Introdução
O início de 2020 está marcado historicamente pela forte expansão da infecção pelo novo coronavírus, que ocasiona a Covid-19, por todos os continentes, o que caracteriza uma pandemia. Essa situação foi classificada como uma "emergência de saúde pública" de importância internacional e teve início na China, em dezembro de 2019 1.
Esta não é a primeira vez que um agravo à saúde pública com dimensões internacionais acontece. Alguns de seus precedentes foram: a pandemia de H1N1 no México, em 2009; a disseminação do poliovírus no Paquistão, no Afeganistão e na Nigéria, em 2014; o surto de ebola na África Ocidental, em 2014, e na República Democrática do Congo, em 2018; o aumento de casos de microcefalia e outras malformações congênitas associadas à infecção pelo zika vírus, em mais de 30 países em 2016 2.
O rápido e letal desenvolvimento da epidemia do novo coronavírus tem deixado um rastro de destruição pelos países, evidenciado pelo aumento da morbimortalidade e pelas baixas na economia de grandes nações, como Itália e Espanha, o que leva a uma crise generalizada 3.
Antes de entrar em discussão, é importante trazer a definição da palavra "crise", a qual vem do grego "krisis" e significa, segundo o dicionário filosófico, "escolha, seleção e decisão" 4. O dicionário apresenta ainda a definição desse verbete ligado à manifestação de alguma doença e à mudança em algum processo que pode provocar conflito ou desequilíbrio, que afeta o regime político e que resulta da contestação de valores morais, religiosos e filosóficos arraigados em nossa sociedade, e o desequilíbrio entre produção e consumo pela afetação da economia 4.
A partir dessa definição, a problemática pela nova pandemia enquanto crise tem sido discutida, já que se levam em conta as múltiplas dimensões afetadas pelo seu desenvolvimento. Devido ao potencial de contágio e à fácil disseminação do novo coronavírus, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou a adoção de medidas restritivas drásticas, porém necessárias, para evitar aglomerações em vários países do mundo 5.
Dentre as propostas discutidas e recomendadas pela OMS, está a quarentena para os casos suspeitos; o isolamento vertical, que consiste no isolamento de pessoas com um maior risco em desenvolver os sintomas da síndrome gripal pelo coronavírus e seus agravamentos, e o isolamento horizontal, que aconselha a suspensão das atividades que levam à aglomeração de pessoas, tais como transportes públicos, eventos públicos, atividades escolares e de comércio, para minimizar o contágio e promover o achatamento da curva epidemiológica de disseminação do agravo 6. No Brasil, vem sendo adotado o isolamento horizontal na maior parte dos estados e municípios, assim como a quarentena de casos suspeitos e confirmados.
Sob esse prisma, a suspensão das aulas presenciais nas universidades no Brasil, devido ao estado de emergência de saúde e à crise instalada, promove um debate sobre possibilidades, riscos e consequências dessa paralisação e sobre a continuidade das atividades por meios alternativos.
Nesse sentido, podemos afirmar que a pandemia está materializando todas as definições apresentadas e ressaltando que "crise" significa também "tomadas de decisões", as quais serão fundamentais para as consequências desse momento. Assim, esta crise pode ter o potencial de nos ajudar na reflexão sobre os modos de existência e de educação, além de nos ajudar a refletir se a lógica de mercado está produzindo mecanismos de individualização, distinção e diferenciação.
Nesse contexto, no dia 17 de março de 2020, em caráter excepcional e urgente, foi lançada, pelo Ministério da Educação brasileiro, a Portaria 343, que versa sobre a substituição das disciplinas presenciais por aulas mediadas por Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), com o objetivo de flexibilizar o ensino a distância para o sistema federal de ensino, exceto para os cursos de Medicina e para os estágios em laboratório dos demais cursos da área da saúde 7.
