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Revista de la Facultad de Derecho y Ciencias Políticas

Print version ISSN 0120-3886

Rev. Fac. Derecho Cienc. Polit. - Univ. Pontif. Bolivar. vol.46 no.124 Medellín Jan./June 2016

 

Manifestações populares no Brasil: a crise política do Estado Constitucional brasileiro e o direito achado nas ruas

Popular manifestations in Brazil: the political crisis of the Brazilian constitutional state and the law found on the streets

Les manifestations populaires au Brésil: la crise politique de l'État constitutionnel brésilien et le droit assumé dans les rues

Manifestaciones populares en Brasil: la crisis política del Estado Constitucional brasileño y el derecho asumido en las calles

Renato Braz Mehanna Khamis*

* Professor do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Santa Cecilia - UNISANTA. Professor do Curso de Graduação em Direito da mesma instituição. Mestre e Doutor em Direito pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Advogado em Santos/SP. Correio eletrônico: renato@mehanna.adv.br. - http://orcid.org/0000-0001-8306-9174.

Cómo citar este articulo: Khamis, R. (2016). Manifestaçães populares no Brasil: a crise política do Estado Constitucional. Revista de la Facultad de Derecho y Ciencias Políticas, 46(124), pp. 47-64.

Recibido: 10 de agosto de 2015. Aprobado: 1 de febrero de 2016.


Resumo

O presente trabalho tem como objetivo analisar a relação entre as manifestações populares ocorridas no Brasil em junho de 2013 -e que se repetiram em março de 2015-, a crise política do Estado constitucional brasileiro e o direito achado nas ruas. Para tanto, será analisada a participação popular na vida política no Brasil em pleno sáculo xxi, levando em consideração a nocáo de legitimidade, assim como a relação entre liberdade e não dominação.

Palavras-chave: Manifestações populares; crise política; direito achado nas ruas.


Abstract

This study aims to analyze the relationship between the popular manifestations that took place in Brazil in June 2013 - that were repeated in March 2015, the political crisis of the Brazilian constitutional State and the law found in the streets. To do so, we will analyze the popular participation in political life in Brazil in the twenty-first century, taking into account the concept of legitimacy, as well as the relationship between freedom and non-domination.

Key words: Popular manifestations; political crisis; law found on the streets.


Résumé

Cet article vise à analyser la relation entre les manifestations populaires au Brésil en Juin 2013 et qui seront répétées en Mars 2015, la crise politique de l'État constitutionnel brésilien et le droit assumée dans les rues. Par conséquent, il est analysé la participation populaire á la vie politique du Brésil au XXIe si&ècle, en tenant compte de la notion de légitimité, et la relation entre liberté et non domination.

Mots-clés: Manifestations populaires; crise politique; droit assumá dans les rues.


Resumen

El presente trabajo tiene como objetivo analizar la relación entre las manifestaciones populares ocurridas en Brasil en junio de 2013 -y que se repetirán en marzo de 2015-, la crisis política del Estado Constitucional brasileño y el derecho asumido en las calles. Por tanto, será analizada la participación popular en la vida política de Brasil en pleno siglo xxi, teniendo en cuenta la noción de legitimidad, así como la relación entre libertad y no dominación.

Palabras clave: Manifestaciones populares; crisis política; derecho asumido en las calles.


Introdução

O presente trabalho tem como objetivo analisar a relação existente entre as manifestaçães populares ocorridas nos meses de julho de 2013 e março de 2015 no Brasil e a crise política institucional vivida neste país.

Para atingir essa finalidade iniciaremos nosso percurso pelo estudo da crise política institucional do Estado Constitucional brasileiro, o que será feito atravás da análise da tácnica da representação política no Brasil, e que nos permitirá aferir se a crise em questão possui de fato contornos institucionais.

Em seguia, passaremos à análise do problema da folha de papel, ocasião em que, a partir da famosa frase cunhada por Ferdinand Lassalle, verificaremos o tamanho do descompasso entre o direito produzido pelo Estado brasileiro e os anseios da população do país. Note-se que já partimos da premissa de que há um descompasso, uma vez que as próprias manifestaçães aqui mencionadas por si sós demonstram isso.

