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Revista Latinoamericana de Bioética

Print version ISSN 1657-4702On-line version ISSN 2462-859X

rev.latinoam.bioet. vol.10 no.2 Bogotá June/Dec. 2010

 

Relação entre enfermeiros e médicos no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás:
a perspectiva do profissional de enfermagem

PROFESSIONAL RELATIONSHIP BETWEEN NURSES AND DOCTORS AT THE CLINICAL HOSPITAL OF FEDERAL UNIVERSITY OF GOIÁS:
THE VIEW OF NURSES

RELACIÓN PROFESIONAL ENTRE ENFERMERAS Y MÉDICOS EN EL HOSPITAL DE LA UNIVERSIDAD FEDERAL DE GOIÁS:
LA VISIÓN DE LAS ENFERMERAS

Ana Maria de Oliveira*

André Moreira Lemes**

Bruna Teixeira Ávila**

Carolina Rocha Machado**

Elisa Ordones**

Fernanda Souza Miranda**

Fernanda Loyola e Silva**

Hermann Soares Goetz**

José Oscar Ferreira de Miranda**

Juliane Moreira Barbosa**

Lahis Ribeiro Leão**

* Doutoranda em Bioética - CFM/Universidade do Porto (Portugal). Professora assistente do IPTSP/UFG, trabalhou na concepção, nos resultados, na elaboração e na revisão final do manuscrito. Email: anamadoida@bol.com.br

** Acadêmicos do curso de Medicina da UFG. Os acadêmicos do curso de Medicina da Universidade Federal de Goiás participaram da concepção, coleta e formação do banco de dados e resultados.

Fecha Recepción: Octubre 3 de 2010
Concepto Evaluación: Noviembre 10 de 2010
Fecha Aceptación: Diciembre 14 de 2010


RESUMO

O conflito na relação entre médicos e enfermeiros é assunto tabu nos serviços de saúde e pouco discutido na literatura. Sabe-se que o conflito entre essas duas profissões, tidas como as principais responsáveis pelo cuidado do paciente, é causado pela associação de diversos fatores que vão desde a constituição da equipe multiprofissional até as questões salariais. O estudo pretende averiguar se, na visão da enfermagem, há conflito na relação com médicos, no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC/UFG) e os quais os fatores associados. Para tanto, 82 enfermeiros responderam a um questionário com dados demográficos e perguntas em escala Likert, sobre as variáveis que interferem na relação interprofissional. O resultado demonstra predomínio do gênero feminino (89%), idade média de 40,5 anos, tempo de trabalho médio no HC de 11 anos e carga horária semanal média de 30 horas. Da análise fatorial foram identificados três fatores de proteção (Divisão das tarefas, Influencia hospital escola e Reflexo no paciente) e três de geração de conflitos (Comunicação, Reconhecimento e Condições de trabalho), estando o conflito subjacente aos processos de trabalho e de relação intersubjetiva. O paciente é o principal beneficiado quando existe boa relação. Ruídos de comunicação, condições de trabalho inapropriadas e a remuneração indigna configuram-se como fatores desestabilizadores da relação interprofissional.

Palavras Chave

Conflito, enfermeiro, médico, relação, multiprofissionalidade.


ABSTRAC

The conflict in the relationship between doctors and nurses is a taboo subject in the health service and little discussed in the literature. It is known that the conflict between these classes, that are directly responsible for the care of the patient, is caused by the combination of diverse factors ranging from the establishment of the group of work until the salary. The research presented here aimed to verify if there is conflict in the relationship between doctors and nurses at the Clinical Hospital of the Federal University of Goiás (HC) and the factors that may promote or prevent it. An amount of 82 nurses were interviewed to study this population and the categories of variables that interfere in their relationship with other professionals. The result was a population with a prevalence of females (89%) with mean age of 40.5 years, average working time at the HC of 11 years and with weekly working hours average of 30. Factor analysis identified three protective factors (Division of tasks, Teaching hospital and Influences in the patient) and three other conflict generator factors (Communication, Recognition and working conditions), while the conflict underlies the processes related to work and personal relationship. The patient is the primary beneficiary when there is a good relation. Bad communication, non-appropriate working conditions and unworthy remuneration are destabilizing factors for the inter-professional relationship.

