Introdução
Os Sistemas de Informações em Saúde (SIS) podem ser definidos como um agregado de sistemas coligados que coletam, organizam, armazenam e compartilham informação com a finalidade de colaborar no processo de tomada de decisão e na gestão das organizações de saúde 1. Além disso, são mecanismos tecnológicos capazes de contribuir com os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS), no âmbito municipal, estadual e federal, para processar dados e apoiar a sistematização das informações para a gestão e o planejamento dos serviços prestados em saúde, e do SUS de modo geral 2.
No Brasil, a estratégia e-SUS Atenção Primária à Saúde (e-SUS APS), do Ministério da Saúde, tem o objetivo de reestruturar as informações da Atenção Primária à Saúde (APS), no âmbito federal, alinhada à proposta mais geral do processo de reestruturação dos SIS, em busca de um SUS eletrônico 3. Para tal, a estratégia e-SUS APS utiliza o Sistema de Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC) para apoiar o processo de informatização dos serviços de saúde na APS. Dessa forma, é possível um registro de informações com vistas a uma melhor qualidade da assistência, como rapidez nos agendamentos e nos atendimentos 4,5.
A estratégia e-SUS APS apresentou vários avanços ao longo dos últimos anos no seu processo de implementação, porém com grandes desafios a serem enfrentados, relacionados com a informatização das unidades básicas de saúde, a capacitação dos usuários do sistema e os diversos sistemas de informação em saúde utilizados no SUS, que implicam o retrabalho dos profissionais da APS. O PEC, principal software da estratégia, está em constante evolução, com a utilização de um modelo de maturidade para o desenvolvimento de suas funcionalidades 6. Nesse sentido, faz-se necessária a avaliação das práticas de uso do prontuário eletrônico. Para tal, o objetivo deste estudo é descrever a construção e a validação de um instrumento para avaliar o uso do PEC da estratégia e-SUS APS.
Materiais e métodos
Trata-se de um estudo metodológico que tem o objetivo de construir e validar um instrumento para a avaliação do PEC da estratégia e-SUS APS, com profissionais da APS. Inicialmente, realizou-se uma revisão integrativa da literatura para identificar as lacunas do conhecimento e do levantamento das pesquisas científicas e das legislações pertinentes à utilização do PEC da estratégia e-SUS APS. As informações encontradas foram utilizadas para elaborar categorias que subsidiaram a construção de um modelo lógico, respaldado em duas premissas: gestão do e-SUS APS e do PEC, e fundamentado na tríade donabediana de estrutura-processo-resultados 7,8, em que estrutura se refere aos requisitos materiais, humanos e sistematizados no âmbito do cuidado, processo é o desempenho do cuidado, e resultado diz respeito ao impacto no cuidado 9. Para este estudo, cada item descrito no modelo lógico apresentou os recursos disponíveis (estrutura), as atividades esperadas (processo) e os impactos prováveis (resultados).
Com base no modelo lógico, o instrumento foi construído com 26 questões avaliativas, as quais foram submetidas ao processo de validação de conteúdo e aparência, por juízes, considerando como critérios a relevância, a objetividade e a clareza 9. A validação de conteúdo e aparência aconteceu no período de novembro de 2018 a março de 2019, utilizando-se da técnica Delphi 10.
Para a seleção dos juízes, foram realizadas duas etapas de busca na base de dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq), especificamente na plataforma Lattes, a qual reúne o currículo de diferentes pesquisadores. Tratou-se de busca simples, por assunto, com a utilização das seguintes palavras-chave: "sistemas de informação" e "atenção básica", com o operador booleano AND. Foram encontrados 3.314 currículos de pesquisadores de nacionalidade brasileira com essas palavras-chave. Destes, foram lidos os primeiros 500 resumos dos currículos na sequência de busca; após esse número, percebeu-se que os currículos não contemplavam a temática da investigação, portanto se encerrou a leitura dos resumos.
Contar com experiência com o Sistema de Informação da APS, como artigos publicados e/ou projetos elaborados na temática, foi o critério de inclusão. A partir disso, chegou-se a 88 juízes selecionados para receberem o instrumento a ser avaliado. Para eles, foi enviado um e-mail no qual se explicava o estudo e os convidava a participarem; estipulou-se o período de 15 dias para que os convidados respondessem.
Na primeira etapa de busca, foram enviados 41 convites para pesquisadores com pós-graduação e, na segunda etapa, foram enviados convites para 47 pesquisadores independentemente de terem pós-graduação, totalizando 88 convidados. Destes, 36 acessaram o instrumento; dois recusaram-se a participar no momento de assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e 34 aceitaram participar, assinando o TCLE. Entre os participantes que assinaram o TCLE, 19 responderam ao instrumento de forma completa. Na segunda rodada, 16 juízes avaliaram o instrumento.