Constatado o grau do descompasso existente entre o direito do Estado e os anseios populares, passaremos então a investigar a legitimidade da Constituição frente às fontes de produção e de legitimação do Direito. É neste ponto que aprofundaremos o tema da legitimidade, abordando a relação existente entre liberdade e não dominação.

Ao final, após percorrermos o percurso aqui apresentado, passaremos às nossas consideraçães finais.

1. A crise política do Estado Constitucional brasileiro

No mês de junho de 2013 o Brasil "parou" por conta de uma sárie de manifestaçães populares que tomaram as ruas das principais cidades do país.

Em que pese possamos identificar diversas manifestações populares ao longo da história nacional -muitas delas recorrentes, tais como aquelas de categorias profissionais ou movimento sociais-, somente poucas vezes vimos algo de tão grande proporção. Isto porque, ao contrário de outras manifestações "ordinárias", cujo escopo fica restrito a um grupo de pessoas em determinada situação, desta vez a amplitude do reclamo popular alcançou patamares poucas vezes antes vistos, conseguindo reunir indivíduos de grupos diferentes, com interesses e ideologias políticas distintas, todos eles em torno de um mesmo ideal: um Brasil melhor e mais justo.

É importante ter em mente que tudo começou com uma manifestação feita na cidade de São Paulo por um grupo específico, qual seja, pelo Movimento Passe Livre1, grupo que defende a gratuidade do transporte público e que tomou as ruas para protestar contra o aumento de R$ 0,20 (vinte centavos) da tarifa cobrada aos usuários de ônibus e metrô. No entanto, as primeiras manifestações deste grupo foram reprimidas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. O ponto á que, após a repressão policial ter sido considerada violenta e desproporcional por parte da opinião pública, diversas pessoas não vinculadas àquele movimento aderiram às suas manifestações.

Todavia, visando esvaziá-las os governos municipal e estadual decidiram recuar e não aumentar o preço da tarifa do transporte público. Mas aí já era tarde. A insatisfação que há muito tomava conta do povo brasileiro espalhou-se por todo o território nacional. Era possível encontrar manifestações populares na maioria das capitais brasileiras, bem como em cidades importantes do interior. E o motivo agora não era mais o valor do transporte público, mas sim o fim da corrupção, a melhoria na qualidade dos serviços públicos e o acesso aos direitos fundamentais previstos na Constituição brasileira, especialmente, no último caso, saúde e educação. A partir desse momento passou a ser comum ouvir da população a seguinte frase: O motivo não é apenas os R$ 0,20 (vinte centavos). É tudo! Está tudo errado.

Nos parece que uma manifestação dessa amplitude, que conseguiu espalhar-se pelo território nacional, reunindo todos os setores da sociedade organizada -homens e mulheres de todas as idades, de todas as raças, pertencentes a todas as classes sociais- só foi vista uma única vez na história brasileira: trata-se do movimento Diretas Já2. Cremos que nem mesmo o movimento Fora Collor, que buscava o impeachment do ex-presidente da República Fernando Collor de Mello, alcancou essa proporção.

Mais de um ano depois, o quadro se repetiu. Em março de 2015 a população brasileira foi às ruas, mas agora pedindo especificamente o fim da corrupçãoapós o escôndalo do desvio de bilhões de reais da Petrobrás3- e reiterando o pedido de participação mais efetiva na vida política do país, como forma de controle da representação política.

No entanto, a amplitude alcançada pelas manifestações populares de julho de 2013 e de março de 2015 á um produto do seu tempo. Tanto á assim que as convocações para as manifestações foram feitas pelas redes sociais, sendo destinadas ao público em geral, indicando dia, hora e local aonde os manifestantes iriam-se reunir para iniciar a manifestação, ou seja, comparecia quem quisesse. Aliás, em pleno sáculo XXI não poderia ser diferente. Afinal, vivemos a era da informação num mundo globalizado. Desta forma, os novos mecanismos tecnológicos disponíveis para a população foram sendo por ela adaptados á realidade política vivida, a ponto de permitir que as redes sociais -originalmente criadas para a manutenção e criação de relacionamentos interpessoais via internet-transformassem-se em instrumento de mobilização social, bem como de cobrança, seja por meio do contato direto com os gestores públicos atravás dos seus perfis ou mesmo por intermádio da difusão de posts e vídeos que, com um único click, são rapidamente compartilhados com as pessoas do resto do país ou atá mesmo do mundo.

