Introdução
Desde 1988, o sistema de saúde brasileiro, denominado “Sistema Único de Saúde” (SUS), tem a função de garantir, mediante políticas públicas que visam à redução de riscos de doenças e de outros agravos, condições para o acesso universal, integral e equânime dos cidadãos às ações e aos serviços para a promoção, a proteção e a recuperação da saúde.
Nesse cenário, a judicialização da saúde é fruto de uma paradoxal realidade, que coloca em lados opostos o direito fundamental à saúde e um sistema de gestão dos serviços, com sérias dificuldades em prover a população de recursos que atendam a todas as suas necessidades.
Neste artigo, é trabalhada a ideia de cuidado estabelecido com os cidadãos vulnerados, que, segundo Schramm 1, na “bioética de proteção”, correspondem aos que não são capazes “de se defenderem sozinhos pelas condições desfavoráveis em que vivem ou devido ao abandono das instituições vigentes que não lhes oferecem o suporte necessário para enfrentar sua condição de afetados e tentar sair dela” (p. 17).
A discussão proposta se realiza na perspectiva das narrativas de representantes do Judiciário e do Executivo, para a compreensão da dinâmica entre a política da vida e a política sobre a vida, o que pode ser entendido como possibilidades de produção de autonomia e liberdade para a vida do sujeito, como controle dos corpos através do governo sobre a vida, o que nos remete ao conceito de “biopotência”, ou seja, a potência de vida quando produzida pelas próprias pessoas no plano individual ou coletivo, ou, mesmo, como biopoder caracterizado pela prática de governos dos vivos 2.
Nesse contexto, procura-se discutir a perspectiva de uma ética de cuidado com a vida, na medida em que são contrastadas as distintas percepções e argumentos dos diversos protagonistas envolvidos nos litígios judiciais que demandam medicamentos, especialmente oncológicos de alto custo, bem como as suas intencionalidades e contribuições para a defesa da vida e para a promoção de um cuidado singular e resolutivo em saúde.
A microjustiça de medicamentos, entendida como a justiça do caso concreto, mobiliza diversos protagonistas que agem e deliberam, em uma dinâmica consecutiva de decisões, que determinam o cuidado produzido com o cidadão vulnerado.
A vida do cidadão acometido pela doença oncológica é alvo de dois poderes com funções de normalização: o biopoder médico e o biopoder político-administrativo.
A medicina com o crescente saber sobre o corpo, desde meados do século XVIII, ganhou expressão também com o desenvolvimento de tecnologias de controle estatal. O saber médico, portanto, contribuiu para a consolidação da razão de Estado, fundamentada no controle biopolítico da população 2. Com o passar do tempo e o desenvolvimento social e político, o poder sobre os corpos passa a representar, no período do liberalismo como doutrina política, as características de uma medicina social e uma prática social, com tecnologia no corpo social 3.
Com o desenvolvimento da organização social e produtiva, a medicina, ao mesmo tempo que é apropriada pelo Estado como saber capaz de orientar políticas de controle dos corpos, passa, especialmente no início do século XX e com o advento da reforma do ensino médico nos Estados Unidos, orientado pelo Relatório Flexner, a concentrar sua atuação no corpo-clínico e na prática biomédica, com a adoção de distintas orientações pautadas na racionalidade médica e no mercado. Nesse sentido e de acordo com Franco 4, são orientações pautadas no “saber da ciência, que procura exercer o controle dos corpos, como um regime disciplinar, e ditas formas de viver, operando na lógica do biopoder” e nas “lógicas capitalísticas, que operam no processo de trabalho como linhas de organização dos interesses corporativos profissionais” (p. 104-5), oportunas para a execução de estratégias de mercado.
A medicina individual, com o avanço biomédico, começa a incorporar o interesse bioeconômico em sua prática tecnocientífica, com a influência das indústrias farmacêuticas, que têm transformado a relação entre a ciência e o mercado, entre a verdade e a vida, na busca por um biovalor, orientado pela esperança de cura e pela otimização da saúde, capaz de influenciar diretamente a prática biomédica, desde a definição das condições de normalidade e a catalogação de doenças, até o processo de medicalização 5.
