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Avances en Enfermería

Print version ISSN 0121-4500

av.enferm. vol.39 no.1 Bogotá Jan./Apr. 2021  Epub Feb 08, 2021

https://doi.org/10.15446/av.enferm.v39n1.82801 

Artículos de reflexión

Violência simbólica no campo familiar na (des)estruturação do habitus do adolescente

Violencia simbólica en el ámbito familiar y (des)estructuración del habitus del adolescente

Symbolic violence in the family environment and (de)structuring of adolescent habitus

Beatriz Pereira Alves1 

Bruna Araújo de Sá2 

Marcelo Costa Fernandes3 

1 Universidade Federal de Campina Grande (Cajazeiras, Paraíba, Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2388-2854 Correio eletrônico: pbia0i2@gmail.com Contribuição: desenho e elaboração do projeto; redação do artigo.

2 Universidade Federal de Campina Grande (Cajazeiras, Paraíba, Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2879-28i5 Correio eletrônico: brunnadesaa@gmail.com Contribuição: desenho e elaboração do projeto; redação do artigo.

3 Universidade Federal de Campina Grande (Cajazeiras, Paraíba, Brasil). ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1626-3043 Correio eletrônico: celo_cf@hotmail.com Contribuição: desenho e elaboração do projeto; redação do artigo; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual.


Resumo

Objetivo:

Refletir sobre a violência simbólica no campo familiar na (des)estruturaçao do habítus do adolescente a partir da série televisiva Sex educatíon.

Síntese de conteúdo:

Estudo teórico-reflexivo, tendo por base livros e artigos que demonstrem os conceitos de campo, capital, habítus, poder e violência simbólica do filósofo Pierre Bourdieu e a série de televi-sao Sex educatíon, que possibilita um novo olhar das relações complexas e das estruturações identitárias existentes no contexto familiar. Reconhecendo que a violência simbólica se expressa por meio de relações de poder manifestadas entre o dominador e o dominado, é perceptível a incorporaçao e a legitimaçao de um discurso marginalizado, por parte de indivíduos pertencentes a uma classe de menor empoderamento, aceitando essa realidade social de forma natural.

Conclusões:

Percebe-se que é necessário um olhar crítico sobre as relações interpessoais no contexto familiar, uma vez que é na sociali-zaçao familiar que se tem o início da incorporaçao e da construçao do habítus dos indivíduos, e que a violência simbólica, originada de um campo de submissao, pode ser tao prejudicial quanto os outros tipos de violência visíveis, já que afeta decisivamente a construçao e o desenvolvimento dos adolescentes.

Descritores: Violência; Violência Doméstica; Relações Familiares; Poder Familiar; Comportamento do Adolescente (fonte: Decs, BIEEME)

Resumen

Objetivo:

Reflexionar sobre la violencia simbólica en el ámbito familiar y la (des)estructuración del habitus del adolescente con base en la serie de televisión Sex education.

Síntesis de contenido:

Estudio teórico-reflexivo basado en libros y artículos del filósofo Pierre Bourdieu, que abordan los conceptos de campo, capital, habitus, poder y violencia simbólica, y la serie de televisión Sex education, la cual permite una nueva mirada a las complejas relaciones y estructuras de identidad existentes en el contexto familiar. Reconociendo que la violencia simbólica se expresa a través de las relaciones de poder manifestadas entre el dominador y el dominado, es notable la incorporación y la legitimación de un discurso marginado por parte de individuos pertenecientes a una clase menos empoderada, que acepta esta realidad social de forma natural.

Conclusiones:

Se evidencia la necesidad de una mirada crítica de las relaciones interpersonales en el contexto familiar, ya que es en la socialización familiar que comienza la incorporación y construcción del habitus de los individuos. Así mismo, se observa que la violencia simbólica, originada en un entorno de sumisión, puede ser tan perjudicial como otros tipos de violencia visible, pues esta afecta decisivamente la construcción y el desarrollo de los adolescentes.

Descriptores: Violencia; Violencia Doméstica; Relaciones Familiares; Responsabilidad Parental; Conducta del Adolescente (fuente: Decs, BIREME)

Abstract

Objective:

To reflect on the symbolic violence in the family field and the (de)structuring of adolescent habitus based on the television series Sex education.