No dia 19 de março, a Portaria 345 altera a decisão ante os cursos de Medicina e flexibiliza também as aulas teórico-cognitivas do primeiro ao quarto ano do curso 8. A partir disso, medidas para viabilizar esse processo começaram a ser realizadas. O Ministério da Educação brasileiro ampliou a capacidade de webconferências nas universidades e institutos federais, triplicando a capacidade de salas virtuais que podem ser acessadas por computadores e smartphones9.
As medidas implementadas reativam um debate já existente e há tempos adormecido, desacelerado e/ou encoberto nas instituições de ensino brasileiras: a implementação e efetividade da educação a distância (EaD) nas nossas realidades. Assim, mobilizados pelas transformações atuais do mundo contemporâneo e globalizado, urge-nos questionar quais as possibilidades, riscos e consequências da EaD no ensino remoto de profissionais da saúde no contexto da crise da pandemia do novo coronavírus.
Este estudo se propõe a fazer uma análise crítica sobre as ações do governo para evitar os prejuízos na formação acadêmica, pois reconhecemos ser a estratégia mais viável neste momento, mas também destacar possíveis consequências que esse cenário de crise pode gerar na formação em saúde.
Nessa perspectiva, o objetivo deste estudo é refletir, a partir do contexto atual e de inquietações que perpassam as discussões nas instituições de nível superior, sobre as estratégias de EaD adotadas no ensino remoto por instituições brasileiras no processo de continuidade de suas atividades letivas da graduação e da pós-graduação na área da saúde.
Educação a distância no ensino remoto na formação em saúde no contexto da pandemia
Existe uma intensa discussão, no âmbito da formação na saúde, sobre a utilização das TIC para mediar o ensino e isso envolve vários embates dos Conselhos de Saúde, do Ministério da Educação e do Ministério da Saúde, no que tange à sua adoção enquanto modalidade de ensino.
No âmbito legal, no Brasil, até a Portaria 1.428/2018, era definido o máximo de 20% de carga horária a distância para os cursos presenciais, com a exclusão dos cursos da saúde e de engenharias 10. A partir da Portaria 2.117/2019, o Ministério da Educação brasileiro dobrou essa carga horária, abrindo exceção apenas para os cursos de Medicina 11,12.
Desde 2016, o Conselho Nacional de Saúde brasileiro externaliza seu posicionamento contrário à autorização de todo e qualquer curso de graduação da área da saúde, ministrado na modalidade de EaD. Em janeiro de 2020, esse órgão de controle social fez críticas pertinentes referentes à nova portaria e recomendou ainda um posicionamento oficial dos ministérios envolvidos na formação de profissionais de saúde, das entidades que compõem o Conselho Nacional de Saúde e do Ministério Público, bem como a revogação da referida portaria 12.
No entanto, o estado epidemiológico atual reverteu prioridades, suprimiu discussões com grupos de interesse e levou a disseminação das atividades educacionais a distância a ser apresentada como a opção mais viável para não interromper o calendário letivo de institutos e universidades. Para tanto, contrariando discussões sobre a problemática, flexibiliza-se totalmente a formação a distância, por meio de duas novas portarias que passam a incluir, nessa modalidade formativa, todos os cursos de graduação, até os cursos de Medicina, que eram a única exceção, e equipa as universidades para realizarem webconferências a fim de atender a essas necessidades momentâneas e urgentes 7-9.
A estratégia, embora eficaz no que concerne ao controle da transmissão do novo coronavírus, fortalece a possibilidade, já bastante explorada pelas instituições de ensino superior privadas, diga-se de passagem, da mercantilização do ensino superior. Discute-se que o interesse econômico por trás do ensino superior vem sendo responsável pela abertura, cada vez mais frequente, de cursos em modalidade a distância 13.
Essa expansão nas modalidades a distância de cursos da área da saúde remete a reflexões sobre o exercício dos aspectos éticos, estéticos e políticos referentes a essas profissões em curso e aponta para a solidificação de questionamentos quanto à avaliação dessas estratégias em um momento de crise em um país capitalista, orientado por vertentes neoliberais que enxergam o ensino como parte de uma política econômica 14.