Key Words

Nurse, physician, conflict, relationship, multiprofessional healthcare.


RESUMEN

El conflicto en la relación entre médicos y enfermeras es un tema tabú en los servicios de salud y poco discutido en la literatura. Se sabe que el conflicto entre estas dos profesiones, identificados como los principales responsables de la atención al paciente, se debe a la combinación de diversos factores que van desde la creación del equipo multidisciplinario hasta las cuestiones salariales. El estudio tiene por objeto determinar si desde el punto de vista de enfermeria, hay un conflicto en la relación con los médicos en el Hospital das Clínicas de la Universidad Federal de Goiás (HC / UFG) y los factores que intervienen. Con este fin, 82 enfermeras respondieron a un cuestionario con preguntas demográficas y sobre las variables que afectan a la relación (Escala Likert). El resultado muestra predominio del sexo femenino (89%), edad promedio 40,5 años, tiempo promedio de trabajo 11 años y horario semanal promedio de 30 horas. El análisis factorial identificó tres Fatores de Protección (División de tareas, Reconocimento y Reflex en el paciente) y tres Factores de generación de conflictos (Comunicación, Reconocimiento y Condiciones de trabajo), mientras que el conflicto esté subyacente a los procesos de trabajo y de la relación intersubjetiva. El paciente es el principal beneficiario cuando hay buena relación y las fallas en la comunicación, las condiciones de trabajo y remuneración no digna son factores de desestabilización de la relación multiprofesional.

Palabras Clave

Enfermera, médico, conflictos, relación, multiprofesional.


INTRODUÇÃO

A divisão do trabalho em uma unidade hospitalar, delineada sob a forma de equipe multidisciplinar, surge como modo de enfrentamento da complexidade inerente às peculiaridades do sistema de saúde, à dinâmica do processo saúde-doença e à dimensão holística do paciente.

O ideário acerca da acerca da equipe multidisciplinar configura-se como estratégia para enfrentar o intenso processo de especialização na área da saúde sem se fazer acompanhar ao mesmo tempo da articulação de fazeres e saberes (Peduzzi, 2001). Pinho (2006) esclarece que o trabalho em equipe origina-se pela necessidade de promover a qualidade dos serviços em saúde, de maneira a atender eficientemente às demandas do paciente (Pinho, 2006).

A vida das organizações está saturada de valores implícitos e explícitos que lhes dão sustentação e balizam os julgamentos e as condutas (Campos, 1992; Zoboli & Fracolli, 2006). As divergências de opiniões e condutas são naturais e inevitáveis no local de trabalho.

O trabalho em equipe tem três justificativas principais: 1. Quebra da divisão do processo de trabalho; 2. Possibilidade de responsabilização de cada equipe por um conjunto de problemas bem delimitados; 3. Possibilidade de superação da inércia e da indiferença burocrática que caracterizam os serviços públicos de saúde atualmente (Campos, 1992). As relações conflituosas podem propiciar, freqüentemente, o (re)delineamento e a (re) definição de papéis, de modo a alcançar a adaptação da equipe às demandas da assistência em saúde. De acordo com os teóricos interacionistas, o conflito é uma necessidade absoluta e um estímulo às organizações para gerar crescimento. Todavia, os conflitos podem apresentar caráter construtivo ou destrutivo, de acordo com o modo de gerá-los e conduzi-los (Araujo & Ramos, 2002; Stumm, Maçalai & Kirchner, 2006).

Os conflitos estão presentes nas relações e são importantes construtores da identidade do profissional, porque permitem confrontar e (re)delinear os atributos e os afazeres que se sobrepõem o campo de poder exercido por cada trabalhador (Araujo & Ramos, 2002).

Considerando as peculiaridades da equipe multidisciplinar em saúde, Silva (1998) define os médicos e enfermeiros como grupos de maior representatividade para os serviços nessa área, apontando ainda a relação entre esses grupos como conflitante. Também considera que os problemas advindos desse relacionamento atuam como importante obstáculo a excelência na produção em serviços de saúde (Silva, 1998).