Content synthesis:

Theoretical and reflective study based on books and articles by philosopher Pierre Bourdieu, that address the concepts of field, capital, habitus, power and symbolic violence, and the television series Sex Education, which allows a new look at the complex relationships and existing identity structures in the family context. Recognizing that symbolic violence expresses itself through manifested power relations between the dominator and the dominated, it is noticeable the incorporation and legitimization of a marginalized discourse by individuals belonging to a less empowered class, who accept this social reality in a natural way.

Conclusions:

A critical look is required on interpersonal relationships in the family context, since it is in family socialization that the incorporation and construction of the habitus of individuals begins. Besides, it is observed that symbolic violence originated in a submission environment can be as damaging as other types of visible violence, since this decisively affects the construction and development of adolescents.

Descriptors: Violence; Domestic Violence; Family Relations; Parenting; Adolescent Behavior (source: Decs, BIREME)

Introdução

A adolescência, período compreendido entre os 10 e os 19 anos de idade, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) 1, é uma fase de intensas mudanças físicas, psicológicas e sociais, que marcam a transição entre a infância e a vida adulta. É um período de descobertas e conquistas no que se refere à autoafirmaçao e às aspirações sociais, bem como da descoberta da identidade. Porém, essas vêm sendo construídas e desconstruí-das por diversos fatores, destacando-se o aumento da violência, a qual influencia o campo familiar e é também influenciada por ele, visto que é um ambiente em que os adolescentes estao inseridos.

A violência é definida pela OMS 2 como o uso intencional de força física ou poder contra outra pessoa, grupo ou até contra si mesmo, que resulta em algum dano, mau-desenvolvimento, privação ou morte. Entende-se por violência intrafamiliar a açao ou omissao por algum integrante do convívio familiar, em uma relaçao de poder, que cause danos a outros 3.

Outro tipo de violência bastante presente em diversos setores sociais, inclusive no campo familiar, é a violência simbólica identificada pelo filósofo Pierre Bourdieu. Trata-se de um mecanismo utilizado de forma sutil por classes dominantes a fim de legitimar certas ações e comportamentos. Frequentemente, os envolvidos nao têm consciência de que estao sofrendo ou exercendo a violência, que é reforçada quando os dominados naturalizam as razões da sua nao dominância 4.

Independentemente da forma de apresentação da violência-física, psicológica, sexual ou simbólica -, autores apontam que as principais consequências dessa prática na adolescência ocorrem no desenvolvimento físico, social, comportamental, emocional e cognitivo das vítimas 5-7, o que vai reverberar diretamente na formaçao da identidade desses atores sociais.

Em geral, o adolescente exposto a qualquer dos diversos tipos de violência está mais propício ao desenvolvimento de problemas de saúde mental, como ansiedade, depressao, alterações de memória, baixo desempenho escolar, insegurança, comportamento agressivo e tentativas de suicídio 5,8-10. Além disso, são mais vulneráveis à iniciação precoce na atividade sexual, resultando em gravidez indesejada e infecções sexualmente transmissíveis, e no abuso de álcool e drogas 11,12.

Acredita-se que tal problemática possa ser interpretada a partir de um olhar sociológico, utilizando-se de conceitos nucleares bourdieusianos para compreender tais fenómenos e sugerir soluções para identificar, prevenir ou amenizar essas situações. Nesse sentido, emerge a seguinte questão orientadora: como a violência simbólica no campo familiar repercute na (des)estruturação do habitus do adolescente?

Percebe-se a necessidade de compreensão de como ocorre a violência simbólica no âmbito intrafami-liar e como ela repercute na construção identitá-ria do ser adolescente, na perspectiva de não só identificá-la precocemente, como também planejar estratégias de prevenção, já que a violência pode gerar agravos no ambiente familiar, em seu entorno e na própria saúde do adolescente. Assim, o presente estudo tem por objetivo refletir sobre a violência simbólica no campo familiar na (des)estruturação do habitus do adolescente a partir da série televisiva Sex education.

