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Pedagogía y Saberes

Print version ISSN 0121-2494

Pedagogía y Saberes  no.49 Bogotá July/Dec. 2018

 

Artículo de investigación

Método maquinatório de pesquisa

Método maquinatorio de investigación

Machinatory Research Method

Róger Albernaz DeAraujo* 

Sandra Mara Corazza** 

* Profesor del Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense-FSul, Brasil. Doctor en Educación e investigador del grupo GEissO: Estudos e interlocuções com o pensamento: diferença, subjetivação e processos de criação articulados com educação e tecnología. Correo electrónico: roger.albernaz@gmail.com Código ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4531-3134.

** Profesora Universidade Federal do Rio Grande do SUI-UFRGS, Brasil. Doctora en Educación e investigadora del grupo DIF-Artistagens, fabulações, variações; escrileituras da diferença em filosofia-educação; bolsista de produtividade do CNPQ/ Brasil. Correo electrónico: sandracorazza@terra.com.br Código ORCID: http://orcid.org/0000-0002-1237-198X.


Resumo

Este artigo reflete acerca de um conjunto de pesquisas que utilizam procedimentos didático-tradutórios. Além disso, problematiza a experimentação do método como duplo ato que entrelaça pesquisador e pesquisa em uma relação de necessidade de escrileitura dos percursos percorridos. Nesse sentido, pela composição de um plano crítico-sintomatológico, mapeiam-se as relações que preenchem o território da pesquisa (leitura) e produzem-se programas de procedimentos, que funcionam como dispositivos clínico-maquinatórios de fabulação. Isso possibilita a invenção de uma posição de escrita, tensiona os modos de organização instituídos e transcria um espaço-tempo de diferença, como estratégia de resistência ao hábito que preenche a vida com a repetição do mesmo, inclusive, na pesquisa.

Palavras-chave: método; didática-tradutória; escrileituras; transcriação; diferença

Resumen

Este artículo reflexiona acerca de un conjunto de investigaciones que utilizan procedimientos didáctico-traductorios. Además, problematiza la experimentación del método como una acción doble que entrelaza investigador e investigación en una relación de necesidad de escrita-lectura de las trayectorias recorridas. En ese sentido, por la composición de un plan crítico-sintomatológico, se articula un mapa de las relaciones que rellenan el territorio de la investigación (lectura) y se producen programas de procedimientos, que funcionan como dispositivos clínico-maquinatorios de fabulación. Eso posibilita la invención de una posición de escritura, tensiona los modos de organización instituidos y transcrea un espacio-tiempo de diferencia, como estrategia de resistencia al hábito que llena la vida con la repetición del mismo, inclusive, en la investigación.

Palabras clave: método; didáctica-traductoria; escrita-lecturas; transcreación; diferencia

Abstract

This paper reflects on a group of researches that use didactic-translation procedures. It also problematizes the experimentation of the method as a double action that links researcher and research in a relation of need of writing-reading the travelled paths. In this sense, through the composition of a critic-symptomatological plan, the paper maps the relations found in the field of research (reading) and produces a series of procedure programs that work as clinic-machinatory fabulation devices. This enables the invention of a writing position, stresses the instituted ways of organization, and transcreates a time-space of difference as a strategy of resistance to habit that fills life with repetition, including in research.

Keywords: method; didactic-translation; writing-reading; transcreation; difference

Ponto de entrada

De algum modo, as questões concernentes aos modos de se fazer pesquisa suscitam discussões várias, algumas acaloradas, inclusive. O que se coloca, talvez, como uma premissa que beira o consenso, é que uma pesquisa, acaba por articular um certo modo, um certo método, que acaba por materializar-se sob a forma de um discurso metodológico. Esse certo não se tem colocado à toa, visto que delimita e congrega, também, um certo regime de verdade, a partir do qual os acontecimentos são interpretados, classificados e selecionados como forma de serem valorados. Ou seja, toda pesquisa assume uma determinada posição, produzindo uma determinada coordenada, que implica a pesquisa em uma determinada perspectiva. Assim, as ações são perpassadas e cercadas por vários imperativos, que delimitam, congregam, coordenam e, também, cercam e perpassam um limite cognitivo acerca do ato de pesquisar. Ações que atendem a determinadas perspectivas de relação e que não exercem uma posição de neutralidade, mas, ao contrário, incitam e determinam um modo certo, que passa a funcionar como modelo; ou seja, aquilo que se precipita enquanto certo e, por pressupor um caráter de verdade, assume a posição de verdadeiro, o qual determina, delimita e concebe aquilo que se deve fazer na relação com aquilo que se pode.

Esse estudo deseja ultrapassar a discussão que erige um conflito entre duas partes antagônicas; aquilo que se define na aplicação direta de um raciocínio dualista, que afirma ou que nega uma parte; aquilo que assume uma posição em detrimento de outra; para, assim, conceber a possibilidade de produzir um entreato que se afirme por seu movimento de produção e não pelos valores que delimitam de antemão o sentido e a direção desse mesmo movimento. Ou seja, deseja ir além das posições visíveis que representam o vetor do movimento de uma criação da pesquisa para poder, quiçá, inventar posições outras, talvez frágeis e incapazes de se pronunciar publicamente; posições que, a partir de seus breves e tímidos sussurros, possam corroer algumas margens do regime estabelecido. Para isso, talvez, não se faça necessário gritar, e sim, marcar, na potência do silêncio, uma posição de que ainda se tem o que dizer. Nesse sentido, o corpus empírico desse estudo é composto por um conjunto de pesquisas em nível de mestrado, as quais tem sua orientação a partir de Programas de Procedimentos de Pesquisa, cada uma funcionando em um meio diferente, articulando e tensionando diferentes saberes e poderes. Esse estudo procura dar contornos a um método maquinatório que auxilie e potencialize a produção de pesquisas articuladas ao território do pensamento da diferença.

Pensamento de partida

Pensando a pesquisa como um espaço-tempo de formação, de uma possibilidade para novas interlocuções, de oxigenação de perspectivas e de ampliação de relações de pensamento, pode-se problematizar o modo como acontecem os percursos que compõem o corpo da pesquisa e, por efeito, os modos acionados na produção desse corpo. De um modo simplista, pode-se dizer que aquele que começa a pesquisar desloca-se intuitivamente pelo território da pesquisa, devidamente acompanhado de um roteiro que orienta o caminho. E, quando o pesquisador se vê tensionado, principalmente na relação com um grupo inicial de orientandos, faz-se premente estabelecer modos que, além de como orientar, requerem a necessidade explícita de um método, isto é, de um modo de como fazer a pesquisa. E, ainda, quando alguém necessita pesquisar, seja em nível de iniciação científica, seja em nível stricto sensu, torna-se recorrente a questão do método, inclusive de modo mais visível do que a imposição de uma determinada metodologia.

