Introdução
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Conselho Internacional de Enfermeiros (ICN) estabeleceram 2020 como o ano internacional de profissionais de enfermagem e de obstetrícia com o objetivo de promover um alerta para o reconhecimento do importante papel desempenhado por esses profissionais para a saúde e o cuidado global 1,2. Nesse ínterim, uma pneumonia provocada por um novo tipo de coronavírus, denominado severe acute respiratory syndrome (Sars-CoV-2) 3, demonstrou rápida e constante expansão na capacidade de transmissão.
Esses eventos fizeram a OMS declarar emergência de saúde pública de importância internacional 4, o que evidenciou a necessidade de atuação da enfermagem no cuidado em saúde em uma magnitude até então nunca vivenciada 2. Até a tarde do dia 16 de julho de 2020, já haviam sido confirmados, no mundo, 13378.853 casos e 580.045 mortes relacionadas com a coronavirus disease 2019 (covid-19), com perspectiva de aumento e de colapso dos sistemas de saúde. No mesmo período, somente no Brasil foram confirmados 2.012.151 casos e 76.688 mortes 5.
No entanto, a divulgação dos dados com relação à pandemia no país tem sido, constantemente, alvo de críticas. Os veículos de mídia nacionais e internacionais, especialmente os portais jornalísticos, declaram que há inconsistências e falta de transparência nas informações divulgadas pelo Ministério da Saúde do Brasil em relação às disponibilizadas pelas secretarias estaduais e municipais de saúde. Além disso, leis relacionadas com a transparência governamental e de acesso à informação foram modificadas ou revogadas por meio de medidas provisórias no curso da pandemia, sem justificativas plausíveis 6.
Nesse sentido, em resposta às dificuldades encontradas, os portais jornalísticos G1 e UOL e os jornais impressos e virtuais O Globo, Extra, O Estado de São Paulo e Folha de S. Paulo formaram um consórcio de veículos de mídia para reunir e divulgar informações sobre a pandemia no Brasil 7. A omissão de órgãos oficiais e a novidade que representa a covid-19 deram margem para a mídia jornalística tornar-se porta-voz de tais informações e, com isso, atrair a atenção da população para o acompanhamento de vários conteúdos, incluindo os relacionados com a enfermagem 8-10.
As representações orientam condutas sociais na construção da realidade e tornam o não familiar em familiar ao produzir novos significados por meio de nomeação e de classificação 11. Assim, o fenômeno "enfermagem" nas notícias veiculadas em tempos de pandemia pode demonstrar tanto o que pensa a sociedade sobre a enfermagem quanto moldar novos conhecimentos. Nesse sentido, as relações entre os cuidados da enfermagem e as pessoas com o novo coronavírus bem como entre a expansão da pandemia e o que é publicado pelos veículos de mídia suscitaram a pergunta orientadora do estudo: quais as representações sociais dos portais jornalísticos sobre os profissionais de enfermagem que cuidam de pessoas infectadas pelo novo coronavírus? Diante disso, o estudo tem como objetivo apreender as representações sociais elaboradas nos portais jornalísticos sobre a enfermagem durante a pandemia da covid-19.
Materiais e métodos
Trata-se de um estudo documental, descritivo-exploratório fundamentado na abordagem processual da teoria das representações sociais. Esse aporte teórico foi selecionado em virtude da capacidade de apreender os fenômenos novos e inesperados na construção da realidade social 12.
Selecionaram-se os três portais jornalísticos nacionais virtuais de notícia que registraram maior aumento na média geral de assinaturas digitais e de acessos remotos no modo público 13, tendo em vista que os websites de notícias cresceram mais de 40 % de 15 a 21 de março de 2020, diante da busca por informações confiáveis sobre a covid-19. Desse modo, quando o Ministério da Saúde do Brasil passou a não divulgar mais as informações, os portais de abrangência nacional atuaram complementando o campo de conteúdo sobre o novo coronavírus e sobre os esforços dos profissionais da saúde.
Coletaram-se os dados por meio de pesquisa com o termo "enferm$", para permitir a localização de palavras derivadas do termo, como "enfermeiro", "enfermeiros", "enfermeira", "enfermeiras" e "enfermagem", nos recursos de busca oferecidos pelos sites ou pelos portais. Limitou-se a busca por notícias publicadas entre 26 de fevereiro de 2020, dia do registro do primeiro caso da covid-19 no Brasil, e 12 de maio de 2020, dia do enfermeiro, data em que poderia haver um maior número de registros sobre a enfermagem.