Método

A série televisiva Sex education se tornou, no ano de 2019, uma das mais populares no cenário nacional e internacional, especialmente entre os adolescentes. Além do foco principal, que é a educação sexual trabalhada de forma crítica e bem singular, a série chama atenção para questões LGBTQI+, formação de identidade e relações familiares abusivas, destacando-se a relação do personagem Adam Groff e seu pai, diretor da escola Moordale, local onde se passa a maioria das cenas. Diante dessa última questão, surgiu a curiosidade de se pesquisar o ponto de vista filosófico dessas situações tão comuns entre as famílias e como elas impactam na qualidade de vida dos adolescentes. Para isso, houve a escolha do filósofo Pierre Bourdieu, crítico dos mecanismos de reprodução das desigualdades sociais.

Percebeu-se que, a partir de sua rica literatura, poderiam surgir novos olhares e, consequentemente, novas possibilidades de entendimento e enfretamento para as problemáticas vivencia-das na série, uma vez que suas obras destacam os condicionamentos materiais e simbólicos que agem nos indivíduos e na sociedade numa complexa relaçao de interdependência.

Portanto, trata-se de um estudo teórico-reflexivo, com base em livros e artigos que demonstrem os conceitos nucleares bourdieusianos, em especifico "campo", "capital", "habitus" e "poder e violência simbólica", tendo como fagulha para o desencadeamento das intelecções que embasaram este estudo a série Sex education. Serao utilizadas situações dessa série que demonstraram a violência simbólica e a repercussao na (des)estruturaçao identitária do ser adolescente.

Pierre Bourdieu e os conceitos nucleares bourdieusianos

Renomado filósofo por formaçao, Pierre Bourdieu foi um dos mais influentes de sua época. Em sua notável trajetória, realizou pesquisas em áreas referentes ao sistema educacional, à política, à mídia, à literatura, entre outras, obtendo reconhecimento de suas obras pelo mundo, principalmente no Brasil, a partir da década de 1970. Sua obra é criticada, debatida e utilizada por instituições de ensino, tanto pelas escolas de ensino básico quanto pelas de ensino superior 13.

Os conceitos criados por Bourdieu trazem entendimentos para a discussao que propõe reflexao sobre as práticas dos sujeitos e da estrutura social. Dessa forma, entre seus principais conceitos, é possível destacar o campo, o qual pode ser explicado com diferentes espaços simbólicos, por exemplo, educaçao, ciência e economia. Cada um refere-se a um campo e cada campo apresenta a disputa de interesses na sociedade, entre a classe dominante e a classe dominada.

Nesse contexto, o campo possui espaços em que se dao a rivalidade e a competiçao entre as classes, estabelecendo assim relações de poder e a posiçao delas 4. Para cada campo existente, há o habitus, conceito que representa um sistema de disposições incorporadas. Sao como normas de determinada cultura com padrões de comportamentos específicos a serem seguidos pelos sujeitos, pois, uma vez inseridos em tal campo, o habitus é aquele adotado para sua conduta 14,15. Por meio dessa organizaçao, os indivíduos percebem o mundo social ao seu redor e a ele reagem. Nesse sentido, entende-se que o habitus orienta e localiza determinada prática, sendo, na ótica de Bourdieu, realizado de maneira inconsciente, sem a necessidade de sujeitos coordenando essas condições 16. Acrescenta-se que o habitus é uma maneira prática de o indivíduo entender e buscar a vida social; desse modo, age, sente e toma opiniões próprias advindas desse campo.

Além do campo e do habitus, faz-se necessário pensar a respeito do capital, o qual mostra uma compreensao mais ampliada do campo. Quando se manifesta o capital, Pierre Bourdieu retrata alguns conceitos, a citar: capital cultural trata-se da primeira socializaçao apresentada, interagindo e intervindo no meio, nos gostos e nas relações, e capital social refere-se aos elos em que o ser humano se conecta e que contribuem ou promovem o espaço e poder em determinado campo 17,18. A partir dessas discussões, observa-se que há relaçao intrínseca entre capital e campo, pois esse espaço social é pautado numa desigualdade de distribui-çao de capital social, ou seja, o poder. Para essa distribuiçao, há os dominantes - os que têm mais capital específico-e os dominados-menos acesso ao capital. Existem demasiados exemplos de campo, bem como tipos de capital, que sao primordiais nessa discussao. Dependendo do campo em questao, o peso do capital tem a sua relevância, o que faz surgir frações de classes 4.

