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Psicogente

Print version ISSN 0124-0137

Psicogente vol.20 no.38 Barranquilla July/Dec. 2017

https://doi.org/10.17081/psico.20.38.2556 

Resultado de Reflexión

Automutilaçâo na adolescência - rasuras na experiência de alteridade *

Self-mutilation in adolescence - scratches in the otherness experience

Isabel Fortes1 

Mônica Medeiros Kother Macedo2 

1Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Professora da Graduação do Departamento de Psicologia da PUC-Rio e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Email:mariaisabelfortes@gmail.com http://orcid.org/0000-0003-3662-9575?lang=en

2Doutora em Psicologia (PUCRS). Professora da Graduação e Pós-Graduação do Curso de Psicologia da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Email:monicakm@pucrs.br http://orcid.org/0000-0001-9347-8537


Resumen

A partir de este artículo de reflexión, intentamos proponer una reflexión sobre el tema de la automutilación a partir del análisis de algunas narraciones de blogs de adolescentes. Utilizando el referencial del campo teórico-clínico del psicoanálisis proponemos que el cortarse puede ins cribirse en el registro de la compulsión, donde destacamos el aspecto del estremecimiento de la alteridad, articulándolo a las nociones de "vivencia de indiferencia" y "acto-dolor". En el artículo exploramos la autodestructividad involucrada en el cortarse, y se presenta una reflexión sobre la automutilación. Se observa en los testimonios citados la referencia al aislamiento y a la ausencia de un destinatario a quien dirigir el dolor psíquico. La articulación teórica se centra en los aspectos del dolor solipsista, del desaliento y de una experiencia de extrañeza con el propio cuerpo que llevan a un movimiento de descarga en el cuerpo, al no encontrar la ruta de la dimensión elaborativa de la psique.

Palabras clave: Automutilación; Psicoanálisis; Alteridad; Vivencia de indiferencia

Abstract

From the present reflective article we aim to put some thought into self-mutilation theme from the analysis of some narratives of the adolescent's blogs in the light of the theoretical clinical field of psychoanalysis, proposing that the act of cutting can be inscribed in the register of compul sion in which we highlight the aspect of the quivering of otherness, articulating it to the notions of "experiencing indifference" and "pain-act". It is also explored the self-aggression involved in these cuts and is presented a reflection concerning a way of cutting himself. It is observed in those testimonies, the reference to the isolation and the absence of a receiver to whom is possible to direct psychic pain. The theoretical articulation focuses on the solipsistic aspects of pain, discouragement and an experience of oddness with his own body, which lead to a discharge movement in the body, since the way to the psyche's elaborative dimension is not found.

Key words: Self-Mutilation; Psychoanalysis; Otherness; Experience of indifference

Introducao

No presente artigo, pretendemos desenvolver al- guns aspectos que consideramos relevantes acerca do comportamento da automutilacào, principalmente no que se refere à relacào entre o sujeito e o outro. Na mo- dalidade de um artigo de reflexào teórica, propomos examinar este tema a partir da análise de algumas narra tivas de blogs de adolescentes. Este comportamento tem ganhado maior visibilidade na cena da clínica psicanali tica nas últimas décadas. Vários estudos (Scaramozzino, 2004; Gauthier, 2007; Jaffré, 2008) alertam para o fato de que os comportamentos de automutilacào, que se ca-racterizam por promover cortes superficiais na própria pele com objetos afiados, tiveram um aumento consi- derável nos últimos 30 anos. Tais atos costumam surgir na adolescencia, podendo se estender por um período curto ou se prolongar pela vida adulta.

Em pesquisa anterior intitulada "A presenca do corpo no campo teórico-clínico psicanalitico atual", in vestigamos a dimensào do corpo no campo teórico-clíni- co da psicanálise, buscando analisar os efeitos na clínica psicanalítica, da presenca da dimensào corpórea na cons- tituicào da subjetividade contemporánea. Tais efeitos tem sido avaliados por pesquisadores que se debrucam sobre a sintomatologia psicanalítica contemporánea, as severando a sua dimensào corpórea como singular via de expressào de padecimentos psíquicos (Assoun, 2009; Birman, 2011; Costa, 2005; Fernandes, 2003; Fernandes, 2011; Winograd & Mendes, 2009; Queiroz, 2008).

A discussào acerca da automutilacào se insere, a nosso ver, neste campo de problematizacoes. Na pesqui sa acima citada, buscamos analisar o estatuto do corpo na sintomatologia contemporánea, destacando marca damente as operacoes psíquicas que estào em jogo em alguns quadros clínicos que se apresentam com maior preeminencia na atualidade, nomeadamente nas síndro mes da anorexia mental (Fortes, 2007; 2008; 2010) e da dor física crónica (Fortes, Winograd & Medeiros, 2015). Tais antecedentes investigativos servem de parámetros que sustentam o desenvolvimento do presente artigo. A automutilacào é um dos enquadres pelo qual buscamos examinar a sintomatologia psicanalítica contemporánea, entendendo-a como um quadro clínico que encena ques- toes fundamentais para a análise do eixo da alteridade e suas repercussoes no mal-estar da atualidade, mais espe cialmente relativos à adolescencia.

Resultados

Encontramos no blog "Mon combat au quotidien: l'automutilation" (2012) testemunhos de jovens que se automutilam e que permitem constatar que nào há re lacào deste comportamento com o suicídio. Os cortes autoinflingidos envolvem certa relacào entre o corpo próprio e a expressào do sofrimento, e nào a intencào de se matar. A autoagressividade que estes cortes envol- vem circunscreve-se a uma esfera íntima e facilmente acobertada pelo adolescente (Gauthier, 2007), pois sào quase sempre realizados em uma parte do corpo menos monitorada pelos pais ou pela família. Geralmente o adolescente nào demonstra de forma manifesta inquie- tacào ou angústia com o fato de se automutilar, sendo o alarme acionado quando um adulto descobre e se preo cupa com o fato.