Entretanto, o ponto central é que as novas tecnologias servem de instrumento para viabilizar a participação política da população numa atuaç&ão realizada totalmente à margem do Estado. Aliás, o objeto do reclamo popular era justamente o Estado, seja por sua ineficiência ou por ignorar solenemente o interesse público, não tendo sido poupada da crítica uma única instituição pública estatal, e nem mesmo um único gestor público. Em suma, ao sair às ruas para manifestar a sua insatisfação com a gestão da coisa pública no Brasil, a população escancarou a crise política que vive o Estado Constitucional brasileiro.

A partir dessa constatação a questão que se coloca é a seguinte: trata-se de uma crise de representação ou estamos diante de uma crise institucional?

No que se refere à crise da representação, Rogério Khamis (2013) afirma que a técnica do mandato representativo, como forma de participação política, está em crise, na medida que ingressou num círculo vicioso, uma vez que se converteu em instrumento de dominação, chegando ao extremo de, na forma em que está institucionalizada, cultivar uma espácie de "oligarquia velada" (p.81).

Nesse diapasão, parece acertada a constatação do autor, haja vista que as manifestaçães de julho de 2013 e março de 2015 demonstraram justamente o descontentamento da população com a classe política, a qual constitui exatamente a "oligarquia velada", por ele mencionada. Isto posto, a população não se sente representada porquê de fato a classe política não a representa, pois, a atuação desta última perante as instituiçães públicas às quais tem acesso visa atender exclusivamente aos seus próprios interesses. Portanto, a tácnica do mandado representativo transformou-se num instrumento de dominação nas mãos da classe política.

Porém, é preciso atentar que o autor mencionado não defende a ruptura absoluta com essa técnica, nem mesmo a consequente retomada do mandato imperativo -tácnica antecessora-, porque reconhece que este último não mais se adéqua aos dias atuais. O que ele propõe é simplesmente a análise (e a reanálise) constante da técnica do mandato representativo, mas sempre com vistas a sua finalidade originária, evitando, assim, que ele seja desvirtuado e convertido em meio de dominação, como ocorreu no Brasil:

Diante da constatação supramencionada resta clara a necessidade de se avaliar para que e com que intuito foi criada a representação política. É preciso analisar se este intuito está sendo atingido pela prática jurídica. E mais, se dentro do sistema jurídico nacional a realização da representação política está sendo efetivada como intencionada pelo sistema e, principalmente, pelos titulares do poder, ou seja, pelo povo ( Khamis, Rog'erio, 2013, p. 82).

Não obstante,na constatação da existência de uma crise de representação -a qual possui contornos oligárquicos-, é preciso atentar ao fato de que os mecanismos de participação política, bem como as exigências para a gestão pública, encontram-se todos eles devidamente institucionalizados, estando muitos deles, inclusive, previstos dentro da própria Constituição brasileira. Assim, por estarem eles previstos em normas jurídicas emanadas pelo Estado, estão todos eles acobertados pelo manto da coercibilidade, o que lhes confere imperatividade e, ao mesmo tempo, lhes protege de práticas que lhes sejam contrárias. Desta forma, ao serem institucionalizados, convertem-se nos pilares das instituiçães nacionais. Por esta razão a crise vivida á tambám institucional.

Todavia, quando se fala em crise institucional não se deve atribuir a esta afirmação contornos anárquicos. Afinal, não se busca o fim das instituições e, consequentemente, o fim do Estado, mas apenas o realinhamento das instituições -de suas normas, valores e finalidades- com os anseios da população do Estado. É exatamente esta a conclusão apresentada por Nogueira (2014) em sua análise sobre a atual crise institucional:

A sociedade não morreu; foi apenas redefinida. A política não desapareceu; foi desorganizada e posta em um plano mais técnico que ético, que não emociona nem inspira confiança. Ela precisa ser plenamente reabilitada: repolitizada, de modo a que o conflito substantivo, as ideologias e os cidadãos sejam postos de novo no coraço do Estado (p. 110).