Destaca-se que esses portais são nacionais, mas publicaram notícias sobre os profissionais de enfermagem do Brasil e do mundo. Incluíram-se notícias de todos os gêneros textuais, como artigo de opinião, editorial, coluna jornalística, painel do leitor, nota, reportagem, debate, entrevista e depoimento com a participação de profissionais de enfermagem, familiares, gestores e governantes.
A busca no portal denominado portaljornal_114 resultou em 4.567 registros dos termos, distribuídos em 24 notícias e, após a leitura, incluíram-se no estudo 12 delas que tratavam especificamente dos profissionais de enfermagem que cuidam de pessoas com covid-19. No portal portaljornal_215, encontraram-se 2.671 registros e, após a leitura, incluíram-se 10 notícias. Já a busca no portal portaljornal_316 resultou em 187 registros dos termos, em que 16 notícias foram selecionadas.
As 38 notícias totais selecionadas foram salvas na íntegra no formato portable document format (.pdf) e nomeadas com título completo, data e portal de publicação. Essas notícias foram editadas em um arquivo único do tipo text extension (.txt) conforme especificações de construção do corpus definidas pelo software Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionaires, o Iramuteq, em sua versão 0.7 alpha 2, culminando, assim, na construção da matriz de texto.
Para o processamento da matriz de texto, optou-se pelo emprego do método de Reinert, denominado "classificação hierárquica descendente" (CHD), que realiza análise lexical, por meio de sucessivos testes estatísticos do tipo qui-quadrado (X2), agrupando segmentos de texto (ST) com base na frequência das palavras. A associação e a relação entre as palavras são demonstradas graficamente por um dendograma, que apresenta classes que são subdivisões do corpus de acordo com a similaridade dos vocábulos 17.
Em seguida, procedeu-se à análise interpretativa dos dados gerados pelo software à luz da teoria das representações sociais. Inicialmente, foi realizada uma leitura crítica de todos os ST existentes nas classes a fim de identificar o contexto em que elas aparecem para entender seus significados e sua concordância. Logo depois, foram nomeadas as classes com base na exploração inferencial. Finalmente, foram selecionados os ST mais representativos de cada classe para descrever os conteúdos representacionais apreendidos. Este estudo não precisou de registro nem de avaliação do sistema do Comitê de Ética em Pesquisa e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, como estabelece a Resolução n.° 510, de 7 de abril de 2016, em conformidade com a Lei n.° 12.527, de 18 de novembro de 2011, por tratar-se de estudo documental com dados secundários de acesso público.
Resultados
O corpus, composto de 38 textos oriundos de notícias de portais de notícias, obedecendo aos limites de conteúdos livres, foi submetido à análise CHD, o que resultou em 640 ST. Diante da exclusão de advérbios, onomatopeias, artigos definidos e indefinidos, foram utilizados 508 ST para a classificação, ou seja, um aproveitamento de 79,4 % dos ST. A partição do corpus gerou duas subcorpora: a primeira separou a classe 1 do restante do material, e a segunda subcorpora foi particionada nas classes 2 e 3.
No dendograma (Figura 1), que deve ser lido da esquerda para a direita, a classe 1, denominada "aqueles que cuidam de pessoas", registrou 229 ST, 45,1 % dos 508 ST totais. A classe 2, "aqueles que precisam de proteção", apresentou 69 ST, 13,5 % do total. Já a classe 3, "aqueles que são a maior força de trabalho nos sistemas de saúde", corresponde a 210 ST, com 41,3 % do total. Para a inclusão dos termos ativos nas classes, foram utilizados o qui-quadrado > 3,88 e a significância estatística p < 0,05.
A Figura 2 utiliza a análise fatorial de correspondência (AFC), com base na CHD, para demonstrar, em plano cartesiano, a distribuição e a correlação das palavras nas classes, o que permite afirmar que a classe 2, quadrante superior esquerdo, e a classe 3, quadrante inferior esquerdo, apresentam uma relação de semelhança que se opõe à classe 1.
Classe 1: aqueles que cuidam de pessoas
A primeira subcorpora retrata os aspectos pessoais e humanos dos profissionais de enfermagem, e é composta da classe 1. Nela, os profissionais são apresentados em situação de dualidade constante entre ficar em casa cuidando dos filhos e da família ou dedicar-se à ajuda e ao cuidado em pessoas com covid-19. Entre as palavras que apresentam mais significado e associação estatística à classe estão "filho", "ficar", "casa", "família" e "cuidar".