Em um processo que se vale da absorção do vivido, das experiências, das relações, de um modo experimental-exploratório, o pesquisador arrisca aqui, resiste ali, cumprindo um percurso solitário em termos de sua formação enquanto pesquisador. Então, acontece a necessidade de fazer, de orientar uma pesquisa, em que a necessidade do método se amplia e se torna o ápice do desejo de pesquisa, uma necessidade que produz um deslocamento. Assim, acontece o contorno de uma problemática: o que funciona como modo possível no percurso da feitura de uma pesquisa? E, com isso, emerge o conceito de máquina (Deleuze, 2011), que requer a participação de Deleuze e de Guattari na composição do processo de pesquisa, na condição de intercessores (Deleuze, 2010), que potencializam a busca de modos possíveis de fazer pesquisa em relação com o pensamento da diferença. De algum modo, esse primeiro movimento inclui a figura do desejo como elemento que inaugura a composição da necessidade que potencializa o ato de pesquisar. Ou seja, aquilo que se nomeia e se delimita, enquanto um pensamento que confere a possibilidade de uma entrada, de uma partida do processo de pesquisa, encontra-se preenchido, de antemão, por um compósito de desejos.

Desejo de pesquisa

O desejo (Deleuze e Guattari, 2011) acontece como o elemento que inaugura o processo de pesquisa e tem, como efeito, por um lado, o percurso percorrido pelos pesquisadores e, por outro, o território da temática de pesquisa que se compõe. Um tipo de encontro, que acontece em determinado tempo e espaço, e pressupõe que pesquisadores e pesquisas são compostos em um processo de datamento1, que agencia a ambos e inaugura uma possibilidade de relação, na qual o território da pesquisa produz-se entre um e outro, por meio da articulação do corpo-pesquisa e do corpo-pesquisador, numa contínua política maquínica, que provê a tessitura de um território de pesquisa. Um modo de pesquisar é colocado em movimento para transformar em ato o desejo de articular um método que não sucumba a uma metodologia em um desejo explícito da criação de um percurso de pesquisa que possa descobrir o seu trajeto a cada movimento. Talvez uma possibilidade de jogar o jogo que se cria, um ato de diluir a necessidade de ter que chegar a um fim estabelecido a priori, além de relegar o início previamente traçado como potencialização da necessidade de ir além, de produzir encontros, de criar um caminho. Ou seja, a todo conjunto de procedimentos que se possa maquinar, que se possa inventar, precede um campo de desejo que preenche um possível plano (Deleuze e Guattari, 2010) de criação, composto por intensidades concernentes a um pensamento de partida que produzem a estética de uma política do desejo.

As questões metodológicas fazem parte do contexto da pesquisa acadêmica, funcionando como condição de possibilidade, não somente para auxiliar o pesquisador, como também para conduzir a própria pesquisa, o que proporciona que os esforços produzidos assumam um modo determinado de organização. Dessa perspectiva, ocorre a busca por uma garantia do sentido de rigor e de academicidade dos estudos realizados, o que possibilita que vários pesquisadores usufruam de um mesmo modelo de pesquisa como forma de garantir a aquisição dos resultados desejados. Tem-se um modelo disposto em uma série de etapas, as quais indicam ao pesquisador qual caminho deve ser tomado, quais inferências e interferências devem ser movimentadas. O método funciona, então, como o modo de pensamento da pesquisa, indicando a base do saber e o contexto das relações de poder que se inscrevem no escopo da pesquisa e do pesquisador. Ou seja, desse ponto de vista, a escolha metodológica caracteriza e explicita a estética do ideal da pesquisa e do pesquisador, que define, não somente, uma referência teórica, mas ainda um conjunto de valores, posições e relações que compõem o regime de verdade da pesquisa e do pesquisador.

Essa apreensão das questões referentes ao método acaba por determinar um ambiente de pesquisa, no qual o regime de verdade tem sido determinado pela escolha formal de utilização de um processo metodológico, explicitado como elemento norteador do percurso do pesquisador e da pesquisa, bem como elemento avaliador de suas realizações. A metodologia, nesse contexto, exerce a função do dispositivo acadêmico que outorga a garantia de rigor, exatidão e verdade, valores requeridos pela pesquisa científica de caráter empírico, principalmente aquela oriunda das ciências exatas. Essa premissa produz uma distinção explícita de valor que atribui uma menos-valia a pesquisas orientadas por métodos menos fixos e ortodoxos, quando não, engendra a classificação dessas pesquisas mais frouxas como desviantes, deslocadas, marginais ou inapropriadas. Ou seja, a metodologia tem a função acadêmica e científica de selecionar, classificar e validar não só a boa e a má pesquisa, mas o que é e o que não é considerado como pesquisa.

Campo problemático

Problematiza-se, aqui, o que se pode reverter da estética da pesquisa acadêmica contemporânea, em face do desejo de compor um percurso de discussão desta temática, que não parta de questões dogmáticas, mas preencha os espaços, na medida em que as discussões vão sendo produzidas para que se possa expressar a problemática que se puder encontrar. Para tanto, faz-se necessário abandonar a noção de uma possível neutralidade na relação da pesquisa e do pesquisador com o território (Deleuze e Guattari, 1995a; 1996; 1997a; 1997b) pesquisado. Nesse caso, o primeiro passo no desejo dessa escrita acontece na expressão de que assumir uma posição de pesquisa é algo inevitável, o que implica que a pesquisa e o pesquisador produzirão inevitavelmente uma expressão de verdade, a qual estará sustentada e se sustentará por um determinado Plano de Referência. Este Plano excede o conceito do plano de referência produzido pela ciência, conforme expõem Deleuze e Guattari (2010), envolvendo o desenho de um determinado território, com o qual se deseja relacionar, compondo o que esse território é diante das relações de saber e de poder (Foucault, 1979; 2013) que o constituem. A todo Plano de Referência corresponde um Plano de Criação, ambos funcionando de modo duplamente articulado, como indicam Deleuze e Guattari (2010, p.158):

A função, na ciência, determina um estado de coisas, uma coisa ou um corpo que atualizam o virtual sobre um plano de referência e num sistema de coordenadas; o conceito na filosofia, exprime um acontecimento que dá ao virtual uma consistência sobre um plano de imanência e numa forma ordenada.