A construção da relação dicotômica médico-enfermeiro abrange atributos históricos de cada ator da organização social instituída como equipe multidisciplinar em saúde, bem como contempla a noção de representações sociais dos mesmos. Alguns autores ressaltam o quão marcante é o papel do médico na definição do papel do enfermeiro, e o quão interessante e controversa é a identidade construída com base em tal relação conflituosa (Araujo & Ramos, 2002; Silva, 1998).

OBJETIVOS

Pretende-se identificar a existência de conflito entre profissionais médicos e enfermeiros1 e destacar os possíveis fatores determinantes desse, com a intenção de comparar as particularidades encontradas no Hospital das Clínicas/UFG com a literatura pertinente.

METODOLOGIA

O HC possui 149 enfermeiros distribuídos nos diversos setores clínicos e cirúrgicos. Estaticamente, foi demonstrado que para garantir a representatividade da amostra deveriam ser selecionados ao menos 48 profissionais, considerando um intervalo de confiança de 95% e um erro máximo de 5%.

O estudo configura-se como transversal, descritivo e quanti-qualitativo. Os critérios de inclusão na pesquisa foram ser maior de 18 anos, graduado em enfermagem e possuir vínculo empregatício com o HC. Os participantes foram selecionados aleatoriamente e convidados a participar. Para tanto assinaram o termo de consentimento (TCLE), em observância aos ditames éticos, e após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa Médica Humana e Animal do HC.

Utilizou-se como instrumento de pesquisa um questionário auto-aplicável (Silva, 1998) com algumas modificações, no qual o entrevistado escolhia para cada assertiva uma das opções prevista na escala Likert (sempre, quase sempre, às vezes, raramente e nunca). Formado o banco de dados no programa Epi Info versão 3.4.3, os dados foram analisados por meio de estatística descritiva e análise fatorial por Ranking Médio (RM).

RESULTADOS

Foram entrevistados 82 enfermeiros durante os períodos da manhã, tarde e noite, no período de março a abril de 2009, perfazendo 55% da população-alvo.

A análise demográfica revelou que 89% (73) dos entrevistados são do sexo feminino e 11% (9) do sexo masculino. A média de idade foi 40,5 anos: o participante mais jovem tinha 22 e o mais velho, 60. A média de anos de trabalho no hospital é 11: o tempo mínimo foi um ano e o máximo, 32. O 58,7% (37) trabalham em outro local. A moda foi 15 anos (15,9%). A média da carga horária semanal de trabalho foi 32 horas, com moda de 30 horas (80,2%).

O questionário aplicado constava de 15 assertivas (A1 a A15) com as opções de resposta em escala Likert que assumiram os seguintes valores: nunca, vale zero; raramente, um; às vezes, 2; quase sempre, 3; e sempre, 4. Para proceder à análise fatorial, as perguntas foram agrupadas em categorias seguindo padrões descritos na literatura (Silva, 1998). As assertivas de 1 a 3 (A1, A2 e A3) correspondem à categoria Comunicação interprofissional; de A4 até A5, à Divisão de tarefas na equipe; A6 e A8 à Reconhecimento interprofissional; de A9 a A12, Condições de trabalho; A13 e A14, Influência do hospital-escola e A15, Reflexo no paciente.

Realizou-se a análise fatorial através do RM e adotou-se ponto de corte igual a 3. Definiu-se que, se a média da categoria for igual ou superior a 3, considera-se o fator preventivo para o conflito (Pc). Caso contrário, se a média for menor que 3, considera-se que aquele fator é gerador de conflito (Gc). Se o número de fatores geradores de conflito (Gc) for maior que o de fatores de prevenção (Gc>Pc), considera-se que há conflito estabelecido na realidade analisada. Se da análise resultar em número de fatores geradores de conflito menor que o de prevenção (Gc<Pc), considera-se que na realidade não há conflito instalado, porém este é iminente. Os resultados das análises estão dispostos na tabela 1.