Um outro conceito bem trabalhado é o poder simbólico que está relacionado a esses sistemas. Para a atuaçao do poder simbólico ser propícia, esses agentes se multiplicam a partir do capital - social, cultural ou simbólico - e partem de uma concepçao de imposiçao, superioridade, poder, autoridade e dominaçao de uma classe sobre a outra 14,19. Dessa hierarquia social, surge a denominada violência simbólica, expressa por meio das relações de poder manifestadas entre o dominador e o dominado. Nesse caso, o dominador tem consciência de sua dominaçao e a aplica para legitimá-la, ao contrário do dominado, que nao sabe de tal realidade. Apesar de essa violência nao ser visível, pode ser tao agressiva quanto as outras formas de violência já conhecidas, pois faz com que o sujeito (dominado) permaneça sempre na mesma posiçao excludente, atribuindo a ele conceitos e regras a serem seguidos 14,16. Portanto, é possível compreender as relações entre comportamento e forma de agir do ser humano, em que sua desenvoltura envolve o habitus de inserçao de determinada conjuntura sócio-histórica, intervindo na sua forma de se relacionar em sociedade e para com os outros, desde os valores até as ideias, em razao da incorporaçao da dimensao simbólica e, ao contextualizar o ser adolescente, ele se torna eixo estruturante na formaçao de sua identidade.

Olhar bourdieusiano na estrutura do ser adolescente a partir da série Sex education

Um número cada vez maior de estudos vem analisando filmes e séries televisivas como objeto de pesquisa por se tratarem de ferramentas expressivas e significantes que permitem o exercício da reflexao pelos pesquisadores, levando à construçao do conhecimento ao possibilitar a exploraçao de situações muito próximas à sua realidade, incorporando diferentes saberes a partir da ressignificaçao do seu conhecimento prévio 20,21. Sex education é uma série de comédia e drama britânica criada por Laurie Nunn, que tem como pano de fundo os dilemas sexuais vividos por adolescentes do ensino médio, trazendo outros temas relevantes, como uso de drogas, gravidez indesejada, aborto, masturbaçao, bullying e homofobia. Outro tema importante que se percebe na série e que é o foco desta pesquisa se refere às relações familiares abusivas, em especial a do personagem Adam Groff e seu pai.

Observa-se na série que o campo, na lógica bour-dieusiana, é retratado nas relações familiares presentes entre o personagem Adam Groff, um adolescente do ensino médio com comportamentos agressivos, e seu pai, sr. Groff, diretor da escola Moordale, na qual Adam estuda. O campo dotado de certa autonomia é considerado um campo de forças, em que prevalece a presença de leis e regras específicas. É um espaço de luta entre indivíduos que buscam manter ou alcançar determinadas posições, obtidas por meio de disputas de capitais específicos para cada tipo de campo 17.

No interior dos campos, percebe-se a adoçao de diferentes posturas por parte dos agentes que integram as disputas. A aceitaçao das normas e da cultura de regras é uma das atitudes possíveis de se adotar dentro do campo; outra é a denominada "atitude herética" 17, que, segundo Bourdieu, caracteriza-se pela presença frequente de contestaçao e oposiçao às regras e às normas, sendo essa última observada ao longo da série, uma vez que Adam se mostra um adolescente muito indisciplinado que nao gosta de ser controlado, apesar de todas as regras impostas por seu pai.

Entende-se por habitus algo incorporado ao longo da história de vida dos indivíduos por meio de diversas interações sociais, incluindo as do contexto familiar, que sao extremamente importantes, uma vez que é por intermédio dos processos de interaçao familiar que ocorrem os primeiros processos de socializaçao. Importante ressaltar que os sujeitos permanecem continuamente constituindo e reestruturando seu habitus primário ao longo de suas trajetórias e a partir de outros modos de socializaçao que ultrapassam a esfera familiar, como a escola, as amizades e os namoros, porém é na socializaçao familiar que ocorre a incorporaçao das disposições mais perduráveis dos indivíduos 17,22-24.

Dessa forma, é importante ressaltar que, ao se pensar nos modos de socializaçao familiar, é necessário considerar que existem variações de acordo com o contexto e grupo social em que as famílias estao inseridas 25. Nas suas interações, os agentes tendem a executar as ações de acordo com as reações e as expectativas criadas em torno de si mesmos e na apreensao que esses agentes têm diante do mundo 22,26. Isso pode ser visualizado no episódio em que Adam confessa se sentir muito pressionado por ser o filho do diretor da escola em que estuda e consequentemente ter muita visibilidade por causa da posiçao de seu pai, mesmo nao sendo as atitudes esperadas do filho de um diretor.

