Introdução
A saúde pública passou por transformações sucessivas nas últimas décadas que lhe conferiram modificações estruturais importantes a partir da inovação de seus processos de gestão, refletindo no aperfeiçoamento da qualidade da atenção aos cidadãos em conformidade com os princípios doutrinários e com as diretrizes operacionais do Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil. Entre essas transformações, o processo de trabalho da vigilância em saúde (VS) vem ganhando visibilidade em um cenário de crescentes desafios para as políticas de saúde 1.
A vs é representada como um complexo estruturado de ações designadas a monitorar os determinantes de saúde de comunidades, orientadas a partir da perspectiva da integralidade do cuidado, tanto na dimensão pessoal quanto na coletiva, com relação aos riscos e aos agravos. Essa ampliação de escopo induz sua inserção transversal nos diversos níveis de atenção (primário, secundário e terciário), principalmente na Atenção Primária à Saúde (APS). Suas ações abrangem toda a população brasileira por meio de práticas e processos de trabalho voltados para a detecção oportuna de agravos e doenças, através da observação e da análise permanentes da situação de saúde da população e da adoção de medidas suficientes para responder às emergências de saúde pública 2.
A Secretaria de Vigilância em Saúde é o arranjo administrativo encarregado de analisar a conjuntura de saúde das populações, desenvolver atribuições de controle e acompanhar a situação de saúde dos diversos grupos populacionais por meio da gerência de informações e de ações compartilhadas entre os três níveis de gestão (federal, estadual e municipal) do sus 3.
A Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS) brasileira foi lançada em 2018 e representa um marco para o planejamento das ações de vs ao definir princípios doutrinários, responsabilidades, estratégias e diretrizes partilhadas entre as três esferas de gestão do sus. A pnvs caracteriza-se como uma política pública de Estado essencial, universal e transversal, cuja efetivação depende do fortalecimento das instâncias gestoras do sistema de saúde 4.
Apesar dos avanços de suas ações, isto é, da reorganização no âmbito normativo-organizacional, a vs ainda se encontra subdividida em áreas ou setores distintos e formais, favorecendo a fragmentação do seu objeto de atenção. Esse fato revela a urgente necessidade de diálogo entre seus componentes para que se possa fortalecer a capacidade de gestão do sistema de maneira mais equânime e integradora 5.
Entre as lacunas existentes no processo de implementação das práticas de vs, destaca-se a carência de uma direção política e gerencial, nos níveis micro e macro do sistema de saúde, que permita a reordenação dos processos de trabalho com a inclusão de novos atores e outros instrumentos ou meios de trabalho. Portanto, sua consolidação é complexa, tanto do ponto de vista político quanto dos aspectos técnico-sanitários, exigindo discussões ampliadas sobre os nós críticos que perpassam a configuração dos meios de trabalho, os quais ainda permanecem normativos e centralizadores 6.
A logística utilizada na vs deve contar com a colaboração e a coparticipação de todos os gestores, técnicos, trabalhadores e atores sociais de diversos níveis, adaptando-se de maneira dinâmica, aos novos modelos de gestão dos serviços públicos e privados, principalmente aqueles de cunho social, sem perda de suas características inerentes. O processo de trabalho em saúde contempla a mediação simbólica e material, para seus fins, de diversas categorias de trabalhadores e de profissionais para o reconhecimento das necessidades técnicas e sociais dos cenários de atuação 7.
Alguns autores reforçam a complexidade existente à sua consolidação, tanto do ponto de vista político como do técnico sanitário, estimulando a necessidade de um debate ampliado acerca dos nós críticos que perpassam a configuração dos meios de trabalho, que ainda se mantêm de forma normativa e centralizada. O fluxograma de informações da vs deve ser trabalhado harmonicamente com a aps, reafirmando seus atributos essenciais e derivativos, buscando a integralidade a partir de sua consolidação nas concepções e nas práticas dos profissionais da saúde 8.