A avaliação constou da completude dos itens e se o conteúdo refletia o referencial teórico de avaliação e uso do PEC da estratégia e-SUS APS, por meio da análise quantitativa das respostas dos juízes, mediante as questões do instrumento. Para isso, elucida-se que houve critérios estabelecidos: 1. não representativo; 2. representativo, mas precisa de revisão; 3. item representativo 11. Foi deixado um local específico em cada questão para o registro descritivo de sugestões. Salientou-se que, de acordo com os resultados e o grau de concordância das respostas, novas rodadas poderiam acontecer.
Para identificar o grau de concordância entre os juízes participantes, foi utilizado o Índice de Validade de Conteúdo (IVC), o qual foi calculado a partir da somatória das respostas "3" (item representativo) de cada juiz em cada questão do questionário e dividida essa soma pelo número total de respostas (IVC = número de respostas "3" / número total de respostas x 100). O IVC varia entre 0 e 1, e, quanto mais próximo de 1, melhor será o desempenho do item, segundo os juízes. O nível de consenso esperado para este estudo foi de 75 % 12.
Além do IVC, foi utilizada também a Razão de Validade de Conteúdo (CVR, do inglês Content Validity Ratio). Enquanto IVC mede a proporção de juízes com respostas "3", o CVR compara essa proporção com o número esperado, como se os juízes estivessem respondendo ao acaso [(CVR = ne - (N/2) / (N/2)], em que "ne" é o número de juízes que classificaram cada item como "3", e "N" é o número total de juízes respondentes. O CVR varia entre -1 e 1, e espera-se que um bom item tenha o valor de CVR, ao menos, positivo. Neste estudo, considerando os 19 participantes, na primeira rodada, o valor mínimo considerado para o CVR foi de 0,6 13.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Brasil, atendendo às diretrizes e às normas regulamentadoras de pesquisas que envolvem seres humanos, aprovadas pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil e com o certificado de apresentação para apreciação ética 89770818.6.0000.5393.
Resultados
O modelo lógico foi construído a partir da leitura de manuais, normas, artigos científicos e tutoriais sobre a estratégia e-SUS APS e fundamentado nas premissas de Donabedian, de estrutura, processo e resultado, como demonstrado na Figura 1.
Dos juízes que participaram do estudo, 19 responderam completamente ao instrumento no primeiro envio. Destes, oito eram doutores (42,1 %), 10 (52,6 %) eram mestres e um (5,2 %) graduado em enfermagem.
Na segunda rodada, 16 juízes responderam, dos quais sete eram doutores (43,7 %) e nove, mestres (56,2 %). Desses 16, cinco (31,2 %) eram homens e 11 (68,7 %), mulheres. 13 (81,2 %) trabalham com pesquisa de SIS; três (18,7 %) trabalham na assistência, utilizando o PEC na APS, e dois (11,7 %), gestores (municipal e estadual).
Na primeira rodada, o IVC total do instrumento foi de 67 %. As questões que receberam pontuação abaixo de 75 % em algum dos padrões (relevância, clareza e objetividade) foram revistas, reescritas ou descartadas. Algumas questões, mesmo atingindo 75 %, foram reescritas, a fim de deixá-las mais claras e precisas, seguindo as recomendações dos juízes.
O instrumento foi composto por 30 questões, das quais seis se referiam ao perfil pessoal do usuário do PEC, duas ao perfil da unidade de saúde e 22 questões de análise do uso do PEC da estratégia e-SUS APS. Na validação de aparência com base nas sugestões dos juízes, foram realizadas adequações no instrumento; nas questões pertinentes ao perfil da unidade, foram contemplados dados referentes ao município e ao tipo de equipe de saúde. Para o perfil pessoal, foram incluídas informações sobre gênero, data de nascimento, categoria profissional, vínculo empregatício, escolaridade e titulação. E, no que se refere às questões específicas da análise do uso do PEC da estratégia e-SUS APS, foram realizadas adequações, conforme o Quadro 1.
Com relação à validação de conteúdo, o IVC total do instrumento foi de 85,8 % e o CVR geral, de 0,6. A Tabela 1 apresenta os resultados do IVC e de CVR para questões específicas da análise do uso do PEC da estratégia e-SUS APS, considerando os padrões de relevância, clareza e objetividade.
1 número de respostas "3" / número total de respostas X 100.
2 [CVR = ne - (N/2) / (N/2)], em que "ne" é número de juízes que classificaram cada item como "3", e "N" é o número total de juízes respondentes.
Fonte: elaboração própria (2019).
Os itens elencados pelos juízes como mais importantes foram satisfação, facilidade do uso, suporte técnico, capacitação e utilização dos relatórios gerados.