Nesse caso, ocupa-se uma posição que pretende declinar da necessidade de respostas a questões previamente determinadas, decorrentes, muitas vezes, de discussões coletivas. Ao contrário, faz-se a escolha de compor um método que envolva um conjunto de procedimentos, pelos quais o pesquisador e a pesquisa orientem o seu trajeto. Não se indica para onde pesquisador e pesquisa deve ir, muito menos de que maneira, mas aguça-se o desejo de que os pesquisadores se coloquem e se percebam em movimento de pesquisa. Colocar-se em movimento, como condição de possibilidade do esgotamento de um desejo de pesquisa, que transborde pelo que lhe sobra em potência, a ponto de cortar o fluxo que o movimenta pela produção da marca, que inaugura o ponto de entrada no ato de pesquisar. Ponto de entrada que dá a ver os primeiros movimentos que o pesquisador e a pesquisa realizam ao longo do seu espaço-tempo de relação com uma determinada problemática. Procedimento problematizador, por meio do qual seja possível produzir encontros com os prováveis achados da pesquisa, inclusive aqueles que se compõem pela afirmação de encontros inusitados:

[...] um problema em ciência ou em filosofia, não consiste em responder a uma questão, mas em adaptar, coadaptar, com um 'gosto' superior, como faculdade problemática, os elementos correspondentes em curso de determinação (por exemplo, para a ciência, escolher boas variáveis independentes, instalar o observador parcial eficaz sobre um tal percurso, construir as melhores coordenadas de uma equação ou de uma função). Esta analogia impõe duas tarefas ainda. Como conceber as passagens práticas entre as duas espécies de problemas? Mas, sobretudo, teoricamente, as instâncias de oposição impedem qualquer uniformização, e mesmo qualquer redução de conceitos aos functivos ou o inverso? E, se toda redução é impossível, como pensa um conjunto de relações positivas entre as duas? (Deleuze e Guatttari, 2010a, pp. 158-159).

De algum modo, a escolha do modo de pesquisar está sujeito ao desejo da pesquisa e do pesquisador, o que acaba por produzir a posição que os sujeitos assumem diante da necessidade de escolher o método. Talvez o que se encontre, em primeira mão, como questão, seja a necessidade da escolha do método que a pesquisa irá utilizar o que compõe, de antemão, uma inevitável problemática. Isto é, escolher o modo como se deseja proceder com as atividades inerentes ao ato de pesquisar é também compor uma certa problemática que necessita cumprir um espaço-tempo próprio de problematização.

Pela perspectiva da lógica dominante de pesquisa, o método funciona como um orientador de caminho, indicando as vias necessárias para que um determinado resultado possa ser alcançado, qual seja a resposta a uma determinada questão, posta como origem do movimento de pesquisa. Da perspectiva que compomos, o método funciona como orientador de um percorrido, indicando por onde a pesquisa e o pesquisador passam, enquanto constituem-se através da implicação de intercessores inseparáveis. Através de um processo de dupla articulação, pesquisador e pesquisa produzem um modo de funcionamento, que possibilita a criação de uma potência de deslocamentos (Deleuze e Guattari, 1997a), cujos trajetos são criados e não encontrados: composição de um percurso que se inscreve no corpo da pesquisa e no corpo do pesquisador. Relação que obtém um corpo de funcionamento da pesquisa e do pesquisador, pelo agenciamento simultâneo, múltiplo e contínuo de um corpo-pesquisa e de um corpo-pesquisador, o que os torna indiscerníveis entre si, precisamente, pela potência de funcionamento produzida entre ambos.

O que ocorre e produz a diferenciação entre as duas perspectivas de pesquisa em questão constitui também uma perspectiva ou um modo de relação com o ato de pesquisar: ou por uma orientação que visa obter um resultado na aplicação de um determinado método ou pela composição de uma problemática na criação de um programa de procedimentos. De um modo ou de outro, a escolha da metodologia a ser adotada pela pesquisa já se constitui enquanto movimentação de um método, visto que indica o modo como se deseja produzir o olhar da pesquisa e do pesquisador. Escolhendo qual porta se deseja abrir, pode-se argumentar que a questão metodológica compõe um corpo de desejo que permeia o percurso da pesquisa, fornecendo o ritmo de cada movimento, antes mesmo que seja feito o primeiro movimento visível e dizível.

Maquinação de um método

Um primeiro exercício de formalização da teoria de uma prática de pesquisa suscita uma teoria do funcionamento da pesquisa, qual seja, a movimentação de máquina (Deleuze e Guattari, 1997b; 2011) como um conceito que se apropria do funcionamento da pesquisa: o que funciona no percurso de pesquisar? Assim, a noção de funcionamento toma corpo e assume uma posição com força suficiente para desafiar a pesquisa a transcender o caráter binário (Deleuze e Guattari, 1995a) das relações, que percebem e formalizam o que é pesquisar e, em decorrência, o que não o é. Faz-se necessário, então, uma nova leitura acerca da realidade da pesquisa, que pode ser provocada pelo acréscimo de uma atenuante à negação daquilo que é, considerando que o que não é ainda não é. Mediante essa perspectiva, aquilo que ainda não é ainda pode vir a ser, assumindo o caráter virtual de potência. Ora, isso modifica completamente a natureza das relações, pois dilui o caráter binário do isso ou daquilo, resistindo à lógica excludente do zero (0) ou do um (1) do sistema booleano. Da função binária que produz um ponto, a partir de duas coordenadas, transcende-se na direção de um infinito de possibilidades que produz uma linha.

Enquanto a lógica binária postula que a realidade (R), ("é" ou "não é"), o que pode ser representado por ("1" ou "0"), no que a função (R)={1,0}, ou seja, um ponto, ou isso ou aquilo; de um outro modo, a lógica que aposta na potência postula que a realidade (R), ("é" e "ainda não é"), o que pode ser representado por ("1" e "oo"), no que a função de (R)={1, oo}, isto é, uma linha, e isso e o ainda possível. Por meio dessa premissa, tem-se uma transcendência do que é e daquilo que não é, pela potência de uma possibilidade de um vir a ser, ou melhor, a noção de nulo, de nada, torna-se a possibilidade infinita de um porvir, assim como a noção de todo, de tudo, torna-se tão somente o intervalo aberto de um possível.

Nesse sentido, em termos de pesquisa, percebe-se uma relação inevitável entre um território de pesquisa que se coloca como a realidade, com a qual a pesquisa deseja entrar em relação, e todos os efeitos que se pode produzir a partir disso; o que implica uma necessidade de composição de uma máquina (Deleuze e Guattari, 1997b; 2011) de pesquisa, que funcione como possibilidade da produção de algo que ainda não se tem, que ainda não é, mas que pode vir a ser. Isso reifica o conceito de potência como ponto de partida do ato de pesquisar: o que potencializa uma pesquisa?