Outro aspecto relevante nestes relatos é o fato de o adolescente nào fazer qualquer referencia à dor que sente na hora de se cortar. Ao contrário, referem-se, na sua maioria, ao caráter apaziguante de tal ato. Estes atos sào realizados pelos jovens em momentos de uma insuportável tensao interna, com a qual nao sabem como lidar. Trata-se, portanto, de uma dor que nao encontra expressao pela via das palavras.

Diante desta impossibilidade de colocar em pa lavras a própria dor, o ato automutilatório se apresenta como um recurso apaziguante. Observamos tal dinámi ca nos testemunhos como o de uma adolescente que escreve no referido blog "Mon combat au quotidien: l'au- tomutilation" (2012):

Eu acho que a mutilacao é o pior momento da vida da gente. Porque a gente nao sabe mais mesmo o que fazer, a gente está perdido e tem que pedir socorro! Acontece que as pessoas nao estao nem aí. Pelo menos a gente acha isto! Imagina que vocé tem gente, tipo, gente sua, ao seu lado, mesmo que vocé pense que está só, estas pessoas estao aí e te apoiam realmente! Eu sei o que é a automutilacao, eu me trancava todas as noi- tes, apagava a luz, ficava no breu. Eu pegava tudo que achava (faca, tesoura, navalha ou compasso). E me cortava. Eu comecei por cortes fininhos, depois foi fican- do mais profundo e mais perigoso. Eu me sentia tao sozinha, eu tinha necessidade de falar com uma pessoa que me compreendesse, mas nao tinha ninguém, eu nao via ninguém! Eu ainda me mutilo hoje em dia, porque fiquei viciada nisto*.

No dizer dessa adolescente, podemos destacar o aspecto de isolamento, de inexisténcia de um interlo cutor com quem compartilhar a dor. O sentimento de solidao é intenso, vindo os testemunhos na rede ocupar a funcao do outro inexistente: "mesmo que vocé pense que

Monster, L. (2012). Mon combat au quotidien: l'automutilation [Arqui- vo de vídeo]. Recuperado de http://youvideoz.com/watch?v=ahW_Rn' RaSHO

está só, estas pessoas estao aí e te apoiam realmente". Obser vamos também no relato o caráter compulsivo da escari- ficacao. O vicio, o fato de nao conseguir parar de se cor tar é um traco presente também em vários outros relatos do blog, como pode ser constatado nos trechos abaixo:

Eu também estou na automutilacao já há um ano e meio e nao consigo parar porque eu souviciada nes te sofrimento que me devora todo dia, eu nao seguro mais essa necessidade de sofrer.

Esta doenca é pior do que uma droga, eu sei porque eu vivo isso. Mas o problema é que mesmo se falarmos com alguém nao há muita solucao, porque no fundo a gente nao quer parar.

Observamos, nas narrativas citadas acima, a refe- réncia a incidéncias de acontecimentos penosos antece dendo o início dos cortes: um irmao menor que mor reu, um namoro que terminou - acontecimentos que produziram uma dor psíquica insuportável, com a qual o jovem nao conseguiu lidar, associada ao forte senti mento de solidao por nao se ter com quem partilhar esta dor. Ante tamanha dor, a mutilacao surge, como já dito, como um recurso -um recurso desesperado, certamen te- para arrefecer a angústia. Uma adolescente escreve no blog: "Quando eu termino de me cortar, a angustia depois de um tempo volta, mas vale a pena, pelo sentimento de alivio, nem que seja somente por 5 minutos" (Monster, 2012).

Em outro testemunho, lemos que, "Se escarifican do, as pessoas nao se punem, mas deixam 'escapar' sua dor moral" (Monster, 2012).

Neste sentido, podemos observar que a dor cor poral é vista na escrita dessas jovens como um substituto da dor moral, isto é, como uma forma presentificada via cortes no corpo que atesta a impossibilidade de sentir a dor da alma. Busca-se assim, paradoxalmente, apaziguar a dor psíquica insuportável por meio do ato de infligir-se uma dor física.

Com efeito, é interessante assinalar que, já no inicio do século XX, havia, conforme atesta a literatura psiquiátrica e psicológica da época, a percepçâo de que a automutilaçâo nâo seria uma tentativa de suicidio ou autodestruiçâo, mas sim a compreensâo de que os au- tomutiladores estavam, na verdade, buscando um meio de se autocurar e se autopreservar (Araújo, Scheinkman, Carvalho, Viana, 2016).

Portanto, pela intensidade do sofrimento moral, a dor infligida diretamente no corpo é concebida como uma dor nâo apenas mais tolerável, mas como um modo de apaziguar a insuportável dor moral. Em investigaçâo anterior sobre as modalidades da dor que acossam o psi- quismo humano, destacamos que frequentemente o sur- gimento de uma dor física pode substituir e mesmo fazer desaparecer uma dor psíquica (Fortes, 2012a).