As notícias retratam os profissionais como quem precisa tomar uma série de cuidados ao retornar à própria casa a fim de proteger os familiares, visto que continua cuidando das demais pessoas no exercício da profissão. Com o objetivo de ilustrar a classe, destaca-se o ST mais característico.
[...] ela se afastou da família [...] diariamente, se comunicava com o marido e os filhos por video-chamada, ajudava as crianças nas tarefas escolares e ensinava o marido a preparar a comida, sempre interagindo com os meninos [...] "aprendemos desde pequenino que a mamãe cuida de pessoas", conta um dos filhos. (15; 7 de abril)
Entre as notícias, um editorial destacou a história de Anna Justina Ferreira Nery, uma mulher que, durante a guerra entre o Brasil e o Paraguai, alistou-se como enfermeira voluntária para acompanhar os filhos. Conhecida como a "mãe dos brasileiros", Nery foi pioneira da enfermagem no país. Essa história ilustra a dimensão imagética dos profissionais de enfermagem como aqueles que cuidam das pessoas como se cuidassem da própria família, com fez Nery ao se alistar, evidenciando a imagem da mulher como cuidadora familiar. No entanto, a mesma história revela outra imagem resgatada na pandemia da covid-19, a de mulheres na guerra ou no combate 15, como ilustra o ST anterior e que corrobora com o ST em sequência.
[...]Anna Nery [...] há mais de 150 anos [...] fazia um apelo para também poder servir e cuidar de outros brasileiros numa outra guerra, a do Paraguai. Sua trajetória a fez ficar conhecida como a pioneira da enfermagem no país [...]. O trabalho lhe rendeu o título de mãe dos brasileiros. (16; 11 de abril de 2020)
"Cuido desses pacientes como se fossem parentes meus. Poderia ser meu pai, minha mãe, um filho, um amigo [... ] gosto de cuidar, fui formada para isso, dediquei minha vida a isso. É uma guerra o que estamos vivendo" relatou a enfermeira [...] (16; 13 de abril de 2020)
Outro nome de relevância da classe mencionado é o da precursora da enfermagem moderna Florence Nightingale 18, em um contexto de dualidade entre a disposição doméstica da mulher e sua presença no cenário de guerra como profissional da saúde.
Com o novo coronavírus, princípios de Florence Nightingale são lembrados 200 anos depois. A fundadora da enfermagem moderna é lembrada por lições pioneiras, como lavar as mãos [...]. A família não aceitava seu trabalho [...] enfrentando a resistência de médicos e militares atuou na guerra da Crimeia. (16; 4 de abril de 2020)
As palavras "ciência", "salvar vidas", "deixar", "vírus", "comparar" e "valorizar", embora inseridas na classe 1, ultrapassam a margem inferior do quadrante superior direito, demonstrando uma baixa correspondência dessas palavras em relação à classe. Essa situação indica que poderia ter sido formada uma nova classe, se não fossem a baixa frequência com que aparecem no corpus geral e a ausência de vocábulos semelhantes, como pode ser visualizado na Figura 2.
Especificamente, a palavra "valorizar" sempre aparece no contexto em que os enfermeiros notam que não são valorizados profissionalmente. Contudo, as notícias sobre a atuação profissional no cuidado diário dos pacientes e seus familiares, no fenômeno da covid-19, contribui para a valorização do reconhecimento tão almejado.
Para a sociedade, acho que uma das lições foi começar a valorizar mais [o] profissional de saúde, principalmente enfermeiros. Havia pessoas que nem sabiam que essa é uma carreira universitária, que muitos fazem doutorado. Nossa profissão não era respeitada nem valorizada. Agora, somos nós que entramos nos quartos quando o paciente está isolado, somos nós que cuidamos e fazemos os contatos com suas famílias [...] 2020 é o ano da enfermagem, e, com a pandemia, acho que a sociedade passou a dar valor à profissão. (15; 7 de abril de 2020)
As notícias que compõem a classe 1 foram publicadas entre 3 e 17 de abril, e no dia 12 de maio de 2020, Dia Mundial da Enfermagem, predominantemente nos portais jornalísticos portaljornal_114 e portaljornal_215.
