Introdução
Contrariamente aos sistemas em que a ética possui fundamentação independente ou, quando muito, tem o seu campo especificado de maneira negativa pela sua distinção do conhecimento, a tomasiana é uma ética integralmente dependente da metafísica, responsável por delinear o papel do homem no mundo em função da natureza de ambos.
Como ordena a necessidade lógica, a filosofia assumidamente metafísica tem a sua teoria do conhecimento em função desta, ou em estreita parceria com ela, de maneira que as formas de entendimento ou apreensão intelectual do ser não se distinguem da estrutura ontológica de ambos, conhecedor e conhecido, determinando, com isto, o foco da meditação como sendo ontognosiológica.
Porque tal estrutura possui influência sobre a meditação ética, e porque a relação entre o ser e o conhecimento se permitam interpretar como análogas à que vige entre o ser e o comportamento, nossa exposição da ética do aquinate não prescinde de uma exposição prévia desta ontognosiologia, bem como de uma parte específica da metafísica que nomearemos didaticamente ético-metafísica.
Dito de outra forma:
As vias do ser, que são os caminhos da vida do ser, são duas: a via contemplativa e a via activa, mas ambas têm de comum o conhecimento. O conhecimento é inerente tanto à vida contemplativa como à vida activa, nenhuma delas sendo real sem a forma que o conhecimento lhe confere. Conhecer é, por isso, um certo modo de ser, enquanto o elemento essencial do conhecimento é a contemplação que, em todas as circunstâncias, é anterior à acção. Mesmo o conhecimento activo não se manifesta sem o prévio conhecimento contemplativo, assim ao modo de que, na prática das artes manuais, o artífice não maneja a ferramenta sem primeiro a contemplar2.
A vida activa, enquanto esfera das virtudes morais, precede a vida contemplativa, de modo que a ascética precede a mística, tal como a via purgativa precede a iluminativa, por isso que a contemplação também depende das virtudes morais3.
Para o leitor desavisado dos dotes intelectuais de Tomás e do caráter sumamente lógico de sua obra os fragmentos supracitados de Pinharanda Gomes podem aparentar contradição. Mas a ambiguidade que fomenta esta «contradição» está longe de ser dialética, exemplificando antes a ambiguidade do complexo.
Como em muitas das fórmulas aristotélico-tomasianas, o saber mais nobre condiciona os que lhe estão abaixo, mas este mesmo saber mais nobre dado como condição dos saberes modestos não é senão o prenúncio do que realmente é, de maneira tal que a nós cabe aperfeiçoarmo-nos em todas as virtudes e competências modestas para só então regressarmos consistentemente ao mais alto que nos inspira desde o início.
Sem adequação genética entre as substâncias e o intelecto não poderíamos sequer começar a compreender os entes, mas é só compreendendo os entes em sua particularidade que exercitamos e fazemos crescer em nós esta vinculação metafísica original.
Incompreendida esta parte, o progresso do estudante na obra tomasiana encontra-se obstaculizado, e sem metafísica não há como se cogitar a fundamentação da ética, derivada de uma psicologia e uma axiologia concretas, naturais. Por isso um estudo da ética tomasiana tem como pré-requisito o saber primeiro.
Ao mesmo tempo, a força da teoria tomasiana consiste em sua primorosa articulação entre as estruturas e metodologias teológica e filosófica, de modo que nenhuma exposição de seu pensamento é minimamente razoável se não se puder observar que cada elemento filosófico é trabalhado «à sombra» da teologia, cada elemento teológico «à sombra» da filosofia, como se ambas as disciplinas produzissem um efeito tesoura, sendo individualmente muito menos eficazes4.
1. Metafísica e teoria do conhecimento
De acordo com Aristóteles, o Ser é dito de muitas formas, mas suas características principais são a quididade (aquilo que a coisa é em sua essência) e a existência. É forçoso admitir que «a primeira coisa concebida pelo intelecto é o ser, na medida em que qualquer coisa só é conhecida enquanto está em ato»5. E, para Tomás, existir extrinsecamente é um absurdo, pois ser é propriamente a subsistência intrínseca de algo. Logo, só Deus realmente existe.