A tentativa de substituiçâo de uma dor por ou tra se faz na medida em que se constata a inegável difi- culdade de elaboraçâo psíquica de um evento doloroso. Segundo Le Breton (2006), em seu artigo "Scarifications adolescentes", a escarificaçâo ilustra uma espécie de jogo simbólico no dominio da dor, opondo a dor ao sofri mento, a ferida física ao dilaceramento da alma. Trata- -se, nas palavras do autor, "de fazer-se um mal para obter menos mal" (p.5), trazendo para o centro da cena um modo de se infligir dor que visa, para um sujeito que se encontra em estado de vertigem e devastaçâo psíqui ca, a construçâo de um sentimento de existir. Le Breton (2006) cita um exemplo deste movimento de substitui- çâo de uma modalidade de dor por outra:

Muriel, 16 anos na ocasiao, dá com eloquência o seu testemunho. Apaixonada por um rapaz toxicômano e traficante, ela acaba de ter a noticia de que ele foi no vamente detido. Ela está sozinha em um jardim. Seu olhar se fixa em um pedaço de vidro. Ela grava sobre sua pele as iniciais de seu parceiro e expressa de manei- ra exemplar a força de atraçao do talho na pele em um momento de desalento: 'Você está de tal forma infeliz internamente, é a ferida do amor. Você está tao infeliz no teu coraçao, e ai você se faz um mal para obter uma dor corporal mais forte, de modo a nao mais sentir a dor do coraçao (Le Breton, 2006, p.6).

Discussâo

A partir dos relatos coletados no referido Blog, gostariamos, agora, de empreender uma discussao teóri ca acerca dos vários elementos psiquicos que se encon- tram em jogo na compreensao do ato escarificatório na adolescência. Em relaçao aos testemunhos colhidos no referido blog, buscamos, no presente artigo, dar prin cipalmente ênfase a um aspecto que consideramos de grande relevancia nao apenas para a compreensâo da automutilaçao, mas para a análise dos sintomas contempo- râneos de modo geral. Constatamos que várias jovens, nestes testemunhos virtuais, apontam a ausência de um destinatário para a sua dor, ou seja, verifica-se a ausência de um interlocutor com quem desabafar: "Peço socorro , mas nâo há ninguém ali" (Monster, 2012).

A reflexao sobre a precariedade do campo da alteridade, sobre a ausência de um outro que possa perceber o que ocorre por meio da prática da automutilaçâo, é fundamental para entendermos este modo de dor que se configura na descarga direta de intensidades psíqui cas na dimensao do corpo. Ê sobre este estreitamento da dimensao da alteridade que pretendemos refletir no presente trabalho. Cabe ressaltar que nao somente no quadro da automutilaçao se revela a quebra da experiência da alteridade. Segundo Birman (1999), o excesso de narcisismo e o arrefecimento da relaçao com o outro constitui-se como marca crucial nas modalidades de padecimento psíquico contemporáneo.

Com efeito, a análise das narrativas deste blog revelou importante mençao a uma ausência ali onde se esperava a presença do outro. O que isso pode nos ensinar sobre o funcionamento da automutilaçao? Qual a rela- çao deste traço de inexistência do outro com um modo de sofrer que se configura sobre o espaço corpóreo? Des ta forma, sao essas questóes e seus desdobramentos que constituem o fio condutor das nossas indagaçôes.

Ao analisarmos as modalidades de expressao da dor psíquica no mundo contemporáneo, percebemos como um de seus traços marcantes, a tentativa de negaçao desta experiência tanto para si mesmo como para os outros. Se, por um lado, nao há um outro para receber a mensagem da dor, por outro há uma dificuldade do próprio sujeito de admitir para os outros que está triste, sofrendo ou angustiado. No entanto, a ausência do outro reforça a impossibilidade de encontrar palavras para a dor, já que a ressonáncia daquele é condiçao necessária para que o sofrimento psíquico se constitua como tal.

Como assinala Schneider (2002) em "La souffrance psychique'', a capacidade de sentir e representar a própria dor tem como condiçao nao somente um contato do sujeito consigo mesmo, mas, necessariamente, a relaçao com o outro. O sofrimento psíquico deve ser endereça- do ao outro, o qual oferecerá um espaço de ressonáncia no qual o sujeito pode legitimar a sua dor. Se a dor nao ressoa em ninguém, ela se mantém no próprio sujeito e é redirecionada para o corpo próprio (Birman, 2003; Schneider, 2002). Segundo a hipótese desenvolvida no presente artigo, uma forma privilegiada de redireciona- mento da dor para o corpo próprio entre os adolescen tes de hoje é a automutilacao.

Como destino pulsional, a volta da pulsao em retorno a si mesmo expressa aqui a impossibilidade de enunciacao de intensidades e o predominio automutila- tório de si mesmo. Neste contexto, o ato contra si mes- mo denuncia a rasura nos destinos dos investimentos psiquicos.

Nesta mesma linha de investigacao, Birman (2012), em seu livro O sujeito na contemporaneidade, dife rencia sofrimento e dor, indicando essa como um traco caracteristico dos padecimentos atuais e inserindo-a em um espaco de ausencia da mediacao do outro. Com efeito, uma marca pregnante dos padecimentos atuais é o fato de se expressarem por meio da dor, a expensas da experiencia de sofrimento.

Apesar de serem frequentemente vistas como si nónimos, essas duas experiencias -a dor e o sofrimen topodem e devem a partir de suas especificidades, ser vistas como distintas. Enquanto na dor o sujeito fica en tregue ao excesso pulsional que o acossa, no sofrimento há a presenca do outro, que pode oferecer a funcao de anteparo contra o excesso (Birman, 2012). Tais conside rares remetem a concepcóes freudianas desenvolvidas em 1895, no texto "Projeto para uma Psicologia Científica".