Na categoria Comunicação Interprofissional obteve-se o RM de 2,24, revelando que há uma deficiência de comunicação entre o profissional de enfermagem e o médico; consequentemente, essa situação é geradora de conflito (Gc, RM<3). Analisando separadamente as variáveis que compõem essa categoria, o enfermeiro conclui que ele participa minimamente da tomada de decisão acerca da conduta de cuidado do paciente (A2, RM =1,91), mas suas opiniões não são consideradas pelo médico na maioria das ocasiões (A3, RM =2,43).

Na categoria Divisão de tarefas na equipe verificou-se que, para os profissionais de enfermagem, as suas funções e as dos médicos são claramente definidas (A4, RM =3,24; A5, RM =3,93); portanto se constitui em fator protetor de conflito (RM = 3,58).

A categoria Reconhecimento interprofissional obteve RM de 2,98 (Gc, RM<3), revelando que há desarmonia na relação com os médicos (A7, RM=2,98), porquanto os mesmos não reconhecem a importância do enfermeiro na atenção aos pacientes (A6, RM = 2,91).

A categoria Condições de trabalho obteve RM de 2,47 (RM<3). A questão salarial é um fator em destaque (A9, RM =1,66), seguida das condições ambientais e materiais de trabalho que deixam a desejar, portanto, condições geradoras de conflito (A10, RM=2,02). Os entrevistados afirmaram que condições adequadas de trabalho favorecem a boa relação tanto com os médicos quanto com os demais profissionais (A11, RM= 3,07; A12, RM = 3,16 p>0.05). A Influência do hospital escola obteve RM de 3,64, sendo, portanto, um fator de proteção (RM>3). O fato do HC ser uma instituição de ensino, segundo os entrevistados, favorece a boa relação tanto com o médico (A13, RM=3,58) quanto com os demais profissionais de saúde (A14, RM=3,71), sem diferença estatística significativa entre esses grupos (IC 95%, p>0,05).

Os respondentes afirmaram que o paciente é beneficiado quando há boa relação entre os profissionais de saúde (A15, RM=3,96). Dessa forma, se o agente de saúde objetiva suas ações no exercício da beneficência, sendo os pacientes o alvo de toda atenção dos profissionais, esse fator se constitui em um circunstante protetor ao desencadeamento de conflitos.

Em resumo, identificou-se 3 fatores de proteção e 3 de geração de conflitos (3Pc:3Gc). Conclui-se que há equilíbrio circunstancial de fatores de proteção e de geração de conflito, sendo o mesmo potencial e iminente, devido à existência de fatores passíveis de desencadeá-lo (Comunicação interprofissional, Reconhecimento interprofissional e "Condições de trabalho).

DISCUSSÃO

Da análise dos dados demográficos, quanto ao gênero dos respondentes, nota-se um predomínio de trabalhadoras, à semelhança de outros estudos publicados ( Elias & Navarro, 2006; Silva, 1998, 2006). Destaca-se que o predomínio de mulheres na enfermagem, aliado à dupla jornada de trabalho a qual estão submetidas, também se constitui em situação a qual se permite falar em superexploração do trabalho feminino ( Elias & Navarro, 2006; Silva, 1998, 2006; Silva et al., 2006), conforme evidenciado em estudos sociológicos que se pautam pela questão de gênero (Medeiros, Ribeiro, Fernandes & Veras, 2006).

A idade e a carga horária de trabalho também não são homogêneas intra e intergrupos. Além disso, o tempo de trabalho no HC apresenta grande variação; mas não apresentou relação estatística com os resultados obtidos da análise dos fatores desencadeantes do conflito. No estudo de Silva et al. (2006) o tempo de serviço para os médicos foi importante para análise do relacionamento médico-enfermeiro, pois, o maior tempo de convivência na organização leva a sustentação de padrões cristalizados da cultura organizacional estabelecida.