Ele diz que, uma vez que Deus é o único esse subsistente, «todas as demais coisas além de Deus não são seus esse, mas participam no esse», e ele infere «que todas as coisas diversificadas de acordo com sua participação diversa no esse, de modo a serem mais ou menos perfeitas, são causadas por aquele ser primeiro o qual é sumamente perfeito. A este propósito Platão disse ser necessário posicionar a unidade antes de qualquer multiplicidade. (S. Th. I Q 44 a1)»6
Sendo que a natureza de uma coisa é o princípio interno (principium) que determina seu modo distintivo de ser, o intelecto é o poder de formar uma intenção que seja uma semelhança determinada de um princípio que constitui a natureza de uma coisa7.
Mas aqui há um grave problema: o caminho do essencial ao acidental está invertido para o entendimento humano, isto é, enquanto (metafisicamente) o essencial precede e orienta as disposições de um ente, na ordem do conhecimento tateamos essas disposições para, só depois de grande esforço, chegarmos à apreensão intelectual de sua essência.
O conhecimento humano, no seu procedimento científico, deve concluir dos acidentes para a substância, como também sobe do singular para o universal, do particular para o geral, do sensível para o espiritual, do fato para a ideia. Não temos intuição, que é uma visão imediata da substância; é de fora, pelos seus acidentes, isto é, pelas suas operações e suas propriedades, que ela a nós se revela e que nós a podemos demonstrar8.
O intelecto só pode conhecer adequadamente (metafisicamente) remontando sua herança genética de participação no intelecto divino, onde o entendimento da coisa e sua natureza coincidem. Ao invés de penetrar a essência do objeto por via direta, o intelecto precisa subir dos objetos particulares rumo ao vértice que há na divisão entre ele (o intelecto) e a coisa.
Mas para que o intelecto se reduza assim de potência a ato, esta luz, sendo pálida, necessita dos fantasmas providos pela nossa cognição sensível. Ele requer fantasmas, não porque eles já contenham o que representamos abstratamente nos conceitos, mas porque ao suprir-nos de imagens das coisas materiais, os fantasmas nos ofertam informação o bastante para permitir que o intelecto agente distinga o conteúdo preexistente em sua luz de um «modo geral e confuso»9.
Assim, a impressão dos sentidos é conhecimento inadequado, produzindo fantasmas, mas estes «sugerem» ao intelecto o caminho trilhado da essência pura ao ente manifesto. Logo, o intelecto não pode subir naturalmente do mundano ao universal, isto é, pela perspectiva secundum modum substantiae creatae, mas este «exercício» ascensional lhe permitirá aproximar-se das essências que, então, podem ser melhor conhecidas através do uso puro do intelecto em sua afinidade com o divino10.
O aspecto espiritual do homem jaz apartado de sua natureza existencial, mas ambas as partes estão unidas na medida em que remontam a Deus, unidade de onde ambos advêm.
Através da doutrina da abstração Tomás logra separar perfeitamente o campo natural do espiritual, prenunciando a divisão moderna entre a ordem fenomênica e a ordem transcendental, coisa que Aristóteles esteve longe de realizar e que produzira diversos transtornos à filosofia pré-tomasiana, para a qual qualquer conceito geral (abstrato) é derivado dos particulares, ou meramente declarado como existente, sem comprovação (ex: primeiro motor, intelecto, o ente, o Uno...)11. Tal ausência de mediação viria a justificara a crítica de Kant ao «dogmatismo metafísico» de todas as gerações posteriores a ele próprio.
É por abstração que se intelige o que é, seja por abstração do universal a partir do particular (abstração denominada por Tomás de abstração do todo ou de abstração não- precisiva da matéria signata), seja por abstração da forma (abstração precisiva). Pela primeira operação do intelecto, se apreende uma quididade, uma determinação inteligível. A quididade foi extraída da imagem sensível pela ação do intelecto agente graças a um processo abstrativo que deixa de lado as condições individualizantes do conteúdo apresentado pela imagem sensível. Ela é impressa no intelecto possível. Tomada nela mesma, isto é, considerada absolutamente sem relação com a imagem da qual foi abstraída ou com o indivíduo que a singulariza ou com o conceito que a exprime, ela não é nem uma nem múltipla, nem universal nem singular, pois o seu modo de existência foi deixado de lado. [...] Tomás no De ente denomina a quididade assim obtida de natureza absolutamente considerada.
Assim, a essência ou quididade pode também ser considerada por abstração dos seus modos de existência. De fato, a essência existe nas coisas singulares ou é expressa pelo conceito de modo universal na mente. Ela pode ser analisada como essência disto ou daquilo e, nesse caso, é considerada a essência de alguma coisa, possível ou atual. Pode também ser expressa por um conceito universal12.