Como vimos nas manifestaçães de julho de 2013 e marco de 2015, o anseio da população é o de participar de forma mais ativa e efetiva da vida política, atuando mais próximo das tomadas de decisões políticas, mas sempre com a possibilidade de interferir concretamente nesse processo. Neste sentido, analisando as referidas manifestações, Antônio Fernando Pinheiro Pedro constata o que segue:

De fato, estamos presenciando a transição do tradicional Estado Nacional, republicano e democrático, baseado no regime representativo, cameral, constituído por poderes independentes (legislativo, executivo e judiciário), cartorial e burocratizado, para um novo Estado Nacional, republicano e democrático, porém baseado em um novo regime participativo, mais dinâmico e consentâneo com a realidade tecnológica e interativa vivida hoje por nossa civilização. Um Estado globalmente articulado e focado num ambiente de regulação, de controle social sobre serviços, poderes e bens (2013).

Isso posto, fica claro que o Estado Constitucional brasileiro vive uma crise política que não é meramente representativa, mas essencialmente institucional, na medida em que as instituições nÃo atendem aos anseios de participação social na vida política, bem como se recusam a utilizar o instrumental tecnológico disponível para essa finalidade, e tudo isto porque os representantes eleitos se utilizam de técnicas deturpadas e ultrapassadas, cujo intuito é a manutenção do status de dominação por eles estabelecido.

2. O problema da Folha de Papel

A crise política no Brasil, que como vimos é institucional, encontra-se enraizada no desencontro entre as técnicas utilizadas para a implementação e para o exercício dos direitos políticos garantidos no âmbito da Constituição brasileira e os anseios de participação política da população nos dias atuais. Isto porque, assim como ocorre com as manifestações populares, também a Carta Magna de um Estado é produto do seu tempo.

Em sendo assim, a Constituição brasileira de 1988 é produto do momento histórico de sua criação. Atente-se que, ainda que em diversas passagens o texto constitucional tenha sido pensado visando o presente e também o futuro -v. g. a previsão de proteção do meio ambiente para as gerações vindouras (artigo 225)-, o constituinte originário não tinha como saber que, na segunda década do século XXI, as pessoas estariam conectadas ao redor do mundo entre si através da internet. E pior, que isto poderia ser feito de qualquer lugar, por intermédio de um dispositivo portátil, que caberia no bolso de cada um. Mais do que isso, para o constituinte originário a apuração dos votos decorrentes do sufrágio universal seria contabilizada manualmente, e poderia levar dias para apresentar o resultado final.

Como se percebe, o que se busca aqui ressaltar é que a Constituição brasileira abordou a participação política da população dentro dos parâmetros históricos e tecnológicos de 1988, pois era impossível saber como seria o mundo 25 anos depois.

Isso significa, portanto, que a Constituição deve se adequar aos anseios populares deste novo presente, como forma de preservar a sua legitimidade. É justamente para isto que estão disponíveis os mecanismos da reforma constitucional e da mutação constitucional. O primeiro é o responsável pelas alterações do texto da Constituição4. Já, o segundo cuida de atualizar a interpretação dos dispositivos constitucionais á luz do contexto histórico vivido -note-se que ele está sempre limitado pelo conteúdo do texto, não podendo apresentar um resultado interpretativo que o subverta5-.

Pois bem, o problema é que a participação política prevista na Constituição brasileira foi atualizada pelos representantes do povo apenas no que toca á utilização das urnas eletrônicas. E somente porque elas facilitam a obtenção do resultado da apuração, e também, em tese6, diminuem o risco da ocorrência de fraudes. Fora isso, nenhum outro mecanismo tecnológico foi implementado como forma de melhorar ou ampliar a participação popular na vida política.

Dito isso, a distáncia existente entre o anseio de participação da população na vida política e a forma de implementação dos direitos políticos previstos na Constituição brasileira culminou na crise experimentada nos dias atuais. Afinal, de um lado o Estado acena com a garantia dos direitos políticos, limitados á participação quadrienal, por meio do sufrágio universal, no âmbito de cada ente federativo, e de outro o cidadão quer participar de forma mais próxima e com mais frequência dos atos da vida política, pleiteando, inclusive, a utilização dos meios tecnológicos disponíveis.

