das mulheres. São trabalhos com mínimas chances de flexibilidade para serem desenvolvidos no teletrabalho, pois respondem ao paradigma do afazer do lar, ou nem precisam do uso intensivo do computador.
9. A EDG e o ser político das mulheres como coletivo organizado
Empoderar as mulheres com TIC demanda criar uma coletividade feminina organizada para enfrentar o patriarcado das estruturas sociais. É urgente e necessário atingir a insegurança e o desdém que a informática gera em muitas mulheres por meio da educação e aprendizagem autônoma, mas são as mulheres como coletivo organizado as que precisam determinar o que elas requerem. São as próprias mulheres aquelas que devem atuar como “especialistas e incentivadoras locais” do desenvolvimento das competências tecnológicas das “mulheres como mulheres” (Bishop, Bazzell, Mehra & Smith, 2001; Mehra, Bishop, Bazzell & Smith, 2002).
A educação tecnológica tradicional está baseada em uma perspectiva individualista, e a emancipação só pode vir de um exercício coletivo organizado que possa enfrentar as estruturas vigentes. A educação feminina deve focar no aprender a aprender e na transformação da informação e no conhecimento em ação. A educação tecnológica recicla os papéis sociais estabelecidos, assim que é preciso ensinar perguntas e não respostas para tirar às meninas da sua zona de conforto, ampliar seus horizontes e patrocinar a cooperação. Somente coletivos altamente organizados conseguem quebrar a inércia que reproduz os padrões de atribuição de gênero nas mulheres (Huyer & Sikoska, 2003).
As TIC são “Tecnologias Sociais”, ou seja, tecnologias que podem facilitar aos grupos excluídos interagir de formas novas e cooperar para o interesse comum (Sproull & Faraj, 1997). Os fluxos de informação permitem que os excluídos tomem ciência da sua situação de insatisfação, e encontrem alternativas coletivas de solução. Por isso a educação tecnológica dos excluídos, e neste caso da mulher, é tão importante na Sociedade da Informação. O que é fundamental na organização para a libertação dos grupos marginalizados, não é simplesmente ter acesso às informações, mas entender o sentido das ações informacionais, (Chatman, 1991, 1996, 1999; Dervin, 1998). Para isso é crítico entender que a tecnologia como simbolização do contexto, como informação que cria mediação social, não é neutra, pois a tecnologia se integra na atividade humana e torna-se uma cultura (Ellul, 1978; Wajcman, 2009).
O ser humano é um sujeito informacional e também político. Portanto, os problemas derivados das brechas informacionais e de TIC se convertem em problemas políticos e de poder. As políticas e programas públicos de inclusão digital erram ao olhar somente o acesso, pois além disso, fatores socioculturais como o patriarcado estão atuando. É necessário analisar os fluxos informacionais e sua veiculação através das TIC do campo das políticas de coesão social (Bouza, 2003). Crescimento econômico e a coesão social devem progredir sincronicamente, pois de outra forma, se constroem castas de “info-riqueza” e “info-pobreza” derivadas do perfil econômico, da geografia, da educação e da cultura e os seus valores. Novas tecnologias como os celulares, são uma oportunidade notável para reconsiderar a alfabetização digital das mulheres, pois elas têm uma aceitação especial no coletivo feminino, visto que permitem a conciliação entre vida familiar e laboral (Castaño-Collado et al., 2011). E no entanto, como já foi visto, o campo da telefonia celular está sendo contaminado rapidamente por seu contexto e história patriarcal.
10. Considerações Finais
Este artigo fez uma revisão do domínio que temos nomeado como “Exclusão Digital de Gênero” (EDG). A América Latina, apesar dos seus avanços nos estudo feministas e de gênero, ainda não presta a devida atenção à questão de gênero em relação à apropriação das TIC. Estudos em países como EUA, Reino Unido, Canadá e Espanha, apontam que a redução nos problemas de acesso às TIC não é o fim da EDG; aliás, é o início de brechas mais complexas e difíceis de identificar. A construção de conhecimento neste domínio se desenvolve em um contínuo entre ativismo e pesquisa, com um papel ativo do pesquisador na conscientização da mulher e da sociedade sobre a persistência de formas excludentes, tão sutis quanto poderosas. No entanto, esta tarefa encara um grande obstáculo: a crença popularizada na neutralidade da tecnologia. Esta pesquisa apresentou vários estudos que indicam que as TIC não são neutras e atuam como um amplificador dos conflitos sociais.