O advento do extraordinário avanço tecnológico, fomentado pela indústria especialmente no pós-guerra, representa uma grande conquista da humanidade, pois melhora os procedimentos de diagnose e terapêuticos, ao mesmo tempo que reduz o sofrimento das pessoas. Se, de um lado, o modelo de incorporação de novas tecnologias se realizou orientado pela necessidade do seu uso e regulação estatal, por outro, deu-se também sob forte tensão dos fabricantes para que houvesse alto consumo de procedimentos e produtos na saúde, em busca da realização de lucros 6.
Nesse período, o biopoder funcionava com base em duas dimensões - a biopolítica e a disciplina dos corpos -, apoiado nos múltiplos dispositivos capazes de regular a vida para obter corpos dóceis quanto ao poder e às relações sociais. O avanço tecnológico em geral, e inclusive na saúde, contribui para a passagem da “sociedade disciplinar”, que exercia um governo na forma direta e objetiva sobre os corpos, para a sociedade de controle em que esse processo se dá de forma às vezes sutil, operando também na produção de novas subjetividades, a partir da ideia de normalização médica, que redimensiona a vida tanto como um objeto de controle, alvo de um biopoder 7, quanto como uma reivindicação de controle, alvo de uma biopolítica 8.
Nessa perspectiva, para Luz 9, tanto o corpo individual quanto o corpo social são “o alvo privilegiado da intervenção médica, o grande laboratório vivo do progresso farmacêutico” (p. 87), que se ancorou na importância que o campo da saúde conquistou no cenário mundial, como elemento essencial para melhor eficácia terapêutica e melhoria das condições de saúde 10.
O direito à saúde no século XX foi materializado pela consolidação de políticas de bem-estar, sobretudo no pós-guerra na Europa, assim como em diversos países da América que têm a saúde como um direito fundamental nas suas constituições. Por sua vez, os interesses de mercado passam a atravessar as práticas cotidianas, criando praticamente “uma sociedade da norma e não da lei” (11, p. 50), sustentada nas corporações profissionais, especialmente médica, em que a saúde se tornou “um objeto de consumo, que pode ser produzida por diversas empresas farmacêuticas, por médicos, etc., e consumido por outros - pacientes potenciais e reais” (11, p. 54).
Assim, a medicina, antes uma estratégia biopolítica, transformou-se em uma estratégia bioeconômica da indústria farmacêutica, convertendo cidadãos em potenciais consumidores, expondo-os à medicalização da vida, pelo grande volume de prescrições de medicamentos.
Para Foucault 11, quando a relação entre vida e saúde foi introjetada na lógica de mercado, surgiram disfunções tanto na medicina moderna quanto no sistema de saúde, que, aliadas a diversos outros fatores, passaram a caracterizar o que hoje denominamos “medicalização da vida” e “judicialização da saúde”.
A judicialização da saúde é tão complexa quanto os biopoderes que atravessam a vida do cidadão. Se, por um lado, o biopoder médico, orientado por interesses de mercado, tende a gerar demandas que serão judicializadas, por outro lado, o biopoder político-administrativo, representado pela regulação das provisões do Estado, tende a tensionar os limites do judicializável. A negativa ou a restrição pode tanto resultar na satisfação de necessidades em saúde, individuais ou coletivas, quanto na concretização de uma racionalidade do consumo, de interesse da área administrativa do Estado, vinculada à saúde.
Não se pode olvidar que a regulação das provisões disponibilizadas pelo Executivo “podem gerar conflitos morais, pois muitas vezes limitam ou restringem liberdades e decisões individuais, ensejando o bem comum” (12, p. 17), uma vez que, diante do dimensionamento de recursos para o atendimento de direitos individuais ou coletivos, a tendência é que haja a priorização da coletividade e a consequente restrição individual.
O poder de decidir que se encontra na esfera do Estado por meio do sistema judiciário, “expressa comando sobre a vida por meio de suas tecnologias e de seus dispositivos” (11, p. 107). No plano eminentemente da gestão administrativa, verifica-se que a norma transita entre o controle e a regulação, permite o controle do corpo e de uma multiplicidade, ou seja, um biopoder que se manifesta sobre o corpo e a vida ou sobre o corpo e a população 11.
Nesse caso, a norma tenta capturar e se sobrepor ao direito, o que contribui não só para o aumento de ajuizamentos de demandas em saúde, como também conduz o Judiciário a uma defesa, com maior rigor, da efetivação dos direitos estabelecidos.