Isso posto, é justamente esse distanciamento entre a efetivação dos direitos políticos previstos na Constituição do Estado e o anseio popular de participação na vida política que nos leva ao problema da folha de papel.

Um dos clássicos da literatura jurídica é a obra A essência da Constituição, de Ferdinand Lassalle. Fruto de uma conferência proferida pelo autor em 1863 para intelectuais e operários da antiga Prússia, esta obra, considerada por muitos há tempos superada, merece, ao nosso ver, ser relembrada nos dias atuais.

Na referida obra o autor analisa a Constituição dentro de uma perspectiva eminentemente revolucionária, fazendo uma análise comparativa entre a Constituição escrita e a Constituição real. Segundo pontua, a primeira consiste na lei fundamental de uma nação, sendo assim reconhecida por ser básica, por constituir o fundamento das outras leis e por tratar temas necessários à sociedade (Lassalle, 2001). Já a segunda é o reflexo dos fatores reais de poder, definidos como a "força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são" (pp. 10-11).

A questâo é que, conforme pontua o autor, a Constituição escrita deve corresponder à Constituição real, pois só assim ela será considerada boa e duradoura. Se, pelo contrário, existir discrepância entre elas, fatalmente prevalecerá a segunda, sendo a primeira reduzida a mera folha de papel(Lassalle, 2001).

Não temos dúvida de que a forma de apresentação da posição de Lassalle é um pouco simplificada e deixa de lado questões de suma importância, como aquela pertinente à força normativa da Constituicáo. Afinal, como alerta Konrad Hesse, "a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade" (1991, p. 14). Isto significa, pois, que a Constituicáo escrita -chamada por Hesse de Constituição jurídica-e a Constituição real se encontram em relação de coordenação. Portanto, "elas condicionam-se mutuamente, mas não dependem, pura e simplesmente, uma da outra" (Hesse, 1991, p. 15). Isto porque, de um lado, a norma da Constituição escrita precisa da realidade para se concretizar, e de outro, a Constituição real precisa da regulamentação própria das normas jurídicas para implementar direitos ansiados por determinados grupos que atuam no jogo dos fatores reais de poder.

Todavia, em que pese reconheçamos a força normativa da Constituição, acreditamos que a posição apresentada por Lassalle não deve ser absolutamente desconsiderada, pois esta dotada de alto valor simbólico. Nos parece que a menção à folha de papel, feita pelo autor, tem antes de mais nada um caráter performático, o qual busca enfatizar a necessidade de adequação entre a Constituição escrita e a Constituição real, ressaltando, com isto, o caráter revolucionário e legítimo das manifestações populares que buscam a implementação de uma Constituição estatal que se conforme com os anseios da população por ela regulada.

Desta forma, ainda que a Constituição escrita seja dotada de força normativa, é legítima a manifestação popular que vise a sua adequação -ou substituição por outra que se adeque- aos anseios da população.Esta adequação -ou coordenação, como prefere Hesse- atribui legitimidade à Constituição do Estado. Por outro lado, o direito à derrubada da Constituição estatal ilegítima é uma garantia contra a dominação.

Dito isso, trazendo a discussão teórica para a prática, podemos constatar que a Constituição do Brasil -ou ao menos a forma de implementação de alguns direitos nela previstos- está em descompasso com os anseios da população brasileira, especialmente no que diz respeito à participação na vida política. Isto posto, caso não seja reestabelecido o equilíbrio entre Constituição escrita e Constituição real no que toca à forma de participação popular na vida política, corre-se o risco de transformar os direitos políticos -que por sua vez so direitos fundamentais- em mera folha de papel.