Assim, Adam assume uma posiçao de inferioridade no campo, visto vez que seu pai possui o poder simbólico em razao de seu status na escola e sua posiçao de superioridade no campo familiar, além do acúmulo de capitais culturais, sociais, econômicos e intelectuais. Como efeito do poder simbólico, surge a violência simbólica.

Bourdieu 22 conceitua a violência simbólica como aquela imposta e vivenciada por meio de uma submissao paradoxal, de forma suave e insensível decorrente de vias simbólicas das interações sociais, havendo o desconhecimento da vítima. Ao se apoiar em crenças construídas e disseminadas coletivamente, o conceito de violência simbólica aborda imposições culturais exercidas de forma legítima, mas quase sempre imperceptíveis e dissimuladas 16.

Ao longo dos episódios, pode se perceber essa violência quando o sr. Groff compara os comportamentos e as notas escolares de Adam com os de sua irma exemplar; diz que ele o envergonha e ameaça colocá-lo em uma escola militar, além de nao demonstrar nenhum afeto para com ele, nem no ambiente escolar, nem no familiar, agindo sempre com muita rispidez e autoritarismo.

Como efeito da violência simbólica, ocorre a incorporaçao e a legitimaçao de um discurso marginalizado por parte de indivíduos pertencentes a uma classe de menor empoderamento, aceitando essa realidade social de forma natural 16. Tal qual pode ser observado na cena em que Adam paga uma de suas colegas de classe para escrever sua redaçao, já que ele se sente incapaz disso.

Estudos revelam que relações constituídas por atitudes abusivas, controladoras e violentas tendem a gerar problemas de comportamento e sentimento negativo de si mesmo nas vítimas, o que é refletido diretamente no desempenho escolar e nas relações sociais 27,28. Adam mostra do começo ao fim da série sua inabilidade de manter e construir relações interpessoais saudáveis, sempre demonstrando comportamentos e sentimentos inapropriados, irritabilidade e tendência à agressividade, em especial contra Eric Effiong, um colega de classe assumidamente gay, e, por essa razao, apreende-se que Adam exterioriza pensamentos, sentimentos e atitudes homofóbicas.

Os desafios apresentados na série relacionados à família Groff transparecem os modelos do sistema tradicional e hierárquico, o que diverge do mundo novo e contemporâneo em que as relações deveriam ser mais afetivas, compreensivas e com bastante diálogo. Esse sistema autoritário retrata também uma relaçao conflituosa adotada e imposta pelo pai, sr. Groff, mas nao distante do mundo real, sem as câmeras e telas, estando mais próximas da sociedade, porém nao problematizadas, discutidas e entendidas.

Sabe-se que a família é vista como a primeira projeçao de educaçao e valores, sendo os pais educadores e formadores dos filhos para o meio social. No entanto, a formaçao dos filhos ainda se rotula muito nos princípios e nos valores preestabelecidos de determinadas culturas 29. Traçando esses pensamentos com os pensamentos bour-dieusianos, os valores construídos pelos pais, quando, baseados nos mecanismos transmitidos a eles quando crianças, colaboram e interferem com as formas do educar, repercutindo na estruturaçao das identidades.

Nesse sentido, é consenso que a família, quando desestruturada de competências emocionais, está intimamente ligada aos problemas sentimentais e comportamentais das crianças e jovens, até mesmo na fase adulta. Aliados às práticas coercitivas parentais, esses problemas sentimentais e comportamentais estimulam os conflitos internos e externos e ajudam a desencadear características, muitas delas violentas, reproduzidas das estruturas (os pais) e passadas para os estruturantes (os filhos) de forma contínua e persistente 30,31.

O estudo de Overlien 32 aborda a visão dos filhos para com os pais, sendo o pai, em grande maioria, autoritário, opressivo, inflexível, ríspido, violento e rigoroso, diferentemente da mãe, posicionada como vítima, a qual não revida o controle abusivo do marido por medo, insegurança ou desconhecimento da situação. O estudo aborda ainda o posicionamento dos filhos como expectadores impotentes, os quais não têm, muitas vezes, autonomia ou forças para agir e buscar ajuda, tornando-se reprodutores das ações ocorridas no espaço familiar, situação essa observada ao longo da série Sex education.