Como desdobramento disso, pode-se ter em uma pesquisa a relação entre um Plano de Referência e um Plano de Criação, onde o Plano de Referência provê o desenho de determinada realidade acerca do que produz a estética de um território de pesquisa (aquilo que é) e o Plano de Criação provê a potência do que pode vir a ser (aquilo que ainda não é). Tem-se, então uma relação de dupla articulação que tensiona, maquinicamente, ambos os planos, em termos de funcionamento de um Plano de Referência e de um Plano de Criação. Mas como isso funciona? Como isso pode vir a funcionar?

Nesse estudo, escolhe-se compor uma tríade conceitual, que produz uma máquina de pesquisa que funciona em três movimentos, que não são sucessivos de uma evolução, mas três aspectos em uma só e mesma coisa: uma estratégia de composição ao ritmo de um ritornelo (Deleuze e Guattari, 1997a): no primeiro movimento, um Plano de Referência necessita de uma abordagem genealógica, que desenha o território de relação com a pesquisa, não como forma de nomear o que seja isso ou aquilo, mas como isso e aquilo tornaram-se o que são; sem que se deseje saber o que é, mas perceber como e por que aquilo tornou-se o que é. Com isso, pode-se mapear coordenadas, percorrer fluxos e perceber deslocamentos, produzindo um plano geográfico que funciona como território por onde a pesquisa necessita deslocar-se.

No segundo movimento, um Plano de Criação estende-se, revolvendo um conjunto de intensidades, que acontecem enquanto potências de criação -per-ceptos, conceptos, afectos- com as quais se pode compor a imanência (Deleuze e Guattari, 1995a) compositiva de uma diferença, de uma criação, de uma invenção. No terceiro movimento, uma Linha de Recursividade traduz a necessidade de retornar ao território para um novo espaço-tempo de relação, em um funcionamento maquínico que se desloca entre fluxos e cortes (Deleuze e Guattari, 2011); linha que torna possível o estabelecimento da relação de tensionamento entre os planos, além de garantir a comunicabilidade entre eles; linha que permite o deslocamento dos procedimentos de pesquisa de um plano a outro, tornando possível a efetivação dos processos de diferenciação (Deleuze, 2006) entre os planos, visto que o que retorna é a diferença (Deleuze, 2001, 2006). Desse modo, a relação entre os programas de procedimentos de pesquisa produz a possibilidade da criação de uma zona de resistência entre os planos, no qual as relações de força (Deleuze, 2001) afirmam uma estética possível da pesquisa:

O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens. (Deleuze, 1999a, p. 14).

O que se deseja aqui se produz pela ocupação de uma posição de pesquisa, dizendo respeito à escolha de uma perspectiva de pesquisa, investindo-se na possibilidade de um método que acontece por intermédio do acolhimento de conjuntos de procedimentos, os quais podem relacionar-se com outros conjuntos, na composição de programas de procedimentos que, em funcionamento, produzem um sistema aberto.

Um método que só pode nomear-se como tal, pelos modos de funcionamento que consegue articular a cada série de procedimentos que o compõem, sem imposição de prevalência, continuidade ou validação prévia. Uma aposta no ato de colocar-se em percurso de pesquisa, afirmando os procedimentos que acontecem na busca pelos intercessores possíveis do ato de pesquisar. Assim, um conjunto de procedimentos de pesquisa pode criar um programa de pesquisa, cujo funcionamento produz uma determinada ação que, por sua vez, passa a fazer parte de uma composição com outras ações que se encontram em funcionamento, ou podem vir a entrar em funcionamento; por esse encontro compõe-se a imanência de um Plano de Pesquisa que acontece.

Procedimentos de invenção

Um procedimento compõe a possibilidade de uma ação, de um ato, efeito de uma condição de possibilidade de relações, que se atualizam em um composto afirmativo que, diante de um corpo de potências, expressa uma determinada realidade. Um procedimento funciona como corte de um determinado fluxo de potência, para o qual o ato do pesquisador e de sua pesquisa produz a possibilidade de novos trajetos. Um procedimento não compõe o acréscimo de algo a uma realidade dada, podendo, inclusive, funcionar como um elemento supressor, desviante e deformante de uma realidade. Isso se efetiva pela composição da qualidade das forças, que entram em relação para produzir a estética de cada procedimento, em uma determinada instância de funcionamento.

Um procedimento não funciona como a unidade fundante de um programa de procedimentos, do mesmo modo que um programa não detém procedimentos; ambas as abordagens estabeleceriam uma relação hierarquizada de atos específicos, os quais, devidamente combinados, cumpririam uma função esperada. As relações entre programas e procedimentos fogem à relação sujeito e objeto, pela afirmação do desejo de uma produção maquínica, ou seja, trata-se de programas e procedimentos que funcionam como máquinas desejantes (Deleuze e Guattari, 2011), em um sistema contínuo, múltiplo e simultâneo de produção de produção (Deleuze e Guattari, 2011, p.17):

O acoplamento da síntese conectiva, objeto parcial--fluxo, tem, portanto, uma outra forma também: produto-produzir. O produzir está sempre inserido no produto, razão pela qual a produção desejante é produção de produção, assim como toda máquina é máquina de máquina.

Um procedimento produz instâncias de funcionamento que, acopladas a outras instâncias, produzem um programa que, por sua vez, também produz um funcionamento, podendo, inclusive, emergir como efeito da relação de múltiplos programas; isso produz uma outra instância de funcionamento que, por si só, pode compor com outros procedimentos e programas. A distinção entre um procedimento e um programa pode ser aproximada pela tipologia da composição de forças (Deleuze, 2001), que se alternam ao longo do percurso de pesquisa. Procedimentos produzem programas e estes podem produzir aqueles, o que confere à maquinação do método o atributo de dobrar-se sobre o espaço-tempo que lhe compõe, funcionando ao ritmo das alternâncias que produzir. Nesse caso, o conceito de maquinação do método produz-se, a partir do agenciamento do conceito de máquina (Deleuze e Guattari, 2011), que torna imanente a composição de um desejo de produção de vida; um desejo que transcende as questões da falta neurótica e aposta em um movimento de afirmação daquilo que sobra em potência de vida. Uma maquinação que se apropria do percurso metodológico possível, por meio da afirmação do ato de pesquisar, efeito da composição de uma política de relações, pela qual o pesquisador, a pesquisa, os intercessores e o próprio percurso encontram-se em um espaço--tempo de invenção que acontece. Um deslocamento que prefere não resolver problemas e, sim, produzir problemáticas, em um continuum, para o qual, em cada entrada e a cada saída, acontece uma instância de composição da tessitura da pesquisa.

