Introdução
A violência de gênero compreende a violência contra as mulheres como um fenômeno relacionado à desigualdade de gênero, ou seja, a ruptura de qualquer forma de integridade da mulher (Saffioti, 2015). Essa violência pode ser física, sexual, psicológica, patrimonial, econômica ou assédio moral e ocorrer tanto no âmbito privado-familiar como nos espaços de trabalho e públicos (Bandeira, 2014; Hirigoyen, 2003; López, 2017). Ademais, a violência de gênero recai predominantemente sobre as mulheres, haja vista a construção histórica dos corpos femininos e o fenômeno do patriarcado, com relações assimétricas e de poder entre homens e mulheres baseadas no gênero (Bandeira, 2014; Scott, 1995).
As construções sociais de gênero moldam as responsabilidades destinadas a homens e mulheres, as quais afetam ou coíbem outras esferas da vida, como trabalho e educação, visto que o espaço público ainda é tido como masculino, enquanto cabe às mulheres o espaço privado (Biroli, 2018). Desse modo, a categoria gênero torna-se um determinante de acesso aos espaços de poder, em que as mulheres têm menores chances de participação em espaços públicos.
Contudo, os movimentos feministas e de mulheres foram, e são, responsáveis por promover o debate para modificar essas configurações sociais. As mulheres, além de modificarem sua própria condição na sociedade - a partir do ingresso delas no ensino superior e no mercado de trabalho, principalmente em países ocidentais (Ricoldi & Artes, 2016) -, conquistaram direitos, o que provocou mudanças estruturais em geral (Santos et al., 2015). Uma pesquisadora de Ohio, nos Estados Unidos, apresenta que, a partir de 1990, constatou-se um predomínio nas matrículas de mulheres no ensino superior, sendo um fenômeno constatado no âmbito mundial (McDaniel, 2018). No Brasil, as mulheres ocupam a maioria das matrículas de graduação e pós-graduação (57,2%), sendo também maioria entre os ingressantes (55,2%) e concluintes (61,4%) das instituições de ensino superior. Com relação aos 20 maiores cursos em número de matrículas, as mulheres são representação majoritária em 13 (Brasil, 2019).
Entretanto, além das situações de desqualificação, sexismo e outras formas de discriminação baseada no gênero, às quais as mulheres ainda estão sujeitas na sociedade (Navarro-Mastas & Velásquez, 2016), no contexto das universidades, ocorrem diversas manifestações de violência, especialmente direcionadas às mulheres estudantes. Entre as formas que se expressam, podem-se citar os trotes agressivos, as práticas de racismo e homofobia entre estudantes, assédio sexual e moral, agressões físicas e humilhações sexistas. São recorrentes também os atos de violência sexual, na maioria das vezes, percebidos de forma naturalizada (Bandeira, 2017).
As repercussões da violência de gênero para a saúde e a qualidade de vida das mulheres são diversas. O cotidiano delas é permeado por sofrimento, medo, lesões e marcas no corpo, dor, doenças e diversos danos físicos e psicológicos. Das lesões físicas mais comuns decorrentes de situações de violência, podem-se citar dores, hematomas e escoriações. Algumas mulheres podem apresentar lesões mais graves, como fraturas de ossos, queimaduras, entorses ou feridas com facas. As lesões podem ocorrer em qualquer parte do corpo, porém os mais comuns são os membros superiores e o rosto. Também são comuns agressões físicas na forma de empurrões, agarrar com força e socos (Domíngues Fernández et al., 2017; Organización Panamericana de la Salud & Centers for Disease Control and Prevention, 2014).
Além disso, são mencionados a depressão (Barchi et al., 2018; Barros et al., 2016; Damra & Abujilban, 2018; Kotan et al., 2020), ansiedade, baixa autoestima, abuso de drogas (Kachaeva & Shport, 2017) e risco de suicídio (Barchi et al., 2018; Kavak et al, 2018). Desse modo, a saúde psicossocial das mulheres que sofrem violência está ameaçada (Tetikcok et al, 2016).
São identificados também problemas sociais, como isolamento, falta de apoio social e conflitos familiares (Leite et al, 2017; Souza Santos & Jaeger, 2018). Além disso, o desenvolvimento humano das mulheres é comprometido, pois elas sentem-se oprimidas e apresentam dificuldades para a interação social, o que afeta seu relacionamento com amigos e familiares (Brock Carneiro et al., 2017).
Dessa maneira, as repercussões da violência de gênero interferem no desenvolvimento acadêmico e na rede social das mulheres no ambiente universitário (Pinto et al., 2016). Assim, essa evidência configura-se como uma barreira para suas aspirações educacionais, além do comprometimento de sua saúde e de seu bem-estar.