Destarte, é imprescindível pensar sobre os limites desenhados na adoção da EaD para o ensino superior na área da saúde, mesmo em um momento que exige o distanciamento social físico: até onde é sustentado e defensível o ensino pelo ensino, sem observar a qualidade? Como desenvolver ensino-pesquisa-extensão, tripé do ensino superior, nesse período de crise? O que esperar dessas estratégias em um momento de crise em um país capitalista, que muitas vezes trata o ensino como parte de uma política econômica? Como pautar a lógica inclusiva se a proposição já considera que todos têm acesso a bens e serviços como computador e internet?
As universidades, principalmente públicas, têm como componente a responsabilidade social que precisa ser transversal em todas as suas atividades. Defende-se que a formação na saúde não existe sem a associação de ensino-serviço-comunidade. Assim, para a formação do profissional de saúde, é imprescindível o contato com o território e suas tessituras.
A formação orientada por um currículo amplo e integral compreende a ação direta do estudante nos locais de vida e a atuação da população, com a interação com a comunidade, o que enriquece as relações interpessoais concernentes com a criação de vínculos e a aproximação da universidade com as realidades heterogêneas 15.
A inserção do profissional em formação no território é enriquecedora e propícia, mas exige uma formação problematizadora, capaz de fomentar a produção do cuidado enquanto produto mor da saúde. Sem ela e sem espaços pedagógicos congruentes com essa problematização, corre-se o risco de não se alcançarem seus objetivos 15.
Assim, analisa-se a díade de aspectos contrastantes no que tange ao uso da EaD na formação em saúde: por um lado, a aproximação dos indivíduos distantes territorialmente, a ampla difusão de conhecimentos e práticas, e a garantia da continuidade do ensino no contexto do isolamento social necessário; por outro, a dissolução das Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduação em Saúde, definidas pela Resolução 3, do Conselho Nacional de Educação 16,17.
A definição das Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduação em Saúde representa um avanço nos moldes e tendências de formação em saúde, a qual está pautada no desenvolvimento de competências, o que ultrapassa o ensino tradicional, bancário e biomédico centrado 16.
"Competências", termo polissêmico que transcende as áreas da Economia, Sociologia, Pedagogia e da Saúde, diz respeito à articulação de conhecimentos (domínio cognitivo), habilidades (domínio psicomotor) e atitudes (domínio afetivo) essenciais a uma prática efetiva, eficaz e adequada à realidade 18.
Nesse sentido, a EaD apresenta-se como uma forte ferramenta para o desenvolvimento do domínio cognitivo, o que possibilita o compartilhamento de informações, a realização de pesquisas e o aprofundamento teórico, além da reafirmação de valores dominantes na sociedade atual, como a distinção e a individualização 19. Entretanto, é insuficiente para desenvolver técnicas e posturas fundamentais para a prática profissional e, portanto, pode não ser suficiente para atingir completamente os domínios psicomotor e afetivo, produzidos a partir de uma estrutura coletivizada, solidária e que considera a igualdade com valor importante.
Em exemplo prático, no processo de ensino e aprendizagem na modalidade de EaD da técnica de aspiração de vias áreas, comum aos enfermeiros, fisioterapeutas e médicos, é possibilitado o conhecimento da base científica da técnica, tais como: material utilizado, cuidados na realização, possíveis intercorrências, recomendações, entre outros aspectos referentes ao conhecimento teórico; além disso, pode haver até a sua simulação em ambiente ideal e programado; contudo, essa modalidade não contempla a atuação do futuro profissional que a prática no serviço proporciona, diante de uma intercorrência que exige disciplina, postura, tomada rápida de decisão e empatia.
Desse modo, a ampliação do uso da EaD, justificada pelo isolamento social necessário ao combate da disseminação de infecções pelo novo coronavírus, poderá ainda perdurar meses, alinhando-se à incompletude e fragilização da formação na área da saúde. Distanciando-se ainda das premissas das diretrizes curriculares, pois não oportuniza processos de convivência que contribuem com a aprendizagem da convivência, aspecto relevante na formação de profissionais preparados para promover uma atenção integral à saúde.