Assim, tem-se uma pesquisa que se cria por entre ritmos e meios possíveis, por uma política que deseja exprimir uma necessidade de inventar-se em ato, implicada e envolvendo o pesquisar com a pesquisa, pelo ato de pesquisar. O desejo impõe o ato da invenção de procedimentos e a pesquisa torna-se uma possibilidade que, a partir da articulação com seus intercessores, pode vir a acontecer. O desejo de invenção da pesquisa transcende em ato e investe na aposta de uma composição de planos, que funcionam pelo agenciamento de procedimentos, os quais podem atravessar um determinado território instituído, abrir brechas e trazer à superfície a estética da atualização de uma área de pesquisa com quem se intenciona relação. Isso abre uma possibilidade para a invenção de procedimentos que possam investir no desejo de transformação daquilo que está instituído, como forma de interferir naquilo que é, pela possibilidade da conquista de um vir a ser, que afirma um processo de diferenciação.

A continuidade de colocar-se em jogo, a cada instância de relação, é obtida pelo retorno possível a qualquer ponto de funcionamento da relação de maquinação do método, pela criação de uma linha de recursividade, que corta o plano de procedimentos, produzindo suas marcas, desfiando procedimentos, aniquilando programas, instituindo e destituindo intercessores. A simultaneidade atribui à relação de maquinação a propriedade de lidar com a condição de precariedade de apreensão de tudo que ocorre em um determinado tempo e, por efeito, o caráter de parcialidade inerente a cada enunciação de verdade. A multiplicidade invade a estabilidade do eu, detentor de posição definida e de discurso único, e traz à superfície todo um conjunto de vozes que já ocupam esse espaço-tempo de preenchimento do ser.

Encontra-se, então, um Programa de Procedimentos de Pesquisa (PPP), uma relação entre máquina e método que funciona pelo acoplamento e conexão entre os planos. Neste caso, havendo dois planos: um de referência e um de criação, ambos abertos a atravessamentos intempestivos pela composição de uma linha de recursividade que insiste em romper a linearidade em qualquer ponto e a qualquer tempo. Planos conectados em uma relação de simultaneidade, de multiplicidade e de continuidade de funcionamento. Planos que se ocupam e ocupam o caos (Guattari, 1992). Composição maquínica de um modo de relação que, pela escolha de uma tipologia de acoplamento, dispõe à pesquisa, como possibilidade rítmica de deslocamentos e de velocidades; modo de acoplamento que pode colocar a pesquisa e o pesquisador em movimento contínuo de invenção das palavras e das coisas, em múltiplas dimensões e em simultâneos encontros. Continuidade de relações de acontecimentos, os quais dobram os espaços e tempos, uns sobre os outros, trazendo à superfície o tom e o sabor do desejo da possibilidade de uma diferença.

Por essa estratégia de criação da pesquisa, não são traçados caminhos a partir de um ideal que se estabelece enquanto origem, e sim, um percurso que acontece no e pelo desejo do primeiro passo de um trajeto em que a cada encontro torna-se possível afirmar um novo percurso. Trajetos traçados ao longo e por entre um território posto, instituído e preenchido por toda uma geografia, minuciosamente significada e valorada. Mas, por ora, não se pode estabelecer um trajeto de pesquisa sem que haja um território; esse, pelo qual, precisamente a pesquisa necessita passar. Ou seja, colocar-se em percurso de pesquisa, inevitavelmente implica e envolve uma relação com um Plano de Referência, que estabelece os modos de composição de um território e, por efeito, a possibilidade do encontro com seus fluxos e com seus cortes. Pelo Plano de Referência, pode-se conhecer a geografia estética de um território, mapear seus pontos de desterritorialização e de reterritorialização (Deleuze e Guattari, 1995a; 1996; 1997a; 1997b); e, assim, quem sabe, arriscar alguma iniciativa de invenção.

O que se deseja tornar possível, aqui adquire potência na necessidade de se poder desenhar o funcionamento de uma máquina-método de pesquisa que, pelo acoplamento, duplamente articulado, a uma máquina-referência e a uma máquina-criação, ambas tecendo suas linhas por entre os encontros possíveis de um Plano de Referência e de um Plano de Criação, possa vir a produzir fissuras no território produzido; marcas de diferenciação que desterritorializam e reterritorializam, múltipla e sucessivamente, o território que envolve as relações. Isso ainda em meio aos atravessamentos intempestivos das linhas de recursividade.

A relação de maquinação de um método propõe uma atitude de invenção, que mistura a pesquisa e o pesquisador em procedimentos que vivificam o ato de pesquisar, o que faz do retorno uma nova possibilidade de olhar, que esquece o caminho bem definido, aquele que explica e indica todo um trajeto a ser percorrido. Faz-se uma aposta em procedimentos tais, que, pela experimentação do preenchimento de um percurso pelos encontros possíveis, reverta a lógica produtivista da pesquisa em série. Assim, a pesquisa diferencial ocupa-se de envolver e de implicar o que acontece na experimentação da pesquisa e do pesquisador, mesmo que não haja o entendimento de para onde ir, mesmo que não haja uma definição de onde chegar e mesmo que não haja nem sequer a garantia de uma chegada. Afinal, a maquinação de um método de pesquisa deseja acionar um acontecimento; e isso não define uma resposta, e sim, desenha uma problemática; desenha uma pesquisa, que se deseja artesã do seu olhar e da sua voz, valendo-se de toques sutis, de um roer tímido e suave que, de algum modo, desfia as amarras que prendem as subjetividades, em meio aos processos hegemônicos e repetitivos.

Investe-se em uma pesquisa que possa vir a ser uma artesã que tece suas linhas com os conceptos, os afectos e os perceptos possíveis a cada encontro, em um preenchimento de planos que podem efetivar-se em conceitos, afecções e percepções. E que haja um contínuo enredamento da tessitura para mais um lance, para mais um retorno na busca da diferença. Deste modo, a pesquisa acontece, com a possibilidade de retornar e voltar a pensar novamente e de sentir outra vez, não como modo de atualizar uma forma, mas como modo de modificar outro modo, em um vir a ser recorrentemente possível a cada momento, em uma variação contínua da alternância de estados, em que, a cada rabisco, possa-se traçar a diferença que se inventar. Investimento em um olhar de cuidado com a pesquisa e com o pesquisador, no sentido de aproximar como esses se tornam o que são a cada instância da relação; e como e por que uma diferença lhes acontece.