A judicialização advém do caráter principialista da Constituição de 1988, elaborada e promulgada em um contexto de redemocratização, em que “o poder de atuação do Judiciário ampliou-se mediante a possibilidade de revisão de atos dos demais poderes” (13, p. 5), na garantia de uma maior eficácia e da defesa dos direitos estabelecidos, entre os quais, o direito à saúde, o que tem contribuído para um maior acesso dos cidadãos, desassistidos pelo Executivo, ao Judiciário.
Nesse sentido, a judicialização pode ser uma via para se evitar a ineficácia, a negligência ou a omissão do Estado na operacionalização do direito à saúde e na garantia da satisfação das necessidades em saúde 14-18.
Entretanto, questiona-se a “capacidade técnica do Poder Judiciário para intervir na organização e gestão do sistema de saúde” (19, p. 41), especialmente quando “contraria as prioridades em saúde pública do Brasil” (20, p. 596) e “gera realidades sociomédicas extremamente complexas, além de enormes desafios administrativos e fiscais” (21, p. 176), especialmente quando “a judicialização resume a política de saúde à dispensação do medicamento de alto custo” (14, p. 487), o que tende a prejudicar a operacionalização e a efetivação racional da política pública de assistência farmacêutica, voltada mais para o cuidado que, propriamente, para o uso extensivo de tecnologias.
Diante do exposto e da complexidade da judicialização de medicamentos, torna-se importante compreender e contrastar as distintas percepções, sentidos, argumentos e os respectivos parâmetros éticos adotados nas decisões, os quais correspondem aos preceitos de ordem valorativa e moral que compõem os núcleos de sentido argumentativo, recorrentes nos discursos das partes, que tendem a replicar padrões deliberativos, fundamentados em interesses do seu respectivo grupo. Eles servem para decisões tanto de representantes do sistema de saúde quanto do sistema de justiça, procurando evidenciar as intencionalidades e as contribuições para a defesa da vida e para a promoção de um cuidado resolutivo em saúde.
Metodologia
A delimitação empírica do objeto de investigação foi realizada por meio de consulta ao sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, entre 2012 e 2014, no qual, com a utilização dos termos “medicamento” e “câncer”, foram obtidos 172 ementários de processos cíveis, dos quais foram excluídas as ações movidas contra planos de saúde e as originadas em municípios do interior do estado. Após aplicados os critérios de exclusão, resultaram cinco processos originários da capital e julgados em segunda instância, os quais foram incluídos neste estudo.
A documentação integral dos cinco processos, que atenderam aos critérios de inclusão, foi obtida mediante a anuência dos juízes relatores em suas respectivas Varas de Fazenda Pública (quatro processos arquivados) ou Câmara Cível (um processo em andamento), o que permitiu a seleção dos participantes desta investigação, envolvidos nessas disputas judiciais e que aceitaram participar da pesquisa.
Os participantes desta investigação estão envolvidos direta ou indiretamente nos processos selecionados, sendo três representantes do SUS (três gestores - G), cinco representantes do sistema de justiça (dois desembargadores - D, um promotor estadual - P, um defensor público estadual - DPE e um procurador estadual - PE) e quatro cidadãos (C), conforme representado no Quadro 1.
Função do participante | Código | Funções/atuação | |
---|---|---|---|
Sistema de saúde | Gestor estadual | G1 | Exercer a gestão do sus no âmbito estadual. |
G3 | |||
G7 | |||
Sistema de Justiça | Defensor público estadual | DP11 | Prestar orientação jurídica e representar judicialmente os cidadãos. |
Desembargador | D4 | Julgar os recursos dos processos originados na primeira instância. | |
D2 | |||
Procurador estadual | PE10 | Tratar dos interesses do governo estadual. | |
Promotor estadual | P12 | Defender a sociedade e seus interesses (tutela coletiva ou individual). | |
Cidadão | C5 | Usufruir, zelar e lutar pela concretização dos direitos civis, políticos e sociais garantidos constitucionalmente. | |
C6 | |||
C8 | |||
C9 |
Fonte: elaboração própria, 2019.
A operacionalização deste estudo contou com três etapas distintas e sucessivas: a exploração inicial dos argumentos processuais para a elaboração e personalização do roteiro de entrevista; o trabalho de campo, com a aplicação do roteiro para a entrevista semiestruturada junto aos participantes; a apresentação dos resultados, da análise e da discussão, que integram, metodologicamente, a análise da retórica com a abordagem qualitativa.
