Introdução
A Endodontia foi recentemente beneficiada pelo desenvolvimento e difusão de novas tecnologias para diagnóstico e análise da anatomia dentária, assim como para o preparo químico-mecânico e obturação do sistema de canais radiculares. Contudo, no mesmo período, os estudos envolvendo a análise de índices de sucesso e insucesso de tratamentos e retratamentos endodônticos pouco variaram em seus resultados, permanecendo entre 69% e 100% de sucesso, sendo que os retratamentos apresentam os menores índices 1-3.
A causa mais apontada pelo “senso comum” para o insucesso endodôntico consiste na permanência de microrganismos viáveis no interior do canal radicular, devido à complexidade anatômica ou a falhas técnicas durante os procedimentos operatórios. Entretanto, são escassos os estudos que tratam deste tema com exatidão e que, portanto, podem concluir quais falhas realmente impactam no desfecho do tratamento 4-5.
A maior revolução da Endodontia contemporânea, possivelmente, foi a disseminação de técnicas de preparo automatizados, com uso de sistemas que utilizam limas rotatórias ou reciprocantes. Tais instrumentos ainda passam por constante evolução, mas foram decisivos, comparados à utilização da técnica manual, para a diminuição do tempo de trabalho 6, facilidade e segurança durante a ampliação do canal radicular, assim como para a correta manutenção de sua anatomia 7.
No Brasil o uso de instrumentos automatizados é bastante presente no cotidiano do especialista em Endodontia, porém apenas recentemente alguns cursos de Odontologia introduziram o ensino das técnicas automatizadas durante a graduação, trazendo uma nova perspectiva educacional capaz de atenuar a dura realidade do ensino e da aprendizagem da Endodontia. A literatura científica é escassa de evidências a respeito do impacto da instrumentação automatizada no sucesso de procedimentos endodônticos e no aprendizado, especialmente em casos realizados por acadêmicos em Odontologia. Somado a isto, identifica-se pouca evidência a respeito de fatores técnicos, anatômicos e patológicos locais como preditivos para o risco de insucesso de um tratamento ou retratamento endodôntico, independentemente da técnica empregada e do nível de aprendizado do operador.
Desta forma, é objetivo deste trabalho determinar o índice de sucesso e os fatores preditivos para o sucesso, incluindo os métodos de trabalho de alunos com o mesmo nível de aprendizado, de trwatamentos e retratamentos endodônticos realizados por alunos de graduação em Odontologia da UFPel com período de proservação de até 2 anos.
Material e métodos
Este foi um estudo observacional longitudinal retrospectivo, utilizando informações disponíveis em prontuários de pacientes atendidos por alunos do último ano de graduação na Faculdade de Odontologia da UFPel, durante o período de janeiro de 2017 a julho de 2018. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (parecer CAAE: 06198819.6.2001.5317).
Foram avaliados dados de anamnese, exame clínico e radiográfico inicial dos pacientes atendidos, além de serem realizados controles clínicos e radiográficos pós-operatórios dos mesmos, de forma a incluir na amostra apenas os indivíduos com, no mínimo, 12 meses de proservação do tratamento. Os dados relativos ao diagnóstico inicial, aos tratamentos ou retratamentos endodônticos e à proservação foram tabulados e armazenados em um banco de dados. Os exames radiográficos do início e do final do tratamento, assim como da proservação (radiografias periapicais) foram digitalizados utilizando um scanner fotográfico HP Scanjet G4050 (HP Brasil, Barueri, SP, Brasil) e salvos em arquivos TIFF, com resolução de 300 dpi e tamanho de 100%.