Os procedimentos de pesquisa funcionam como os fios que tecem a trama que deseja produzir o corpo da pesquisa; podem ser criados, apropriados de outros domínios, traduzidos (Deleuze e Guattari, 1995a; Corazza, 2013a), transduzidos, transcriados (Campos, 2013, Corazza, 2013b) e, inclusive, transvalorados (Deleuze, 2001). Procedimentos criados pela relação entre intercessores, os quais, em seus trajetos pelo percurso da pesquisa, podem prover composições com intensidades afirmativas de uma diferença e, por efeito, produzir um novo procedimento. Procedimentos apropriados na medida em que os movimentos de criação também funcionam como máquinas de captura de outros procedimentos que sustentam um plano de referência hegemônico em um determinado território, subvertendo-os, como forma de produzir uma linha de diferenciação, que provoca um movimento de desterritorialização e de reterritorialização deste território. Procedimentos traduzidos, no sentido de que as máquinas de criação necessitam imiscuir-se dentre os procedimentos referenciais, como forma de mapear seus modos de constituição e de significação, para aí, inferir um modo de resistência. Procedimentos transduzidos por processos tradutórios sucessivos e contínuos, os quais acabam por produzir uma outra natureza de procedimentos, transvalorados em si.

Os procedimentos são a possibilidade de ultrapassar o confinamento do pensamento sujeito a uma crítica metafísica. Os procedimentos não derivam da relação de maquinação do método, mas são imanentes à maquinação dessas relações. Deste modo, pode-se usufruir de procedimentos cartográficos (Deleuze e Guattari, 1995a; 1996; 1997a; 1997b), de procedimentos biografemáticos (Costa, 2011; 2012), de procedimentos de narrativas de si e do entorno (De Araujo, 2015), conforme a necessidade que emane do processo de criação. Ou seja, a maquinação do método compõe com métodos preexistentes, podendo configurá-los, significá-los, conquanto que isso implique e envolva um ato de invenção e uma possibilidade de criação. Deste modo, a maquinação do método exerce uma atitude de experimentação de uma invenção coletiva, de uma política de invenção. Esse funcionamento pode declinar das leis que dizem e garantem o que a pesquisa deve ser e investir nas relações que compõem a experiência de se poder pesquisar. Uma estratégia que aposta no devir (Deleuze e Guattari, 1995a; 1995b; 1996; 1997a; 1997b; Deleuze, 1998), na possibilidade de uma obra aberta, no rompimento com o discurso do rigor empírico, pela simples condição de possibilidade de afirmar a jurisprudência de poder deslocar-se das relações de direito às relações políticas e das relações de controle às relações da experiência inventiva. Isso torna possível que se criem intercessores para a pesquisa, enquanto se produzem os trajetos que compõem o ato de pesquisar. São os intercessores que acionam os procedimentos, que se valem deles em seus deslocamentos, que criam o ritmo da criação. Pesquisar passa a funcionar como uma tentativa sempre possível de se colocar em uma posição de experimentar o encontro com a invenção de algo. Assim, a relação de maquinação do método torna-se o corpo de resistência de uma pesquisa que se cria e se recria continuamente em uma composição que funciona por um processo de povoamento. Não se bem sabe o povo que se irá encontrar e de onde virão as interferências, que desvios se irão provocar. Isso coloca o ato de pesquisar em devir e a pesquisa em um contínuo por vir (Blanchot, 2005).

Que cada um opere a maquinação de método que lhe aprouver, que possa configurá-la na relação com os desejos, com a necessidade, com o ritmo e a política possíveis. Afinal, um método que investe em uma maquinação inventiva possui apenas uma propriedade inegociável, qual seja a do desejo de funcionar, e funcionar e funcionar. Então, como provoca Deleuze (2010), mexa-se e produza uma maquinação: "O importante nunca foi acompanhar o movimento do vizinho, mas fazer seu próprio movimento. Se ninguém começa, ninguém se mexe. As interferências também não são trocas: tudo acontece por dom ou captura." (p. 160).

Existe toda uma problemática da expressão da pesquisa que não pode ser relegada a uma função secundária. Pesquisar, pela perspectiva da maquinação de um método, com seus programas e seus procedimentos de pesquisa, articulados e manuseados pelos intercessores possíveis, implica um movimento de fabulação. Fabulação de uma expressão de verdade, em uma determinada data, em um determinado ritmo, de tal modo que a pesquisa possa expressar sua problemática, resistindo às questões diretas e o que essas querem encobrir:

Essa ideia de que a verdade não é algo preexistente, a ser descoberto, mas que deve ser criada em cada domínio, é evidente nas ciências, por exemplo. Até na física, não há verdade que não suponha algum sistema simbólico, mesmo que sejam só coordenadas. Não existe verdade que não "falseie" ideias preestabelecidas. Dizer "a verdade é uma criação" implica que a produção da verdade passa por uma série de operações que consistem em trabalhar uma matéria, uma série de falsificações no sentido literal.

[...] Essas potências do falso é que vão produzir o verdadeiro, é isso os intercessores... (Deleuze, 2010, p. 161).

A maquinação de um método não pertence ao aparelho acadêmico, não se opõe ao controle que é inerente à academia, mas funciona de modo subjacente, em um espaço-tempo externo e marginal às relações de saber-poder instituídas; deseja subverter o método de controlar a pesquisa, pelo investimento em um cuidado de pesquisar que afirma um devir; entrar e reentrar a qualquer tempo, em qualquer espaço, cada movimento funcionando como a possibilidade de um traço inventivo no ato de criação da pesquisa e do pesquisador.

Reversão do desejo

O que a maquinação de um método produz acontece pelo encontro com o conceito de tradução (Derrida 1998; Corazza, 2013a) e com o Projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida (Corazza, 2010). Quando e onde a pesquisa vê-se atravessada por novos intercessores e aquilo que era a pesquisa se tem desafiado naquilo que a pesquisa pode vir a ser, a partir de conjunto de novas relações; ou seja, desafia-se o Plano de Referência da própria pesquisa, que cumpriu o seu percurso até aqui. Assim, provocase o tensionamento de um Plano de Criação que se compõe pela imanência de novos intercessores e, mais uma vez, o código da pesquisa se abre para possibilidade de uma nova escrita.

O conceito de tradução (Derrida, 1998; Corazza, 2013a) modifica a composição da maquinação do método e produz a ressonância de uma potência de outras maquinações, enquanto instâncias possíveis de uma intercessão inventiva de diferença. E, através dessa noção de tradução, produz-se um método maquinatório, que se compõe e se dispõe desde uma didática tradutória. O que era de um modo coloca-se disponível a tornar-se de outro, o que modifica as perspectivas de relação e, por efeito, a ordem e a natureza dos deslocamentos. Maquinam-se procedimentos. Acontece a maquinação de um programa de procedimentos de pesquisa (PPP), um código escrilei-tor, um desejo de funcionamento. Mas como fazer isso funcionar? Não se sabe bem como, mas deseja-se que seja em um programa de código aberto, reversível, reconfigurável, que abrace a composição de uma máquina abstrata (Deleuze e Guattari, 1997b).