Classe 2: aqueles que precisam de proteção
A segunda subcorpora, particionada nas classes 2 e 3, destaca o papel dos enfermeiros na oferta de serviços de saúde e na implementação de políticas públicas ao abordar as condições de trabalho e os problemas enfrentados pelos profissionais de enfermagem nas unidades de saúde.
A classe 2 é também a de maior associação entre as palavras, pois apresenta o mais elevado qui-quadrado do estudo, 169,47. As palavras representativas da classe são "EPI", "máscara", "proteção", "avental" e "equipamento". Elas estão dispostas nos ST em contextos de recomendação de uso, inadequação, falta, reivindicações por proteção e melhores condições de trabalho.
[...] falta de condições adequadas de trabalho. Enfermeiros estão trabalhando com proteções inadequadas de respiradores a máscaras, passando por uniformes e aventais. Ela [a enfermeira entrevistada] afirma que alguns estão recebendo apenas máscaras cirúrgicas, aventais de papel e um par de luvas: "isso não vai proteger o profissional de enfermagem nem ninguém". (15; 26 de março de 2020)
[...] há substituição dos EPI por outros equipamentos não adequados à área da saúde, como o uso de capas de chuva no lugar de aventais. (16; 13 de abril de 2020)
Identificou-se, na Figura 2, que a palavra "chegar", embora pertencente à classe 2, distanciou-se muito do quadrante superior esquerdo em direção ao quadrante superior direito, classe 1. Isso se deve ao fato de que essas palavras se apresentam no corpus em dois contextos distintos. O primeiro referindo que a maior parte das notícias aborda a chegada de denúncias sobre a falta de EPI no ambiente de trabalho.
O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) diz que as denúncias que têm chegado à ouvidoria nos últimos dias vão desde falta de materiais de uso individual até a proibição do uso de EPI e similares. (15; 23 de março de 2020)
O segundo contexto, identificado para a palavra "chegar", refere-se a algumas notícias que tratam do medo de ser identificado como profissional de enfermagem, em razão do preconceito relacionado com o uso de branco na vestimenta durante o trajeto para o trabalho. Relatou-se, em alguns ST, que, em virtude da pandemia, surgiu a possibilidade de trocar de roupa ao chegar ao trabalho.
Para contornar o preconceito em relação ao uso do branco no transporte público, alguns hospitais já dispensam o uso do uniforme para entrar na unidade de saúde, o que era obrigatório, e ampliaram a quantidade de vestiários para os profissionais de enfermagem trocarem de roupa ao chegar. (14; 25 de março de 2020)
Esse preconceito revela uma transformação da imagem representacional sobre os profissionais de enfermagem identificados pelo uso do branco, que, agora, no contexto de pandemia da covid-19, não saim mais de branco. É o medo da disseminação que faz a população hostilizar os profissionais de enfermagem que utilizam o transporte público.
Com as notícias de colegas que estão sendo hostilizados e agredidos por pessoas que acreditam que eles podem disseminar o vírus, desconhecendo o fato de que os profissionais seguem padrões de segurança, a enfermeira não sai mais de branco. (15; 14 de abril de 2020)
A palavra "ver", apresentada no ST a seguir, retrata a visualização de danos provocados pela falta de EPIS. A proximidade com a classe 1 é notada pelos relatos da necessidade de proteção do profissional como um indivíduo que interage no ambiente de trabalho.
[...] consultora externa que prestou atendimento médico [... ] disse que viu (o enfermeiro) pela última vez no trabalho [... ] interagindo com pacientes e funcionários do hospital, sem máscara nem EPI. (14; 27 de março de 2020)
Nos demais ST, o uso da palavra "ver" não pode ser associado diretamente a nenhum outro contexto específico. As notícias que compõe a classe 2 foram publicadas entre 11 e 28 de março e nos dias 13 e 14 de abril de 2020. Os três portais jornalísticos registraram notícias incluídas na classe, sendo o mais frequente o portaljornal_215.
Classe 3: aqueles que são a maior força de trabalho nos sistemas de saúde
A classe 3 apresenta como palavras mais frequentes "saúde", "SUS", "mundial", "política", "OMS", "atendimento", "rede", "protocolo", "federal" e "público".
Percebe-se que a elaboração das imagens sobre o objeto do estudo, os profissionais de enfermagem que cuidam de pessoas com covid-19, emergem da construção social da enfermagem como profissão consolidada a partir do SUS no Brasil e de outros sistemas de saúde pública no mundo, como o ST seguinte evidencia.