O cenário em tela instiga a curiosidade, de forma que o estudo contribui para elucidar os seguintes questionamentos: qual a visão dos trabalhadores da vs enquanto executores das ações de vigilância? E que fatores que influenciam o desenvolvimento dessas atividades? Buscou-se, ainda, a identificação das potencialidades e dos desafios que perpassam seus processos de trabalho. Nessa direção, este estudo teve como objetivo compreender a vs sob a perspectiva de seus trabalhadores e identificar suas concepções e articulações intrínsecas e extrínsecas.
Materiais e métodos
Estudo qualitativo baseado no método compreensivo-interpretativo, em que foram entrevistados 28 profissionais vinculados à VS de um estado e de sua capital no Brasil. O material coletado por meio de entrevista foi analisado a partir da técnica de análise de conteúdo.
A pesquisa foi realizada nos setores de vs do nível central da Secretaria Municipal de Saúde de Natal (estado do Rio Grande do Norte, rn) e da Secretaria de Estado da Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Norte (Sesap-RN), no Brasil. A escolha simultânea de uma capital e de seu estado, enquanto empiria, ampliou o número de interlocutores, o que enriqueceu os aspectos reincidentes e/ou complementares das informações.
O setor de vs de Natal encontrava-se sob a competência do Departamento de Vigilância em Saúde, que é constituído pelos setores de vigilância epidemiológica, vigilância ambiental e saúde do trabalhador, vigilância sanitária, estatísticas vitais e centro de controle de zoonoses. Todos atuavam com equipes agrupadas em núcleos.
Já a vs da Sesap-RN estava sob a responsabilidade da Coordenadoria de Promoção à Saúde. Por sua vez, essa coordenadoria era constituída pelas subcoordenadorias de vigilância epidemiológica, vigilância sanitária, vigilância ambiental, vigilância em saúde do trabalhador, ações em saúde e informação, educação e comunicação.
Os participantes da investigação foram profissionais de saúde que trabalhavam nos setores da vs em nível central. A amostra, por conveniência, foi composta por 28 participantes, sendo 12 de Natal e 16 da Sesap-RN. Essa escolha privilegiou os sujeitos sociais que detinham os atributos que se pretendia conhecer no estudo. O critério de inclusão foi atuar em uma das quatro vigilâncias em saúde: epidemiológica, sanitária, ambiental ou saúde do trabalhador. Foram excluídos da pesquisa os participantes que atuavam há menos de um ano nos setores e que, no momento do estudo, estiveram afastados de suas atividades laborais por licença médica.
A coleta de dados foi realizada no ano de 2017. Utilizaram-se entrevista com roteiro semiestrutu-rado composta por identificação, informações sobre as atividades desenvolvidas pelo profissional no setor e nove perguntas sobre o tema do estudo. As entrevistas ocorreram, após o convite e o agendamento prévio, no próprio ambiente de trabalho dos entrevistados e foram gravadas em áudio através de um gravador de voz portátil, com prévia autorização dos participantes. O tempo médio de duração das entrevistas foi de 40 minutos. Após a constatação da saturação dos dados, pelo autor principal, devido à ausência de elementos novos, as entrevistas foram suspensas e todas as falas foram transcritas, posteriormente, na íntegra.
As perguntas que orientam o roteiro das entrevistas foram: o que é vs? Quais são as atividades de vs desenvolvidas no seu setor? Como são definidas as ações da vigilância em que você atua? Quem participa do planejamento das ações da vigilância em que você atua? Como se dá a relação entre as quatro vigilâncias que permeiam a vs? Como se dá a articulação da vigilância em que atua com os demais setores da rede de saúde? Você está satisfeito com o trabalho realizado na vigilância em que atua? Como você avalia o grau de empenho e de dedicação de sua equipe com relação ao desenvolvimento de ações nessa vigilância?
Os dados foram analisados com base na análise temática de conteúdo 9,10, que consiste em um conjunto de técnicas e de análise das comunicações que pretende ter, por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições e à produção/recepção dessas mensagens. A análise foi organizada em três etapas: (i) a pré-análise, (ii) a exploração do material e (iii) o tratamento dos dados, a inferência e a interpretação.
Inicialmente, foi realizada uma leitura flutuante para haver apropriação do texto. Depois dessa leitura prévia, começaram a emergir as unidades de sentido (US) a partir de palavras, conjunto de palavras ou temas. Posteriormente, as us foram agrupadas em subcategorias enquanto recortes do texto que se remeteram aos objetivos da pesquisa, aos questionamentos do estudo que necessitam ser respondidos, ao referencial teórico utilizado e às impressões/anotações dos pesquisadores.