A análise da retórica, em uma abordagem qualitativa, permitiu evidenciar os raciocínios contidos em um processo jurídico e identificar os núcleos de sentido argumentativo, adotados pelos atores sociais envolvidos na lide em questão. Assim, procuramos delinear os tipos formais de argumento/retórica, identificando os núcleos de persuasão e, paralelamente, contrastando-os com o contexto biopolítico em que estão imersos, para evidenciar os parâmetros éticos que orientam as argumentações.
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Antônio Pedro da Universidade Federal Fluminense, Parecer 1.478.809, conforme a Resolução do Conselho Nacional de Saúde 466/2012.
Resultados e discussão
Os profissionais ligados diretamente à assistência, especialmente os médicos, são os que têm maior possibilidade de desenvolver vínculos com os cidadãos vulnerados, quando comparados com os profissionais do administrativo ou da justiça institucional.
A autonomia do médico no ato da prescrição garante o exercício de um saber-poder que não é contestado pelo paciente, o qual não tem meios para atestar a adequação da demanda ao seu caso. Assim, apesar de esse vínculo surgir de uma relação assimétrica de saber, supre a necessidade momentânea do vulnerado, que é a confiança de que o prescritor lhe apresentará a melhor fórmula para a solução do seu caso. Essa convicção contribui para a normalização médica, estando ou não o agir do profissional eivado por interesses pessoais ou capturado pelos interesses da indústria farmacêutica.
eu acho que existem médicos que... levam a ética ao pé da letra independente do que possa ser ofertado em troca do que quer que seja... e existem profissionais que podem se fazer valer de sua profissão para:: conquistar alguns benefícios (G1)
Nesse caso, o exercício do saber-poder médico, por meio da prescrição, pode ser orientado pelos parâmetros de uma ética de cuidado, que pode expressar um agir bioético centrado no vulnerado e direcionado ao cuidado em saúde e, portanto, conduzido pela relação produtiva, pela responsabilidade e pela resolutividade, em que o medicamento é prescrito após o profissional julgar de que se trata da melhor escolha disponível no mercado para o caso do paciente. Por sua vez, o ato de prescrever também pode ser orientado pelos parâmetros de uma ética biomédica, que pode ocultar um agir conveniente, centrado na biotecnologia e direcionado à oferta do mercado.
os médicos não conhecem as políticas públicas::... eles não aprendem nas faculdades... o que é disponível... então eles só recebem as influências da indústria farmacêutica... mais da indústria e menos do setor público (DP11)
claro que se tem também aí... aproveitando-se muitas vezes até dessa situação tão sensível dessas demandas:::: interesses econômicos (PE10)
as indústrias inclusive é que patrocinam os:: conclaves médicos... encontros e tudo mais (D4)
em alguns anos anteriores... a indústria montava consultório... pagava conta de luz... botava piso éh:::: eu ouvia esses relatos... (G1)
Já os encontros do cidadão com os profissionais do administrativo são peremptórios e, geralmente, resultam em negativas, pautadas na normalização político-administrativa promovida pela regulamentação e pela regulação do sistema de saúde. Assim, esses profissionais agem com menor autonomia, geralmente, pelo menor grau de liberdade quando comparados ao médico, o qual, por sua vez, determina a ratificação ou a retificação do medicamento prescrito com base nas alternativas fornecidas no serviço público.
a gente não tem como... não pode impor nem interferir pois a vinculação dele ((paciente)) continua sendo com o médico de confiança dele (G7)
caso o genérico funcione igualmente... aí é cabível a alteração... mas mesmo assim fica condicionado ao médico alterar a receita (D2)
((gestores)) precisam na verdade ter respaldo legal pra/ poder fornecer administrativamente... sem nenhum tipo de respaldo ele vai criar um problema pra/ ele também... se não há uma forma viável administrativamente e tiver que ser pelo Judiciário... que seja... mas da forma mais racional (G7)
A esses profissionais administrativos cabe, muito aquém do cuidado, a operacionalização da política com base nos sistemas e nos critérios de regulação, em que a oferta de medicamentos é orientada pela padronização de medicamentos que atendam a uma relação positiva de custo-benefício, isto é, a maximização da aplicação de recursos públicos destinados ao atendimento de coletivos, garantindo o acesso a tratamentos comuns e pouco variados. Essa lógica não prioriza demandas específicas ou singulares, mesmo que estas sejam, de fato, diferenciais para o tratamento do quadro clínico em questão. Por esses critérios há um prejuízo à equidade; seria necessária uma política que garantisse o equilíbrio entre o atendimento às demandas coletivas e as de natureza singular. Isso sim cumpriria o critério equitativo na distribuição, atendendo a necessidades diferentes com distribuição diferenciada de medicamentos.