Com Tomás, então, a abstração é uma função que pode ser encarada por duas vias, uma que sobe do particular ao conceito geral e uma que lida diretamente com elementos «cujo ser é a generalidade», função esta que ele define como «abstração ajuizante».
Por isso a operação do conhecimento é considerada diversamente pelos intérpretes, ora de maneira mais empirista -o intelecto carece dos sentidos para produzir abstrações e universais-, ora de maneira mais racionalista -o intelecto vê já em todo sensível o conceito, de modo que a impressão sensível, o fantasma, é totalmente subordinado ao universal-. O primeiro grupo não difere da forma aristotélica pela qual se adquire conhecimento a partir da experiência. A exemplo do segundo grupo:
Não somente a nossa alma atinge objetos inteiramente imateriais, como o universal, o infinito, o eterno, mas até quando ela percebe os objetos materiais, considera-os de modo abstrato e ideal, e em perspectivas todas novas, que não foram captadas pelos sentidos. Assim, vendo um efeito sensível, a alma infere a ideia da causa; da operação, ela deduz a natureza do sujeito que age; corrige o erro dos sentidos e reergue pelo julgamento a vara que os olhos mostram quebrada na água, etc13.
Ambas as «versões» são perfeitamente válidas e não chegam a configurar conflito. A dificuldade está em estabelecer até que ponto estas perspectivas se resumem a abordagens «como se», e em que momento pode-se falar em distinções claras entre o sensível e o inteligível.
Mas, uma vez que se assuma a diferença entre o sensível e o inteligível como concreta, se nos é facilitada a distinção entre o aprendizado cognitivo (saber) e o prático (saber fazer), a qual nos presta por sua vez enorme auxílio na compreensão da ética. Para Peter King, a abstração seria uma instância mediadora que esquematiza os dois modos de conhecer: prático intelectivo. «Os sentidos, então, têm como seu médium a espécie sensível, que é particular, e o intelecto tem como seu médium a espécie inteligível, que é universal. A mediação entre ambos tem lugar através da abstração, ou seja, pela remoção das condições individualizantes da espécie sensível particular»14.
Neste sentido, argumenta King, animais jamais podem ter experiências, pois não são capazes de abstrair os universais dos particulares. Suas sensações podem até conter cognição dos particulares, a exemplo do cão que nos identifica, mas não viabilizam entendimento. O cão jamais saberá que somos humanos enquanto ele próprio pertence ao grupo dos cães. Por isso alguns animais identificam a raça humana com seu grupo e estigmatizam membros da própria espécie.
Analogamente a Kant, Tomás define uma experiência como uma capacidade dos entes previamente racionais de abstrair conceitos de sensações. Esta pode ser uma má definição de experiência no sentido do aprendizado prático (como nadar), mas objetiva justamente especificar o papel da experiência no progresso intelectual. Outros autores (notadamente Scotus e Okham) trabalhariam este aprendizado prático e seu papel na efetivação da deliberação moral (como o hábito de resistir a uma tentação), mas Tomás se debruçou quase exclusivamente sobre o aprendizado cognitivo. Interessava-lhe saber como o homem discerne o bom do mau e por que faculdade elege um ou outro.
2. Ético-metafísica
Como ética fundada sobre um realismo psicológico e axiológico, a de Tomás se insere num quadro mais amplo. A interface entre o real e o dever é mediada por uma vasta e profunda «ético-metafísica». Desta destacamos algumas (de muitas) características distintivas como 1. o conhecimento por conaturalidade a respeito dos valores e 2. a dualidade da alma humana.
O conhecimento por conaturalidade significa simplesmente que a alma consegue intuir certas verdades sem auxílio da razão, por força de uma conaturalidade entre um valor moral e um caso particular ou objeto. Ex: a justiça em mim e um exemplo de comportamento justo são imediatamente associados pela alma como compatíveis por conaturalidade, pelo que reconheço a justiça no caso particular.
O meio termo entre o espiritual (incorpóreo) e o material (corpóreo), a alma humana guarda a propriedade de subsistência per se, o que lhe garante imortalidade, e é também uma forma, pelo que se relaciona com o mundo corpóreo. A demonstração desta dupla valência da alma humana é por demais complexa para que a exponhamos aqui, mas basta dizer que ela é suficientemente sólida para não constituir um dos pontos comumente atacados pelos adversários de Tomás. Mais do que uma tentativa de costurar prerrogativas metafísicas do cristianismo e do aristotelismo, a bivalência da alma resolve problemas filosóficos concretos, como a situação particular do homem no cosmo, como ser que reúne ao mesmo tempo uma natureza animal e a racionalidade, é dotado de sensações e constituição corpórea, e concebe os seres puramente espirituais por força de seu intelecto.