Foram consideradas como variáveis preditivas no desfecho de sucesso de tratamentos ou retratamentos endodônticos os seguintes aspectos iniciais: dente (anterior, pré-molares ou molares), número de canais, sintomas (ausentes, ausentes com antecedentes ou presentes); coroa dentária (hígida, restaurada, cariada, dente previamente abordado); diagnóstico pulpar de pulpites irreversíveis, necroses pulpares e tratamentos endodônticos previamente realizados com necessidade de retratamento 8; índice periapical radiográfico (Periapical Index, PAI) 9. Como variáveis técnicas, foram consideradas: técnica de instrumentação (manual convencional ou reciprocante), número de sessões (sessão única, duas sessões, três ou mais sessões), e limite apical de instrumentação (1 mm aquém do CRD - com e sem patência, no CRD), mensurados a partir do uso do Localizador Apical Eletrônico Romiapex (Romidam, Kiryat Ono, Israel).
Todos os procedimentos endodônticos e restauradores foram realizados sob condições controladas e padronizadas, com supervisão de um professor de Endodontia. Os acadêmicos, após uma aula teórica expositiva, receberam instruções práticas a respeito da realização da técnica de instrumentação reciprocante e da necessidade do correto preenchimento das fichas do paciente e do acompanhamento do pósoperatório.
Independente da técnica escolhida para preparo dos canais, se manual convencional ou na reciprocante, os canais radiculares foram preparados com irrigação de NaOCl a 2.5% (Asfer, São Caetano do Sul, SP, Brasil), e ao final do preparo EDTA a 17% (Biodinâmica, Ibiporã, PR, Brasil). Nos casos onde mais de uma sessão foi necessária para o preparo dos canais, foi utilizada medicação à base de hidróxido de cálcio (Ultracal XS, Ultradent, Indaiatuba, SP, Brasil). A obturação com cones de guta-percha (Dentsply Sirona, São Paulo, SP, Brasil) e cimento endodôntico de Grossman Endofill (Dentsply Sirona, São Paulo, SP, Brasil) ocorreu na mesma sessão do preparo ou em uma segunda sessão, dependendo de fatores clínicos e relacionados ao operador, utilizando a técnica do cone único, com cones do sistema correspondente ao preparo, ou a técnica de condensação lateral.
As consultas de proservação foram realizadas entre 12 e 24 meses após a realização do tratamento. O sucesso clínico foi avaliado considerando os fatores determinados nas diretrizes da American Association of Endodontists-AAE em 1994 10: ausência de sintomatologia dolorosa, ausência de fístula ou tumefação nos tecidos circundantes, dente com mobilidade normal e em função na arcada dental. O sucesso radiográfico foi avaliado por um observador calibrado, verificada através do Coeficiente de Correlação Intraclasse, utilizando o Índice PAI 9. Foram considerados como sucesso os escores 1 (estrutura óssea periapical normal) e 2 (pequenas alterações na estrutura óssea, sem desmineralização) do PAI; enquanto que os demais escores foram considerados como fracasso: 3 (alterações na estrutura óssea, com perda mineral difusa), 4 (periodontite apical, com área radiolúcida bem definida) e 5 (periodontite apical severa, com características de exacerbação). Nos dentes multirradiculados, foi computado o pior escore como representativo deste elemento dentário, sendo assim, no caso de mesmo que apenas uma das raízes apresentar persistência da lesão o caso será computado como insucesso endodôntico.
A análise estatística foi realizada através do software SPSS versão 22.0 (SPSS Inc, Chicago, IL). Foram realizadas análises descritivas dos dados referentes aos dentes incluídos no estudo e índices de sucesso do tratamento endodôntico. Adicionalmente, foram realizados testes de associação entre as variáveis e o desfecho endodôntico de sucesso ou insucesso, utilizando teste Qui-quadrado com nível de significância de 5%.
Resultados
Um total de 136 tratamentos endodônticos realizados pelos alunos último ano do curso de Odontologia, com possibilidade de acompanhamento por pelo menos 12 meses, foram inicialmente incluídos neste estudo. Do total de casos, 42 (30.8%) eram de dentes com vitalidade pulpar, 66 (48.5%) eram de dentes sem vitalidade e 28 (20.58%) eram retratamentos. No entanto, a taxa de retorno alcançada, apóso período mínimo de 12 meses do tratamento foi de 61.8%, ou seja, 84 pacientes que enquadravam-se nos critérios de inclusão, retornaram para as consultas de controle, compondo a amostra final do estudo. Nestes 84 pacientes o índice geral de sucesso clínico e radiográfico do tratamento endodôntico foi de 91.7%. A frequência de sucesso e insucesso endodôntico e sua associação com as diferentes variáveis avaliadas está descrita na Tabela 1.