O passo seguinte foi a definição das categorias temáticas que gerou classes que reuniram elementos semelhantes. De forma concomitante, foi realizada a codificação das us, que, por fim, foram submetidas a uma análise frequencial, na qual foi identificado o número de vezes que cada uma apareceu no texto. O quadro 1 apresenta a matriz usada para facilitar a análise.
A pesquisa cumpriu os princípios éticos que tratam de pesquisas que envolvem seres humanos. Todos os participantes leram e assinaram de forma espontânea o termo de consentimento livre e esclarecido, concordando em fazer parte da investigação.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com o Parecer 1.808.215 e o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética 59246616.5.0000.5292, em 2016. No intuito de preservar a identidade dos participantes, as entrevistas foram nomeadas com letras e números, sendo a inicial "E" para os profissionais do estado e "M" para os do município, seguida de uma numeração em ordem crescente, a qual representa a ordem em que foram entrevistados.
Resultados e discussão
Sobre o perfil dos participantes, foram entrevistadas 18 pessoas do sexo feminino e 10 do sexo masculino, na faixa etária entre 31 e 58 anos. Do total, 12 eram trabalhadores da vigilância epidemiológica, 8 da vigilância sanitária, 5 da vigilância ambiental e 3 da vigilância em saúde do trabalhador, com uma média de tempo de serviço de 12 anos para os servidores do município e 5 anos para os trabalhadores do estado.
Com relação à escolaridade, três profissionais tinham nível médio e 25 deles, o ensino superior completo, dos quais 19 possuíam pós-graduação. Essa constatação revela um ponto positivo para o setor da VS, visto que é esperado que, quanto maior a qualificação do profissional, melhor deva ser o seu preparo e aptidão para assumir responsabilidades e exercer funções, o que aumentaria as chances de êxito em suas ações.
Durante a análise do material, emergiram quatro categorias temáticas com suas respectivas subcategorias, apresentadas no quadro 1. As frequências das us estão sinalizadas nele.
Categorias | Subcategorias | US |
---|---|---|
Concepção sobre vs | Olhar ampliado | 91 |
Visão tecnicista | 68 | |
Articulação intrínseca e extrínseca à vs | Planejamento centrado em setores específicos da vs | 45 |
Fragmentação das ações entre as vigilâncias (intrínsecas) | 92 | |
Fragilidade na interação com a rede de saúde (extrínsecas) | 64 | |
Potencialidades da vs | Satisfação pessoal dos trabalhadores de vs | 44 |
Comprometimento com as ações desempenhadas | 80 | |
Desafios da vs | Necessidade de maior investimento em múltiplos recursos | 66 |
Valorização profissional | 23 | |
Maior suporte à vs por parte da gestão | 43 |
Fonte: elaboração própria, 2018.
As categorias emergentes foram concepção sobre a vs, articulação intrínseca e extrínseca à vs, potencialidades da vs e desafios da vs. Elas são apresentadas na sequência em que foram surgindo durante a análise temática.
Concepção sobre vigilância em saúde
A primeira categoria identificada, concepção sobre a vs, conteve dois núcleos de sentidos mais representativos: olhar ampliado, demonstrando uma percepção mais subjetiva e abrangente sobre vs, destacando a promoção à saúde e a prevenção de doenças como ações prioritárias no processo de cuidado e bem-estar da população; visão tecnicista, compreendendo a vs como um processo mais pragmático, considerando ações mais objetivas e de ordem técnica.
Olhares mais apurados e ampliados se destacam à medida que apontam para além dos conceitos técnicos vigentes, fazendo crer em um entendimento que contempla a integralidade do cuidado em saúde. Foram diversas as definições dos entrevistados, mostrando o conhecimento acerca do tema.