O idealismo digital dos anos 1970 esperava que as TIC fossem uma força libertadora, mas sendo produto e patrimônio de uma sociedade patriarcal, esta tecnologia reproduziu a estrutura de poder das suas origens. Para mudar isto, a chave parece estar nos fatores sociotécnicos que mantêm a associação entre o masculino, a ciência e a tecnologia. Os modelos aqui citados dão conta de uma ampla gama de fatores que incidem na continuidade da EDG, que são resumidos a continuação e são a base do mapa conceitual proposto na Figura 1:
Os videogames assumidos como boys toys pelos estereótipos familiares, induzindo a falta de interesse e confiança nas meninas a respeito das TIC na socialização do lar.
A ausência de ícones femininos e mentoras que inspirem as mulheres a ingressar na área das TIC como projeto de vida.
A predominância de estruturas simbólicas e epistemologias masculinas no desenvolvimento de produtos de TIC.
A justaposição de exclusões que sofrem as mulheres de baixos recursos ou áreas subdesenvolvidas.
A persistência do amplo controle masculino nos cargos chave da indústria das TIC.
A ilusão de uma tecnologia neutra e carente de elementos de gênero.
Políticas ineficazes de inclusão digital, focadas no acesso, e ignorando os problemas socioculturais que depredam a apropriação feminina das TIC e as suas oportunidades de estudo e profissionalização na área.
A institucionalização da EDG na escola e na universidade, que omite a relação entre gênero e tecnologia como um dos objetos de estudo de ciências básicas ou da computação e informação.
As transformações das diferenças de uso das TIC entre homens e mulheres, em supostas limitações que sustentam estereótipos e preconceitos.
O estado de alienação das mulheres, que induz o desinteresse e a insegurança a respeito das TIC, e dificuldades para sair da sua zona de conforto.
Trabalhar o sentido das ações é fundamental na construção da dinâmica de mediação dos grupos marginalizados, para que possam se apropriar de conceitos não simplificantes de tecnologia, sem ilusões de neutralidade, entendendo que estas ferramentas são parte de uma cultura integradora (ou desintegradora) que as ferramentas tecnológicas ajudam a criar. Resignificar os coletivos de mulheres que dentro do paradigma patriarcal pretende ganhar graus de liberdade, isto é, opções de escolha.
Na Sociedade da Informação, o uso das TIC determina o desenvolvimento profissional e vital das pessoas. Isso faz da EDG um problema grave, que atinge a metade da humanidade, as mulheres, sem que exista uma clara consciência disso. A pesquisa neste contexto dá insumos para que a coletividade feminina tome consciência e atue como uma minoria organizada frente ao statu quo. As limitações da pesquisa sobre EDG na América Latina refletem problemas gerais de falta de aprofundamento e detalhamento sobre os diversos e sutis aspectos deste fenômeno.
Em uma época caracterizada pela inovação permanente, cada mudança de paradigma tecnológico cria uma nova arena de negociação para os gêneros. Estas mudanças são oportunidades para construir um paradigma de inclusão além do acesso a TIC. Apropriar as TIC envolve criar competências técnicas e obter o respaldo da comunidade de prática, de forma que seja possível e legítimo ter um papel de protagonismo dentro da sociedade. Implica que os conhecimentos e habilidades desenvolvidas deem ao indivíduo o status social que merece por seus méritos e não por seu gênero, pela cor da sua pele, sua língua ou nacionalidade, e assegurem sua liberdade para decidir o que julgar conveniente para si mesmo.