Apesar do índice de sucesso clínico e radiográfico ter variado de acordo com o diagnóstico inicial do caso, sendo de 96.7% para casos de polpa vital, 87.5% para os casos de necrose pulpar e 92.9% em retratamentos, essa variação no percentual de sucesso de acordo com o diagnóstico inicial do caso não foi estatisticamente significante (P = 0.454).
Apesar do percentual de sucesso ter sido maior nos casos realizados pela técnica de instrumentação reciprocante (93.2%), comparativamente aos tratamentos realizados pela técnica manual (87.5%), não foi possível observar uma associação estatisticamente significante da técnica de instrumentação com o resultado do tratamento (P = 0.325). Da mesma forma, as condições da coroa dentária no momento do início do tratamento e o limite apical de instrumentação, não influenciaram no prognóstico do tratamento endodôntico (P > 0.05).
O número de sessões utilizadas para o tratamento endodôntico foi um dos fatores que influenciou significativamente no sucesso clínico e radiográfico da terapia (P = 0.015). O sucesso alcançado nos casos finalizados em 3 ou mais sessões foi de apenas 40%; nível este significantemente menor que dos tratamentos realizados em 2 sessões (96.6%) ou em sessão única (94%).
O grupo dentário também mostrou-se um fator preditivo para o sucesso do tratamento endodôntico (P = 0.014), assim como o número de canais. Enquanto em dentes anteriores e pré-molares, que possuem anatomia do sistema de canais radiculares menos complexa, o sucesso do tratamento endodôntico foi de 97.3% e 100%, respectivamente, em molares, este índice caiu para 80%. Reforçando este resultado, quanto maior o número de canais encontrados em um elemento dentário, menor o índice de sucesso (P = 0.042). Também foi possível observar que quanto maior o PAI inicial, pior o prognóstico endodôntico (P < 0.001) em relação ao sucesso ou insucesso.
Discussão
Neste estudo retrospectivo, o sucesso do tratamento endodôntico foi avaliado a partir de critérios clínicos e radiográficos. A radiografia pós-operatória é um dos elementos-chave na determinação do sucesso da terapia endodôntica 11, sendo as radiografias periapicais o exame por imagem mais comumente empregado na avaliação do prognóstico endodôntico 12,14, uma vez que permitem avaliar o principal critério radiográfico de sucesso, que é a presença ou ausência de imagem radiolúcida na região apical. O Índice Periapical (PAI), utilizado neste estudo para classificar as alterações periapicais após o tratamento endodôntico 9], é aceito como instrumento válido para determinar resultados e revelar alterações da extensão e severidade da inflamação periapical após tratamento endodôntico 15.
A literatura aponta que o sucesso do tratamento endodôntico está intimamente relacionado à condição do tecido pulpar. No tratamento radical da polpa vital inflamada, a infecção, quando presente, é restrita à câmara pulpar e ao terço cervical; o sistema de canais radiculares e os tecidos perirradiculares não estão infectados 16. Assim, é encontrada uma alta taxa de sucesso para tratamentos endodônticos com polpa vital quando comparados aos tratamentos com polpa necrótica 17. Este fato foi parcialmente verificado no presente estudo, onde o índice de sucesso endodôntico variou de acordo com o diagnóstico, sendo maior o sucesso em casos de polpa vital (96.7%). No entanto, é importante salientar que a não houve associação estatisticamente significante entre o percentual de sucesso e o diagnóstico.