Diante disso, o conhecimento relacionado à violência de gênero se faz necessário em diversos setores da sociedade, interessando diretamente para o seu enfrentamento as políticas sociais. Espera-se que as evidências disponíveis na literatura possam contribuir para subsidiar estratégias de prevenção à violência de gênero, bem como direcionar a atenção às especificidades das mulheres estudantes que vivenciam essa situação.
Assim, este estudo de revisão tem como objetivo analisar as evidências acerca da prevalência da violência de gênero em mulheres estudantes universitárias e seus fatores associados.
Método
Trata-se de um estudo de revisão integrativa, em que a síntese do conhecimento foi realizada por meio da análise, da sistematização e da integração de evidências de investigações publicadas, e apresenta potencial para contribuir para a indicação de tendências e avanços no conhecimento teórico. Este estudo de revisão foi guiado pelo método proposto por Whittemore e Knafl (2005), cujo primeiro passo consiste em determinar o problema de estudo e o objetivo da revisão.
Diante das considerações explanadas acima, a questão de revisão foi "Qual a prevalência da violência de gênero em mulheres estudantes universitárias e seus fatores associados?" A pergunta foi estruturada considerando os elementos do acrônimo CoCoPop (Aromataris & Munn, 2020), em que "Co" é a condição estudada: violência de gênero; "Co", o contexto: universidade/ensino universitário; "Pop", a população: mulheres estudantes. A busca de artigos ocorreu de junho a agosto de 2018, nas bases de dados Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), por meio do Portal Regional da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), PubMed, Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), Education Resources Information Center (ERIC) e Applied Social Sciences Index and Abstracts (ASSIA).
Para a busca nas bases de dados, foram utilizados des-critores controlados do Medical Subject Headings (MeSH), Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e descritores não controlados ou palavras-chave, os quais foram combinados com os operadores booleanos AND e OR. As combinações foram adaptadas de acordo com a especificidade de cada base de dados, a fim de propiciar uma busca ampla (Tabela 1).
Base | Estratégia de busca |
---|---|
LILACS | tw:(((violencia OR “violencia baseada em genero” OR “violencia contra a mulher” OR “violencia contra as mulheres” OR “violencia contra la “mujer” OR “violencia domestica e sexual contra a mulher” OR “violencia basada en el genero” OR “violencia contra a parceira intima”) AND (“ensino superior” OR “instituicao academica” OR “universidade” OR “universitaria”))) AND (instance: “regional”) AND ( db:(“LILACS”)) |
PubMed | ((((((((((((((“rape”[Title/Abstract] OR “gender”[Title/Abstract]) OR “sexual violence against women”[Title/ Abstract]) OR “sexual harassment”[Title/Abstract]) OR “intimate partner violence”[Title/Abstract]) OR “battered woman”[Title/Abstract]) OR “battered women”[Title/Abstract]) OR “violence against women”[Title/ Abstract]) OR “sexism”[Title/Abstract]) OR “women abused”[Title/Abstract]) OR “sex bias”[Title/Abstract]) OR “gender violence”[Title/Abstract]) OR “violence based on gender”[Title/Abstract]) OR “bias gender”[Title/ Abstract]) OR “gender based violence”[Title/Abstract]) AND ((((“women academics”[Title/Abstract] OR “college women”[Title/Abstract]) OR “student women”[Title/Abstract]) OR “universities”[Title/Abstract]) OR “university women”[Title/Abstract]) AND (“0001/01/01”[PDAT] : “2017/12/31”[PDAT]) |
CINAHL | ( “rape“ OR “gender“ OR “sexual violence against women” OR “sexual harassment” OR “intimate partner violence” OR “battered woman” OR “battered women” OR “violence against women” OR “sexism” OR “women abused” OR “sex bias” OR “gender violence” OR “violence based on gender” OR “bias gender” OR “gender based violence” ) AND ( “women academics” OR “college women” OR “student women” OR “universities” OR “university women”) |
ERIC | (“violence against women” OR “gender violence” OR “violence based on gender” OR “bias gender” OR “gender based violence”) AND (“women academics” OR “college women” OR “student women” OR universities OR “university women”) |
ASSIA | (“rape” OR “sexual violence against women” OR “sexual harassment” OR “intimate partner violence” OR “battered woman” OR “battered women” OR “violence against women” OR “sexism” OR “women abused” OR “sex bias” OR “gender violence” OR “violence based on gender” OR “bias gender” OR “gender based violence”) AND (“women academics” OR “college women” OR “student women” OR “universities” OR “university women”) |
Fonte: elaboração própria.
Os critérios de inclusão dos estudos primários foram pesquisa transversal ou coorte, com descrição da prevalência de violência de quaisquer tipos (física, moral, psicológica e outras) contra a mulher e população do estudo composta apenas por mulheres estudantes de graduação ou pós-graduação; artigos publicados em inglês, português ou espanhol, de 2008 a 2018.