A literatura é unânime em denunciar a relação conflituosa das categorias profissionais ora evidenciadas (Araujo & Ramos, 2002; Elias & Navarro, 2006; Lima & Bastos, 2007; Medeiros, Ribeiro, Fernandes & Veras, 2006; Stumm, Maçalai & Kirchner, 2006; Silva, 1998, 2006; Silva et al., 2006; Tabak & Orit, 2007). A análise fatorial permitiu avaliar os fatores que interferem na relação médico-enfermeiro, sendo que destes configuram-se como fatores de prevenção do conflito: Divisão de tarefas na equipe, Influência do hospital-escola e Reflexo no paciente. Em contrapartida, são consideradas geradoras do conflito as categorias Comunicação interprofissional, Reconhecimento interprofissional e Condições de trabalho.

Um estudo realizado por Silva (1998) em hospital universitário do nordeste brasileiro demonstrou que há dificuldades entre médicos e enfermeiros, caracterizadas pela interferência de funções, divergências interpessoais e intergrupais, e insatisfação, embora haja alguns graus de satisfação. A condição ambivalente de hospital de ensino e assistência na rede de saúde publica também influi positivamente para o relacionamento conflituoso entre essas categorias profissionais. Em outro estudo, também em hospital-escola brasileiro, abordando trabalho, saúde e condições de vida, constatou-se que havia um ambiente desgastante e com disputas internas, no qual as relações entre os colegas de trabalho foram ambíguas, com relatos de disputas internas, rivalidades e diferenças de tratamento; e que o prazer do trabalho está relacionado com a melhora do paciente, a sensação do trabalho cumprido e o desprazer está relacionado à organização e às condições de trabalho (Elias & Navarro, 2006).

Araujo Netto et al. (2002) aponta que dentre as causas de conflito estão a definição do papel tipificado do enfermeiro ou do outro profissional, à definição do seu próprio ser e as tensões e conflitos freqüentemente ocorridas tanto nas situações de assistência quanto em momentos de interdependência de trabalho, em torno de situações cotidianas do trabalho (Araujo & Ramos, 2002). Dentre as causas do conflito também está a própria necessidade de construção e delimitação do papel do enfermeiro na interface com o papel do médico; então, uma das causas seria a própria afirmação do seu papel profissional (Silva, 2006), pois as especificidades de cada trabalho, constituídas em torno de referenciais de saber e poder, mediam os conflitos entre os trabalhadores e delimitam a cada trabalhador seu "espaço, objeto e papel" (Araujo & Ramos, 2002).

No escopo da pesquisa ficou demonstrado que há problema de comunicação, que os enfermeiros compreendem bem seu papel profissional no hospital e relatam adequada divisão de tarefas com os médicos. Estes fatores, segundo Lima e Bastos (2007), evitam o conflito e melhoram a qualidade do trabalho.

A comunicação é um ponto crucial para o estabelecimento de relações apropriadas em qualquer ambiente em que se necessita consolidar um grupo, seja hospitalar ou atenção primária de saúde (Araujo & Ramos, 2002; Bellón, 2001; Mallory, 1981). O desconhecimento por parte da equipe da missão, da visão e dos valores institucionais pode levar os membros a realizarem suas atividades de acordo com suas metas individuais, trabalhando, cada um, segundo seus próprios princípios (Peduzzi, 2001; Silva et al., 2006; Stacciarini & Andraus, 1999).

Apenas a apropriada troca de informações, seguida do entendimento entre as partes e aplicação do estabelecido e acordado consegue superar problemas e evitar o surgimento do conflito. Ruídos na comunicação são relacionados à ocorrência de iatrogenia, dano e morte de pacientes (Arford, 2005; Teixeira et al., 2010), apesar dos recursos tecnológicos de última geração (Teixeira et al., 2010). Além disso, estão entre as possíveis causas de divergências no trabalho em equipe, que com a deficiência de materiais, equipamentos e pessoal são fatores geradores de conflitos (Elias & Navarro, 2006; Silva, 2006; Silva et al., 2006): Nosso estudo ora revela estes aspectos.