O conhecimento e experiência desses profissionais está além da execução das práticas de saúde, pois a sua participação na formulação e planejamento das políticas de saúde é imprescindível [...] no atual contexto de desinvestimento no SUS, é importante ter claro que só existe enfermagem fortalecida quando o SUS funciona com todas as suas potencialidades. (15; 12 de maio de 2020)
A classe 3 avulta que os enfermeiros atuam na elaboração, no planejamento e na execução de políticas públicas em todas as dimensões da rede de atenção à saúde. No entanto, os baixos investimentos na estruturação e nas condições de trabalho dos profissionais de enfermagem tornam-se barreiras para a garantia de acesso à saúde no mundo.
Os profissionais de enfermagem são a coluna vertebral de qualquer sistema de saúde. Este relatório (OMS) é uma clara lembrança do papel insubstituível que desempenham e é uma chamada de atenção para assegurar que esses profissionais recebam o apoio que necessitam para garantir a saúde do mundo. (14; 7 de abril de 2020)
As palavras "sistema de saúde", "profissional de enfermagem", "problema", "condição", "unidade de saúde", "enfermeiro", "oferecer", "político" e "afirmar", dispostas entre as classes 2 e 3, destacam que os profissionais de enfermagem, responsáveis por afirmar políticas públicas, encontram dificuldades em oferecer seus serviços à população diante dos problemas da condição das unidades e dos sistemas de saúde.
As notícias analisadas apontam sinais de colapso, em virtude de vínculos precários passíveis de assédio, carga horária extenuante e salários defasados ou atrasados que ampliam as situações de risco e de vulnerabilidade, mesmo no serviço público no qual a contribuição da enfermagem tem sido tão relevante. O ST a seguir destaca falta de benefícios, salários baixos e riscos de morte no exercício da profissão.
[...] enfermeiros afirmam que, além da insatisfação com a falta do benefício, os salários são baixos e faltam EPIS [...] "muitos estão se arriscando em virtude da falta de planejamento e investimento anterior do sistema de saúde brasileiro". (16; 9 de abril de 2020)
As reportagens que compõe a classe 3 foram publicadas entre o dia 22 de março de 2020 e o dia 12 de maio de 2020. As fontes jornalísticas de notícias portaljornal_114 e portaljornal_215 foram as que mais registraram ST com correspondência à classe.
Discussão
Os resultados do estudo permitiram apreender as representações sociais elaboradas nos portais jornalísticos sobre os profissionais de enfermagem que cuidam de pessoas com o novo coronavírus. Os resultados serão discutidos de acordo com a ordem de apresentação das classes.
A classe "aqueles que cuidam de pessoas" demonstra que persiste a representação da enfermagem como a profissão que cuida, ancorada no cuidado maternal que remonta à construção de papéis e à divisão social do trabalho 17. No entanto, atualmente, a enfermagem profissional está se consolidando como a ciência do cuidar que destaca a responsabilidade pelos indivíduos, famílias e comunidades.
As notícias, discutidas à luz da literatura, revelam a dualidade em que vivem os profissionais de enfermagem, entre o amor à profissão e a capacidade para cuidar de si e dos próprios familiares enquanto cuidam de outras pessoas em sua rotina de trabalho 3. Essa realidade é muito similar às registradas em outro estudo, que analisou conteúdos midiáticos sobre a enfermagem no contexto da covid-19 em país europeu 9.
Na classe "aqueles que precisam de proteção", a representação dos profissionais da enfermagem como heróis está sendo reestruturada. Os profissionais passam a ser (re)apresentados como seres humanos que precisam de proteção. Essa "(representação" está ancorada nos EPIS, ou seja, na necessidade de ampliação da capacidade de autoproteção dos profissionais, e emerge diante do reconhecimento social em construção, da necessidade de cuidar de quem cuida 19,20.
Essa necessidade de proteger os profissionais de enfermagem é evidenciada pela alta mortalidade entre essa categoria no Brasil, uma vez que os óbitos são superiores aos de todos os outros países que convivem com a pandemia. O país é responsável por 30 % das mortes de profissionais da enfermagem por covid-19 no mundo 21. Os técnicos e os auxiliares de enfermagem estão em primeiro lugar entre as profissões mais registradas com casos confirmados de síndrome gripal (SG), casos graves, internamentos hospitalares e mortes por covid-19, seguidos dos enfermeiros. Somente depois destes aparecem os demais profissionais da saúde 22.