Foram excluídos os estudos realizados com a população de mulheres estudantes universitárias que analisavam a violência de gênero ao longo da vida, o abuso infantil e a violência na adolescência, e os estudos em que não foi possível definir a prevalência de violência ocorrida no período universitário.
A seleção dos estudos foi realizada por duas revisoras, de modo independente. Quando houve discordância, uma terceira revisora com expertise no tema avaliou a inclusão do estudo. Para operacionalizar a seleção dos estudos, utilizou-se o software gerenciador de referências bibliográficas Mendeley® (Yamakawa et al, 2014). Para descrever o percurso de seleção dos estudos, apresenta-se o fluxograma abaixo (Figura 1).
A extração dos dados dos estudos selecionados realizou-se mediante instrumento criado pelas revisoras, o qual abarcava a identificação do artigo, as referências, o objetivo, o resumo com palavras-chave, local e ano do estudo, as características metodológicas (tipo de estudo e técnica de coleta de dados), a amostra do estudo, a prevalência e o tipo de violência, bem como os fatores associados à violência.
A avaliação crítica dos estudos primários foi realizada considerando os níveis de evidência, de acordo com a classificação direcionada à questão clínica do estudo primário para o prognóstico, a predição ou a etiologia (Melnyk & Fineout-Overholt, 2005). Nessa classificação, os níveis de evidência variam de 1 a 5, segundo o tipo de estudo: nível 1 - síntese de estudos de coorte ou caso controle; nível 2 - único estudo de coorte ou caso controle; nível 3 - metassíntese de estudos qualitativos ou descritivos; nível 4 - um único estudo descritivo ou qualitativo; nível 5 - opinião de especialistas.
A análise dos dados foi realizada compreendendo a síntese dos estudos primários, bem como as comparações entre os principais resultados que respondem à pergunta de revisão, destacando diferenças e semelhanças entre os estudos. Além disso, realizou-se discussão com a categoria analítica de gênero, agregada à síntese das evidências, por meio de autoras que discorrem sobre esse tema.
Resultados
Para fins de caracterização, dos 22 estudos primários selecionados, 21 (95,5%) foram publicados em inglês e um (4,5%) em espanhol. Dezenove estudos originaram-se dos Estados Unidos (86,5%). Os demais foram provenientes do Chipre (4,5%), do México (4,5%) e da Etiópia (4,5%), com uma produção cada. Quanto ao ano de publicação, quatro artigos (18,2%) foram publicados em 2009; três (13,6%) em 2010; sete (31,9%) em 2013; um (4,5%) em 2014; cinco (22,8%) em 2015 e dois (9%) em 2016. Com relação ao delineamento dos estudos, 20 eram quantitativos transversais (91%), um coorte (4,5%) e um misto (4,5%). A classificação do nível de evidência (N) foi de N4 para 95,5% e N2 para 4,5%. Identificou-se que os autores dos artigos pertencem às áreas de Ciências da Saúde e Ciências Sociais e Humanas.
As evidências disponíveis na literatura mencionam diferentes formas de violência de gênero em mulheres universitárias, perpetradas por parceiros íntimos ou outros agressores (violência física, sexual, psicológica e moral). Os estudos apresentaram variações das amostras entre 73 e 10.541 estudantes, no contexto de universidades públicas e privadas. Alguns estudos tiveram como participantes estudantes em geral, e outros, apenas estudantes de cursos específicos. A prevalência de violência de gênero em mulheres estudantes universitárias apontada nos estudos variou entre 1,3% (Kouta et al., 2013) e 85% (Buelna et al., 2009), diferindo de acordo com o tipo de violência. Na Tabela 2, apresenta-se a síntese dos estudos primários.
