Introdução
O Brasil tem hoje cerca de 2 milhões de docentes nas redes públicas de educação básica. Esse corpo de profissionais, formado por uma maioria de mulheres (82%), é responsável pela educação de mais de 40 milhões de alunos, total que corresponde a quase 20% da população do país, atualmente estimada em 208 milhões de habitantes1. Os professores estão entre os grupos profissionais majoritários da população brasileira, entretanto, é uma categoria que vem sofrendo crescentes perdas sociais e econômicas ao longo dos anos, cujo processo os tem submetido a exclusões diversas no âmbito da sociedade mais ampla e no interior da própria profissão.
Essa condição, não muito diferente daquela que ocorre em outros países da região latino-americana, é fruto dos reveses sofridos pelos professores ao longo dos últimos 50 anos, quando os docentes das escolas públicas passaram a experimentar uma crescente desvalorização como profissionais. À acentuada feminização do magistério, ao rebaixamento dos salários e às condições adversas de trabalho vieram se somar as fragilidades decorrentes das imprecisões do campo e do estatuto profissional dos professores. Ainda hoje, no Brasil, a docência é exercida por grande número de professores sem a devida formação e licença para exercê-la2.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em 1996 (Lei 9394/96), buscou criar dispositivos para minimizar essa situação. Entre outras medidas, a Lei determinou que a partir de 2007 todos os professores da educação básica deveriam ter a habilitação em nível superior. Isso provocou uma corrida sem precedentes de professores em busca do ensino superior, dando ensejo à criação de programas especiais que se multiplicaram por todas as regiões do país. Esses cursos obedeceram a um novo modelo de formação em serviço, de tipo semipresencial, oferecidos por meio de consórcios celebrados entre universidades públicas e privadas, secretarias da educação e fundações de caráter privado. Tais programas, de duração mais breve que os cursos regulares de licenciatura, se estruturaram, em muitos casos, com base no uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e em princípios emprestados da Educação a Distância. Em virtude da alta demanda, as atividades presenciais tiveram que ser realizadas fora dos campi universitários, em geral à noite e em prédios de escolas públicas, alugados para tal fim. As atividades pedagógicas foram divididas entre diversas figuras docentes (tutores, assistentes, orientadores, entre outros), em geral profissionais das redes públicas e alunos de cursos de pós-graduação, os quais mantém vínculos precários de trabalho com as instituições promotoras desses programas. Por meio desse processo, milhares de professores têm obtido em tempo recorde o diploma do ensino superior no Brasil.
O estudo e o acompanhamento desse processo por parte de nosso grupo de pesquisa, nos últimos quinze anos, se fez por meio de vários estudos etnográficos, três dos quais tiveram como foco as atividades de leitura e escrita das professoras. O interesse por essa temática decorreu da relevância que atribuímos à leitura e à escrita para o exercício da cidadania e, também, por entendermos que a aprendizagem e o desempenho dos alunos dependem em grande parte das relações que as próprias professoras mantêm com essas práticas culturais. O envolvimento obrigatório das professoras com tais práticas no contexto desse novo modelo de formação, por meio do uso de diferentes suportes, como o caderno, o livro, o teclado, a tela, a internet, bem como a convivência cotidiana e prolongada com seus pares, levaram-nos a dar atenção a esses processos e a entender que essa temática iria permitir um maior entendimento da cultura das professoras e, além disso, identificar os possíveis benefícios dessa experiência para o trabalho pedagógico dos grupos estudados.
As pesquisas realizadas descortinaram muitas facetas da vida e do trabalho das professoras, conduzindo-nos à indagação que hoje trazemos para este artigo: a despeito dos ganhos que o diploma de ensino superior traz para os professores, não estariam eles e elas, como categoria profissional, sendo integrados paulatinamente ao grupo das minorias sociais? Ao retomarmos os dados dos estudos atrás referidos, tivemos em vista realizar um novo esforço analítico buscando integrar as análises de caráter local e avançar em direção a uma compreensão mais ampla sobre as condições do exercício do magistério no Brasil, hoje, por meio da consideração da questão das minorias/maiorias.
Minorias-maiorias
No âmbito das ciências sociais, o termo minorias diz respeito aos grupos submetidos a processos de estigmatização e discriminação que resultam em formas de desigualdade e exclusão sociais. Dentre esses grupos, os negros, os indígenas, os homossexuais, os imigrantes e as mulheres são os que têm sido mais investigados em nosso contexto. Todavia, em tempos recentes essa lista vem sendo ampliada, para incluir os idosos, os obesos, os sem-teto, dentre outros grupos surgidos no contexto das políticas econômicas neoliberais produtoras de desigualdades e de novas formas de exclusão. Deste modo, não é improvável que outros grupos estejam sob o risco de passar para a faixa dos excluídos, uma vez que submetidos a processos de perdas contínuas de seus direitos sociais, sonegados e subtraídos pelos grupos de maior poder.
Falar em minorias significa, portanto, falar de relações de poder desigual no âmbito da sociedade e da posição subordinada que certos grupos experimentam. Rosso, Strey, Guareschi e Bueno (2002) buscam mostrar que o termo diz respeito a "segmentos das sociedades que possuem traços culturais ou físicos que são desvalorizados e não inseridos na cultura da maioria, gerando um processo de exclusão e discriminação". Baseando-se em Moscovici (apud Rosso, Strey, Guareschi e Bueno), eles enfatizam que as minorias existem na fronteira social, ou mesmo fora dela, compondo
um grupo ao qual foi negada autonomia e responsabilidade, que não conta com confiança, nem é reconhecido por outros grupos. Tal grupo não se reconhece nos sistemas existentes de poder e crença e ele não representa tal sistema para ninguém. (p.78).