Nesse texto, Freud (1895/1976) apresenta, clara mente, a fundamental necessidade da presenca do outro no processo de constituicao do sujeito psiquico. A partir da concepcao de um desamparo inerente a condicao hu mana, tem-se no texto de 1895, a clara referencia à impli- cacao dos movimentos alternados de ausencia e presen- ça do outro primordial para a instauraçâo de recursos de enfrentamento e metabolizaçâo da dor, ou seja, dasin- tensidades psíquicas experimentadas. Estes recursos sao intrínsecos à singular forma do sujeito administrar suas vicissitudes pulsionais.

Nesta direçao, além de abordar as diferenças entre dor e sofrimento, Birman (2012) apresenta dois outros traços psíquicos que caracterizam o registro do sujeito nos sofrimentos contemporáneos, quais sejam, o desalento e o espaço. O primeiro se diferenciaria da experiência subjetiva do desamparo, noçao desenvolvi da por Freud em vários de seus ensaios além do texto de 1895, e o segundo se materializaria nos dias de boje às custas da dimensao do tempo. Somos boje, segundo Birman (2012), mais inscritos subjetivamente nas esferas espaciais do que nas ordens temporais ou históricas.

A experiência do desalento, nesse contexto, é mais radical do que a do desamparo, pois lança o sujeito no abismo do solipsismo, da solidao e do vazio afetivo, sem qualquer oportunidade de interlocuçao, sendo-lbe sub traída a possibilidade de fazer apelo ao outro. Enquanto o desamparo permite o exercício do apelo, de demandar algo ao outro e, pela via da demanda, estabelecer trocas afetivas e produzir sentidos para a vida, o desalento é marcado pela aridez da presença do outro como suporte da vida afetiva (Birman, 2012).

Sobre esta condiçao Pontalis (2005) observa que a dor acontece quando nao bá mais o suporte, quan do nao bá mediaçao possível. A dor surge quando rom- pem os dispositivos de proteçao do psiquismo, quando "ocheio demais cria um vazio" (Pontalis, 2005, p.268). A dor, segundo o autor, é efeito de uma implosao: ocorre como um fenómeno "indubitável" de ruptura de prote- çao, de descarga no interior do corpo, que lbe dá a espe- cificidade de ser "uma experiencia irredutível" (p.266). O irredutível da dor é o fato de ela se descarregar de maneira direta. No caso da automutilacao, trata-se da descarga direta de uma tensao insuportável na ordem do corpo, na medida em que nao se encontrou uma via pos sível para que a dor pudesse ser traduzida em palavras.

É este caráter de descarga que faz com que muitos autores (Vidal, 1995; Pontalis, 2005; Nicolau, 2008; For tes, Winograd & Medeiros, 2015) facam uma correlacao direta entre a dor e o grito. Pontalis (2005) salienta que, por nao ser comunicável, por ser "só para si", a dor só teria a possibilidade de se expressar por uma alternancia entre o silencio e o grito:

A golpes de pontadas, por vibracoes e ondas sucessi- vas, ela vai progressivamente ocupando todo o terreno até modificar toda a sua geografia e revelar outra desconhecida. Tenho angústia, sou dor. (...) a dor só pode ser gritada -mas este grito nao a aplaca em nada- para cair mais adiante no silencio onde ela se confunde com o ser. O sujeito ele mesmo nao se comunica com sua dor: alterna entre o silencio e o grito (Pontalis, 2005, p.271).

A ideia de Pontalis (2005) de que a dor mantém proximidade com o silencio é corroborada por Gauthier (2007), que denomina a automutilacao como uma dor silenciosa. Sobre este modo de expressao que nao se apoia nas palavras, Douville (2004) salienta que é raro quais quer associacoes verbais que possam trazer um significa do ao ato automutilatório. O que se observa frequente mente sao racionalizacoes, movimentos de negacao e de denegacao que podem ser caracterizados como manifestacoes arcaicas de defesa, formas psíquicas de resposta do sujeito a uma intrusao do real. Por isso mesmo, em seu trabalho clínico com criancas e adolescentes que se automutilam, o autor constata que pouco ou nenhum efeito terá a técnica da interpretaçâo, já que esta tem como condiçâo efetuar-se a partir de um dizer ou de uma enunciaçâo, e nao sobre um comportamento.

Se nao estamos diante do dizer e da enunciaçâo, qual seria o estatuto nosográfico da automutilaçâo? Douville (2004) propoe pensá-la -em consonancia com Lagache (1949) em "De la psychanalyse à l'analyse de la conduite"- como sendo da ordem da conduta, isto é, de comportamentos que revelam algo da "pessoa", cuja consistência tem como base "assegurar-se de que habita um corpo, que será ao mesmo tempo lugar de seus sig nos e passaporte de seu ser" (Douville, 2004, p.8). Cabe, aqui, lembrar que o processo de construçâo do corpo pròprio se dá a partir de uma construçâo psíquica que leva em conta o arranjo das identificaçôes a partir da constituiçâo dos fantasmas primordiais do sujeito, que vâo aos poucos permitindo que este habite o corpo prò prio. Nos casos clínicos em que o corpo é o cenário de graves sintomas observamos um curto-circuito na edifi- caçâo da imagem inconsciente do corpo (Dolto, 1992; Fédida, 1971; Fortes, 2012b). Nesta direçâo, encontra-se destacada, em estudo realizado por Guzmán, Arellano e Escalante (2012) sobre adolescentes mexicanos que se automutilam, a associaçâo entre o maltrato dirigido ao corpo e o "des-enlace dos elementos que constituem sua història" (p.75). Tal consideraçâo permite aos autores afirmar que, no ato de mutilar-se, o sujeito "tenta domi nar o mais íntimo e frágil que o constitui: seu desejo e seu corpo" (p.75).