Autor (ano) | Tipo de estudo | Amostra | Principais resultados |
Amacker e Littleton (2013) | Transversal | N = 167 NE = G | Cerca de 20% (n = 33) relataram ter sido vítimas de agressão sexual e quase 23% (n = 38) relataram ter sido vítimas de tentativa de agressão sexual. Ao todo, 31,1% (n = 52) das participantes relataram pelo menos uma experiência de vitimização sexual (tentativa, completada ou ambas). |
Barrick et al. (2013) | Transversal | N = 3951 NE = G | Quase dois terços das mulheres relataram ter sofrido alguma violência por parceiro íntimo pelo menos uma vez no ano anterior à pesquisa (64,7%). Uma porcentagem maior de mulheres apresentou violência verbal ou controladora por parceiro íntimo (63,7%) do que violência física (17,8%) ou sexual (1,4%). Os resultados sugerem que formas de violência relativamente menos graves eram as mais comuns |
Buelna et al. (2009) | Transversal | N = 290 NE = G | Um quinto (n = 78) das mulheres relataram vitimização de stalking enquanto matriculadas em sua instituição atual. Entre as mulheres que relataram vitimização por stalking, os comportamentos de stalking mais frequentes relatados foram ser observado de longe (64,9%; n = 51), ser seguido ou espiado (62,8%; n = 49), ser aguardado em locais externos ou internos, por exemplo, casa, aulas ou trabalho (53,2%; n = 41), receber telefonemas não solicitados (51,3%; n = 40) e receber e-mails não solicitados (44,9%; n = 35). |
Carey et al. (2015) | Transversal | N = 483 NE = G | Durante o primeiro ano de faculdade, 9% (n = 43) relataram estupro forçado tentado ou concluído e 15,4% (n = 74) relataram estupro incapacitado tentado ou concluído. |
Dixon et al. (2015) | Transversal | N = 887 NE = G | 69,2% das participantes (n = 647) relataram estar em relacionamentos não violentos e 30,8% (n = 240) das participantes relataram alguma forma de violência por parceiro íntimo do tipo física em seus relacionamentos. O padrão mais comum de violência por parceiro íntimo relatado foi perpetração apenas (11,9%; n = 111), seguido por bidirecional, em que ambos perpetraram a violência (10,6%; n = 99), e vitimização apenas (7,4%; n = 69). |
Fontenot e Fantasia (2010) | Transversal | N = 1.401 | 10,4% (n = 146) das mulheres relataram que já tiveram relações sexuais com alguém mesmo depois de ter dito ou mostrado que não queria; 3,4% (n = 47) relataram incerteza sobre ter relações sexuais com alguém após ter dito ou mostrado que não queria. Das que indicaram ter sofrido sexo indesejado, 37% (n = 54) indicaram que ocorreu nos últimos 12 meses. |
Hossain et al. (2014) | Transversal | N = 10.541 NE = G | 15,6% (n = 1.644) da amostra de estudantes universitárias relatou ter sofrido violência sexual e 84,4% (n = 8.897) relataram não ter sofrido violência sexual |
Katz e Rich (2015) | Coorte | N = 99 NE = G | Cerca de 35% (n = 34) da amostra relataram pelo menos um incidente de violência por parceiro íntimo física, e cerca de 57% (n = 56) relataram pelo menos um incidente de violência por parceiro íntimo sexual antes de seu rompimento mais recente. Em relação à covitimização pré-rompimento (durante o namoro), 34% (n = 33) relataram ausência de violência por parceiro íntimo, 30,3% (n = 30) relataram violência por parceiro íntimo sexual, 9,1% (n = 9) relataram violência por parceiro íntimo física e 26,3% (n = 26) relataram tanto violência por parceiro íntimo física e sexual. Após o rompimento, cerca de 19,2% (n = 19) das mulheres relataram pelo menos um incidente de violência por parceiro íntimo física e 29,3% (n = 29) relataram pelo menos um incidente de violência por parceiro íntimo sexual. |
Kouta et al. (2013) | Misto | N = 476 NE = G | A porcentagem de mulheres jovens que têm uma experiência sexual indesejada (como sexo oral, tocando genitais sob a roupa) é de 12%. Tentativas de estupro foram relatadas por 1,3% (n = 5) das participantes, 1,9% (n = 7) relataram ter sido forçadas a fazer sexo oral e 1,9% (n = 7) relataram que haviam sido estupradas |
Krebs et al. (2009) | Transversal | N = 5.446 NE = G | 19% (n = 1073) das mulheres relataram ter sofrido agressão sexual completa ou tentativa de agressão sexual desde que ingressaram na faculdade. Desde que ingressou na faculdade, 13,7% (n = 782) das mulheres experimentaram agressão sexual completa e 12,6% (n = 682) das mulheres experimentaram tentativa de agressão sexual. Aproximadamente 11% (n = 651) das mulheres sofreram agressão sexual enquanto estavam incapacitadas desde que ingressaram na faculdade. A agressão sexual ativada por álcool ou outras drogas foi vivenciada por 7,8% (n = 466) das mulheres desde que ingressaram na faculdade. Durante a faculdade, a prevalência de agressão sexual incapacitada concluída é consideravelmente maior do que no período anterior à faculdade. |
Lindquist et al. (2013) | Transversal | N = 3.951 NE = G | 4,5% das mulheres sofreram agressões sexuais fisicamente forçadas desde a entrada na faculdade (n = 188) e 6,2% das mulheres sofreram agressão sexual incapacitada desde que ingressaram na faculdade (n = 250). |