O personagem Adam apresenta complexa relação com o pai, que pode ser observada tanto por meio da dificuldade em expressar seus desejos e vontades quanto pelo seu mau comportamento. Estudos revelam que o autoritarismo, no sentindo de proibir, limitar e exigir, colabora para o consumo de álcool e outras drogas, bem como para o uso da força física 33,34, situações essas vivenciadas e realizadas por Adam. Quando observada nas cenas, a limitação do personagem torna visível sua outra face, aquela que pede ajuda. Mesmo sendo o ofensor em boa parte do tempo, é também vítima.

Em consenso, Moulds et al.35 demonstram que a maioria dos jovens agressivos já vivenciou ou vivenciava algum tipo de opressão ou violência, sendo essa natureza compartilhada em profundas implicâncias e, futuramente, naturalizada como ações resolutivas de problemas. Os autores mencionam o uso abusivo do poder e do controle dos pais com os filhos, identificando assim como fonte geradora e reprodutora de atos nocivos, isso porque apresentam outra expressão, a "síndrome dos pais maltratados", como reflexo de gerações antigas e passadas adiante.

Selwyn e Meakings 36 apontam que esse modelo de relacionamento se transforma em sentimentos não saudáveis para os filhos, podendo afetar seu desenvolvimento pessoal e social. Chapin e Coleman 37 colocam ainda que cerca de 28,4 % dos adolescentes já sofreram agressão física em casa, enfatizando que muitos adolescentes não apresentam visibilidade para os sinais de violação corporal ou de direitos, o que favorece a não busca da autoproteção ou denúncia.

Ainda com o foco nas relações familiares, os conceitos bourdieusianos apresentam enlaces entre educação, sociedade e família a partir dos conceitos do habitus e da estratégia. O estudo denota as particularidades do educar, dos agentes transmissores e a implementação social, em ênfase, a família. As ações que condizem ao habitus são as estruturas que intermeiam as estruturantes a funcionar como princípios geradores de representações das práticas de acordo com o habitus criado em si. Dessa forma, o social é desenvolvido por meio do habitus na vida dos agentes (estruturas), e a educação passa a ser a idealização que esses agentes têm ou adquirem do meio social obtida a partir das práticas do habitus4.

Com relação às estratégias, elas se mostram em meio a uma série de ciclos do habitus, construindo a sociabilidade na vida cotidiana. Presentes desde a infância, as estratégias ocorrem das experiências, ou seja, surgem como ações movidas por uma determinada situação, sendo assim inconscientes, pois se ajustam com a prática imposta, determinada e específica de uma configuração social. Por esses processos, a educação se forma entre as estruturas de maneira semelhante, isto é, os agentes agem conforme seus interesses, mas não desobedecem às regras 4.

Estudar a família enquanto estratégia não é torná-la um conceito e exemplo a ser seguido como lei. Como parte real da vida social e parental, a família é composta de agentes educadores dos sentimentos, trocas, afeições e obrigações, por sua vez frutos semelhantes de uma jornada. A abordagem familiar colabora na via educativa e, na falta do seu vínculo, torna-se ponte para a reprodução daquilo que ela transmite, seja pela ausência do afeto, seja pelos comportamentos agressivos e intransigentes como correção comportamental do jovem adolescente 35. Com efeito, compreender as consequências das práticas não coercitivas impostas na adolescência faz compreender também como os comportamentos violentos induzem a uma evolução de outros atos danosos sobre o cotidiano, interferindo diretamente e negativamente nas relações entre pais e filhos.

É válido ressaltar que são várias as tipologias existentes de violência e as estratégias de indução das ações justificadas como correção comportamental. Assim, no intuito de reduzir as atrocidades, tendo em vista as diversidades socioculturais, sugere-se atentar para a educação familiar dos pais e dos jovens, esclarecendo sobre como as ações podem implicar sob o outro quando colocadas de forma inadequada.

Conclusões

O objetivo do presente estudo foi debater sobre a violência simbólica no campo familiar na (des)estruturação do habitus do adolescente a partir de um estudo teórico-reflexivo. Em vista de atingir o objetivo proposto, resgatou-se uma pequena parcela das obras de Pierre Bourdieu e da literatura que trata da temática "violência simbólica". Nesse sentido, esmiuçou-se e desenvolveu-se uma associação dos conceitos bourdieusianos aplicados à série Sex education.