Quanto à relação interpessoal, há autores que evidenciam uma melhor qualidade da comunicação em profissionais da medicina do gênero feminino, quando comparada com os do gênero masculino. Aventa-se uma série de razões para explicar a eficiência dessa habilidade (Roter, Hall & Aoki, 2002).

Na perspectiva habermasiana, a complexa dinâmica da ação multiprofissional, articulada às concepções sobre processo de trabalho em saúde, em uma dimensão dialética, introduz o conceito de trabalho decomposto em dois componentes distintos, porém mutuamente irredutíveis, interdependentes: o trabalho como ação racional teleológica instrumental e também como ação estratégica. A primeira é orientada por regras técnicas; a segunda, por máximas e valores (Habermas, 1989).

Habermas introduz a decomposição do conceito de trabalho em dois componentes, os quais, ainda que interdependentes na prática, são analiticamente distinguíveis e mutuamente irredutíveis: o trabalho, como ação racional dirigida a fins, e a interação. O autor assinala a existência de relação recíproca entre trabalho e interação, embora não seja possível a redução da interação ao trabalho ou a derivação do trabalho a partir da interação (Habermas, 1994).

Habermas chama de agir comunicativo às interações nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação. Pode-se medir o acordo alcançado, em cada caso, pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validade implícitas em qualquer ato de fala (Habermas, 1989). No estudo ficou evidente que os médicos desconsideram a opinião do enfermeiro e não dão a devida importância a esse profissional, o que representa a negação do agir-comunicativo no plano das relações de trabalho intersubjetivas ou técnicas.

A habilidade da comunicação é parte da competência profissional, sendo inclusive um dos elementos que compõe o rol de conhecimentos, habilidades e atitudes necessários para formação de médicos e enfermeiros e previstos no projeto político-pedagógico dessas profissões (Brasil, 2007). A tecnologia da comunicação se constitui em um recurso tecnológico dentre as tecnologias leves, capaz de instrumentalizar os profissionais para a resolução de conflitos. Essa preocupação interessa também ao processo de formação de profissionais da saúde de outros países, além do Brasil (Brasil, 2007), (Berti et al., 2008; Corley, 1998; Fernandes, Santa Rosa, Vieira & Sadigursky, 2008). Vários estudos recomendam a necessidade de transformação da prática do educando/educador e do modelo curricular constituído, apontando a preocupação de que a ética no desenvolvimento do currículo não se limita ao ensino em uma disciplina, mas perpassa todas as práticas que se dão no interior do processo educativo (Brasil, 2007; Fernandes, Santa Rosa, Vieira & Sadigursky, 2008; Zoboli & Fracolli, 2006).

O status de hospital-escola caracteriza o nosocomio como um ambiente multiprofissional de ensino em serviço cuja finalidade é preparar profissionais para a realidade do sistema de saúde brasileiro (Brasil, 2007). Constatou-se nesse estudo que esse ambiente favorece a relação entre cuidadores e torna o espaço propício ao aprendizado, porém outros afirmam que a ambivalência de ensino e serviço nessas instituições se configura em fator gerador de conflitos (Silva, 1998, 2006).

A equipe multiprofissional e o trabalho em saúde que emerge como modalidade de trabalho coletivo, na concepção de Peduzzi, podem ser tipo equipe agrupamento ou equipe integração, por se configurar numa relação dialética entre intervenção técnica e interações sociais entre os agentes e por haver justaposição das ações e conexão entre os seus membros participantes (Campos, 1992; Peduzzi, 2001; Pinho, 2006). No bojo da relação entre trabalho e interação, os profissionais constroem consensos que configuram um projeto assistencial comum, em torno do qual se dá a integração da equipe de trabalho (Silva, 1998). Por esses motivos, aventa-se a hipótese de que na visão dos enfermeiros, a equipe multiprofissional do HC configura-se como um tipo misto de "agrupamento" e de "integração", pois, ainda que haja uma comunicação ruidosa e pouca importância dada aos agentes sanitários, não há conflito na divisão de tarefas, e o paciente é reconhecidamente o objetivo final do agir multiprofissional.