Ainda nesse contexto, mas avançando em sentidos contrários e em meio a disparidades entre as propostas, discursos e projetos do Governo Federal, o Brasil executa um chamado aos discentes dos cursos de graduação em Medicina, Enfermagem, Farmácia e Fisioterapia do sistema federal de ensino para a atuação em ações estratégicas a fim de fortalecer o enfrentamento à Covid-19 na rede de serviços do Sistema Único de Saúde do país. Essa estratégia faz uso de um apelo patriótico e de um slogan heroico para persuadir os estudantes de graduação a participarem na linha de frente da batalha ao novo coronavírus, com a barganha de estarem contribuindo com o futuro da nação, oportunizarem a experiência de atuar em uma epidemia de larga escala e a chance de desfrutarem de um auxílio financeiro na modalidade de bolsa de auxílio financeiro 20.
O modo de operacionalização dessa estratégia manifestada diante da crise demonstra a relevância de fatores essenciais à formação e atuação na área de saúde, subjugados pela elaboração e implementação das políticas públicas, defendidas por entidades de classe, movimentos sociais e instituições de ensino. Dentre estas, sobressaem a valorização dos profissionais de saúde com a definição nacional da carga horária de trabalho, o estabelecimento de um piso salarial e a equiparação deste com outras categorias da saúde, o reconhecimento das atividades desenvolvidas e a homogeneidade na participação dos programas difundidos, tais como o Programa de Valorização da Atenção Básica, que assegurava a participação de médicos, dentistas e enfermeiros, mas com diferença de cerca de 70% no valor da bolsa de incentivo das duas últimas categorias em relação à primeira 21-23.
Além desses fatores, remete a inseguranças e anseios do governo, da população e dos próprios estudantes, agora novos profissionais, quanto à capacitação destes para a atuação nesse cenário amplo, complexo e de risco, visto que não desenvolveram algumas das competências necessárias à sua atuação profissional; ao acompanhamento, por meio de tutoria e preceptoria, bem como aporte teórico, teórico-prático e prático para a realização dessas atividades; ao processo de precarização do trabalho, com a não valorização e oportunidade de inserção de milhares de profissionais no sistema por meio de concursos públicos; a exposição desses acadêmicos ao risco de adoecer e morrer, diante da carência de equipamentos de proteção individual vivenciada no país; à subnotificação de casos; à adoção de testagem apenas para grupos prioritários e à resistência da população à adoção das medidas de prevenção.
Desvela-se, então, um devir de incertezas e de complexidades, visto que, a cada proposta de ação, múltiplos fatores relacionam-se em sua materialização. Embora o momento de crise exija posicionamentos efetivos e rápidos, deve-se validar as discussões a respeito de outros determinantes do processo saúde-doença-cuidado, tais como lazer, educação, moradia e trabalho, para além daqueles amplamente discutidos como em uma espécie de "gangorra": economia e saúde. Talvez seja o momento para discutir que economias têm pautado a vida, quanto vale uma vida e por quais valores nossa sociedade tem se pautado para articular saúde e educação.
Em estudo sobre a trajetória histórica da promoção da saúde, registra-se que, em 1974, já se teciam defesas à relação como saúde e economia estão interligadas de modo interdependente, visto que são essenciais ao desenvolvimento efetivo de uma nação 24. Entretanto, as divergências entre políticas públicas e políticas partidárias no Brasil têm fragilizado essa relação diante da dificuldade do sistema de saúde em responder prontamente à crise. Além disso, visibilizaram-se os cortes de gastos para o setor saúde, educação e produção científica e tecnológica, tão necessários ao enfrentamento da epidemia, tal qual ocorrido na China 24.
Reflexões sobre as consequências no processo de ensino e aprendizagem
A falta ou a precarização de infraestrutura, de acesso à internet e de competências para a utilização das TIC pode também fragilizar o processo de ensino e aprendizagem. A inserção de novas tecnologias pressupõe enfrentar o desafio de desenvolver novas competências 25 para as quais nem todos os discentes e docentes estão preparados.