Com os avanços em endodontia, como a introdução do conceito de preparo do canal radicular utilizando um único instrumento de NiTi, com movimento reciprocante e equipamentos avançados, como localizadores eletrônicos de ápice e dispositivos de ampliação, reduziram o tempo necessário para o tratamento do canal radicular 18, permitindo que tratamentos endodônticos fossem mais facilmente realizados em uma única sessão clínica. Investigações comparando os sistemas manual, rotatórios e reciprocantes têm sido extensivamente realizadas 19-20. No nosso estudo não houve diferença significativa do sucesso endodôntico em relação ao modo de instrumentação dos canais, reciprocante ou manual convencional, sendo os índices encontrados, compatíveis com os índices de sucesso encontrados na literatura 18-21.
Atualmente, não há evidências de uma vantagem substancial em relação ao tratamento endodôntico em uma ou múltiplas sessões 22. A avaliação do sucesso do tratamento endodôntico é baseada em resultados a curto prazo (dor e/ou edema) ou resultados a longo prazo (taxas de cura) após a terapia endodôntica 23. Uma revisão sistêmica recente concluiu que as taxas de sucesso dos tratamentos de canal em única e múltiplas sessões foram semelhantes, independentemente da pré-condição da polpa e do ápice 24. Na nossa pesquisa houve diferença significativa entre número sessões, sendo que nos tratamentos realizado em 3 ou mais consultas as taxas de sucesso foram menores. A maior frequência de complicações pós-operatórias em múltiplas consultas está possivelmente associada à fatores como: lesões mecânicas, químicas ou microbiológicas dos tecidos periapicais 25-26. Esses fatores podem acontecer em razão da extrusão de debris contaminados 27, alterações na microbiota do canal radicular, preparação incompleta do canal radicular, medicação intracanal 28, uso de alta concentração de substâncias químicas ou frequência constante de manipulação do canal radicular e tecidos periapicais devido ao número de sessões necessárias para concluir o tratamento 29).
O sucesso da terapia endodôntica também está parcialmente relacionado ao conhecimento da anatomia dental interna e suas variações 30). O grupo dentário em nosso estudo influenciou no sucesso do tratamento endodôntico. O sucesso foi maior em incisivos e pré-molares quando comparados aos molares, apoiando os resultados de outros estudos 11-13-31-32. As razões para isso provavelmente são multifatoriais, incluindo, muitas vezes, o acesso comprometido nos dentes posteriores, instrumentação inadequada devido a morfologia complicada do canal radicular, uma vez que estes possuem uma anatomia mais complexa e maior grau de curvatura 13-31-33, além dos problemas de destreza manual do operador. Acredita-se que este último fator possa realmente ter influenciado nesta associação, uma vez que no presente estudo os tratamentos foram realizados por acadêmicos de Odontologia, que, de uma forma geral, possuem menos destreza que o profissional para acessar um dente posterior. Todavia essa questão só poderia ser confirmada se, no estudo, tivéssemos um grupo de dentes tratados por profissionais para realizar a comparação.
Em relação as taxas de sucesso dos tratamentos endodônticos desse estudo retrospectivo, a supervisão dos alunos por professores especialistas em endodontia pode ter contribuído para o sucesso. Além disso, as diretrizes da Faculdade de Odontologia da UFPel têm como objetivo respeitar a curva de aprendizado dos alunos, uma vez que realizam pela primeira vez, em nível laboratorial, as técnicas e os princípios da preparação endodôntica aprendidos. Após recomenda-se a realização de tratamentos endodônticos mais simples: o incisivo, canino e o pré-molar. E, na sequência do programa curricular, o aluno estará preparado para tratamentos mais avançados, permitindo uma possível confirmação de sucesso na relação ensino-aprendizagem.
Conclusão
Sob as limitações do presente estudo, o índice de sucesso do tratamento endodôntico foi de 96.7% para casos de polpa vital, 87.5% para os casos de necrose pulpar e 92.9% em retratamentos. Estes índices foram influenciados pelo dente tratado, número de canais, pelo PAI radiográfico inicial e pelo número de sessões utilizadas no tratamento.