A automutilaçâo pode ser vista, segundo Douville (2004), como uma tentativa de se encontrar algum con torno psíquico na materialidade do corpo pròprio, dian te de um sentimento de descontinuidade de si mesmo. Para o autor, tal gesto exerce uma expulsâo do excesso de excitacao que acossa o sujeito. No entanto, esta expulsao nao é uma simples operacao mental, mas supoe, também, uma cinesia, ou seja, o movimento e a motricidade. A automutilacao seria o recurso de um sujeito em estado de sideracao, acometido de forte angùstia de despersonalizacao e do consequente distanciamento do pròprio corpo. Este seria o modelo de um corpo estran- geiro, quase informe, e a automutilacao caracterizaria o "retorno ao gesto fundador de uma continuidade do vi vido corporal" (Douville, 2004, p.15).

Com efeito, a automutilacao indicaria, como dito anteriormente, o registro psíquico do informe do corpo. Para Douville (2004), a clínica do adolescente automuti- lador "insiste em que levemos em conta as potencias do informe do corporal" (p.12), apostando em um sujeito em estado de "in-corporacao" a partir dos gestos e frases que vem do outro - "reduzido ao organismo, o sujeito é um resto informe" (p.12). Portanto, vemos que o infor me corporal se aproxima de um modelo de corpo que se tornou estrangeiro ao pròprio sujeito, sendo a automutilacao uma tentativa desesperada de se entrar em contato com o corpo pròprio.

A hipòtese que aqui formulamos -qual seja enten der o ato automutilatòrio como um efeito da precària interacao do sujeito com o outro- é desenvolvida por Douville (2004) a partir das primeiras relacoes que o su jeito estabelece com o mundo, alinhando-se ao descrito por Freud (1895/1976), em "Projeto para uma Psicologia Científica", como "o complexo do semelhante". Se, por um lado, dependemos do outro como sendo o objeto de protecao e de identificacao que nos permitirà o sen timento de unidade e integracao imaginària, por outro lado, este mesmo outro pode ser fonte de hostilidade e ameaca de abandono e desprotecao.

A parte dos investimentos que nao se liga a esta relacao narcísica e identificatória com o outro retorna de maneira dilacerante para a economia libidinal, pro vocando um abalo do narcisismo do eu. Aqui, salienta Douville (2004): "é entao o corpo ele mesmo que é atin gido pela turbulencia dos remanejamentos narcísicos e que, longe de se equivaler à imagem ideal do semelhante, torna-se este peso de real que insiste" (p.15). Daí advém, segundo o autor, uma angùstia de despersonalizacao que leva ao encontro "com a matéria bruta do corporal, com sua substancia mesma" (Douville, 2004, p.16).

Ora, o que se entreve no comportamento automutilatório é, arriscamos dizer, uma tentativa de se entrar em contato com esta matéria bruta para dela se apro- priar, ou seja, para tentar acessar o sentimento da "carne viva" que possa conduzir, em um segundo tempo, a certa assuncao do corpo como unidade e nao somente como corpo informe. Os cortes oferecem a via da cinesia, da sensacao de propriedade de um corpo, de corporeidade e de contencao.

Tal perspectiva sobre o ato automutilatório é tam- bém desenvolvida por Le Breton (2006), segundo quem estas adolescentes, ao se infligirem a dor, retomam o controle de um afeto destrutivo que lhes atravessa, bus cando um modo de domínio sobre uma situacao que lhes escapa totalmente ao controle. O ataque ao pròprio corpo é geralmente precedido de um sentimento de de sespero e de desorientacao, "como uma forma de hemor ragia de sofrimento que destrói os limites de si" (p.2). O corte vem, assim, segundo o autor como tentativa de conferir uma restauracao brutal das fronteiras perdidas do corpo, como forma de diminuir o sentimento de vertigem e promover a sensacao de vida. A concepcao de vertigem alude a esta impossibilidade de domínio sobre as intensidades experimentadas, sendo o ato automuti latório tentativa de alguma ligacao do desespero expe rimentado. Além disso, podemos pensar que se trata, também, de esbocar uma tentativa de resposta ali onde há o desencontro com o outro, ali onde o chamado ao outro nao encontra uma resposta (Hachet, 2015).

Le Breton (2006) descreve o caso de uma paciente que, com loquacidade, demonstra o imperativo de nao se entregar ao sofrimento, mas, sim, de combate-lo. Ela explica que se corta com uma lamina de barbear, mas que interrompe o ato quando a dor comeca a ficar in tensa, esforcando-se por se manter em uma linha que, apesar de tenue, a faz sentir-se enfim "viva". Afirma o autor que "as marcas corporais sao alvas identitários, de forma a inscrever os limites através da pele, e nao so mente como metáforas" (p.2). Assim, a pesquisa de Le Breton (2006) permite-nos compreender que o alvo da automutilacao nao é o sofrimento, mas poder alcancar, por meio deste ato, certo sentimento de existir. O ataque ao corpo, segundo o autor, se aproxima da compreensao que podemos ter sobre as condutas de risco, precedido de um sentimento de turbilhao, um modo de hemorra gia do sofrimento que rompe com os limites de si. Há uma lógica interna neste ato que indica uma busca de apaziguamento, e nao de destruicao pessoal:

"O corte no corpo é uma forma de tentar barrar o sentimento de colapso. O choque de realidade que ele induz, a dor consentida, o sangue que corre religa os fragmentos esparsos de si mesmo. Permite que haja uma reintegracao e alimenta o sentimento de se estar viva, de restabelecimento das fronteiras de si" (Le Breton, 2006, p.5).