Messman-Moore et al. (2013) | Transversal | N = 353 NE = G | Aproximadamente 15,6% (n = 55) da amostra relataram estupro envolvido com álcool, indicando que haviam vivenciado sexo oral, vaginal ou anal indesejado, porque não conseguiram dar consentimento ou resistir ao agressor devido ao seu próprio uso de álcool (ou substância). |
Herrera Paredes e Arena Ventura (2010) | Transversal | N = 73 NE = G | Em relação à presença de violência física, 91,8% (n = 67) disseram nunca ter sido maltratados pelo parceiro, no entanto, 2,7% (n = 2), 1,4% (n = 1) e 4,1% (n = 3) referiram que sempre, às vezes e raramente, respectivamente, vivenciaram comportamentos agressivos por seu parceiro. |
Sandberg et al. (2019) | Transversal | N = 133 NE = G | 21% (n = 27) das participantes relataram sofrer vitimização por agressão física em um relacionamento romântico durante o período de acompanhamento de seis meses. Dezoito (13,5%) participantes relataram ter xperimentado dois ou mais tipos de vitimização por violência por parceiro íntimo durante o período de acompanhamento. |
Schry e White (2013) | Transversal | N = 672 NE = G | 25,7% das participantes relataram contato sexual nos últimos 12 meses (n = 173); 14,1% das participantes relataram tentativa de coerção nos últimos 12 meses (n = 95); 8% das estudantes relataram coerção nos últimos 12 meses (n = 54); 16,1% das participantes relataram tentativa de estupro nos últimos 12 meses (n = 108) e 14,9% das participantes relataram estupro nos últimos 12 meses (n = 100). |
Sutherland et al. (2015) | Transversal | N = 972 NE = G e PG | A violência por parceiro íntimo foi relatada por 20,6% (n = 201) das entrevistadas. Quase 8% das universitárias (n = 76) relataram um ato de coerção reprodutiva (coerção na gravidez ou sabotagem no controle da natalidade). Quase 82% (n = 62/76) das mulheres que relataram coerção reprodutiva foram instruídas a não usar o controle da natalidade e 26% (n = 20/76) das mulheres foram forçadas a fazer sexo sem preservativo ou outro método de controle da natalidade. Ser instruída a não usar nenhum controle de natalidade foi o ato mais comum de coerção na gravidez relatado (n = 62). Quase 14% (n = 11/76) das mulheres que relataram coerção reprodutiva tiveram parceiros que tiraram preservativos durante o sexo. |
Sutherland et al. (2016) | Transversal | N = 615 NE = G | Nos últimos seis meses, aproximadamente 8,2% dos participantes (n = 51) sofreram violência por parceiro íntimo/violência sexual ou ambos por um parceiro ou ex-parceiro. Os atos de violência relatados foram atividades sexuais indesejadas forçadas (13,2%; n = 29), violência física (9,1%; n = 20) e sexo forçado (3,6%; n = 8), e relataram medo do parceiro ou ex-parceiro (3,6%; n = 8). |
Messman-Moore et al. (2009) | Transversal | N = 276 NE = G | Das mulheres que completaram as quatro sessões (n = 276), 9% (n = 26) relataram estupro durante o período do estudo. A maioria das agressões que ocorreram durante o estudo também foi relacionada à substância (88%, n = 23); 69% (n = 18) foram devido à incapacidade da respondente de consentir ou resistir devido ao uso de álcool ou substâncias na ausência de força, 19% (n = 5) foram devido a uma combinação de comprometimento relacionado à substância e à força ou ameaças de força, e 12% (n = 3) foram causados por ameaças ou uso da força na ausência de comprometimento relacionado à substância. |
Tora (2013) | Transversal | N = 374 NE = G | Entre as vítimas de tentativa de estupro, 30,9% (n = 25) vivenciaram-no durante o ano de matrícula na universidade, enquanto 11,1% (n = 9) das entrevistadas experimentaram isso no segundo ano da universidade ou acima. Dos casos de estupro relatados, 32,1% (n = 9) foram vítimas durante o ano de matrícula na universidade, e a experiência de estupro no segundo ano da universidade ou acima constituiu 10,7% (n = 3). Entre as entrevistadas que relataram sofrer assédio físico (violência sexual), 31,1% (n = 23) sofreram durante o ano de matrícula na universidade e 13,5% (n = 10) relataram sofrer no segundo ano da universidade ou acima. Entre as mulheres que relataram sofrer assédio verbal (violência sexual), 38,7% (n = 24) sofreram no ano de matrícula da universidade e 9,7% (n = 6), no segundo ano na universidade ou acima. Das mulheres que indicaram sofrer iniciação sexual forçada, 41,2% (n = 14) vivenciaram durante o ano de matrícula, e 8,8% (n = 3) vivenciaram durante o segundo ano da niversidade ou acima. |
Wigderson e Katz (2015) | Transversal | N = 254 NE = G | Cerca de 15,7% (n = 40) da amostra relataram uma ou mais experiências de agressão sexual durante a faculdade. |
Yoon et al. (2010) | Transversal | N = 410 NE = G | Mais de 50% de todas as mulheres (n = 226) relataram ter sido assediadas sexualmente pelo menos uma ou duas vezes (33%; n = 135), enquanto uma porcentagem significativa (22,2%; n = 91) relatou ter sido vítima de assédio sexual em várias ocasiões. |
N = número de participantes/amostra; NE = nível de ensino; G = graduação; PG = pós-graduação.