Em ambos os tipos de equipe, a multidisciplinaridade encontra-se permeada por questões como hierarquização na divisão do trabalho, desigualdade na valorização social dos trabalhos distintos, diferenças técnicas e exercício da autonomia profissional (Elias & Navarro, 2006; Peduzzi, 2001; Habermas, 1994; Silva et al., 2006; Teixeira et al., 2010). De permeio a esses aspectos, acham-se alguns fatores geradores de conflitos: falta de clareza na delimitação de papéis, disputas de poder, estrutura hospitalar verticalizada e burocratizada, e falta de comprometimento de muitos profissionais (Silva, 1998, 2006; Teixeira et al., 2010).

O diálogo com alguns autores indica que a dimensão do conflito nas organizações ainda é algo a ser aprofundado; contudo, poderíamos traçar algumas tendências. A primeira é que o conflito faz parte da dinâmica organizacional e, de uma forma ou de outra, vem sendo enfrentado pelos gestores na tentativa de potencialização de seus efeitos, seja para os sujeitos, seja para a organização. A segunda relaciona o conflito a um processo de percepção e contextualização, ou seja, não é possível a definição de um modelo de tratamento dessa questão já que conjunturas diferenciadas e comportamentos distintos exigem formas particulares de tratar a questão. A última está vinculada à relação íntima entre conflitos e poder, ou seja, na mesma medida que parte dos conflitos organizacionais é provocado por uma distribuição desigual do poder, este tem sido o instrumento fundamental (Campos, 1992; Peduzzi, 2001; Teixeira et al., 2010).

Além da semelhança de resultados encontrados em estudos nacionais e internacionais (Costa et al., 2003; Harris, Treanor & Salisbury, 2006), também se constatou que a grande maioria dos entrevistados afirma que o paciente é beneficiado quando há boa relação entre os profissionais responsáveis pelo seu cuidado. Este fato configura-se como prerrogativa de excelência para que cada profissional se empenhe para estabelecer relação harmoniosa com os demais profissionais, com vista ao exercício do princípio hipocrático da beneficência, enquanto agente moral.

Rodrigues (2001) pressupõe que "a concepção que se tem da enfermagem enquanto ajuda, vocação e não como trabalho, emperra as iniciativas de organização de seus trabalhadores na busca de condições apropriadas de trabalho, livres de riscos e menos penosa" (p. 77).

A superação dos conflitos existenciais da profissão passa pela compreensão do enfermeiro como um trabalhador (Rodrigues, 2001) e pela percepção da fragilidade da autonomia do enfermeiro e do paciente. Observa-se um movimento empreendido por enfermeiros recém formados em direção ao fortalecimento da autonomia profissional e da autonomia do paciente (Berti et al., 2008).

O acolhimento é a diretriz organizacional e ação tecno-assistencial centrada nas pessoas, que pressupõe mudança de relação entre e com os integrantes da equipe, e com usuários. Assim, esta ação está impulsionada por valores (Zoboli & Fracolli, 2006). Valores humanos, considerado um construto central na psicologia, são padrões gerais de orientação para comportamento de base motivacional e são representações cognitivas das necessidades humanas individuais e societais (Gouveia, Milfont, Fischer & Coelho, 2009).

O exercício moral da profissional da enfermagem requer a difícil tarefa de discernir entre a melhor resposta para um dilema ético. Mas profissionais que decidem rapidamente em situação de conflito moral podem estar deixando de considerar, no julgamento, componentes essenciais ao desempenho da ação moral (Vaiane, 2009).

Coalizão e conflitos éticos que emergem nos cuidados em saúde não são sinais nem de inutilidade ética e nem de papel absoluto da ética nos cuidados em saúde. Decisões da sociedade e dos médicos são atingidas pelas políticas de saúde e pelas organizações de saúde, assim como pelo nível individual do pensamento ético (Vende-miatti, Siqueira, Filardi, Binotto, & Simioni, 2010). A complexidade da organização hospitalar é um desafio para o processo de gestão, particularmente respeito à liderança.