Prosseguindo a análise, esses autores nos ajudam a perceber que os processos de estigmatização e discriminação das minorias implicam em formas diversas de violência física e simbólica. Nesse âmbito, o estereótipo ocupa papel essencial, visto operar como uma das estratégias de manutenção da ordem social e simbólica, distinguindo os que estão "dentro" e os que estão "fora" das normas. Outro aspecto que os autores destacam é o papel da mídia na criação de desejos padronizados em relação a determinado estilo de vestimenta/tecnologia, operando como padronizador de um modelo de consumo que dá a ilusão de que cada um é um ser diferenciado e único.
Ao trabalharmos com professores da educação básica por longos anos, observando suas práticas e formação, passamos a indagar se esse grupo de profissionais não estaria, em nosso país, situando-se nessa fronteira. As pesquisas que temos realizado durante mais de uma década sobre os programas especiais voltados para a formação em serviço de professores/as das séries iniciais do ensino fundamental, nos deram muitos elementos para desenvolvermos uma análise sobre essa questão, por ora, uma especulação dessa hipótese.
Tais estudos apontaram que a maioria das professoras que frequentou tais programas exercia jornada dupla de trabalho, lecionando em duas escolas distintas. A faixa etária a que pertenciam na época em que os estudos foram realizados variava de 20 até mais de 60 anos. Contudo, seus percursos de vida se assemelham em muitos aspectos: a grande maioria é oriunda de famílias de nível socioeconômico baixo, muitas vindas de áreas carentes do pais, filhas/os de pais analfabetos ou com poucos anos de escolarização, tendo começado a trabalhar cedo para auxiliar no orçamento familiar. As professoras pertencentes a esse grupo foram alfabetizadas somente por ocasião do ingresso na escola e tiveram pouco acesso a livros e outros materiais escritos quando eram crianças e adolescentes. Algumas viveram a experiência escolar com grande dificuldade devido à rigidez de certos professores, punições severas, reprovações, problemas de saúde tais como deficiência visual não identificada, enfim, problemas diversos de adaptação ao cotidiano escolar. Apenas cerca de 5% é oriunda de família com nível socioeconômico mais favorecido, tendo, com isso, maior acesso a livros, revistas, obras de arte etc. Esse pequeno grupo contou com o incentivo dos pais à prática de leitura, uma vez que eles também possuíam esse hábito. O capital cultural herdado da família mostrou-se flagrante (ver Bueno, Souza e Bello, 2008).
Nossas pesquisas identificaram, ainda, outros aspectos que nos instigaram a levar adiante nossa indagação, como será mostrado adiante, neste artigo.
Abordagem metodológica
Visando construir novas análises, o presente texto se desenvolve a partir dos resultados de três pesquisas realizadas sob enfoque etnográfico (Sarti, 2005; Oliveira, 2009; Arnoldi, 2014) tendo agora como foco a questão das minorias/maiorias, como informado acima. O trabalho de campo de cada uma dessas pesquisas foi realizado em três diferentes momentos da execução do primeiro programa especial oferecido a professores da educação básica do Estado de São Paulo, o PEC Formação Universitária3, desenvolvido de 2001 e 2008 na modalidade semipresencial. Nessa perspectiva, ainda que o presente artigo não se caracterize, ele próprio, como uma etnografia, é importante considerar que seu ponto de partida foram estudos dessa natureza. Assim sendo, é necessário descrever as principais características do programa que acolheu os estudos empíricos, bem como os procedimentos de análise, tanto os originais como os que são apresentadas neste artigo.
O PEC Formação Universitária foi viabilizado por meio de uma parceria entre a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, três grandes universidades4 e fundações de caráter privado5 (2003). Após sua primeira edição, o programa foi reeditado mais duas vezes para atender a demanda dos professores das redes municipais de ensino. Na segunda edição, foi oferecido aos professores das redes municipais (PEC Municípios) do estado e, na terceira, apenas aos professores de educação infantil da cidade de São Paulo (PEC Município II). Essas reedições foram favorecidas pela infraestrutura deixada pelo PEC Estadual, constituída por uma plataforma online, estúdios para videoconferências, salas com computadores para uso das professoras, dentre outros equipamentos instalados nas universidades e nos polos. Estes, como locais físicos, eram frequentados pelas professoras6 diariamente para desenvolverem as várias atividades previstas: trabalho offline acompanhado por um tutor em salas comuns; trabalho online realizado em salas equipadas com 20 computadores e acesso intranet; acompanhamento de videoconferências, duas vezes por semana; e de teleconferências, uma vez por mês. O material herdado do PEC Estadual incluía, ainda, as apostilas oferecidas às professoras, acrescidas na segunda e terceira edições de conteúdos de educação infantil.
Esse programa provocou muita polêmica, não apenas por suas similaridades com a Educação a Distância, mas também por conta de durar apenas dois anos, e, ainda, por associar formação continuada e formação em serviço em um mesmo processo, com isso gerando uma sobrecarga de trabalho aos professores.
Tal cenário propiciou o desenvolvimento de estudos empíricos de tipo etnográfico, assentados em trabalho de campo prolongado, com vistas a acompanhar alguns dos processos que ali começaram a se desenhar. As professoras frequentavam os polos das 19 às 22h30, após suas jornadas de trabalho diário, e aos sábados, pela manhã. Adotamos, então, como procedimentos básicos a observação participante e entrevistas em profundidade, complementando os dados colhidos com análise documental que envolvia: a legislação que passou a regular esses programas e o material didático (apostilas) oferecido às professoras em substituição aos textos acadêmicos utilizados nas universidades. Também nos detivemos na análise da "escrita de memórias", uma atividade desenvolvida pelo programa com o propósito de instigar as professoras a narrarem seus percursos escolares e a refletirem sobre os mesmos (ver Bueno, 2006; Bueno, Souza e Bello, 2012).