Também não se pode tratar da ética de Tomás preconcebendo-a como cópia plana da ética aristotélica. A dimensão da vontade no pensamento cristão, conforme desenvolvido por Paulo e Agostinho, é imprescindível à compreensão da síntese tomasiana entre as éticas de Aristóteles e do cristianismo, de Platão e dos estoicos.
Conforme definem Martins e Godinho, o conceito ocidental de pessoa é um produto das noções cristãs de pessoalidade de Deus e do caráter de Cristo como pessoa divina e humana15. Até então o conceito grego para designar a humanidade era o de «homem», substância racional. A liberdade era, sobretudo, consequência do juízo, que dispõe opções ao pesar vantagens e desvantagens. Com o advento do Cristianismo instaura-se a concepção de voluntas, sem a qual não entendemos minimamente as concepções de liberdade individual e autonomia conforme as concebemos hoje.
«A “voluntas” desempenha no latim um papel que não se encontra em nenhuma palavra grega específica»16. Um papel que é claramente distinto do da razão nos atos deliberativos. Com isto o cristianismo acrescenta um novo vetor ao cálculo já complexo de forças envolvidas na tomada de decisão. Trataremos mais disto no tópico seguinte.
Como seres criados e dotados de forma, humanos possuem inclinação. Toda a forma corpórea possui alguma inclinação, como o fogo que tende, por sua forma, para o alto17. Seres inanimados são muito condicionados por sua forma, de modo que sua inclinação é automática (gravidade, calor e diferenças de pressão são determinantes). Plantas possuem uma alma nutritiva que lhes leva a se inclinarem para o sol e para a água, espargindo galhos e aprofundando suas raízes. Animais seguem padrões menos regulares, pois sua alma sensível já lhes permite apetecer objetos visados e percebidos, de modo que sua inclinação é variável conforme os estímulos aprazíveis ou desprezíveis a que estão sujeitos. Humanos, finalmente, possuem também racionalidade, de modo a divisarem fins abstratos e variados, o que lhes dá (a possibilidade da) largueza de perspectiva e independência da vontade em relação aos estímulos imediatos. Nisto consiste o livre-arbítrio da vontade, na medida em que ela é a parte mais nobre dos modos de inclinação.
Entretanto, não se deve olvidar que inclinações e apetências são naturalmente boas. As próprias coisas apetecidas são em geral boas. «Nenhum ser pode ser dito mau, na medida em que é um ser, senão somente enquanto carecer de ser; como um homem é dito mau por carecer do ser da virtude; e um olho é dito mau por carecer do poder da boa visão»18.
A vontade é um apetite racional. Agora, não há apetite senão de algo bom. O motivo para isto é que o apetite nada mais é do que uma inclinação do apetente a algo. E nada tem inclinação pelo que não é semelhante e conveniente. Uma vez, portanto, que toda coisa, na medida em que é ser e substância, é um bem, é forçoso que toda inclinação se dirija ao bem... Mas deve-se considerar que uma vez que toda inclinação deriva de uma forma, o apetite natural resulta de uma forma existente na natureza, enquanto o apetite sensitivo, bem como o apetite intelectual ou racional, o qual denominamos vontade, deriva de uma forma apreendida. Desta forma, assim como o apetite natural tende para um bem existente em algo, assim o apetite animal, ou voluntário, para um bem apreendido. Consequentemente, para que a vontade tenda para algo, não se requer que este algo seja bom verdadeiramente, mas que seja apreendido sob o aspecto do bem; e a esse respeito o filósofo diz «o fim é um bem, ou algo que pareça bom»19. (grifo nosso).
Contudo, como se pode observar a contento, a parte superior da vontade nem sempre se impõe sobre as apetências inferiores que correspondem aos elementos mais materiais da alma. Isso ocorre, explica Tomás, precisamente porque as inclinações materiais e sensuais são imediatas, ao passo que decisão da vontade de inclinar-se a um fim é fruto de ponderação racional, exercendo como que um poder persuasivo que nem sempre se contrapõe eficazmente ao poder mecânico das inclinações corpóreas.
Em termos mais práticos, o poder da vontade exige esforço e consciência, de modo que por vezes o homem opta por entregar-se ao automatismo, como o piloto que sabe pilotar melhor que a máquina, mas por preguiça ou conveniência tende a abandonar a nave ao cargo dela.