É tudo que envolve os serviços relacionados à saúde dos indivíduos, seja em relação aos agravos a saúde, à saúde do trabalhador, ao meio ambiente, ao entorno que a gente vive, à questão dos alimentos, entre outros. (E3)
É um conjunto de ações que vai verificar desde a prevenção até o estado de saúde-doença. E, a partir da prevenção, observar o problema e ficar vigilante em todas as situações para orientar nossas ações de saúde. (M3)
A compreensão mais abrangente sobre o tema certamente incide sobre a oferta de ações e serviços mais humanizados para a população, possibilitando uma abordagem mais integral. Nessa perspectiva, a vs deve oportunizar aos profissionais e aos gestores uma visão estratégica e ampliada do conceito de saúde, isto é, orientando o cuidado em saúde 11.
Por sua vez, a visão tecnicista minimiza os aspectos relacionais inerentes às ações de saúde e enfatiza a inclusão de novas tecnologias e de um novo saber-fazer em vs. Esse sentido parece estar cristalizado entre os profissionais de saúde, podendo ser atribuída à formação académica que, por sua parte, reverbera sobre seus processos de trabalho. A hegemonia técnica estimula a repetição de atos e o treinamento de habilidades, valorizando o aperfeiçoamento de técnicas direcionadas à cura de doenças e à reabilitação física.
A gente deve recomendar a adoção de medidas de controle para evitar a disseminação de surtos, de epidemias. É a informação para a ação, monitorando o que os números dizem. (E 15)
É um conjunto de ações que envolvem vários componentes da saúde, que são: a epidemiológica, ambiental, sanitária e saúde do trabalhador. Envolve também monitoramento, avaliação, coleta de dados, e análise para uma ação de intervenção. (E16)
Nesse contexto, a formação dos profissionais de saúde pode representar uma estratégia pertinente para centralizar a atenção ao usuário do sus. Para isso, as instituições de ensino superior necessitam superar o modelo de ensino predominantemente instrucional, individual e cartesiano, para ampliar seus projetos pedagógicos em função das necessidades e das vulnerabilidades sociais do país 12.
Articulação intrínseca e extrínseca à vigilância em saúde
A segunda categoria agregou os sentidos de planejamento centrado em setores específicos da vs, fragmentação das ações entre as vigilâncias e fragilidade na interação com a Rede de Atenção à Saúde. A articulação de ações e estratégias, conforme citado anteriormente, é um dos pilares de sustentação da vs.
Com relação ao planejamento da vs, verificou-se que cada vigilância realiza sua própria programação. Não existe uma construção compartilhada de ações. Cada setor realiza o seu trabalho separadamente e, em alguns casos, ocorre uma centralização nas chefias, como pode ser visto nas falas a seguir:
O planejamento ocorre apenas com os técnicos do setor. Aqui a gente planeja apenas a nossa área técnica. (E7)
Toda a equipe participa, entretanto, é mais direcionado para as chefias. (M2)
O planejamento anual é feito pelos técnicos do setor em conjunto com a assessoria técnica. (E3)
O planejamento em saúde pode ser um instrumento, uma tecnologia ou uma metodologia, mas sua essência, para aqueles que trabalham na área da saúde, encontra-se na sua capacidade de produzir níveis crescentes de autonomia e de protagonismo junto aos diversos atores sociais que se relacionam com o sistema de saúde: usuários, trabalhadores e gestores. Nessa perspectiva, o ato de planejar deixa de ser uma atividade burocrática ou uma técnica, para ser uma ação político-pedagógica que tem, entre seus propósitos, resgatar e promover a qualidade de vida a partir do fortalecimento da condição de sujeitos desses atores sociais 13.
Os participantes relataram que, eventualmente, todos os setores de vigilância se reúnem e, nessa oportunidade ímpar, cada um compartilha sua programação com os demais. No entanto, não conceberam esse encontro como um momento para o planejamento coletivo e participativo, à medida que não há debate e/ou construção coletiva das agendas e das ações a serem realizadas, mas apenas para a apresentação das atividades que cada vigilância pretende implantar.