Uma jovem de 15 anos contava, enquanto se en- contrava em processo psicoterápico com uma das auto ras do presente artigo, que cortava o braco com cacos de vidro e nele escrevia a palavra "Viva". Narrava a que a mutilacào de si mesma era uma forma de "se" sentir, uma forma de sair da sensacào permanente de aneste- siamento. Sentir a dor a fazia ao mesmo tempo sentir-se viva, retirando-a do amortecimento vital e da sensacào de estar morta que a acompanhavam. Entendemos, aqui, que a cinesia provocada pelos cortes pode trazer novamente a sensacào e a intensidade perdidas, fazendo, da matèria bruta do corpo, "carne viva". De qualquer forma, seja na busca de recursos frente a sensacào de vertigem como descreve Le Breton (2006), ou nas nome- acòes de tentativas para sentir-se "viva" e nào mais morta ou anestesiada, o ato mutilatório contempla importante fracasso da palavra em sua potencialidade de conexào, captura e expressào das intensidades experimentadas.

Sabemos que a adolescencia inexoravelmente confronta o sujeito a uma variável gama de sensacòes. Uma vez que os comportamentos de se cortar ocorrem, em sua maioria, no período da adolescencia, pode-se constatar a relacào destes atos com o fato de ser, nesta època da vida, que o sujeito passará necessariamente por necessários remanejamentos narcísicos, os quais o con- duzirào a uma redefinicào do campo das identificacòes, as quais atravessam indubitavelmente o sentimento de unidade corporal (Rassial, 1999). Nesse sentido, para Cardoso (2001) "o remanejamento das identificacòes na adolescencia abala intensamente as bases narcísicas do psiquismo do sujeito, em funcào dentre outros aspectos, do desinvestimento das ligacòes com os objetos da in fancia" (p.48). Tal condicào, segundo a autora, apresen ta contornos singulares quando se dá em situacòes nas quais opera "um curto circuito dos processos psíquicos mais elaborados" (p.50).

Como já mencionado, segundo Freud (1895/1976) a parte do complexo do semelhante que nào pode ser capturada pela relacào narcísica e identi- ficatória com o outro retorna para o corpo como uma intrusào do real. E neste contexto que a automutilacào pode ser uma tentativa de resposta a esta intrusào: fa bricando, nas palavras de Douville, "um gesto polemico com o informe corporal (...) como um modo de resposta posterior ao trauma pubertário" (Douville, 2004, p.16).

Assim, o abandono da posicào infantil demanda do pelo processo adolescente significa a perda do valor da imagem corporal do narcisismo dos pais para o inves timento em seu narcisismo tomando o seu corpo pró- prio como objeto de investimento. A construcào de no- vos modelos identificatórios na adolescencia vai reque rer que o sujeito possa abrir mào da onipotencia infantil para construir um novo caminho para si. No entanto, isso só tem como ocorrer quando as figuras parentais investiram a crianca a partir de seu próprio narcisismo, movimento condensado naquilo que Freud (1914/1974) caracteriza, em "Introducào ao narcisismo", como sendo a figura de "sua majestade, o bebe".

Neste eixo de raciocinio, recorremos à ideia de vivencia de indiferenga e de ato-dor (Moraes & Macedo, 2011). Reconhecendo justamente a complexidade do processo de constituicào subjetiva em certos pacientes, as autoras exploram os danosos efeitos da experiencia de indiferenca. Cabe ressaltar que, segundo as autoras, a concepcào de indiferenca a qual recorrem remete a "uma qualidade de violencia imposta à crianca por parte de um adulto em um tempo primordial de estruturacào do psiquismo" (p.42).

A vivencia de indiferenga resulta, portanto, da in- capacidade do objeto primordial de "dirigir um olhar amoroso para a crianca que permita percebe-la, apazi- guá-la, e investi-la libidinalmente" (Moraes & Macedo, 2011, p.44). Desta forma, as autoras alertam sobre a especificidade que tal nocao contempla ao afirmarem que:

Cabe destacar que nao se trata do desdém da oferta por parte do adulto ao outro (a crianca), mas, sim, de uma marca de nao reconhecimento daquilo que é mais próprio da singularidade desse outro: seu existir. Na indiferenca predomina dramaticamente o nao reconhecimento da diferenca que a existencia do outro aporta a esse encontro inicial e que se reproduz na apropriacao do sentido de existencia da crianca (Moraes & Ma- cedo, 2011, p.43).

Logo, a vivencia de indiferenca alude a esse desencontro primordial, do qual resulta o predominio de um desconhecimento a respeito do si mesmo. Como efeito, desse encontro traumático instala-se uma matriz reprodutiva das intensidades atordoantes experienciadas pelo sujeito, a matriz de indiferenca com o si mesmo e com o outro (Moraes & Macedo, 2011).

Nesta direcao, o recurso ao ato faz-se presente, nos casos de automutilacao, como uma modalidade possivel de expressao das intensidades psíquicas sendo denomi nado como ato-dor. No ato-dor há o predominio de um movimento de descarga a qual indica a dimensao nao elaborativa das intensidades psíquicas. No prejuizo ao si mesmo, cabe ao ato-dor a expressao do traumático e a denúncia da precariedade instaurada no campo alteritário. A dimensao extrema do ato na modalidade de acao precipitada pela ruptura e desmoronamento de toda a mediacao simbólica é, para Mayer (2001), a evidencia "da desesperanca, da entrega, da rendicao" (p.94). Tal proposicao alinha-se ao argumento referido por Birman (2012) ao acentuar a precariedade enunciativa e, portan to, o estremecimento na dimensao alteritária observado na experiencia de dor e na condicao de desalento.