Um equívoco comum a muitos modelos éticos é o de equalizar paixões e emoções. Para Aquino ambos são fundamentalmente separadas, uma vez que emoções incluem estados cognitivos.
Emoções, independente do que mais envolvam, envolvem ao menos estados cognitivos. Então, as paixões de Aquino não constituem, em si mesmas, emoções. Mas, por ser uma condição necessária para a ocorrência de uma paixão a ocorrência de cognição valorativa de um objeto, as paixões de Aquino, tomadas em conjunto com sua causa cognitiva adjacente, acabam por formar um complexo capaz de adequar-se a nossa compreensão das «emoções»20.
O que parece unir ou identificar as duas é o fato de que ambas, paixões e emoções, são tendências pro ou con, e ambas possuem distintos graus de intensidade. Esta oscilação entre aversão e simpatia é uma oposição modular, ao passo que a dualidade ontológica da alma -mundana e divina- é uma oposição substancial. Apesar de estar indubitavelmente escorada pela positividade ou negatividade naturais que as distintas coisas nos ofertam, há uma flexibilidade bastante grande no balanço das paixões, pois a subjetividade e a ignorância podem modular os prós e contras para além de suas posições automáticas/instintivas.
Como se não fosse já suficientemente complexa a arquitetura subjacente à ética tomasiana, a constituição dual da alma implica não apenas em dualidade de intenções (como vimos substancial ou modular), como também de ação. Tomás diferencia ações humanas de atos que podem ser praticados pelos humanos. Como foi demonstrado por McInerny21, as primeiras só podem ser empenhadas por seres humanos, isto é, são ações racionais visando fins, a segunda classe representa ações mecânicas e sensuais executadas necessariamente ou casualmente também por humanos, devido a sua participação na natureza animal e corpórea.
Dormir, urinar, comer e gritar são ações executáveis por humanos, mas não propriamente humanas, de modo que não se pode imputar responsabilidade moral por elas. A escolha de onde ou quando dormir, urinar, comer e gritar, por outro lado, é deliberada racional e voluntariamente, sendo imputável. Logo se vê que há uma dificuldade em separar aspectos humanos ou não humanos de uma mesma ação, mas esta distinção deve pautar-se pela análise da voluntariedade.
McInerny levanta pertinentemente o exemplo da obesidade. Nestes casos podemos considerar uma inclinação mais ou menos automática (genética, compulsão) para o ganho de peso, ou a escolha consciente e voluntária por determinados tipos de alimentos que provoquem este ganho.
3. Ética
Tendo analisado o «instrumental» ético-metafísico da alma, passamos a meditação propriamente ética, sobre a responsabilidade moral e a felicidade.
Aristóteles diagnosticara com grande incômodo a possibilidade de falência moral mesmo na presença da consciência perfeita do certo e do justo, denominando-a Akrasia. Dado o otimismo moral do pensamento grego, a Akrasia22 manifesta-se como moralmente repreensível, já que é livre a eleição de atitudes contrárias ao melhor juízo. Em outras palavras, é sempre por má fé que a alma se inclina ao que reconhece como pior.
Com Agostinho, no entanto, a natureza humana é posta em juízo perpétuo por seu estado de fragilidade moral, isto é, seu caráter de animalidade, de modo que a fraqueza é antes volitiva do que deliberativa, pelo que não se pode imputar ao homem responsabilidade por sua constituição debilitada23.
Atingido em cheio pela ignorância (incapacidade de entender o que é certo) e pela dificuldade (incapacidade de persistir na boa vontade), o ser humano está fadado aos tormentos da dúvida e da tentação, perigos dos quais nem apóstolos nem santos estiveram isentos24.
Não há homem que, nesta vida, esteja imune a estas limitações, de modo que somente com misericórdia divina podemos aspirar a um mínimo de dignidade. Obviamente o esforço e o aperfeiçoamento das virtudes afastarão o homem do estado de fraqueza, anulando seus vícios, mas este estado de fraqueza, por sua proximidade perturbadora -manancial de desejos e instintos primitivos armazenados no inconsciente- permanece inequivocamente à espreita de nossos momentos de crise. Só os mais ingênuos e desacostumados à meditação moral ignoram esta realidade, e se assustam quando os homens de bem caem em tentação.
Como isso se concilia com a afirmação inicial de que os homens apetecem coisas na medida em que estas são boas? A resposta está mais na forma como misturamos apetência sensível e vontade do que em uma corrupção inerente às coisas.