Apreendeu-se que é necessário um olhar crítico sobre as relações interpessoais no contexto familiar, uma vez que é na socialização familiar que se tem o início da incorporação e da construção do habitus dos indivíduos, e que a violência simbólica, originada de um campo de submissão, pode ser tão prejudicial quanto os outros tipos de violências visíveis, já que afetam decisivamente a construção e o desenvolvimento dos adolescentes, afetando sobretudo a autoestima, a capacidade de construir relações interpessoais satisfatórias e estimulando comportamentos agressivos. Logo, surge um preocupante ciclo vicioso de violência, como pode se observar nas atitudes e comportamentos do personagem Adam Groff.

Ao fazer referência à família, cabe aqui ressaltar que a ideia de família é uma construção social, na qual as relações de parentesco, ou não, se organizam com determinantes mudanças estruturais. Por sua vez, ela carrega em si características individuais, as quais podem mudar diante das suas necessidades, influenciando ou tornandose influenciáveis, gerando ou dificultando o bom desenvolvimento de seus membros. Entretanto, as relações marcadas pelos conflitos, nesse caso, a violência, são naturalizadas e justificadas por meio de discursos como alternativa educativa e de dominação, na maioria dos casos, dos pais sobre os filhos. A partir disso, pode-se pensar no processo de reprodução, perpetuando o ciclo violento no habitus do adolescente. O impacto da exposição direta ou indireta do adolescente às relações violentas revela-se como principal fator para problemas de saúde física e mental, além de constituir uma nova porta de entrada, a longo prazo, para outras manifestações, de violência ou não.

Em virtude do que foi trabalhado, o ingresso na adolescência do personagem Adam Groff evidencia-se pela transformaçao social, mental e física, desvelando a sua capacidade de como enfrentar diversas situações. Partindo desse pressuposto, a conjuntura da ficçao nao foge tanto da realidade, o que faz entender que esse processo se origina das relações interpessoais, marcadas por crise familiar ou algum processo coesivo a esse grupo. Dessa forma, a conceituaçao da violência se modifica em diversos significados e variados espaços, os quais têm efeito devastador carregados de marcas explícitas ou sutis, mas dolorosas, com consequências danosas no âmbito familiar, escolar e pessoal.

A violência simbólica, assim como os diversos tipos de violência, é um evento multidimensional que afeta a sociedade como um todo e, para preveni-la, é necessário um trabalho intersetorial e multidisciplinar. O presente estudo contribui em parte para essa prevençao a partir do momento que coloca em discussao o conceito e as consequências da violência simbólica, levando à possibilidade de identificaçao do problema e à consequente tentativa de resoluçao.

Tais resoluções devem envolver a articulaçao e a relaçao dialogada de diversas esferas, conforme supracitada, ou seja, nao somente o Estado, mas principalmente os profissionais da saúde e da educaçao, as entidades representativas da sociedade e das famílias, com o intuito que as ações, os serviços e as políticas públicas estejam tanto alinhadas às demandas que envolvem as violências experienciadas no campo familiar quanto alicerçadas em práticas que possam trabalhar a inteligência emocional dos atores sociais com vistas ao empoderamento e à consequente prevençao da violência que repercute negativamente na desestruturaçao familiar.

As limitações deste estudo se encontram primeiramente na referência de comparaçao com apenas um personagem da série, o que certamente reflete os problemas dos jovens em um determinado contexto, porém impossibilita a generalizaçao dos resultados para a populaçao como um todo; além disso, a quantidade de literatura era reduzida para responder à questao orientadora. Dessa forma, sugere-se que sejam produzidos mais pesquisas, estudos e investigações acerca dos conceitos de Pierre Bourdieu, em especial sobre a violência simbólica que se faz muito presente, principalmente no campo familiar e escolar.

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Cómo citar: Alves BP; Sá BA; Fernandes MC. Violência simbólica no campo familiar na (des)estruturaçao do habítus do adolescente. Av Enferm. 2021;39(1):112-120. http://doi.org/10.15446/av.enferm.v39n1.82801

Apoio financeiro Não se aplica.

Recebido: 11 de Outubro de 2019; Aceito: 31 de Julho de 2020

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