O primeiro estudo de campo foi desenvolvido durante a execução do PEC Estadual, com duração de 15 meses, visando observar as professoras durante as atividades de leitura obrigatória e analisar suas apropriações dos textos acadêmicos (Sarti, 2005; Sarti e Bueno, 2007). Tais atividades eram coordenadas pelo tutor de cada turma, que assumia um papel semelhante ao de um docente polivalente. Orientava as professoras sobre todos os conteúdos tratados, os quais buscavam contemplar os conteúdos das disciplinas dos cursos regulares de Pedagogia, oferecidos pelas universidades.7
O trabalho de campo da segunda investigação (Oliveira, 2009; Bueno e Oliveira, 2008; Oliveira e Bueno, 2013) foi realizado durante a execução do PEC-Municípios, focalizando entre outros aspectos a relação das professoras com as mídias eletrônicas e o uso do computador, equipamento que naquela época não era de uso generalizado entre os docentes das escolas públicas. O trabalho se desenvolveu ao longo de 18 meses, por meio de observações realizadas na sala de trabalho online, enquanto as professoras respondiam as questões das unidades de conteúdo e contavam com a correção e orientação de assistentes a distância.
A presença de assistentes, tutores e orientadores no PEC insinuava para nós o surgimento de um novo grupo de profissionais, que já nascia em condições precárias de trabalho, sobretudo, por não possuírem vínculo formal com as instituições contratantes. Devido à ausência de uma denominação mais precisa, passamos a designá-los de novos agentes pedagógicos ou novas figuras docentes. Ao longo das sucessivas análises que desenvolvemos, viemos a problematizar a questão da precarização do trabalho docente, optando pelo uso dos conceitos de profissionalização e desprofissionalização. Esse par de conceitos nos pareceu potente para explicar as configurações desse novo modelo de formação de professores, uma vez que tais processos se manifestaram de modo concomitante, parecendo se constituírem em duas faces de uma mesma moeda. Com efeito, o percurso profissional subsequente dos tutores, assistentes e orientadores se mostrou bastante diverso entre si, configurando a presença de processos de maior profissionalização para os assistentes do que para os dois outros grupos (Bueno, 2014).
O terceiro estudo (Arnoldi, 2014; Arnoldi e Bueno, 2014) foi realizado após o encerramento do programa, por meio de observações feitas nas salas de aula de oito professoras egressas do PEC Municípios. Interessava-nos encontrar elementos que permitissem identificar possíveis contribuições desse programa para a atuação docente, especialmente, no que diz respeito às práticas de alfabetização. Afinal, essa foi uma das principais ênfases do programa e isso se mostrava instigante para as pesquisas do grupo de pesquisa.
Tendo constatado alguns paradoxos ao longo de nossos estudos, perguntamo-nos se os professores da educação básica não estariam vivendo hoje, no Brasil, um processo que os conduz, ou empurra, para situações limítrofes do espaço social das minorias. Não seriam eles e elas um tipo de cross-borders culturais? Para ensaiar essa análise, levamos também em conta o argumento frequentemente reiterado por teóricos e políticos educacionais de que a formação superior eleva o nível de profissionalização, propicia a valorização dos professores e assegura a melhoria da qualidade da educação básica.
Do ponto de vista teórico, as principais balizas conceituais vieram de Bourdieu (1979, 1983), Lahire (2001, 2004), Chartier (1990) e De Certeau (1994), agregando outras referências conforme a questão em exame. As bases fornecidas por esses autores permitiram matizar nosso referencial teórico, partindo do pressuposto formulado por Rockwell e Ezpeleta (1986) 8 de que o Estado não é ator único na realização das políticas educacionais, "capaz de transformar a sociedade de raiz, criar culturas nacionais e moldar as mentes de crianças e adultos" (Rockwell, 2009, p. 12).
Ao endossarmos a tese dessas autoras de que os processos sociais são construídos e transformados, também, pelas ações que ocorrem no âmbito da vida cotidiana, reconhecemos que o estudo de tais processos encontrou na etnografia seu principal suporte metodológico. Em tais estudos, bem como na presente análise, buscamos estabelecer um diálogo analítico entre as esferas micro e macrossociais a fim de melhor compreender as relações entre essas duas esferas e o modo como determinados contextos macroestruturais têm sido traduzidos pelas micro-políticas educacionais, tais como as que se dão no âmbito do cotidiano escolar e aquelas que tomaram forma na dinâmica dos cursos especiais de formação de professores.
Cruzando fronteiras: os professores e o consumo cultural
Os programas especiais de formação docente têm possibilitado no Brasil o acesso de milhares de professores brasileiros ao nível superior sem, no entanto, oferecer-lhes garantias de uma inclusão mais efetiva no sistema e na cultura universitária. Embora finalmente atendidos pelas universidades, esses professores compõem um grupo diferenciado no interior das instituições, segregado dos demais estudantes e da vida universitária. Essa condição os torna vulneráveis socialmente.
Para eles, foram (e continuam a ser) oferecidos cursos especiais no que se refere: à carga horária, quase sempre reduzida; à grade curricular, frequentemente organizada em módulos temáticos; ao corpo docente, composto não por docentes da universidade, mas por outras figuras (tutores, assistentes, orientadores) que dividem entre si as atividades de ensino; aos materiais de leitura, elaborados especialmente para mediar e facilitar a eles o acesso aos textos; ao espaço físico, com aulas realizadas em polos localizados fora dos campi das universidades. Assim, o Estado, em parceria com o mercado, impõe aos professores não uma identidade de estudantes universitários, mas sim de "alunos-professores", designação co-mumente atribuída aos professores cursistas e que nos parece reveladora dos processos de exclusão e discriminação por eles vivenciados no interior desses programas. Nessa conjuntura, a passagem dos professores por tais programas especiais ocorre de maneira intranquila. Com percursos biográficos e profissionais impregnados por uma racionalidade pragmática relacionada ao dia-a-dia da sala de aula, suas culturas profissionais, bem como suas origens sociais são desprezadas no contexto acadêmico. Para grande parte desses professores, a maioria formada por mulheres, a realização das atividades comumente valorizadas na universidade, como é o caso da leitura e da escrita, representa um grande desafio.