A matriz de indiferenca, instaurada na vivencia de indiferenca, permitenos considerar que a automuti- lacao dá a conhecer, no ataque ao próprio corpo, a cruel dimensao da sensacao de inexistencia do si mesmo para o outro. Esta intensidade se faz presente no testemunho de uma das jovens citadas no referido blog, quando de nuncia que a ausencia de um outro associa-se ao que ela sente, ao que necessita e ao que ve, demonstrando, por sua fala, a rasura na experiencia do si mesmo: "Eu me sentia tao sozinha, eu tinha necessidade de falar com uma pessoa que me compreendesse, mas nao tinha ninguém, eu nao via ninguém!" (Monster, 2012).

Dessa maneira, ressaltamos aqui a precariedade da dimensao alteritária nestas condicoes clínicas. A esca- rificacao pode, entao, ser entendida como uma resposta que advém da busca de um contorno que sirva como registro da própria existencia. Face á nao constituicao do envelope corporal narcisico (Anzieu, 1989) que da ria uma sustentacao á imagem unificada de si mesmo, a fragmentacao corporal é uma tentativa de encontrar algum contorno, ao criar um "envelope de dor" (Le Bre ton, 2006). Assim, o ataque a si na escarificacao da pele oferece uma espécie de materialidade corpórea que, se nao tem como ser narcisica e imaginária, forja uma ope- racao subjetiva que se dá no real do corpo.

Nesta mesma direcao de investigacao teórica, des tacamos, ao analisar a presenca da automutilacao como um sintoma contemporáneo, a seguinte indagacao: que representacao de corpo está presente neste modo sin tomático de expressao da dor psíquica? Ou, em outras palavras, podemos indagar se a automutilacao seria um modo de resposta sintomática do sujeito face a fragmen- tacao do corpo característica da representacao de corpo na contemporaneidade (Fortes, 2013).

Cabe, neste sentido, apresentarmos a concepcao de corpo que se fez presente a partir do advento da modernidade e a configuracao que passou a vigorar na contemporaneidade. Foucault (1980/1998) em -"O nas cimento da clínica" mostra como a insercao do modelo clínico no campo dos saberes teve origem na dissecacao dos cadáveres- foi este o solo que permitiu o surgimento da percepcao da anatomia clínica e da concepcao da clí nica como um saber sobre o particular. Isto é, um saber sobre a singularidade só foi possível com o nascimento da clínica moderna.

Ora, a psicanálise é herdeira da medicina moder na, constituiu-se como um saber clínico no campo dos saberes, mas, ao mesmo tempo, subverteu este campo ao inserir no corpo a dimensao do desejo que a medici na moderna dele subtraíra. A psicanálise nao se reporta à anatomia clínica, mas a uma anatomia que podemos chamar de 'fantasmática' (Fédida, 1971; Fortes, 2012b).

A dissecacao dos cadáveres apagou do corpo a dimensao do sagrado e do mistério que os envolvia na representacao religiosa do corpo. Antes que o olhar do homem da ciencia sobre ele se fixasse, o corpo era visto pelo mundo regido pela religiao como um ser unificado.

Enquanto a Igreja pode impedir a dissecacao de cadáveres, o olhar sobre o corpo nao era confrontado com um interior feito de partes, de órgaos, de pedacos. Era mantida a sua dimensao de unidade, de unificacao religiosa que concebia o corpo como uma unidade. Por tanto, o advento da medicina moderna, ocorrendo, se gundo Foucault (1980/1998), no final do século XVIII e no início do século XIX, desvelou o interior do corpo e o inscreveu no campo da visibilidade.

O corpo interior foi revelado e isso mudou o olhar que se tinha acerca dele, apagando-se a sua aura de mistério e invisibilidade e nao mais sendo reverenciado pela sua proximidade e semelhanca com Deus. A partir do momento em que o corpo se torna visível, o olhar que se tem sobre ele é o de um corpo fragmentado em partes, em órgaos.

A anatomia clínica criou a visibilidade dos órgaos internos e, desse modo, mudou a própria concepcao de humano, apresentando o corpo desmembrado e inven tariando as suas partes. Pela visao científica, sao agora as partes que produzem o todo.

A dissecacao foi uma experiencia de desencan tamento, apagou o encantamento do corpo sagrado e dele fez um corpo-cadáver. Como mostra Foucault (1980/1998), o cadáver passa a ser o paradigma da saú- de e da doenca, pois é o corpo morto que vai indicar a localizacao e o estatuto das doencas. Portanto, estamos diante de um corpo-cadáver destituído da dimensao fan- tasmática, destituído de desejo. A época iluminista trouxe para a ciencia o desencantamento do corpo e a sua desmontagem em várias partes.

É interessante notar que esta transformacao do olhar acerca do corpo nao foi um movimento exclusivo da ciencia. Também no domínio da arte assistiu-se à en trada do corpo desmembrado. Coli (2010), no livro "O corpo da liberdade" mostra como a arte vai acompanhar os rumos da ciencia quando o cadáver se insere nas novas sensibilidades artísticas do final do século XVIII e do início do século XIX. Há um deslocamento do lugar do corpo, que se tornou, entao, um corpo disposto como objeto tanto para a ciencia como para a arte. Também na arte assiste-se ao fascínio pelo corpo que se desmembra, criando-se aquilo que Coli (2010) denomina uma "poé tica do fragmento".

Essa forma fragmentária do corpo é também a for ma com que a psicanálise concebe o corpo. O corpo erò geno se constitui por partes e nao por uma unidade ou uma totalidade (Leclaire, 1979/1992). A erogeneidade nao se encontra no todo; a imagem totalizante do corpo constitui o eu e o narcisismo, mas nao é a fonte das excitacoes erògenas. As fontes da erogeneidade surgem das partes do corpo, da pele, das membranas, da mucosa, do que Freud (1905/1972) denomina zonas erògenas, regioes corpóreas que se inscrevem sob o registro da sexualidade perversa polimorfa. A compreensao teórica do ato automutilatòrio requer, a nosso ver, conceber a ideia do corpo enquanto ser fragmentado.