3. A legitimidade da participação política da população e o direito achado nas ruas

O problema da folha de papel, levantado por Lassalle, nos mostra que um direito, por mais que seja proveniente do aparato estatal e que se encontre devidamente institucionalizado, somente encontrará sustentação quando estiver amparado pelo corpo social, ou seja, pela sociedade por ele regulada. Esta sustentação a que nos referimos corresponde à legitimidade do direito, pois sem ela o direito constituiria mero instrumento de dominação. A este respeito Roberto Lyra Filho afirma o que segue,

Uma exata concepção do Direito não poderá desprezar todos esses aspectos do processo histórico, em que o círculo da legalidade não coincide, sem mais, com o da legitimidade, como notava, entre outros, inclusive o grande jurista burguês Hermann Heller. Diríamos até que, se o Direito é reduzido á pura legalidade, já representa a dominação ilegítima, por força desta mesma suposta identidade; e este "Direito" passa, então, das normas estatais, castrado, morto e embalsamado, para o necrotério duma pseudociência, que os juristas conservadores, não à toa, chamam de "dogmática". Uma ciância verdadeira, entretanto, não pode fundar-se em "dogmas", que divinizam as normas do Estado, transformam essas práticas pseudocientíficas em tarefa de boys do imperialismo e da dominação e degradam a procura do saber numa ladainha de capangas inconscientes ou espertos (1982, p. 5).

Com as devidas ressalvas à repulsa dogmática do autor -na medida em que reconhecemos o papel da dogmática na ciência do direito7-, acreditamos que uma ciência social puramente esquematizada, estanque, estará em descompasso com o seu objeto de estudo. Afinal, a ciencia do direito não analisa apenas a estruturação e organização das normas dentro do aparato jurídico estatal (dogmática), mas deve igualmente se ocupar do impacto produzido no meio social pelas normas provenientes do Estado, indagando se a norma reproduz os anseios da população; se a finalidade perseguida é de interesse público; se a norma cria ou protege direitos almejados pelo corpo social, e qual o seu impacto na sociedade. Esta análise tambám constitui objeto de estudo do cientista do direito (zetática)8.

O fato é que o direito é produto da sociedade. É ela quem cria o direito, seja diretamente ou através dos seus representantes, visando pacificar as relações sociais, bem como alcançar os objetivos por ela almejados. Portanto, é possível concluir que direito é liberdade. Mas não qualquer direito: somente o direito legítimo. Pois o direito ilegítimo configura a mais tradicional forma de dominação.

A partir dessa constatação podemos verificar que, se o direito, por um lado, deve ser proveniente de uma fonte estatal, ou ao menos estar autorizado por uma fonte dessa natureza -como á a regra no ordenamento jurídico brasileiro-, e, por outro, precisa encontrar amparo no corpo social, sob pena de se caracterizar como mero instrumento de dominação.

Entretanto, no que diz respeito à dominação, recorremos à teoria da não dominação de Ian Shapiro. Isto porque ela vem de encontro ao que afirmamos anteriormente. Afinal, se direito legitimo é liberdade e direito ilegítimo é dominação, somente uma teoria que analise a dominação sob a ótica da liberdade -e não mais como um summum bonum, como faz a orientação tradicional- poderá apresentar um resultado concreto orientador e legitimador da ação humana, e não meramente ideal. Nesse sentido o autor concebe a não dominação como uma espécie de liberdade (Shapiro, 2012).

Todavia, por ser a não-dominação um conceito negativo, faz-se necessário analisar primeiro no que consiste a dominação, o que é feito pelo autor da seguinte forma:

We experience domination when our freedom is curtailed because we are in the power of others, be they slaveholders, torturers, spouses, or employers. This is not to insist that domination always results from conscious human agency. Domination can be experienced as a by-product of political, social, and economic structures. Such structures are not reducible to human agency, but they could not exist without it. This human element differentiates domination from other kinds of unfreedom, and it means that appeals to eliminate sources of domination are always in some sense - however attenuated - directed at changing things that human beings do.(Shapiro, 2012, p. 307)

O trecho citado nos permite concluir que a dominação nada mais é do que uma falta de liberdade. No entanto, não se trata de uma falta de liberdade qualquer, haja vista que, ao contrário de outras espécies de falta de liberdade, esta consiste em um subproduto das estruturas políticas, econômicas e sociais. Além disso, a dominação também se diferencia das demais faltas de liberdade por ser passível de alteração pelos seus responsáveis, isto é, pelos agentes da dominação, sendo possível que estes a modifiquem conforme a necessidade, ora aliviando, ora intensificando a dominação (Shapiro, 2012).