Fonte: elaboração própria.
Discussão
As evidências encontradas nesta revisão demonstram que as mulheres estão sujeitas a diversas formas de violência durante o período em que estão matriculadas na universidade, as quais estão associadas a determinados fatores sociais e comportamentais. Dos quatro países dos quais os artigos se originaram, Estados Unidos, México e Etiópia apresentaram aumento das matrículas de mulheres em universidades entre 1990 e 2008 (McDaniel, 2018), o que pode indicar a representatividade desses países no corpus do estudo em tela.
Os estudos confirmam que a maior parte das violências sofridas pelas mulheres é perpetrada por homens, com destaque para os parceiros íntimos, namorados ou companheiros (Barrick et al, 2013; Buelna et al, 2009; Dixon et al., 2015; Herrera Paredes & Arena Ventura, 2010; Sandberg et al., 2019; Sutherland et al, 2015). Outros estudos demonstram que, além dos agressores já citados, as mulheres sofrem violência também dos ex-parceiros (Katz & Rich, 2015; Sutherland et al, 2016), de amigos (Buhi et al, 2009; Kouta et al, 2013; Lindquist et al, 2013), colegas, conhecidos, colega de trabalho ou empregador, professor ou assistente de ensino, colega de quarto, membro da fraternidade ou alguma outra pessoa (Buhi et al, 2009; Lindquist et al, 2013; Tora, 2013). Percebe-se que as mulheres estudantes, muitas vezes, não estão seguras em seus círculos sociais e são agredidas por pessoas de sua confiança.
A violência de gênero perpetrada contra mulheres universitárias tem associação com a faixa etária, visto que mulheres mais jovens relatam índices mais altos de violência por parceiro íntimo (Barrick et al., 2013). Além disso, mulheres entre 18 e 19 anos tem 1,6 mais chances de sofrer violência sexual quando comparadas a mulheres mais velhas da mesma população (Hossain et al, 2014). Da mesma forma, mulheres com menos de 20 anos de idade têm maior probabilidade de sofrer tentativa de estupro (Tora, 2013). Entretanto, para a violência sexual, há divergência desse resultado, uma vez que, em um estudo, o grupo agredido sexualmente era significativamente mais velho do que o grupo que não sofreu esse tipo de agressão (Wigderson & Katz, 2015).
As mulheres brancas foram menos propensas a sofrer qualquer violência por parceiro íntimo (0,87 vezes) (Barrick et al, 2013). Ser uma mulher negra foi significativamente associado com violência sexual (1,35 vezes mais chances) (Hossain et al., 2014), tentativa de estupro e assédio sexual (Yoon et al., 2010), e mulheres brancas eram mais propensas a serem assediadas uma ou duas vezes, enquanto as estudantes negras eram mais propensas a serem assediadas com frequência (Yoon et al., 2010). Também, com relação à coerção reprodutiva, um dos estudos evidenciou taxas mais altas entre as mulheres hispânicas (Sutherland et al., 2015). Percebe-se, assim, que algumas formas de violência de gênero se mostraram relacionadas à raça/etnia.
Esses dados refletem o racismo ainda presente não apenas na sociedade em geral, mas também dentro das instituições, neste caso, as universidades. Ainda, tais dados reforçam as diferenças na forma como as violências são direcionadas às mulheres, o que converge com o conceito de interseccionalidade, em que se reconhecem as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação (Crenshaw, 2002).
Em um dos estudos, as mulheres que relataram ser atraídas apenas por mulheres tinham maior probabilidade de vivenciar violência por parceiro íntimo quando comparadas às que se sentiam atraídas apenas por homens. Assim, as mulheres homossexuais tinham 3,31 vezes mais chances de sofrer qualquer violência por parceiro íntimo, 1,98 vezes mais chances de sofrer violência física ou sexual por parceiro íntimo e 3,47 vezes mais chances de sofrer violência verbal ou controladora por parceiro íntimo. Ainda, as mulheres bissexuais tinham maior probabilidade (1,45 vezes) de sofrer violência por parceiro íntimo tanto física ou sexual quanto verbal ou controladora (Barrick et al., 2013).