O interesse pelo modo como esses professores se apropriam do lugar discente que lhes é reservado nesses programas e como enfrentam os desafios que os motivou a se inscreverem no curso, deu ensejo ao primeiro estudo que serve de base a este artigo (Sarti, 2005; Sarti e Bueno, 2007), por meio do qual buscamos investigar os modos pelos quais as alunas-professoras9 se apropriavam dos textos acadêmicos que liam naquele ambiente peculiar de formação. As atividades de campo dessa pesquisa foram realizadas em duas turmas escolhidas em virtude das diferenças significativas que apresentaram. De qualquer forma, é importante dizer que dizem respeito a práticas que se consolidaram na escola e se integraram à cultura do magistério das séries iniciais, no Brasil.
As professoras da turma I revelavam diversas dificuldades no contato com os textos acadêmicos -estranhamento em relação ao léxico empregado, desconhecimento quanto aos processos de produção e divulgação dos mesmos, insuficiência conceitual, entre outras, como pode ser percebido no depoimento de uma das alunas-professoras:
(...) eu não conseguia dar conta das leituras! Daí a Vivian [tutora da turma], coitada, dava tempo para a gente ler aqui [no curso]... a gente não se concentrava...(... ) eu acho que é a falta de costume da linguagem do texto. Inclusive teve uma vez que o pessoal reclamou: "Esses textos são muito difíceis...A gente não entende..." Aí, a professora [tutora] falou assim: "Mas, na escola, a gente não tem que trazer o aluno para o nosso mundo? Quando a gente pega aluno de várias regiões do Brasil, respeitando a sua diversidade, não tem que tentar trazer para a escola? É o que a gente está tentando fazer aqui!" (...) eu falei: "Sabe que é isso verdade!" E, aí, a gente teve que ler! Não teve outro jeito! (entrevista, 2/10/2002).
Já as alunas-professoras da turma n mostravam razoável desenvoltura na leitura, inclusive em textos com os quais vinham estabelecendo contato em outras oportunidades de formação continuada. Algumas delas ressaltaram seus hábitos de leitura já constituídos., como mostra o depoimento enfático de uma das professoras dessa turma: "... acontece o seguinte, se eu tiver um minuto na minha casa, esse minuto eu estou lendo". Sobre as leituras relativas ao PEC, outra colega de classe dessa professora explica:
(...) eu leio aqui com o pessoal, a gente se divide em grupos, às vezes, lê todo mundo junto, mas essa leitura para mim não é suficiente. Porque eu gosto de ler sozinha, eu gosto de ficar grifando, eu gosto de ficar anotando e rabiscando, e... às vezes, a leitura [em classe] é muito rápida e é meio vaga. Então, eu fico assim, lendo geralmente de domingo à tarde; de sábado, quando eu saio daqui, eu procuro ler tudo em casa. (entrevista, 07/08/2002).
Essas diferenças no que se refere aos hábitos e às experiências prévias de leitura das professoras chamaram atenção, mas logo cederam lugar para outras impressões, obtidas durante as visitas ao polo. Notamos que várias similaridades nas práticas de leitura daquele grupo de professoras as uniam no tocante aos seus modos de ler os textos acadêmicos. Isso nos levou a pensar que tais práticas, pela similaridade, haviam se consolidado no âmbito de uma cultura docente do grupo a que as professoras estavam referidas. Suas leituras eram caracterizadas pela presença marcante da oralidade durante a discussão de assuntos relacionados à vida cotidiana escolar, assumindo, com isso, feições específicas bastante próximas da docência diária. Ao invés de se concentrarem na aprendizagem de valores, procedimentos e posturas próprias do ambiente acadêmico (para o qual o programa atuava como uma 'porta de entrada'), as professoras dos dois grupos estudados traziam consigo seus próprios modos de ler e de se aproximar de temas educacionais. Com isso, subvertiam a ordem dos discursos acadêmicos presentes nos textos lidos, de modo a assumir uma perspectiva prática que não estava prevista nos textos.
Essa conduta foi por nós interpretada como um tipo de táticas de consumo (De Certeau, 1994) que visavam converter essas leituras em ocasiões de reflexão e de questionamento sobre fatores que se impõem à atividade condição profissional docente. Mesmo sem capitalizarem um espaço naquele território estrangeiro (o programa de nível superior que estavam frequentando), as professoras introduziam uma perspectiva própria, trazida da cultura docente. Subvertiam assim a ordem dos discursos proferidos, tornando-os, deste modo, mais próximos de seus interesses e necessidades de trabalho. Com tal engenhosidade, resistiam às investidas da universidade em suas tentativas de reinventá-las (Bueno, 2006) e conferiam valor para seus próprios saberes e práticas profissionais. Revelavam-se, com isso, traços da dimensão política que Michel de Certeau (1994) atribui às práticas cotidianas, como é o caso da leitura. As relações que as professoras estabeleciam com os textos eram pautadas em seu valor de uso para o atendimento de suas necessidades, visando a resolução de problemas que enfrentavam no exercício diário de seu ofício. Colocavam-se, assim, na cena.