você tem que saber exatamente o que se pretende do Estado... quais são as finalidades que o Estado deverá atender e como ele deverá alocar os seus recursos (PE10)
Assim, o Executivo considera como justo e racional a dispensação do que está padronizado, não dispondo de meios alternativos para o atendimento de demandas singulares ou diferenciais. Logo, o litígio em saúde surge da necessidade de um usuário não atendido na sua necessidade, de uma prescrição médica e de uma não adequação da demanda individual ao que está preconizado na política. Em alguns casos, a demanda não está preconizada devido ao atraso no processo de incorporação pelo sistema de saúde.
Ressalta-se que muitos medicamentos não são padronizados estrategicamente para diminuir os custos do governo no movimento de efetivação do direito à saúde com a operacionalização da política, geralmente devido ao alto custo desses fármacos, o que inviabiliza a garantia da economicidade nas aquisições e da disponibilização do produto a todos que eventualmente venham a necessitar dessas indicações. Isso é o que ocorre especialmente com demandas oncológicas e para o tratamento de doenças raras.
eles ((gestores)) têm que levar em conta:: se eles vão poder fornecer - - - - ao incorporar aquele medicamento - - - - se eles vão ter condição de fornecer para todos... muitas vezes o medicamento é necessário mas ele não é incorporado (DP11)
a gente sabe que precisa de um financiamento adequado e de uma economicidade pra/ você poder garantir que a política seja pra/ todos:: (P12)
A judicialização pode ser utilizada pelas diferentes esferas governamentais, para a garantia da economicidade de gastos públicos, pois é menos dispendioso fornecer determinados medicamentos apenas a quem acessa o Judiciário do que disponibilizá-los a todos que venham a necessitar de tal terapêutica. Essa economicidade permite uma maior cobertura de coletivos que necessitam de tratamentos de menor custo, padronizados na política pública de saúde.
muitas vezes acaba-se chegando à percepção de que aquela decisão coletiva néh:: que se pensou:: ela não conseguiu abranger particularidades:: individualidades que:: ficaram de fora daquele desenho de política pública... e aí eu teria então:: conflitos criados porque:: o sistema de saúde não pensou na minha situação... naquele caso eu preciso de uma solução diversa daquela pensada coletivamente (PE10)
quando realmente o medicamento é necessário para garantir a vida da pessoa::... o que a gente tá/ pedindo é razoável... não é irrazoável (DP11)
o Executivo tem sua autonomia para fazer a política... sua discricionariedade... nisso eu não interfiro... mas se falta alguma coisa e é um direito... o cidadão ao acionar o Judiciário tende a conseguir... o Estado não pode ser negligente nesses casos (D2)
Para o cidadão, esse é o exercício de uma política negativa sobre a sua vida, que coloca em prova a confiança e o vínculo estabelecido com o profissional-prescritor, ao contestar a sua necessidade, transformando o seu caso em exceção e colocando-o à margem das provisões estatais, por não se adequar aos critérios biopolíticos de normalização político-administrativa. Trata-se do exercício de um biopoder que resulta em desassistência, para supostamente proteger o bem comum.
muitas vezes eu tenho interesses de minorias que eles não acabam sendo observados e vistos... porque são grupos menos organizados que:: tem menos força política... e portanto:: eles acabam não tendo correspondência naquela política pública... (PE10)
a gente percebe muitas vezes que elas ((lista de medicamentos)) não acompanham a corporação tecnológica néh? (P12)
tem coisas que hoje ninguém mais prescreve que tá na lista como primeiro ((primeira opção)) néh:: então... eu acho que deveriam atualizar (G3)
a indústria farmacêutica:: é muito mais rápida do que uma incorporação que se possa fazer (G7).