Em geral o aquinate era suficientemente otimista para considerar a maioria das experiências humanas, maioria esta composta pelas experiências sensoriais, como essencialmente boas.
Aquino bem poderia ter enfatizado a miséria e a infelicidade da vida terrena, como muitos o fizeram antes dele, mas ele escolheu valorizar e recomendar estas experiências e conquistas na medida em que se associam a um modo positivo de aperfeiçoamento da felicidade. Ele sabiamente considerava a felicidade atingível nesta vida como sendo na melhor das hipóteses imperfeita, mas claramente sustentava que se trata de felicidade em sentido analógico, não meramente equívoco25.
Para Tomás, actio e passio são perspectivas sobre um mesmo fenômeno. Um é o ponto de vista do agente, o outro do paciente. Se o agente é bom a paixão do paciente será boa, mas esta dependência do paciente não é desejável. A paixão não é ruim em si, nem porque a maioria das coisas e agentes que nos afetam sejam ruins. Quase todo homem conhece mais dias de saúde do que de doença, e é natural que o indivíduo queira receber coisas, ser afetado positivamente por outrem, mas há algo de fundamentalmente errado em associar a felicidade a esta posição, já que ela torna o homem dependente da iniciativa alheia.
Como no estoicismo, ou em Espinosa, Tomás repudia a atitude de esperar a felicidade pela via das paixões como equivalente ao abandono do próprio destino a um jogo de azar. Ademais, mesmo vencendo o homem só recebe bens temporários e finitos.
O fato de que humanos estão afortunadamente constituídos para receber os bens do mundo e a eles se inclinarem, praticamente «fadados» a buscar a própria felicidade, reforça a percepção de que só cedem às tentações e maus juízos de forma direta ou indiretamente involuntária. Contudo, isso não garante de modo algum a realização da felicidade; não para os que falham em perseguir o bem, não ainda para os próprios homens de boa vontade que perseveram na virtude e elegem majoritariamente os fins nobres e justos.
Contra a ingenuidade -poder-se-ia dizer até heresia- dos que esperam recompensas da Providência na forma de felicidade neste mundo, Aquino ressalta o drama de Jó como prova de que, mesmo no Antigo Testamento, a justiça divina não opera com vistas à satisfação e prosperidade terrenas.
A ideia de Tomás, então, é a de que as coisas que acontecem a uma pessoa ao longo da vida só podem ser explicadas com referência ao seu estado no Além [...]
Do ponto de vista de Aquino, o problema que impede a Providência de permitir uma vida idílica na terra é a natureza pecaminosa dos seres humanos, os quais estão sujeitos a pecar até por pensamentos. Mas para aqueles cujos pensamentos e atos são malignos não é possível viver alegremente com Deus na vida futura. Assim, Deus, que ama suas criaturas apesar de seu mal, aplica-lhes sofrimento medicinalmente26.
Nosso instinto de bem-estar nos leva a crer que este procedimento é por demasiado amargo, exatamente porque nossa perspectiva temporal e mundana nos faz olvidar a desproporção entre esta curtíssima e limitada vida e a próxima. Só assim se explica o fato de que precisamente as melhores almas acabam por receber os piores fardos.
Este paradoxo ou «mistério», explica Eleonore Stump, é facilmente afastado pela perspectiva dilatada da vida futura, e os justos não apenas compreendem que seu sofrimento presente é limitado como também se rejubilam de que Deus se valha deles para exemplificar a resignação e o desapego aos outros27. Segundo Tomás, portanto, os sofrimentos de Jó, Paulo ou do próprio Cristo testificam a frugalidade do contentamento mundano e sua incapacidade de constituir fim último. Mas aqui há um perigo, a saber, o de transferir as formas de contentamento sensível e corpóreo para a vida futura, tornando-a uma compensação sensível final às privações terrenas. Tal conclusão ignora francamente a definição tomasiana sobre as apetições da alma, que já diferenciara as inclinações sensíveis da espiritual ou voluntária. Aquele fim último em vistas do qual a alma nobre suporta abnegadamente todas as provações não é da mesma ordem que os fins (igualmente justos) sensíveis, que objetivam o bem-estar. Não se trata, portanto, de um comércio onde se perde hoje para receber-se em dobro amanhã, mas de um estado de consciência superior que faz a alma pairar acima dos fins transitórios em função da irrelevância que eles adquirem frente ao fim último, que é subjetivo.