No entanto, se acompanharmos o desenvolvimento teórico de Gauthier (2007), em seu artigo "Automutilagáo e autoerotismo", podemos avaliar senao seria uma concepcao de um corpo que, apesar de fragmentário, nao é atravessado pela dimensao autoeròtica. Segundo o autor, os talhos em si mesmo buscam ferir o corpo nas suas partes, indicando uma ausencia de autoerotis mo e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade de sentir prazer. O corte se daria no nivel da sensorialidade, e nao no do erotismo. Se, por um lado, a adolescente sente um rebaixamento da tensao interna, isso, no entanto, se configura como uma sensacao que é bem diferente de prazer. No blog supracitado, outro testemunho é re velador desta questao: "Quando eu termino de me cortar, a angùstia depois de um tempo volta , mas vale a pena , pelo sentimento de alivio, nem que seja somente por 5 minutos" (Monster, 2012).

O alivio mencionado pela jovem alude, a nosso ver, à intensidade que advém de uma lògica da agonia e do desespero, nao se tratando, necessariamente, do que a psicanálise designa como masoquismo. A dor corpo ral, aqui, nao é uma via de obtencao de prazer, mas é usada, repetimos, como modo de expressao do desespe ro moral. A automutilacao nao seria uma resultante de um movimento autoerótico:

Sem o autoerotismo necessário para o cuidado e a atencao consigo mesmas, sem o recurso de dirigir-se em direcao a um outro, estas jovens se mutilam. É o único recurso que possuem quando entram em pane, como exprimem todas estas adolescentes que me fala- ram de um blackout para descrever e ao mesmo tempo nao descrever suas experiencias. A ruptura da ligacao com o outro, o isolamento, distingue estas automutilacoes "privadas" de outras mutilacoes que, ao contrário, tem como funcao ligar o individuo a um grupo cultu ral (Gauthier, 2007, p.55).

Também nas pesquisas de Le Breton (2006) en contramos a defesa de que nao se trata de um script masoquista, mas de um movimento que traduz a tentativa de dominio das sensacoes corpóreas:

O sentimento de relaxamento experimentado, e mesmo acompanhado de júbilo, liga-se ao alivio produzido pelo ato após a purgacao dos sentimentos. (...) este desaparecimento da tensao e a perplexidade de tornar-se novamente si mesmo induzem a uma fórmula bastante comum, mas repleta de mal-entendidos. Se muitos au tores fazem referencia a uma sensacao agradável, única, etc. parecendo evocar cenários sadomasoquistas, nós nos colocamos em oposicao a tal démarche. Ela traduz, com efeito, a resolucao imediata da tensao (Le Breton, 2006, p.3).

Assim, nesta perspectiva, a automutilacao seria vista como um gesto que busca o registro da sensorialidade, mas um gesto que nao se inscreve no prazer autoerótico, pois os cortes seriam muito mais uma descarga de intensas tensoes internas e uma via de buscar um con torno para o informe corporal mais do que uma abertu ra a potencialidades de prazer. Trata-se muito mais de um ato que visa a encontrar um modo de descarga da dor psíquica do que uma busca que teria a finalidade do prazer ou da autodestruicao. A erogeneidade foi, aqui, curto-circuitada pela indiferenca experimentada e pelo predomínio do desalento.

A inegável precariedade psíquica faz com essa automutilacao "privada" revele, no recurso ao ato-dor, o considerável prejuízo efetivamente experienciado no campo alteritário. É nesta dimensao de ausencia ou va- zio, rasurada pela indiferenca experimentada no imaginário do outro, que a experiencia de escuta psicanalítica pode criar novos contornos e sentidos.

Frente ao ato de automutilacao, o analista é con vocado a exercitar a nao captura do olhar em relacao ao corpo mutilado, mas, sim, á recorrer aos recursos de uma clínica cuja ética encontra-se pautada na escuta de um sujeito aprisionado na repeticao do mesmo. Ao des crever o que sabe sobre o ato de se mutilar, uma jovem diz: "Eu sei o que é a automutilacao, eu me trancava todas as noites, apagava a luz, ficava no breu" (Monster, 2012).

É neste breu, neste escuro de sentido provindo da repeticao incessante daquilo que é da ordem do sem sen tido, que o ato-dor dá vazao áquilo que, desde dentro, nao encontra outra forma de expressao. Sustentada na transferencia, a psicanálise interroga e convida o sujeito a enderecar sua dor á escuta.

É nessa singular modalidade de convocacao á nar rativa sobre si mesmo, ou seja, no enderecamento a um outro, que a acolhe e se recusa a um saber prévio, que as rasuras na experiência alteritária podem encontrar outra vicissitude. Desta forma, o ato-dor, como característico da situaçâo de automutilacao na adolescência, pode ce der espaço à criaçao da possibilidade de o sujeito existir em presença de outro e em presença de si mesmo.

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*Este artigo é produto da pesquisa "O lugar do corpo na clínica psicanalítica contemporânea" (Bolsa Produtividade/CNPq).

Referencia de este artículo (APA): Fortes, I. & Kother, M. (2017). Automutilacáo na adolescencia - rasuras na experiencia de alteridade. Psicogente, 20(38), 353-367. http://doi.org/10.17081/psico.20.38.2556

Recebido: 10 de Janeiro de 2017; Aceito: 02 de Maio de 2017

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