Nesse sentido, cabe considerar a relação entre orien-tação-atração sexual e violência de gênero. Assim, destaca-se a reflexão de Bandeira (2014), que afirma que a violência de gênero ocorre motivada pelas expressões de desigualdade baseadas nas relações hierárquicas de gênero, porém salientando a necessidade de considerar as modificações advindas de algumas marcas como idade, classe, orientação sexual, dentre outras.
Além disso, a presença de crenças patriarcais, sexistas e tradicionais com relação aos papéis de gênero, apresenta relação causal no comportamento do agressor e da vítima. Por exemplo, em estudo desenvolvido no México, as mulheres justificam a agressão pelo namorado em situações de infidelidade (Orozco Vargas et al., 2021). Em outro estudo, desenvolvido no Peru, as ações punitivas de violência sexual envolvem uma combinação de ameaças e estão associados a múltiplos fatores como antecedentes de agressão física entre pai e mãe, questões econômicas e tolerância social à violência de gênero (Enríquez-Canto et al., 2020).
Quanto ao status de relacionamento das mulheres estudantes, este é apontado como um fator relacionado à violência de gênero, havendo divergências nas evidências identificadas. Mulheres casadas ou em parceria doméstica foram mais propensas a relatar qualquer tipo de violência por parceiro íntimo (2,80 vezes) e violência por parceiro íntimo do tipo verbal ou controladora (2,89 vezes). Também as estudantes que namoraram ou tiveram pelo menos um parceiro sexual desde que entraram na faculdade tiveram mais chances de relatar todos os tipos de violência por parceiro íntimo (Barrick et al., 2013). Isso corrobora com estudo desenvolvido com adolescentes brasileiros (n = 403), idade entre 14 e 19 anos (M = 16,73 anos), que relataram ter perpetrado algum tipo de violência nas relações afetivo-sexuais na adolescência. Foi evidenciado que a violência que ocorreu com mais frequência foi a psicológica, verbal, emocional (92 %), seguida da violência sexual (37 %) e da violência física (27 %) (Borges et al., 2020).
Um estudo desenvolvido na Etiópia evidenciou que estudantes com experiência anterior de relação sexual tiveram mais chances (0,099) de relatar tentativa de estupro e assédio físico (0,429), em comparação com aquelas que não tinham experiência de relações sexuais (Tora, 2013). Corroborando com esses dados, investigação realizada nos Estados Unidos mostrou que apenas uma das 55 mulheres sexualmente abstinentes (2,5%) relatou agressão sexual, enquanto quase um quinto das mulheres não abstinentes (19,6%, n = 39) relatou sofrer agressão; assim, a abstinência sexual parecia proteger as mulheres de agressão sexual (Wigderson & Katz, 2015).
Também o número de parceiros sexuais foi significativamente associado à experiência de sexo indesejado (Fontenot & Fantasia, 2010) e violência sexual (Hossain et al, 2014). Mulheres que relataram ter dois ou mais parceiros sexuais foram 3,17 vezes mais propensas a sofrer violência sexual em comparação com aquelas que não tinham parceiro sexual (Hossain et al., 2014). Por sua vez, também há evidências que demonstram que mulheres estudantes que não tinham namorado tiveram maior probabilidade de vivenciar estupro e relataram maiores níveis de assédio físico (Tora, 2013).
O pertencimento a uma irmandade social (associação de estudantes com um interesse em comum, que pode contemplar a moradia e a organização de atividades conjuntas) foi outro aspecto que resultou em divergências nos resultados dos estudos. As mulheres que participavam de irmandades relataram ser mais perseguidas do que as que não pertenciam a esse tipo de organização (Buhi et al., 2009). Do mesmo modo, tornar-se membro de uma irmandade parecia estar significativamente associado à violência sexual. As alunas que relataram pertencer a um grupo social de fraternidade ou irmandade tiveram mais de 1,33 vezes mais chances de sofrer violência sexual em comparação com aquelas que não eram membros desses grupos sociais (Hossain et al., 2014). Entretanto, outro estudo evidenciou que ser membro de uma irmandade foi negativamente associado à experiência de violência física ou sexual por parceiro íntimo (Barrick et al., 2013).
Outro fator que tem relação com a violência de gênero entre mulheres estudantes universitárias é a situação de moradia. Estudos demonstraram que as mulheres que moravam no campus apresentaram níveis mais altos de perseguição (Buhi et al., 2009) e tiveram 1,6 vezes mais chance de sofrer violência sexual (Hossain et al., 2014). Com relação ao período de maior risco, as experiências de assédio verbal e iniciação sexual forçada apresentaram maior probabilidade de ocorrer no ano de ingresso na universidade (Tora, 2013).