Nas notícias, despontam denúncias sobre a falta de EPIS, além das irregularidades em contratações e questões salariais e salientam-se vulnerabilidades dos profissionais de enfermagem diante da necessidade de proteção, que já foi relatada em estudos de representação social em outra pandemia, a da síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) 23.
Na classe "aqueles que são a maior força de trabalho nos sistemas de saúde", a representação da enfermagem como a maior classe de profissionais da saúde, justificando a homenagem recebida pela OMS, destaca que a enfermagem tem realizado muitas atividades essenciais à saúde da população. Entre essas atividades, estão a investigação epidemiológica de casos suspeitos, a confirmação de casos clínicos, as orientações sobre a necessidade de isolamento e de quarentena e a assistência de enfermagem em todos os níveis de complexidade 24.
Salienta-se que informações e notícias sobre a pandemia são relevantes para a sociedade, tendo em vista que os avanços da doença impõem novos desafios aos sistemas de saúde sentidos diretamente pela população que acessa os serviços públicos. Essa questão é ainda mais pertinente em países com problemas estruturais de acesso à saúde e com profundas desigualdades sociais, como é o caso do Brasil 8.
O trabalho na emergência de saúde pública internacional, vivenciado no curso dessa tão grave pandemia, exigirá reformulação de políticas públicas, dos modelos de saúde e de ensino profissional em enfermagem 25,26, considerando as vulnerabilidades física e emocional que comprometem a saúde mental 27.
Em razão da visibilidade de tais conteúdos, as conversações no cotidiano social foram modificadas, permitindo que fossem atribuídos nomes e classificações ao fenômeno enfermagem, o que justifica a aplicação da teoria das representações sociais para o presente estudo 11. As representações sociais apreendidas destacam o heroísmo, quando os profissionais deixam seus lares para cuidar do outro; a hostilização, quando representam um risco à saúde da população nos espaços públicos, como o transporte coletivo; e os riscos físicos, que ameaçam suas vidas.
Discute-se que a opinião pública sobre a enfermagem poderá ser modificada com a covid-19. Sugere-se que a mudança poderá ocorrer à medida que a enfermagem galgar espaços na grande mídia 28 ou então quando desenvolver liderança com voz ativa nas redes sociais 29 e demonstrar para a sociedade o efetivo trabalho que desenvolve nos sistemas de saúde.
A pandemia da covid-19 coloca a saúde em primeiro plano e poderá servir como um catalisador para o investimento financeiro em enfermagem e em saúde pública, com o potencial de trazer melhorias para a saúde da população em curto e longo prazo. No entanto, isso dependerá da força da enfermagem em cobrar, de forma institucionalizada e organizada, esses investimentos das autoridades políticas locais 27.
Quanto às limitações, o estudo propõe um olhar para as representações sociais sobre os profissionais de enfermagem e utiliza-se das notícias veiculadas por portais brasileiros para isso. No entanto, nesses portais há notícias sobre os profissionais de enfermagem no mundo todo e que não puderam ser aprofundadas na análise diante das especificidades de atribuições e do exercício da enfermagem em cada país.
Conclusões
Os portais jornalísticos de notícias difundem informações sobre a atuação dos profissionais de enfermagem que remetem a conteúdos representacionais sobre a enfermagem. No entanto, o fenômeno da covid-19 tem permitido a transformação desses conteúdos representacionais e a ressignificação de imagens identitárias sobre quem são esses profissionais. Apreendeu-se que eles são aqueles que cuidam de pessoas, aqueles que precisam de proteção e aqueles que são a maior força de trabalho nos sistemas de saúde.
Considera-se que são graves os impactos em termos de saúde pública provocados pelo Sars-CoV-2. A pandemia tem levado a uma mudança abrupta nas rotinas dos sistemas de saúde, dos profissionais de enfermagem e de toda a sociedade; por isso, a construção social da covid-19 impacta os conteúdos representacionais sobre os profissionais de enfermagem que cuidam dessas pessoas.
Portanto, os resultados deste estudo são importantes para a compressão da imagem pública que a pandemia suscitou no trabalho de profissionais de enfermagem. Demonstrou-se a precariedade exacerbada a qual o trabalhador vem sendo exposto, o que leva ao esgotamento físico e emocional em razão da insuficiente estrutura do serviço público no país. Estima-se que investimentos midiáticos podem contribuir para a visibilidade da enfermagem, sensibilizando a sociedade para as necessidades da profissão diante da importância do trabalho que realizam para a saúde das pessoas.