Entre o desejo de composição de um método ma-quinatório de pesquisa, encontra-se o Projeto Escrileituras, que produz uma dobradura do pensamento da pesquisa e a possibilidade de retornar sobre o Plano de Referência com outro olhar, com novas perspectivas e sob o signo de novas provocações. Essa relação diferencia a pesquisa dela mesma, inclusive em nível de funcionamento, o que provoca um deslocamento tanto de conteúdo como de expressão.

E, no meio do caminho havia um roteiro. O Escrileituras possuía um roteiro com sustentação teórica no livro de Deleuze (2006)Diferença e repetição. Um roteiro que funcionava por meio de cinco procedimentos; um roteiro que não era bem um roteiro, mas um intercessor que excitava possibilidades de escrileituras. Um roteiro sem rota definida, do tipo que não impõe um programa de viagem, mas instiga a aventura de um andarilho, que pode deslocar-se em meio à descoberta do seu percurso. Seria um Programa de Procedimentos de Escrileituras? Talvez, mas, para além do que poderia ser, problematizou-se que isso possuía a potência de transcriar-se em um intercessor que, atualizado, poderia funcionar como um Programa de Procedimentos de Pesquisa (PPP). Em uma tradução livre e aberta, por que não? Por essa trajetória se poderia obter uma nova instância de preenchimento do Plano de Referência da máquina de pesquisa, a partir da tradução do Programa de Procedimentos de Escrileituras e pela transcriação de um Programa de Procedimentos de Pesquisa.

De algum modo, a relação com o Roteiro de Escrileituras possibilitou perceber a pesquisa como um território aberto a um processo de traduzibilidades, configuráveis a partir de um programa de procedimentos e que esses procedimentos poderiam compor um método maquinatório, pelo qual a pesquisa se desloca no tensionamento com um Plano de Referência, pela necessidade da produção de um Plano de Criação. Nesse sentido, esse Roteiro transcriou-se, enquanto Programa de Procedimento de Pesquisa (PPP), funcionando como intercessor de três pesquisas em nível de mestrado, ocupando a posição de potencializador e marcador desses deslocamentos. Um mapa movediço que, ao mesmo tempo em que demarca uma coordenada, incita novos percursos. Um intercessor rítmico-estratégico que lê a pesquisa, escrevendo; um mapa escrileitor da pesquisa.

Todavia, ainda restavam algumas questões: mas como se chega a um pensamento de partida? Ele é produzido ou necessita ser encontrado? Por onde se entra na pesquisa? Talvez pelo desejo. Nesse ponto, olha-se para o percurso percorrido e percebe-se que a posição de pesquisa se modificou, assim como a posição do pesquisador. O Programa de Procedimentos de Pesquisa (PPP), transcriado, enquanto tradução do Roteiro de Escrileituras vivifica-se em um modo de pesquisar que propõe uma estratégia em cinco (5) procedimentos: 1. Pensamento de partida (PP); 2. Imagem Dogmática do Pensamento (IDP); 3. Método de Invenção: Problema ou Campo Problemático (MI/P); 4. Reversão da Imagem Dogmática do Pensamento (R[IDP]); 5. Plano de Imanência / Nova Imagem do Pensamento (PI/NIP). Mas, essa equação, esse funcionamento só se torna possível pelo desejo. Então, o desejo é o procedimento de marco zero; o pré-proce-dimento que inaugura o campo de pesquisa, ainda sem organicidade, ainda sem formalidade, mas vívido de intensidades inventivas. Ou seja, tem-se: 0. Desejo (D).

Acontecimento do programa

Algo acontece na pesquisa e acontece pelo próprio deslocamento da pesquisa. Acontece um Programa de Procedimentos de Pesquisa, um bólido inventivo, que incita e excita a pesquisa a um deslocamento. Tem-se uma linha tracejada, sedenta de ser trilhada, perpassada, rasurada. Tem-se uma estratégia de pesquisa, pela qual se torna possível colocar em funcionamento um método maquinatório na composição de uma pesquisa. Aqui, no caso, far-se-á referência a uma pesquisa, iniciada em janeiro de 2015, mas que passa a adotar o Programa de Procedimentos de Pesquisa a partir de outubro do mesmo ano. Desde então, essa pesquisa vem dobrando-se sobre si, em um movimento recursivo contínuo de tensionamento entre as referências do que a pesquisa se tornou e as possibilidades de criação que potencializam novos processos de invenção, novas diferenciações. Assim, o Programa de Procedimentos de Pesquisa (PPP) torna-se a imagem de um mapa em seu último deslocamento que, porém, não é o derradeiro, porquanto ainda se coloca aberto a outros processos de diferenciação. Isto é, o PPP fornece visibilidade da estética atual da pesquisa; fornece a posição que a pesquisa ocupa em um determinado espaço-tempo de um vetor de deslocamento que mapeia o percurso pesquisado. O PPP produz instâncias cartográficas que desenham um contorno acerca do processo de produção do Plano de Imanência da pesquisa, pelo efeito do funcionamento do método maquinatório.

Cada instância, ou melhor, cada posição do PPP marca uma determinada posição da pesquisa; não é a pesquisa, não representa a pesquisa, mas dá a ver a pesquisa na produção de seus deslocamentos. Um PPP se compõe em um plano folhado, com dimensões sucessivas e sobrepostas de programas, que não indicam, não desenvolvem, não explicam a pesquisa, mas, conectam, envolvem e a implicam em uma necessidade incontida de deslocamento e de funcionamento. O PPP vivifica um Plano de Procedimentos, que se acopla ao Plano de Referência e ao Plano de Criação, na produção da dimensionalidade de um Plano de Pesquisa. Pelo Plano de Procedimentos, as linhas de recursividade podem retornar, em um deslocamento de corte, que inscreve as diferenças produzidas pelo Plano de Criação, como potência de uma diferenciação possível do Plano de Referência: processo recursivo e imanente que produz uma nova imagem de pensamento, uma nova imagem da pesquisa.