Claro está que essa perspectiva pragmática presente no modo como as professoras liam os textos educacionais, chocava-se com as maneiras acadêmicas de ler ancoradas em uma lógica discursiva. Contrapunha-se, também, aos objetivos formativos do programa, voltados para a instauração de hábitos, procedimentos e valores mais próximos da cultura acadêmica universitária. Formar os professores como "novos leitores" constituía, pois, uma meta a ser alcançada pelo programa, e a instauração desse "novo" modo de ler contava com o suporte de alguns dispositivos, enquanto estratégias de controle (Foucault, 1994). Entre tais dispositivos, dois se destacavam: a) os protocolos de leitura presentes nas apostilas do programa, que visavam orientar e conformar as leituras realizadas pelos professores; b) a atuação dos tutores, cujos gestos de leitura poderiam ser percebidos pelas professoras como um modelo a ser aprendido (o que foi observado especialmente no grupo I). Tais dispositivos objetivavam desenvolver nas professoras modos de leitura considerados mais legítimos e, portanto, mais valiosos do ponto de vista simbólico.
Com efeito, observou-se que a leitura de tipo intensiva, exaustiva e pessoal -e, portanto, não coletiva e oralizada, como as professoras preferiam até então- foi-lhes imposta cada vez com maior ênfase como o modelo mais legítimo de contato com os textos educacionais. A partir de então, as professoras das duas turmas mostravam-se cada vez mais críticas quanto aos hábitos de leitura partilhados entre seus pares e, também, sobre suas próprias possibilidades de leitura fora do ambiente do programa. A avaliação que passaram a fazer a esse respeito foi sendo crescentemente influenciada pelos padrões acadêmicos, que apontavam um ideal de professor-leitor bastante exigente, mas que em muitos aspectos se distanciava da imagem que elas faziam de si mesmas bem como de suas condições objetivas de leitura. Configurava-se, assim, uma situação de violência simbólica (Bourdieu, 1998), na qual os dominados passam a enxergar a si próprios através da perspectiva dos dominantes, instituindo-se a partir disso uma "violência suave e frequentemente invisível." (p. 41).
A adesão aos modelos de leitura mais valorizados no programa em estudo parecia impedir que as professoras atribuíssem maior valor às leituras que costumavam realizar, consideradas por elas como superficiais em função da falta de condições mais favoráveis. A esse respeito, uma das professoras parecia perceber com clareza diferenças em seus hábitos de leitura após o término do programa. Referindo-se à tutora, disse:
(...) ela foi ensinando a grifar, a anotar o que tinha dificuldade, fazer anotações do lado...e a gente foi aprendendo com ela! Hoje, eu não consigo ler nem riscar alguma coisa.... sem anotar (...) hoje eu leio bem. (...) se o assunto me interessa muito, eu consigo ler mais. Não sei se é porque a gente entende mais... eu tenho mais facilidade de ler. (entrevista, 2/10/2002).
Assumir essas leituras -efetivadas muitas vezes na urgência, na desordem e na incerteza de ter memorizado e compreendido as informações- como aceitáveis ou uma bricolagem imposta pela necessidade, colocaria em questão suas próprias representações sobre a legitimidade universitária. Para as professoras estudadas, uma formação profissional em nível superior requereria a aprendizagem de novas posturas, valores e práticas relacionadas à leitura de textos, assim como a outras atividades acadêmicas.
Mesmo considerando que elas assumiam uma margem de liberdade nas leituras que realizavam no programa, apropriando-se dos textos por meio de táticas que as faziam dialogar com seus interesses e necessidades mais prementes, e escolhendo as leituras que mais "valiam a pena", é forçoso admitir a existência de limites para suas resistências. As professoras estavam, sim, incorporando novos procedimentos e padrões de leitura profissional, esperavam se tornar, como queria a universidade, "novas leitoras" de textos acadêmicos. E o modelo de leitura aprendido no programa impunha-se com força, como parte de sua própria profissionalidade docente, como sugere o depoimento de uma professora:
Eu acho que só essa leitura, só essa busca, só esse interesse...de saber mais é que vai levar a gente para uma coisa melhor, para uma prática que a gente deseja sempre. (entrevista, 07/08/2002).
A situação resultante das tensões entre coerção e liberdade, adesão e resistência, trazia sentimentos controversos para as professoras. Ainda que se orgulhassem de seus novos hábitos e práticas de leitura e os reconhecessem como caminhos para o estabelecimento de relações simbolicamente mais vantajosas com sua profissão, elas se ressentiam da expropriação de seus próprios gestos, saberes e práticas profissionais. A perspectiva discursiva que fundamentava as relações a serem estabelecidas com os textos educacionais no contexto do PEC requeria, por vezes, que as professoras se afastassem de suas preocupações mais imediatas concernentes ao ensino e passassem a considerar a centralidade de novos objetivos e procedimentos para a atuação docente, tais como: a pesquisa sobre o próprio ambiente de trabalho, com a identificação de indicativos estatísticos e a perspectiva dos diversos grupos da comunidade escolar; o exame teoricamente subsidiado da aprendizagem de seus alunos; a adoção de uma postura mais reflexiva diante da prática docente; e as tentativas de explicar suas escolhas e atitudes. Ao realizarem atividades desse tipo, as professoras mostravam-se satisfeitas por terem mais informações sobre o ensino, mas se ressentiam da falta de discussões mais centradas nos saberes para o ensino. A atividade de ensinar, que realizavam há tantos anos, parecia-lhes cada vez mais complicada e algumas delas mostravam-se inseguras para o retorno ao trabalho na escola.
Todavia, esse processo não é linear e nem mesmo homogêneo. A autoestima positiva das docentes tem sido reiterada por elas continuamente, durante e após terem concluído o curso, pelo fato de terem um diploma de ensino superior concedido por uma universidade de grande reputação e pelo reconhecimento social que passaram a gozar. Esse é um dos ganhos mais evidentes desse processo, que, no entanto, não é suficiente para permitir que nossas mestras ultrapassem as barreiras sociais que lhes foram impostas e nem para o necessário enfrentamento dos desafios cotidianos em suas escolas. O programa foi finalizado, mas a vida e o trabalho continuam nas escolas, quase sempre de forma solitária e, quase sempre sem o reconhecimento por terem obtido um diploma de ensino superior.
A leitura e a escrita depois do curso: o que ficou?