Esses aspectos contribuíram com o surgimento da próxima subcategoria de sentidos, a fragmentação das ações entre as vigilâncias, suscitando o isolamento e a falta de integração dos profissionais. Assim, cada setor atua, predominantemente, dentro de sua área específica, não contribuindo para um trabalho compartilhado. Essa assertiva fica explícita no discurso dos trabalhadores:
As vigilâncias estão juntas só no papel. Existe todo um protocolo para o funcionamento integrado. Mas, infelizmente, as pessoas continuam em suas caixinhas. (E6)
Realmente a gente tem pouca interlocução. Todas as vigilâncias reconhecem a importância de se trabalhar em conjunto, mas não se consegue por: motivos pessoais; burocracia do sistema; e a própria demanda. (M12)
Os profissionais reconhecem a falta de articulação entre os setores da vs e compreendem a importância e a necessidade do trabalho integrado como essencial para se ofertar ações mais efetivas, entretanto mostram consciência do não alcance de tais objetivos. Os encontros coletivos parecem ocorrer apenas em situações de extrema necessidade, não se constituindo na rotina do processo de trabalho dos profissionais.
Existe um muro. A situação ideal seria que as vigilâncias trabalhassem em parceria. Para que haja realmente um trabalho em conjunto, precisa acontecer algo realmente grave. Não é uma rotina. (M9)
A gente não tem muita interação. A não ser que aconteça de ter uma demanda que precise de outras vigilâncias acompanhando as ações, em interlocução. Mas, no dia a dia de trabalho, isso não acontece. (E3)
Cabe ponderar, entretanto, sobre a maneira como foi concebida a vs ao longo do tempo, lembrando que cada vigilância se consolidou como área específica, em momentos distintos, com suas especificidades para, posteriormente, serem agrupadas sob uma única gerência 14. A instituição de uma nova configuração requer também novos processos de trabalho, pressupondo a qualificação de seus trabalhadores para a apropriação do novo desenho.
A fragmentação das ações repercute diretamente no que foi evidenciado na próxima subcategoria, a fragilidade na interação com a Rede de Atenção à Saúde. Há descontinuidade das atividades nos serviços de saúde. Os entrevistados relataram que os profissionais da Rede de Atenção à Saúde não apresentam compreensão acerca das ações da vs, desconhecendo sua abrangência e o seu impacto sobre a saúde da população.
É um caminho quase que de mão única. A gente tem que ir atrás. (M7)
Eu me sinto meio frustrada, porque a gente chega com uma proposta de trabalho coletivo e ninguém se interessa e não acontece. A gente vai às unidades de saúde, tenta sensibilizar, mas ninguém quer sair da sua zona de conforto. (M3)
A mudança das práticas de saúde passa pela renovação das interações sociais no ambiente de trabalho das equipes de saúde, que precisam ofertar algo mais do que atos burocráticos. O excesso de procedimentos formais pode cristalizar as rotinas de trabalho tornando suas ações improdutivas, de modo que o trabalhador pode estar consciente dessa impotência sem se sentir protagonista nem responsável pelo processo 15.
Nessa perspectiva, é fundamental o monitoramento das circunstâncias essenciais para o desempenho do processo de trabalho. Assim, a performance das equipes advém justamente de um apoio gerencial, de ajustes estruturais e da sistematização de atividades orientadas pelos princípios do sus 16.
Porto (17, p. 31-57) afirma que "é estratégico refletir sobre o papel da vigilância e da promoção da saúde para além de visões restritas e atreladas a uma concepção de Estado regulador e promotor do desenvolvimento económico". Portanto, propõe um diálogo democrático entre o conhecimento dos experts com os saberes dos protagonistas dos enfrentamentos sociais concretos da atualidade.
Aponta-se também a precarização de vínculos empregatícios dos profissionais como um fator preponderante para a descontinuidade das ações de vs na Rede de Atenção à Saúde 17. É frequente a ocupação de cargos públicos por servidores não efetivos, propiciando a recorrente substituição desses proissionais nos serviços, principalmente durante a troca de gestão.