Como forma de tornar um pouco mais palpável um Plano de Pesquisa produzido a partir do método maquinatório, considera-se o PPP de uma das pes-quisas2 indicadas anteriormente, salientando que a posição indicada teve o seu datamento de entrada em agosto de 2016, com datamento de saída em março de 2017. O Desejo de Pesquisa (D), conforme Quadro 1, produz a potência necessária para que o pesquisador e a pesquisa possam produzir uma relação; de algum modo, produz o primeiro lance de dados, nesse ponto feito no escuro, à revelia do possível; um lance que afirma o desejável, além de trazer a superfície o contorno das qualidades de força que o jogador deseja colocar em jogo.

Quadro 1: Desejo de Pesquisa (D) 

Fonte: Pesquisa

O Pensamento de Partida (PP), conforme Quadro 2, funciona como uma primeira rodada do jogo, quando os dados ainda fazem parte de um campo nebuloso; mas, um campo potencialmente vigoroso, que instiga o pesquisador a uma primeira aposta; um primeiro deslocamento que marca uma perspectiva de relação com o jogo, que materializa um desejo e afirma uma posição de jogabilidade.

Quadro 2: Pensamento de partida (pp) 

Fonte: Pesquisa

A Imagem Dogmática do Pensamento, conforme Quadro 3, rasga a cena do jogo; dispõe sobre as peças que já se encontram de antemão sobre o tabuleiro; expõe os dados viciados e as rodadas marcadas. Nessa dimensão do jogo, tornam à superfície os elementos recorrentes, os pensamentos dominantes, as apostas esperadas, o que o jogo e o jogador esperam que aconteça, diante de um quadro de regras que já está definido, a ponto de eleger vencedores e derrotados.

Quadro 3: Imagem Dogmática do Pensamento (IDP) 

Fonte: Pesquisa

O Método de Invenção (MI/P), conforme quadro 4, adentra o território do jogo com o desejo de maquinar novos deslocamentos, outras regras, novos valores, diferentes perspectivas de relação com o jogo e com o jogador. Nessa dimensão, o potencial de invenção toma corpo, enquanto método maquinatório, que tensiona o possível, que desafia o que a Imagem Dogmática do Pensamento definido como a realidade não só do institucionalizado, mas, também do institucionalizador. Essa é a rodada em que o jogador aposta no jogo e em sua jogada; é quando o número do dado importa menos que a possibilidade de ter um número a afirmar; isso muda a perspectiva do jogo e do jogador, que declina da posição de vencedor de um jogo dado, pela possibilidade de tornar-se perdedor em um jogo por vir; uma aposta na aventura, no desconhecido, no racionalmente improvável e no potencialmente impossível.

Quadro 4: Método de Invenção / Problema ou Campo Problemático (MI/P) 

Fonte: Pesquisa

A Reversão da Imagem Dogmática do Pensamento (R[IDP]), conforme Quadro 5, não pretende a troca de uma posição por outra. Não deseja a alteração de uma regra por outra; não deseja um determinado número do dado em detrimento de outro; muito menos um outro jogo, outras regras, um novo ganhador. A (R[IDP]) deseja poder resistir à jogada inevitável, à probabilidade inquestionável, à jogada impossível. A (R[IDP]) torna possível tensionar o número dado, não na busca de um próximo número desejável, mas, sim, pela possibilidade de uma próxima jogada.

Quadro 5: Reversão da Imagem Dogmática do Pensamento (R[IDP]) 

Fonte: Pesquisa

O Plano de Imanência ou Nova Imagem do Pensamento (PI/NIP), conforme Quadro 6, traz a superfície uma nova perspectiva de posição do jogo e do jogador; reconfigura o jogo e o jogador, no mesmo jogo, contudo com a possibilidade de outros deslocamentos, de outras peças, de outras interpretações das regras; um mesmo jogo, mas que se arrisca diferir de si. Aqui, o jogo e o jogador fogem de si e do entorno que nomeia o jogo e o jogador. Nessa instância não interessa quem joga, quem ganha, quem perde, qual a regra comanda, qual o número, mas interessa a jogada; a possibilidade da jogada, seu contorno, suas relações. Interessa é o que o jogo retorne, que o jogo aconteça.

Quadro 6: Plano de Imanência ou Nova Imagem do Pensamento (PI/NIP) 

Fonte: Pesquisa

Ponto de saída

Como movimento de saída, pode-se dizer que este texto, de algum modo, funciona como o mapa de um percurso de escrita da pesquisa que produz uma linha, um vetor de posições ocupadas por ela ao longo de um determinado espaço-tempo de relação, que precariamente dá conta de por onde essa passou. Porém, mais do que isso, abre a perspectiva de perceber por onde a pesquisa pode vir a passar, do que ainda pode potencializar, traduzir e transcriar.

Não por uma ideia de organização esse texto compõe-se pelo mesmo Programa de Procedimentos de Pesquisa que persegue, talvez em um outro processo transcriativo, um Programa de Procedimentos de Escrita da Pesquisa (PPEP). Isso se torna possível pela produção das inúmeras Linhas de Recursividade emaranhadas por essa escrita, por entre idas e vindas, por entre voltas e revoltas. Emerge, assim, essa estética textual, efeito de um método maquinatório que tensionou um Plano de Referência e um Plano de Criação, inclusive no território da escrita.

Um Plano de Imanência que acontece potencializando esse Plano de Escrita e de Leitura, talvez um Plano de Escrileituras. Fabulou-se uma clínica-maquinatória, enquanto um modo de resistência àquilo que se coloca como dado, inventando-se, assim, uma posição de saúde. Esta torna possível transcriar um espaço-tempo de diferença, dotado de um pouco de cor em meio aos repetidos tons de cinza que preenchem o hábito, seja na composição da pesquisa ou nas cenas cotidianas da vida.

Referências

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Para citar este artículo: De Araujo, R. y Corazza, S. (2018). Método maquinatório de pesquisa. Pedagogía y Saberes, 49, 67-80.

1 Utiliza-se datamento ao invés de data ou datação, visto que é a ideia de registro que se impõe, enquanto instância de marcação de uma determinada posição, em um determinado meio. Ou seja, o datamento registra uma ocorrência no deslocamento das relações, seja em um dia de um determinado mês em um calendário cronológico, seja em um registro de um Banco de Dados, seja em uma imagem de pensamento, seja em arquivo empírico de investigação. No caso, o datamento em questão se refere às marcas deixadas pelo deslocamento da pesquisa e do pesquisador no ato de pesquisar.

2 A fonte de pesquisa nesse artigo é a Dissertação de Mestrado de Juliana Zaffalon Rodrigues, "Entre olhares de processo de cegueira", defendida em março de 2017, no âmbito do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSUL), disponível em https://www2.pelotas.ifsul.edu.br[/uri].

Recebido: 20 de Agosto de 2017; Aceito: 15 de Janeiro de 2018

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