Ainda no contexto polêmico da execução dos programas especiais, um dos eixos de nossa pesquisa consistiu na observação do trabalho de oito professoras egressas do PEC, após o término desse programa (Arnoldi, 2014; Arnoldi e Bueno, 2014). Em uma perspectiva de inclusão social por meio do ensino superior, buscamos verificar em que medida o PEC se constituiria como uma oportunidade de maior profissionalização, conferindo às professoras não só um diploma de nível superior, mas, oportunizando que as mesmas se apropriassem de conhecimentos mais específicos para um exercício mais competente da profissão. Paralela e consequentemente, portanto, a pesquisa problematizou a garantia dos direitos de aprendizagem da leitura e da escrita dos alunos das escolas públicas, pertencentes, majoritariamente, aos grupos desprivilegiados da população, uma vez que tal aprendizagem se encontra relacionada diretamente à profissionalização das professoras. Nesta pesquisa, como será ressaltado, foram identificadas práticas que parecem ter se consolidado na cultura docente, porém, compondo um todo matizado, e não uniformizado, decorrente do capital cultural das docentes investigadas.
Partindo do material didático oferecido pelo programa, de acentuada tônica construtivista em oposição às concepções tradicionais, buscou-se analisar de que modo esse dispositivo de socialização profissional poderia colaborar na transformação das disposições docentes referentes ao ensino da leitura e da escrita, uma vez que o programa apresentava, em seu discurso, uma grande intencionalidade na direção das mudanças das práticas docentes. É dentro deste contexto que buscamos conhecer como tal grupo de docentes realizava seu trabalho diário, visando identificar possíveis efeitos do PEC sobre suas práticas.
As quatro professoras do 1° ao 3° ano que foram acompanhadas demonstraram ter conhecimento do discurso teórico relativo às hipóteses de escrita preconizadas por Emília Ferreiro. Apesar disso, todas, em maior ou menor grau, ainda se valiam, na época das observações, de exercícios preconizados pelo antigo método silábico.
A professora que apresentou a maior quantidade de vivências pedagógicas de cunho construtivista em suas práticas justificava a mistura de métodos que vinha fazendo, afirmando que "é preciso fazer adaptações e ajustes, pois, tem criança que aprende de um jeito e criança que não aprende daquele jeito, do construtivismo. Tem criança que demora, que precisa do be-a-bá. Não tem como, elas precisam ter essa decodificação" O uso das parlendas e cantigas infantis como recurso alfabetizador, propostas pelo construtivismo, apareceu nas práticas de três das quatro professoras observadas, porém, enquanto duas professoras utilizavam esse recurso privilegiando a interação com os alunos para a construção de conhecimento de cunho linguístico, com momentos de reflexão e análise, uma delas o utilizava somente como subsídio para as atividades de cópia.
O mesmo foi observado na prática da escrita coletiva que, de recurso de palavras estáveis conhecidas para fomentar a escrita de novas palavras, transformava-se na sala de aula de uma das professoras em uma monótona e repetitiva atividade diária, que ocupava, no geral, os primeiros cinquenta minutos da aula. Quanto às listas de nomes, material considerado essencial para a alfabetização de base construtivista, constatamos que em três das quatro salas tais listas existiam, porém, somente uma professora foi observada realizando reflexões de análise fonológica com os alunos a partir desse material. A produção de pequenos escritos, pautada no trabalho com gêneros textuais nos anos iniciais de escolarização, foi observada apenas na prática de uma docente. Somente duas fizeram uso de recursos didáticos diferenciados, como, por exemplo, letras móveis e crachás de nomes próprios que fugiam da tríade caderno-giz-lousa. No geral, as professoras quase não davam atenção à leitura em suas aulas, atrelando essa atividade ao ensino da escrita e distanciando-se, portanto, da perspectiva de formar o leitor literário desde a mais tenra infância.
As outras quatro professoras pesquisadas (dos anos finais do Ensino Fundamental I) apresentaram práticas ainda mais heterogêneas entre si. Uma delas privilegiava as atividades do ensino de gramática, preocupando-se sobremaneira com a nomeação dos fenômenos linguísticos, não tendo sido flagrada em nenhum momento realizando atividades de produção de textos com seus alunos. Suas aulas se organizavam quase sempre da mesma maneira: colocava um breve exercício na lousa, retirado de um caderno de páginas amareladas e, a seguir, dava cinco minutos para os alunos responderem. Durante o desenvolvimento da correção de tais exercícios, mesmo quando os alunos acertavam as repostas, a professora as rejeitava privilegiando uma resposta correta: aquela que se achava em seu caderno! Embora esta prática privilegiasse as nomenclaturas gramaticais, muitos alunos ainda pareciam não as ter interiorizado e/ou compreendido seus significados.
A segunda professora observada enfatizava a prática de produção de texto, porém, sem se preocupar com a reescrita e a revisão dos textos. Sua opção era pela escrita espontânea dos alunos, dando atenção apenas a correções de ortografia, mesmo que o discurso escrito se apresentasse sem coesão ou coerência. No que tange à leitura, essa docente se restringia à prática oralizada, realizada por ela própria ou pelos alunos com maior fluência leitora. Eram comuns pequenos exercícios de leitura em voz alta, aos quais se seguiam diversos comentários da professora, tais como:
Tudo o que fazemos na sala exige leitura. [...]. A leitura é para ser bonita! Para vocês entenderem o que vocês estão lendo, vocês precisam dar pausas... [...] Luís Paulo, você não pode ler tudo sem parar! Quando tem ponto e vírgula, precisa respirar!