Entram profissionais novos na rede de serviços. A rotatividade é grande. A gente capacita inúmeras vezes e não consegue alcançar os objetivos por desqualificação dos profissionais. (E14)
Existe dificuldade, principalmente, na relação do Estado com os Municípios, por causa da mudança constante de gestão. Ficamos com dificuldades porque muda tudo. Então, as ações não têm seguimento. (E4)
A descontinuidade das ações, em instituições públicas, apresenta, como principal pilar de sustentação, o modelo governamental tradicional e retrógrado, exibindo como consequência o preenchimento de cargos de confiança a cada mudança de governo ou troca de dirigentes. Assim, ocorre a interrupção de projetos, de programas e de obras, bem como de reavaliação de prioridades. Consequentemente, ocorre a diminuição de investimentos públicos, a negação de reconhecimento dos saberes instituídos, a desmotivação da força de trabalho e a exacerbação de conflitos entre trabalhadores e gestores, que muitas vezes se alternam por meio das eleições 18,19.
Potencialidades da vigilância em saúde
Por sua vez, a terceira categoria temática representou, enquanto potencialidades da vs, a satisfação pessoal e o comprometimento com as ações desempenhadas, mesmo diante das diiculdades vivenciadas no processo de trabalho. Os trabalhadores reconheceram a importância e a contribuição de sua atuação como sujeitos capazes de imprimir melhoria nas condições de saúde e de intervir, de forma qualificada, sobre o processo saúde-doença da população.
Sinto-me satisfeita, apesar de algumas limitações que enfrento no dia a dia. Mas, de um modo geral, é um serviço gratificante. Apesar das dificuldades, a gente consegue ver as respostas que o serviço dá. A gente recebe esse retorno e as pessoas reconhecem a importância do nosso trabalho. (M5)
Profissionalmente, eu acho que estou muito satisfeito. Tenho total certeza que desenvolvo um trabalho de altíssima importância para a sociedade. (E8)
É um trabalho bastante dinâmico que nos oferece diversas possibilidades de atuação, então, isso torna o trabalho bem prazeroso. (E3)
A dedicação, o empenho e a satisfação são fatores fundamentais para impulsionar o trabalho cotidiano, visto que geram sentimentos positivos, e motivam os profissionais a prosseguirem aperfeiçoando suas atividades 20. No entanto, cabe aqui refletir sobre as razões que imperam sobre esses trabalhadores, para que estes se sintam estimulados, diante de um cenário desarticulado e de dificuldades pujantes para sua consolidação.
Nessa direção, pode-se sugerir que o próprio trabalho da vs apresente um potencial de cuidado, disparando sobre os profissionais um estímulo para que estes se percebam como agentes promotores de saúde, no exercício de relações de saber e de poder, sobre aqueles que se comportam como sujeitos passivos de suas ações. Assim, as concepções sobre a saúde se entrelaçam nas tramas sociais históricas, imprimindo determinados saberes e práticas que, articulados ao cuidado de si, organizam ou orientam o viver 21.
Desafios da vigilância em saúde
Finalmente, a última categoria contemplou os desafios da vs, visualizando a necessidade de maior investimento em recursos humanos, de materiais e equipamentos de trabalho para a efetivação das ações, maior valorização profissional e reconhecimento pelo trabalho desenvolvido, incentivos salariais e de carreira, bem como pagamento de salários em dia, e maior suporte, por parte da gestão, para propiciar condições favoráveis ao desenvolvimento das atividades e ao fortalecimento da Rede de Atenção à Saúde.
A necessidade de aumentar investimentos em saúde se constitui em um desafio importante para o sistema público de saúde brasileiro. Esse aspecto foi bastante citado pelos entrevistados. A maioria demonstrou insatisfação com a insuficiência de recursos e com a desvalorização da profissão:
Está bem precária a questão dos nossos computadores, obsoletos. A questão dos recursos humanos também, a gente precisa de pessoal para algumas áreas. (E10)
É necessário haver mais investimento financeiro na saúde, incentivos, mais recursos humanos e equipamentos para podermos realizar um bom trabalho. É muito complicado uma pessoa trabalhar sem água, sem ar-condicionado e sem internet. (M2)
As situações de precariedade financeira geram consequências diretas nos serviços, tais como sobrecarga de trabalho em razão do número reduzido de servidores, condições inadequadas de trabalho relacionadas à ambiência, equipamentos de trabalho em mau estado de conservação e insuficiência de equipamentos necessários ao bom desempenho das funções, entre outros. Esses fatores repercutem negativamente sobre o fazer dos profissionais, reduzindo a efetividade das ações e, em consequência, emitindo respostas insatisfatórias às necessidades de saúde da população.