Quanto à dimensão infraestrutura, estudo realizado em 2018 demonstrou que 30% dos domicílios brasileiros não possuem nem computador nem acesso à internet 26. Quando consideramos a renda familiar de até um salário-mínimo, esse percentual salta para 50%, segundo a mesma pesquisa 26. Nessa perspectiva, precisamos considerar as desigualdades sociais no cenário brasileiro, uma vez que muitos discentes e docentes não têm condições de ter a estrutura necessária para atuarem na EaD em seus domicílios.
O benefício da flexibilização de horário, antes defendido como um aspecto da EaD, na conformação atual, cede lugar para as webconferências, denominadas de "aulas remotas", e exige que discentes e docentes estejam presentes de modo síncrono. Assim, apesar de reconhecermos que as webconferências representam uma oportunidade recomendada pela OMS para manter o contato social 27, salientamos que é mais um desafio a ser enfrentado.
No entanto, algumas iniquidades, tanto de discentes como de docentes, podem ser acentuadas quanto ao acesso à educação por essas vias neste momento. Entre elas, podemos pontuar: gênero (cuidado de filhos e familiares a cargo de mulheres), saúde mental, estrutura domiciliar para estar em um ambiente tranquilo durante as atividades formativas, necessidade de complementar renda ante adequações financeiras por distanciamento das atividades laborais sem vínculos, e singularidades cognitivas e de aprendizado dos alunos. Ressalta-se, ainda, a proposta da participação de alunos nos serviços de saúde, realizada pelo Ministério da Saúde brasileiro, por meio da Portaria 492, de 23 de março de 2020 20, no enfrentamento direto ou indireto à Covid-19, que pode expô-los ao risco de adoecimento.
Nesses trilhos, um país de extensão continental, de formação heterogênea e multicultural como o Brasil, clama por propostas regionalizadas e que assegurem a equidade, a fim de contribuir para a redução das iniquidades territoriais, e não seu inverso 28.
Por sua vez, é inerente que esta crise vem causando impactos na saúde mental da sociedade. O isolamento social exigido como uma das medidas preventivas e todas as notícias trágicas da pandemia podem provocar medo, ansiedade e estresse na população 27. Nossos discentes e docentes não escapam disso, o que pode influenciar diretamente no processo de ensino e aprendizagem. Nessa perspectiva, é importante que os docentes sejam compreensivos e considerem as particularidades do estudante e de como os aspectos sociais, psicológicos e biológicos podem impactar diretamente no seu rendimento acadêmico, especialmente no contexto de isolamento social 29.
É valido reconhecer a manutenção das atividades acadêmicas enquanto rota de fuga para a sobrecarga de notícias impactantes, fake news, anseios e incertezas desencadeadas pelo avanço da pandemia, com possíveis efeitos negativos sobre o padrão de sono e alimentar, a produtividade e a qualidade de vida dos indivíduos 30,31. Desse modo, a abrangência de temas afins à formação profissional envolve discentes e docentes, bem como discussões paralelas à realidade massacrante, o que possibilita reflexões sobre a viabilidade de medidas protetoras, preventivas e de enfrentamento ao corona-vírus. Além disso, reconhece-se que os docentes tiveram pouco tempo para o planejamento das aulas e uma mudança em sua rotina, no que tange à manutenção das atividades de extensão e pesquisa, também de modo remoto, e à reformulação de materiais didáticos, de estratégias de ensino e de propostas pedagógicas para o desenvolvimento das atividades de ensino na modalidade EaD. Nesse contexto, eles precisaram preparar vídeos e outros recursos tecnológicos, adaptar ou criar materiais didáticos para buscar a qualidade das aulas ministradas nessa modalidade.
Apesar disso, não devemos suscitar uma alienação que possa repercutir em uma eufemização da realidade que estamos inseridos coletivamente. Constatar que estamos vivenciando uma pandemia severa faz parte do processo de ensino e aprendizagem, sobretudo para os alunos da área da saúde, que, por meio da sua matriz curricular, aprendem a desenvolver um olhar crítico e clínico, remodelando saberes, práticas e outros itinerários de produção de saúde e educação.