Diante disso, parece claro que as manifestações de junho de 2013 demonstraram que o aparato estatal institucionalizado pela Constituição brasileira se presta à dominação da populacáo pela classe política -formada majoritariamente pelas velhas oligarquias-, e não à gestão dos assuntos políticos de forma participativa, visando atender aos reais anseios da sociedade, como deveria ser. E não poderia ser diferente, na medida em que o Estado, enquanto fonte única e independente de produção do direito, converteu-se em centro único do poder, pois enquanto detentor do monopólio do direito afastou a população do seu processo de criação, gerando, assim, um abismo entre ele e a sociedade. É esta, aliás, a constatacáo de Boaventura de Sousa Santos:

A dicotomia Estado/sociedade civil ocultou a natureza das relações de poder na sociedade e é indiscutível que o direito contribuiu decisivamente para isso. A concepção do poder do Estado como a única forma de poder político-jurídico náo significou que não houvesse outras formas de poder na sociedade, mas converteu-os em poderes fáticos sem base jurídica autônoma e, em todo o caso, sem qualquer caráter político (2007, p. 175).

Isso posto, a deslegitimação do direito do Estado decorre de sua utilização como mecanismo de dominação. Portanto, os raros momentos em que a população é chamada a participar extraordinariamente do processo de produção do direito -o que é feito por meio dos mecanismos institucionais constitucionalmente previstos, tais como plebiscito e referendo- configuram mera esmola democrática a ela oferecida. Afinal, como mencionado há pouco durante a análise da lição de Shapiro, por vezes o agente da dominação poderá aliviá-la, mas mesmo nesses casos a dominação persistirá.

Todavia, é preciso ressaltar que o problema não está exclusivamente na Constituição brasileira, pois como ressaltamos anteriormente ela não passa de um produto do seu tempo. O problema real são os representantes do povo (agentes da dominação), que afastam a população do processo de produção do direito. Como se sabe, existe na Constituição brasileira previsão de utilização de plebiscito9, referendo10 e iniciativa popular11, mas enquanto os dois primeiros raramente são utilizados, o último possui requisitos tão limitadores que difícilmente conseguem ser alcançados12. Desta forma, como a utilização dos dois primeiros mecanismos constitui uma opção discricionária raramente exercida e cientes de que as exigencias para o último são extremamente complexas, resta claro que os mecanismos que viabilizariam a participação política efetiva da população na produção do direito foram sumariamente esvaziados.

Nesse diapasão, não resta dúvida de que se a Constituição brasileira tivesse previsto a utilização obrigatória do aparto tecnológico disponível para viabilizar a participação política da população o quadro seria diferente. Isto porque a democracia do sáculo XXI não é mais a democracia dos séculos XIX e XX, isto é, indireta, que se contenta em participar apenas de quatro em quatro anos por meio do sufrágio universal. Hoje a sociedade quer participar das escolhas políticas, seja na definição das políticas públicas a serem implementadas pela administração, seja no controle da qualidade e do preço dos serviços públicos prestados ou mesmo na chancela das leis oriundas do processo legislativo, ou ainda na escolha da destinação das verbas para a formação do orçamento público.

Contudo, o mais chocante é que, com a tecnologia atualmente disponível, isto poderia ser feito com apenas um click, sem a necessidade de sair de casa, simplesmente utilizando um software destinado exclusivamente à consulta popular, viabilizando, assim, a participação direta da sociedade na vida política. Mas isto não é feito, pois a oligarquia composta pela classe política, isto é, os agentes da dominação, utilizam o aparato institucional previsto na Constituição brasileira como instrumento de dominação. No entanto, ao agirem desta forma, violam a liberdade que a Constituição brasileira -limitada pelos termos de sua época- tentou assegurar à sociedade. Isto, por sua vez, culminou na deslegitimação do aparato institucional previsto constitucionalmente para a participação popular na vida política, o que significou a restrição dos direitos políticos a um mínimo previsto de forma impositiva pela Constituição brasileira.