O uso de álcool pelas mulheres estudantes também se mostra como um fator de risco para sofrer violência sexual (Hossain et al., 2014; Wigderson & Katz, 2015), bem como o comportamento de compulsão alcoólica (Hossain et al., 2014) ou consumo excessivo (compreendido como mais de cinco doses seguidas) (Fontenot & Fantasia, 2010). Contudo, as mulheres que relataram consumo excessivo de álcool pelo menos uma vez por mês desde que entraram na universidade tiveram menos probabilidade de vivenciar qualquer violência por parceiro íntimo (Barrick et al., 2013).
Ainda, em um dos estudos, o uso de maconha esteve associado significativamente à violência sexual (Hossain et al., 2014). Além disso, mulheres que usaram outras drogas ilícitas durante o período da faculdade tinham maior probabilidade de sofrer violência física ou sexual por parceiro íntimo do que as que não o fizeram. Entretanto, no mesmo estudo, o uso de maconha não esteve associado à violência por parceiro íntimo (Barrick et al., 2013).
As evidências acerca da revitimização foram diversas, o que demonstra que dependem do tipo de violência ocorrida. Vivenciar agressão sexual fisicamente forçada antes de ingressar na faculdade foi associado a um risco aumentado (1,54 vezes) de sofrer qualquer violência por parceiro íntimo (Barrick et al., 2013) e aumentou as taxas de estupro forçado durante a faculdade (Carey et al., 2015). Ademais, agressão sexual incapacitada (aquela em que a mulher não é capaz de consentir) antes de ingressar na faculdade foi associada a um aumento (1,81 vezes) no risco de sofrer violência física ou sexual por parceiro íntimo (Barrick et al., 2013) e aumentou as taxas de estupro incapacitado e estupro forçado durante a faculdade (Carey et al., 2015).
Além disso, mulheres estudantes que foram vítimas de estupro ou de tentativa de estupro durante a faculdade também relataram sofrer mais perseguição. Essa vitimização consiste em situações como ser observado de longe, ser seguido ou espiado, ser aguardado em locais externos ou internos, como casa, aulas ou trabalho, receber telefonemas, e-mails ou presentes não solicitados, entre outras. O perseguidor mais frequente foi o namorado ou ex-namorado, seguido de colega de aula, conhecido e amigo, podendo ser também colega de trabalho, professor ou assistente de ensino (Buhi et al., 2009).
Com relação à revitimização, ter sofrido violência por parceiro íntimo previamente foi uma evidência associada a um aumento de risco de 3,68 vezes para a vitimização subsequente (Messman-Moore et al., 2009). Ademais, um histórico de coerção reprodutiva foi associado a relatos de violência por parceiro íntimo (Sutherland et al., 2015).
Um dos estudos analisados apresentou resultados quanto à violência por parceiro íntimo antes e depois do término do relacionamento. A violência física antes do rompimento foi um preditivo significativo para a violência física pós-ruptura, da mesma forma que a violência sexual cometida pelo parceiro antes do rompimento precedeu à violência sexual por parceiro íntimo após o rompimento (Katz & Rich, 2015).
A partir desses dados, pode-se observar que as mulheres estudantes estão em risco de sofrer violência mesmo após o término do relacionamento com o agressor. Nesse sentido, Saffioti (2001) aponta que, para além da concepção territorial, existe a concepção simbólica de espaço privado, o que confere aos homens o direito de exercer seu poder sobre as mulheres mesmo após o rompimento da relação. Além disso, a autora acrescenta sobre a banalização da violência no espaço privado por parte do Estado, que não intervém para enfrentar esse problema, o que reforça a dificuldade das mulheres estudantes em cessar a violência sofrida.
Conclusões
O presente estudo permitiu identificar que a violência de gênero em mulheres estudantes universitárias varia de acordo com a sua tipificação e é majoritariamente perpetrada por homens que fazem parte de seu círculo social. Conclui-se também que as violências têm associação com marcadores sociais, uma vez que estudantes jovens, negras e não heterossexuais apresentam maior risco de sofrer violência de gênero no período em que se encontram na universidade. Além disso, outros fatores evidenciados associados à prevalência foram ter maior número de parceiros sexuais, morar no campus universitário, usar álcool e outras drogas e ter uma experiência prévia de violência. Ao analisar criticamente os artigos por meio da classificação de evidências dos estudos primários, a maioria (20) possuía nível de evidência 4 (estudos transversais), o que indica a necessidade de estudos primários do tipo coorte no tema em questão.
Recomenda-se ampliar e direcionar as estratégias de prevenção de violência em instituições universitárias. Tais estratégias podem ocorrer por meio de implementação de políticas, discussões e eventos sobre igualdade de gênero, bem como pesquisas para a identificação da prevalência da violência em ambientes universitários