Dentre os conteúdos presentes no processo de ensino e aprendizagem em saúde, destacam-se as disciplinas de epidemiologia, em suas vertentes clínica e social, as ciências sociais, a gestão e o planejamento, enquanto pilares da saúde coletiva, que comporão o mosaico de respostas a serem constituídas nesse momento de rupturas, inclusive das relações estabelecidas pela cotidianidade, o que possibilitará pensar novos posicionamentos, organizações e modos de viver. Nesse contexto, o discente da área da saúde pode despertar uma visão de mundo diferenciada, capaz de levantar possibilidades de reflexões, indagações e discussões para enfrentar esse importante agravo à saúde e outras potenciais situações que ameaçam a integridade da vida tanto no âmbito local quanto no global.
Por isso, não é possível tratar de um assunto como a pandemia da Covid-19 sem conhecer como a epidemiologia social pode ajudar nesse processo. O docente que se apodera da ideia defendida por esse conceito terá consciência de como o comportamento do sujeito, em uma perspectiva coletiva, poderá interferir no decorrer de uma doença infecciosa. Isso será possível quando docente e discente cruzarem a teoria com a prática, compreendendo as variadas situações de vidas, os contextos sociais, políticos, econômicos e tecnológicos 32. Por fim, isso é possível com um envolvimento com a comunidade e com a construção de vínculos sociais. Só assim, os estudantes terão efetivamente uma maior compreensão das complexidades e se verão, em sua totalidade, como agente transformador com uma completude mais concreta.
A situação é urgente e esta é a hora de pensarmos cada vez mais nas competências socioemocionais de nossos estudantes e de como nossas competências podem representar empatia, acolhimento e humanização. Os discentes também podem ser reflexo dos docentes em seus diversos campos de atuação profissional. Esta pandemia deixa mais claro ainda que somente práticas técnicas não são suficientes para o exercício dos profissionais de saúde (33) e que o contato humano influenciado por padrões de convivência é fundamental no processo de ensino e aprendizagem.
Considerações finais
O processo de reflexão oportuniza muito mais do que respostas para as dúvidas. Ele aponta a descoberta de novas inquietações, capazes de gerar outras reflexões, explicitando o não esgotamento das possibilidades para responder a uma demanda, sob a observação e atenção de múltiplas perspectivas.
Sob esse prisma, observa-se que os tempos de crise são capazes de promover significativas mudanças no modo de pensar e agir das populações, despertando interesses e mobilizando forças diversas na resolução das problemáticas.
Ainda nesse panorama, a formação no ensino superior se modificou não só pela suspensão das aulas, mas também pela maneira de se fazer a EaD no ensino remoto, com impacto na rotina de ensino e aprendizagem de discentes e docentes. Apesar de todas as dificuldades desses atores, eles se mantêm conectados por meio de salas virtuais síncronas, a fim de garantir ainda o mínimo vínculo social e de não interromper os processos formativos. No entanto, defendemos que essa estratégia seja realizada em caráter complementar, e não substitutivo ao ensino presencial, já que pode deixar lacunas de competências necessárias aos graduandos e pós-graduandos da área da saúde.
Assim, neste texto, destacamos as dificuldades ou desafios que se expressam nesse cenário: falta de infraestrutura-computador ou acesso à internet; falta ou fragilidade de competências para a utilização das TIC; fragilização do tripé ensino-pesquisa-extensão; possibilidade do não atendimento das singularidades biológicas, psicológicas e sociais dos sujeitos neste momento da pandemia; risco de desenvolvimento incompleto de competências ligadas aos domínios psicomotor e afetivo dos discentes.
Ressaltamos que nossas decisões individuais e coletivas, por meio de nossos governantes, impactarão diretamente nas consequências dessa crise e isso repercutirá também na formação em saúde dos profissionais que atuarão nos diversos serviços. Portanto, esse tema merece maior atenção neste momento e no futuro.