Lôbo et al22 destacam que o fortalecimento das técnicas de gestão do sus pressupõe o desenvolvimento e o alcance de métodos que possibilitem a resolução dos contratempos relacionados com a qualificação dos recursos humanos em saúde. Assim, um estafe (pessoal) devidamente qualificado representa atualmente um papel de suma importância para a consecução de um sus democrático, equitativo e eficiente.
Quanto à valorização profissional, os entrevistados relataram haver pouco ou nenhum incentivo salarial, ausência de um plano de cargos, carreiras e salários e falta de reconhecimento do trabalho por eles realizados. Além disso, disseram ser recorrente o atraso no pagamento dos salários, gerando insatisfações frequentes.
Trabalhamos com uma atividade que tem bastante risco. É nossa função principal, então a gente deveria ser mais valorizado profissionalmente. (E11)
Financeiramente é uma vergonha. É uma pena que entra governo e sai governo e a gente não tem uma valorização que merece. (E8)
Outro desafio a ser superado diz respeito à atenção e ao apoio, por parte dos gestores, às ativida-des realizadas. Foi enfatizada a necessidade de maior implicação na realização do planejamento, na execução e na avaliação das ações, de forma mais horizontal, isto é, por meio de construções participativas e coletivas, em parceria com gestores, trabalhadores e usuários da vs.
Precisa, além do interesse dos técnicos, do interesse da própria gestão. A gestão tem que ver as quatro vigilâncias e procurar uma interface, uma intercessão entre elas, para dar um pontapé inicial. (M12)
Eu vejo o processo de vigilância em saúde de uma forma um pouco utópica. Só existe no papel. Precisa realmente de muito apoio dos gestores, precisa de execução, de pôr em prática. (E11)
Para Basantes et al23, os gestores são essenciais para a formatação política, financeira e instrumental das práticas de atenção e de assistência à saúde ofertadas aos trabalhadores em suas instituições. Portanto, precisa-se de gestores comprometidos com o sus, sintonizados com a vs e qualificados para a função.
Os trabalhadores destacaram que a Secretaria Estadual de Saúde ainda exerce, com veemência, a função de executora, quando deveria estar assumindo, principalmente, a coordenação e o apoio técnico às ações de vs. Tal aspecto deve-se ao fato de que muitos municípios não contam com os serviços de vs organizados e descentralizados. Dessa forma, dependem e sobrecarregam, direta-mente, os profissionais da esfera estadual.
De modo gerai, a gente ainda executa muito, e não era mais para executar. O Estado deve promover as capacitações para que os municípios possam realmente se apropriar do conhecimento e executar. (E9)
Deveria haver um fortalecimento das regionais de saúde, porque eias realmente não estão desenvolvendo as atividades que deveriam exercer. (E10)
A integralidade da atenção à saúde se efetiva na estruturação da ras, utilizada como um arranjo organizacional capaz de minimizar as fragilidades dos sistemas de saúde, fortalecendo o desempenho social, institucional e político do sus 24. Vê-se, no entanto, que há muito o que percorrer para alcançar os objetivos propostos. Nesse sentido, é necessário que os gestores municipais e estaduais possam prover condições adequadas para o trabalho em saúde, de modo a buscar uma maior articulação intersetorial entre os municípios 25.
Conclusões
Este estudo apontou que os trabalhadores compreendem a vs como uma área abrangente e que integra aspectos subjetivos, transversalidade de ações, integralidade do cuidado e atenção à saúde, mesmo ainda permeando, entre alguns, a concepção tecnicista centrada no modelo biomédico.
Há predominância de um discurso comprometido e responsável no desempenho das funções. Esse discurso faz interface com a realização pessoal dos trabalhadores, mesmo diante de um cenário árduo, revelando sua perspectiva contraditória.
São apontados alguns desafios no intuito de avançar no âmbito da vs: maior investimento de recursos de todas as ordens com o objetivo de ampliar o quadro de pessoal, de equipamentos, de infraestrutura, além da valorização profissional e maior apoio por parte da gestão de saúde.