Concernente ao item "satisfação em utilizar o sistema", observa-se que os juízes avaliaram as questões com um alto índice de relevância, clareza e objetividade. Quanto ao item "facilidade de uso", as questões também foram avaliadas com altos índices de relevância, clareza e objetividade pelos juízes. As questões relacionadas ao item "suporte técnico" foram avaliadas com uma boa relevância pelos juízes. Porém, com relação à avaliação da clareza e da objetividade nas questões sobre o suporte que veio do Ministério da Saúde, os índices foram próximos ao ponto de corte aceito na pesquisa. Nesse caso, é necessário refletir sobre a credibilidade das esferas de governo para a implementação dos sistemas e o acesso fornecido aos profissionais para resolver problemas. Relacionado ao item "capacitação", obtiveram-se os mais altos índices de relevância, clareza e objetividade pela análise dos juízes. Quanto às questões que tratam do item "relatórios gerados", os juízes avaliaram as questões com altos índices de relevância e objetividade, de forma a pensar na importância da devolutiva aos profissionais e possivelmente contribuição para a organização das ações de trabalho na APS.
Discussão
Na construção do instrumento elaborado para analisar o PEC da estratégia e-SUS APS, foram elencados alguns pontos que se destacaram nas questões para serem discutidos: satisfação, facilidade do uso, suporte técnico, capacitação e utilização dos relatórios gerados.
O instrumento teve como uma das primeiras questões a satisfação na utilização do PEC. Isso corrobora outros estudos encontrados na literatura, nos quais a satisfação com o uso do sistema de informação está intimamente ligada à sua adoção e utilização 14,15.
Um estudo constatou a satisfação de enfermeiros com o prontuário eletrônico em um hospital, melhorando as atividades de trabalho e demonstrando que a satisfação tem relação com a performance do sistema. Quanto mais os profissionais utilizam o prontuário eletrônico e suas ferramentas, maior a chance de eles se sentirem satisfeitos com a tecnologia 16.
Outro fator que influencia a satisfação é o ambiente organizacional de implementação do sistema. Autores relatam que a ausência de computadores disponíveis e a deficiente conectividade da internet podem causar baixa adesão na utilização de tal recurso 14,15.
Na construção do instrumento para avaliar o PEC da estratégia e-SUS APS, observam-se várias questões relacionadas com a facilidade de uso e a habilidade de manusear os recursos tecnológicos oferecidos pelo sistema. Nessa perspectiva, os estudos com proposta de avaliar a usabilidade de um prontuário eletrônico, a partir da seleção de dados, constatou que a clareza para encontrar botões como "copiar", "colar" e "imprimir" foi relatada como facilitadores na sua utilização 17.
A literatura enfatiza que os gestores dos serviços de saúde têm, como uma de suas responsabilidades, a de fornecer um suporte técnico resolutivo e eficaz para os profissionais, oportuno em todo o período de trabalho 16, uma vez que o suporte técnico contribui para a facilidade do uso do SIS 18. Os treinamentos iniciais e as atualizações têm ligação fundamental com a facilidade na utilização dos SIS, o que reafirma os achados de outros estudos sobre a importância da capacitação para utilizar esses sistemas 19,20. O oferecimento de tais treinamentos é crucial na lapidação das habilidades dos usuários com a tecnologia, abrindo horizontes para a compreensão da sua importância no cotidiano do trabalho 15,16, influenciando no seu uso 18,21.
A ausência desses treinamentos tem relação com a subutilização dos SIS, causando baixa adesão e insatisfação do profissional de saúde 18. Pesquisas realizadas com profissionais de enfermagem brasileiros identificaram que eles não receberam capacitação e demonstraram dificuldades na utilização do prontuário eletrônico 17,21.
O instrumento construído nesta pesquisa contou também com duas questões sobre os relatórios gerados, avaliadas pelos juízes como de alta relevância. Os relatórios de SIS contribuem para a decisão clínica, a diminuição de erros e a tomada de decisão por parte dos profissionais de saúde. 11,22-24. Entretanto, a utilização desses relatórios para a tomada de decisão nos serviços de saúde tem sido pouco explorada, principalmente quanto ao nível de implementação 25.
O instrumento Iapec construído poderá ser utilizado para o monitoramento e a avaliação do PEC nas unidades de APS, o que poderá contribuir para um processo de trabalho mais estruturado e organizado, no que diz respeito ao tempo gasto no uso do sistema para o cuidado.
Conclusões
Considerando o objetivo proposto de construir e validar um instrumento para a análise do PEC da estratégia e-SUS na APS, o instrumento foi considerado apropriado pela avaliação dos juízes por meio da validação de conteúdo e aparência, levando em conta o rigoroso processo de avaliação dos seus itens. As proposições realizadas pelos juízes foram valiosas para o aperfeiçoamento das questões, garantindo, assim, que o instrumento estivesse em consonância com o que é proposto para o uso do sistema de informação na APS.
O instrumento Iapec tem potência para avaliar a utilização do PEC dentro da Estratégia e-SUS APS, a fim de melhorar a prática no uso do PEC, contribuir para um processo de trabalho estruturado e organizado, subsidiando a gestão da APS na tomada de decisões. O instrumento poderá promover melhor articulação da equipe multiprofissional por meio das informações inseridas no sistema.
No Brasil, a incorporação do uso do PEC no cotidiano do trabalho ainda é um desafio para os profissionais da saúde. Assim, ressalta-se a importância de novos estudos voltados para a avaliação e o monitoramento do uso do prontuário eletrônico na APS.