No entanto, esse mínimo não atende mais aos anseios da população, o que leva a sociedade a exigir do Estado a institucionalização de mecanismos tecnológicos contemporâneos que viabilizem a sua participação política. Esta institucionalização pode ser feita dentro da própria Constituição brasileira ou mesmo por intermédio da legislação infraconstitucional. Mas precisa ser feita. Pois só assim será possível alcançar a plenitude dos direitos políticos. Afinal, sem a sua institucionalizaço, nço há como garantir que os agentes da dominação não vão aliviar a dominação por certo tempo para, depois, voltar a intensificá-la.

4. Considerações finais

Conforme pudemos constatar, as manifestaçães de junho de 2013 e março de 2015 são o retrato da insatisfação da população brasileira com a classe política que a representa. Isto porque a sociedade não enxerga os seus representantes como pares, e sim como uma oligarquia que zela pela manutenção do status quo de dominação, o qual visa exclusivamente a preservação dos interesses e privilégios desta oligarquia. Esta dominação, por sua vez, é exercida pelo aparato de coercibilidade é disposição do Estado.

Dessa forma, ao utilizarem o monopólio direito do Estado como instrumento de dominação, os agentes da dominação excluem deliberadamente ´à população da vida política, limitando a atuação da sociedade ao sufrágio universal quadrienal, ou seja, ao mínimo previsto pela Constituição brasileira.

Entretanto, em pleno século XXI esse mínimo não é mais suficiente, e a população organizou-se para exigir mais. Ela quer participar ativamente da vida política. Quer ter controle sobre os atos praticados pelos seus representantes. Em outras palavras: quer equilibrar o jogo do poder. Mas quer tudo isso de forma institucional, isto é, quer ser um foco de poder reconhecido pelo direito do Estado e atuando no seu processo de produção.

Inclusive, a população refutou as alegações tradicionais de inviabilidade de sua participação com maior frequência na vida política, isto ao demonstrar que o aparato tecnológico existente na atualidade permite a participação popular na vida política com rapidez e agilidade.

A população cansou-se de leis que não atendem aos anseios populares. Não suporta mais o esvaziamento dos direitos previstos na Constituição brasileira. Por isso foi às ruas e mostrou que o direito só é legítimo, e que, portanto, só há liberdade quando o direito do Estado reflete os anseios da sociedade por ele regulada. A sociedade foi às ruas para concretizar a Constituição brasileira, buscando, assim, impedir a sua transformação em mera folha de papel.


Notas

1Para maiores informacóes vide: <http://www.mpl.org.br>.
2O movimento Diretas Já almejava o fim do regime militar no Brasil, baseado em eleiçães indiretas, com o consequente restabelecimento das eleiçães diretas.
3Para maiores informacóes vide: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/11/1548049-en-tenda-a-operacao-lava-jato-da-policia-federal.shtml>.
4Deixamos de lado, por hora, as discussões a respeito da natureza desta manifestação reformadora, isto é, se trata-se de um Poder Constituinte (Mendes & Branco, 2013, p. 118) ou de um Poder Constituido (Tavares, 2013. p. 150).
5Também aqui não adentraremos a questão da natureza da mutação constitucional, quer dizer, trata-se da manifestação de um Poder Constituinte Difuso (Barroso, 2010, p. 128), ou de um mecanismo de interpretação das normas constitucionais (Tavares, 2013, pp. 184-185). Até porque já tivemos a oportunidade de manifestar nossa opinião em reflexões já publicadas (Khamis, Renato, 2013).
6São vastos os textos e videos disponiveis apontando a inseguranca da urna eletrônica, assim como os casos de suspeita de manipulação de urnas. Dentre eles destacamos o caso da equipe na Universidade de Brasilia - UnB que, após análise da urna eletrônica, conseguiu comprovar a possibilidade de manipulação do dispositivo (Aranha, 2014).
7Nesse sentido Ferraz Jr., 1994, p. 48.
8Nesse sentido Ferraz Jr., 1994, p. 43.
9Const., 1988, Art. 14, Inc. I.
10Const., 1988, Art. 14, Inc. I.
11Const., 1988, Art.14, Inc. III.
12Const., 1988, Art. 61, §2°.


Referencias

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