Outra professora ocupava a maior parte de suas aulas com atividades de interpretação de textos realizadas a partir de um livro didático. A leitura, portanto, era vista como pura decifração do código, mas sem o viés oralizado do exemplo anterior. Já a quarta proffes-sora desse subgrupo apresentava de forma contínua momentos de produção textual com reescritas que envolviam discussões prévias e planejamento. Em uma das aulas, por exemplo, essa professora leu duas versões da fábula "A cigarra e as formigas" e questionou os alunos sobre as diferenças entre ambas antes de partirem para a proposta da reescrita. Foi uma rica discussão sobre a importância do estilo no texto literário que evidenciou a perspectiva leitora dessa mestra, tal como pode ser visto no seguinte diálogo da professora com os alunos:
- É a mesma história?
- Sim.
- O que muda?
- Os detalhes da história... A história do "num belo dia"... "num dia...". Não é isso, prô?, arrisca Gabriel.
- Isso. É a mesma coisa, mas, de um jeito mais curto. Quando vocês escutam as duas histórias, qual é a que você mais gosta de ler? Aquela com detalhes e informações ou a mais simples?
- A mais curta, porque tem menos palavras, diz Leandro.
- Mas é só por causa da quantidade de letras que vocês gostam mais ou menos de uma história? Qual é o jeito que vocês gostam mais?
- Da segunda [a mais curta], respondem Áurea e Carlos.
- Então, vocês gostam da mais curta, porque tem menos detalhes. Eu, particularmente, gosto de uma história mais elaborada. Quando ele fala "num dia de inverno", eu vejo... Mas, quando ele fala "um belo dia de inverno", eu consigo imaginar esse dia...
As descrições acerca do trabalho pedagógico desenvolvido por essas professoras exibem a diversidade de práticas que atravessa nossa estrutura educacional. Levam-nos também a pensar que os conhecimentos de cunho construtivista sobre o ensino da leitura e escrita trabalhados ao longo do PEC foram como que se perdendo pouco a pouco ou sendo (re)apropriados de maneira até mesmo divergente do que foi proposto pelo programa.
Todavia, o mais importante foi perceber que as professoras não apenas "filtram e selecionam os conteúdos propostos, além de interpretá-los de acordo com sua experiência" (Rockwell, 1995, p. 93), mas que, independentemente de suas orientações pedagógicas, poucas se mostram capazes de oferecer a seus alunos oportunidades de aprendizagem mais efetivas que lhes garantam o direito de aprender a ler e a escrever com proficiência. Assim, embora submetidas durante a execução do programa a um intenso ritmo de estudos para se apropriarem do arcabouço construtivista da alfabetização, apenas duas das oito professoras observadas revelaram ter deixado para trás suas crenças metodológicas. Talvez, até porque tenham fortalecido crenças que de alguma forma já as tinham.
Entendemos que isso se deve a várias razões. Em primeiro lugar, porque as representações sobre as práticas docentes se estruturam desde muito cedo, até mesmo em momentos anteriores à entrada na escola, estendendo-se por todo o percurso da vida escolar e profissional (Bueno, 1996). No caso das mestras focalizadas neste estudo, esse aspecto mostrou-se relacionado às experiências formativas realizadas em contextos diversos e às interações com seus pares no trabalho. As professoras apontadas como mais eficientes, e que mais modificaram suas práticas de acordo com o ideário proposto pelo programa, apresentaram um percurso de estudos muito mais amplo e diversificado que as demais. Elas mencionaram suas leituras de livros teóricos, feitas por interesse próprio, e a participação em cursos de pós-graduação, especialização e de formação profissional oferecidos pela própria rede de ensino na mesma linha teórica do PEC. Além disso, relataram experiências positivas com coordenadores que as auxiliaram a transformar suas práticas. Brandão e Altmann (2005, p. 5) ao analisarem a transformação do habitus, observaram que
a variedade de capitais na estruturação dos habitus, decorrente da frequência com que os agentes se movem e "jogam" em vários campos, dota-os de [volume e estrutura de capital e, consequentemente de] uma maior plasticidade que se desdobra em uma crescente e mais pronta possibilidade de conversões e reconversões das disposições para pensar, agir, sentir e gostar, revestindo-as de roupagens cada vez mais complexas e distintas.
Nosso estudo apontou que as lacunas e deficiências no ensino da leitura e da escrita são também devidas à falta de condições objetivas de trabalho que favoreçam a recriações das práticas pedagógicas assentadas nas teorias com as quais as professoras entraram em contato durante o curso especial de nível superior. Bernard Lahire (2004, p.333) observa que esse aspecto contextual acaba por provocar o fenômeno da frustração, levando a que o sujeito se sinta "impotente, pois não encontra as condições disposicionais favoráveis à sua concretização".
Por fim, o estudo evidenciou que o habitus leitor e o habitus escritor de cada professor/a influi, em grande medida, no habitus docente relativo ao ensino da leitura e escrita. Duas professoras que em suas entrevistas apresentaram percursos de formação literária e escritora diferenciados, revelando, por exemplo, assiduidade a bibliotecas públicas no período da infância e juventude e momentos de compartilhamento de leitura com seus filhos, são justamente as professoras que mais parecem fomentar, por meio de suas práticas, o gosto pela leitura e escrita em seus alunos. Pareceu-nos pouco provável, desta forma, que uma docente possa despertar o gosto pela leitura e escrita de seus alunos e ensiná-los de maneira adequada se ela própria não carrega consigo o gosto por essas práticas culturais (Bueno, Souza, e Bello, 2008). Isso não significa que a ausência do gosto pela leitura e escrita por parte das docentes seja um impedimento para que elas estabeleçam uma relação positiva com o ensino e a aprendizagem nessas áreas. Contudo, aponta para uma perspectiva muito restrita à manipulação de signos.