O estudo da cultura organizacional compreeende o tecido simbólico sobre o qual a dimensão interpessoal se constitui, permeado pela compreensão das relações de poder, do processo de trabalho e das práticas administrativas. O arcabouço teórico desse campo, oferecido pelos autores contemporâneos, parece indicar saídas possíveis para minimizar a conflitiva dinâmica cotidiana desse tipo de organização (Fleury, 1997).

Uma fonte significativa de stress no exercício da enfermagem está no conflito com profissionais médicos. Existe evidencia na literatura que diferentes maneiras de resolver conflitos geram mais ou menos stress. E que o nível hierárquico, a posição profissional e a reputação do enfermeiro afetam tanto a escolha estratégica de resolução de conflito quanto o nível de satisfação e de stress no trabalho (Tabak, & Orit, 2007).

Médicos e enfermeiros deveriam estar alerta para a ocorrência de conflitos entre eles e, desde o processo de formação, deveriam ser preparados em atividades práticas cotidianas; assim, os conflitos seriam resolvidos de maneira construtiva (Berti et al., 2008; Tabak & Orit, 2007; Vaiane, 2009; Zoboli & Fracolli, 2006). A Bioética, enquanto disciplina, desponta como uma possibilidade de instrumentalizar os profissionais de saúde para o enfrentamento interrelacional dos conflitos éticos, seja com pacientes, profissionais da equipe e gestores a nível pedagógico, profissional e político.

CONCLUSÃO

O ambiente hospitalar, per se, representa um ambiente com uma excessiva carga de trabalho e contato direto com situações-limite, elevando o nível de tensão e os riscos físicos e psicológicos de adoecimento para si e para os profissionais de saúde.

Uma característica do trabalho hospitalar é que o realiza uma grande porcentagem de mulheres. É secular a responsabilidade das mulheres pelo cuidado à saúde, de bruxas a doutoras, de religiosas a enfermeiras.

Na relação entre o profissional de enfermagem e o médico no HC constatou-se que há fatores geradores de conflito e protetores para o conflito, que podem precipitá-lo em situações reais.

Os fatores que favorecem a manutenção do equilíbrio são a adequada divisão de tarefas entre as partes, a compreensão da importância da boa relação profissional para adequado cuidado do paciente e o fato de a instituição ser um hospital escola.

Os distúrbios da comunicação entre os profissionais envolvidos é um fator presente na realidade analisada que, com a falta de materiais, recursos apropriados e o não reconhecimento financeiro do esforço empregado na execução da função, configuram-se como fatores desestabilizadores da relação entre enfermeiros, médicos e demais profissionais.

O conflito entre médico e enfermeiro pode ser um dos principais problemas nas instituições de saúde, já que entre eles se estabelece o mais estreito vínculo profissional. Esse conflito prejudica a relação na equipe multidisciplinar e, principalmente, com o paciente. A depender dos resultados dessa relação, desse-se envidar esforços para que o conflito seja evitado.

Sabe-se que a corroboração ou refutação das informações obtidas a partir de contextos e perspectivas profissionais específicas tem inestimável valor, enquanto instrumento de avaliação e possível transformação da realidade apreendida, bem como no delineamento de um horizonte ético para as relações profissionais em equipe multidisciplinar e seus reflexos sobre o bem-estar do paciente e a qualidade dos serviços em saúde. Admitindo-se que o conflito tem como fonte a diversidade de interesses e a distribuição desigual de recursos, o enfrentamento positivo da questão poderia ser forma eficaz de solução, acomodações ou equilíbrio entre grupos divergentes.

A execução e a divulgação de trabalhos semelhantes a este, e aqueles que analisam a situação sob a óptica do profissional médico, serão os próximos passos para uma avaliação mais profunda da situação de trabalho em equipe no HC/UFG, tendo como horizonte a utopia da construção de equipe multiprofissional com excelência técnica, competência ética e relevância social.


NOTAS

1 Optou-se pela denominação enfermeiros e médicos para se referir aos profissionais sem atender à distinção de gênero. No entanto, isso não significa que os autores ignorem as questões de gênero que permeiam as relações profissionais.


REFERENCIAS

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