Esses aspectos nos levam a reafirmar que mudanças significativas das práticas docentes, sobretudo as relacionadas à leitura e escrita, requerem investimentos contínuos e por tempo prolongado. Em que pese o intenso discurso teórico do PEC, com grande ênfase sobre a importância da leitura e da escrita no mundo atual para os alunos de todos os níveis, isso não foi suficiente para transformar o habitus docente. Fomos levadas a pensar que, enquanto alunas do PEC, as professoras 'forjaram' apenas um habitus leitor e escritor temporário visando responder às demandas do curso, mas não o mantendo nos anos seguintes. As atuais condições objetivas financeiras e temporais das docentes, representadas por jornadas duplas ou até mesmo triplas, em alguns casos, além de mal remuneradas, também colaboram para o distanciamento de tais professoras das práticas culturais, excluindo-as, por exemplo, do meio cultural literário e colocando-as, mais uma vez, sob o risco de se aproximarem de uma condição de minoria marginalizada, que consequente e paradoxalmente reproduz e amplia esta condição cultural para seus alunos.
Conclusões
As análises apresentadas neste artigo explicitam um dos grandes paradoxos que caracteriza o processo de democratização do ensino superior no Brasil no campo do magistério. Pois, ao mesmo tempo em que as professoras conquistam o direito de cursar o ensino superior, elas se vêm subtraídas de seu direito de receber uma formação em condições de maior igualdade com aqueles que ingressam em cursos superiores regulares. O Estado busca reparar uma dívida social, já que a maioria dos professores que frequenta tais cursos vem de extratos sociais mais desfavorecidos, porém, vale-se de um dispositivo que, além de submeter as professoras a duras jornadas de trabalho e não permitir que elas possam se dedicar com afinco ao curso, fomenta a (re)criação de hierarquias sociais na universidade e na educação básica.
A desqualificação do curso e a exclusão daí decorrente sentida pelas professoras desde o início do programa - 'Ah! Você faz o PEC...!" - foi tão somente o primeiro sintoma de um processo de inflação dos títulos escolares e da consequente reclassificação dos grupos que concorrem ao diploma de educação superior. Segundo Bourdieu (1998, pp. 149-50),
Um diploma tem todas as chances de ter sofrido uma desvalorização todas as vezes que o crescimento do número de portadores de títulos escolares é mais rápido do que o crescimento do número de posições às quais esses diplomas conduziam no início do período.
A despeito disso, as professoras reiteraram unanimemente que se sentiam muito felizes com o diploma. Como pesquisadoras, nos curvamos ante tal sentimento de êxito -ou de vitória, como muitas o definiram- sobretudo, pela autoestima elevada que essa experiência e esse título lhes trouxeram. Todavia, nossas indagações permanecem: de que modo essa satisfação se repercute no fazer docente cotidiano e em suas carreiras?
As pesquisas aqui reunidas sugerem que durante a vivência no PEC as professoras aderiram a modelos de leitura e de escrita bem como a concepções profissionais que lhes eram então apresentadas como sendo mais valiosas do ponto de vista simbólico e, portanto, capazes de aproximá-las de uma profissionalidade mais legítima e vantajosa no campo educacional. No entanto, a adesão a tais modelos e concepções demandava esforços significativos por parte delas, posto que deveriam conciliá-los a suas rotinas intensas de trabalho na escola e na vida familiar. Enfrentavam, também, conflitos diversos relativos, de um lado, a sentimentos de expropriação de seus próprios saberes e práticas profissionais e, de outro, ao enfrentamen-to das condições objetivas de trabalho, em muitos aspectos discrepantes das expectativas alimentadas pelo programa. É possível supor que tais condições lhes dificultavam a efetiva incorporação dos capitais culturais relativos a esses modelos e concepções vi-venciados no PEC, restringindo suas possiblidades de apropriação de um novo habitus profissional.
Chegaram, pois, ao final do programa satisfeitas com os ganhos de capital cultural institucionalizado (Bourdieu, 1979) na forma do diploma superior outorgado por instituição de prestígio, mas, reduzidos foram seus rendimentos no que diz respeito ao capital cultural incorporado. Assim, ao lado dos sentimentos de êxito pessoal que as professoras revelavam em seus depoimentos, emergiam novas angústias profissionais ligadas à percepção da distância que as separava do modelo de profissionalidade assumido, inclusive por elas mesmas, como mais valioso. A identificação desses processos vividos pelas professoras no PEC nos leva a questionar se a aceitação de um modelo ideal de profissionalidade, em vários aspectos inacessível em seu cotidiano profissional, não as tornaria mais suscetíveis às artimanhas do discurso da (in)competência (Souza, 2006) e a sentimentos de incompletude que as incitam ao consumo de produtos formativos, sob a aceitação de que cada qual é "um professor sempre a formar" (Bocchetti e Bueno, 2012). Se assim for, em que pesem os benefícios obtidos como alunas do programa, as professoras dele egressas estão vulneráveis aos processos de desvalorização cultural que desde há muito tempo vem acometendo o magistério no Brasil. Distantes do modelo de profissionalidade mais vantajoso no campo educacional, discriminadas e estigmatizadas por seus habitus profissionais, e subordinadas como consumidoras de um amplo mercado formativos dirigido ao magistério (Souza e Sarti, 2014), as professoras, e professores, se vêm cada vez mais próximos da fronteira social. Os riscos de cruzarem as fronteiras e ingressarem na faixa das minorias são grandes se políticas de efetiva valorização e desenvolvimento profissional docente não forem adotadas. Entendemos que a formação continuada nos moldes em que vem sendo feita forja um imaginário de inclusão social que, na realidade, não se concretiza nem para os docentes que dela participam nem para seus alunos que, supostamente, se beneficiariam das aprendizagens de seus mestres. Por isso, vale lembrar uma afirmação de Azanha (1998) que, apesar de singela, ainda não foi devidamente convertida em fato "são as escolas que precisam ser melhoradas. Sem este esforço institucional, o aperfeiçoamento isolado de docentes não garante que essa eventual melhoria do professor encontre na prática as condições propícias para uma melhoria de ensino." (p.58).