sempre terei conflitos porque eu tenho a indústria sempre incentivando éh:: a rejeição às decisões técnico-sanitárias que são tomadas no âmbito do sus que se guiam até por padronização de tratamentos que tem ali a indicação de menor custo-efetividade:: ou enfim:: de segurança:: efetividade:: enfim:: e que essas decisões muitas das vezes elas não serão as decisões que vão melhor atender os interesses econômicos da indústria (PE10)
Há uma permanente tensão entre o provimento ao interesse coletivo e o singular, sendo que essa diferenciação não deveria ser aplicada no caso da saúde, quando o que está em questão é a vida de uma pessoa. É impossível atribuir valor a uma vida, quando esta se refere a alguém com história, relações de família, comunidade, trabalho, enfim, sua subjetividade com expectativas, desejos e esperanças fazem parte do ser complexo que é. O direito à vida como universal impede um julgamento de valor sobre ela mesma.
Essa questão se traduz, do ponto de vista teórico, no conflito entre o conceito de “mínimo existencial”, que “é compreendido como a diversidade de elementos necessários e indispensáveis para manutenção da existência humana” (22, p. 133), e a tese da “reserva do possível”, especialmente onde a efetivação de direitos sociais acaba condicionada à “disponibilidade de recursos econômicos” (22, p. 133). Em que pesem as teses jurídicas que atravessam o debate do acesso aos medicamentos como direito fundamental, entende-se que a política desempenhada pelo Executivo pode ser em defesa da vida, não a expondo aos parâmetros de uma ética jurisdicional controversa nesse caso nem mesmo ao controle sutil do mercado.
Nesses termos e reconhecendo os parâmetros da Constituição Federal brasileira para a saúde, a questão fundamental a ser enfrentada é a de reduzir o sofrimento, recuperar a saúde e preservar a vida como prioridade absoluta nas políticas estatais. Contudo, ao gerar a desassistência e não acolher, de algum modo, o cidadão-vulnerado, potencializa o seu sofrimento e compromete a sua recuperação.
((gestores)) alegam que há intromissão indevida do Judiciário no mérito dos atos administrativos... se alguém entra:: ele tem que ser atendido... não importa se ele não esteja na lista de prioridades... porque se acontecer vai dizer que a culpa é minha inclusive... que não deferi (D4)
acho que talvez exista mesmo uma dificuldade néh:: nessa compreensão pelo Poder Judiciário desses argumentos técnico-sanitários. (PE10)
isso aí é o princípio da proporcionalidade... arma-se uma equação com proporções ou qual é o bem jurídico que pesa mais? é a saúde? é a vida? ou é a questão financeira e econômica do Estado? não é... é assim que se decide... é a vida muitas vezes... se ele não tiver o tratamento ele morre... há risco de morte... então não é essa banalidade que dizem (D4).
o controle ((jurisdicional)) existe:: tem que existir... mas o que acontece hoje não é controle porque não se analisa criticamente as decisões administrativas do sus... simplesmente se defere qualquer coisa (PE10)
O ingresso do cidadão na microjustiça de medicamentos ocorre com a gênese do litígio, ainda sob o comando deliberativo do sistema de saúde, ou seja, quando é negado o fornecimento do medicamento prescrito com base na “justiça” do Executivo, pautada na regulação de recursos e provisões. Já a judicialização se expressa quando o cidadão ingressa no sistema judicial; nesse caso, a deliberação passa a ser uma atribuição da judiciário, ou seja, o lugar onde supostamente se faria a justiça institucional do Estado. Há uma relação autoimune entre os poderes federados, tendo em vista a proteção da vida e a defesa do direito à saúde.
um juiz:: não é a pessoa mais habilitada para decidir sobre conflitos sanitários e nem sempre um processo judicial é a melhor forma de se garantir a solução de conflitos (PE10)
aí é escolha trágica:: é a questão::... o Estado não pode escolher quem é que morre e quem é que não morre:: ora essa... isso é uma guerra? Estamos em guerra? É isso que nós estamos? que guerra é assim... mas isso não pode ser visto como uma guerra (D4)
Na medida em que a normalização político- administrativa se opõe aos critérios de cuidado estabelecidos entre o médico e o paciente, ou seja, se opõe à necessidade alegada no laudo e na prescrição, a normalização médica ganha um aliado, o Judiciário, pois, para o cidadão, a defesa de seu direito é o único modo de garantir a provisão alegada como essencial à vida.
esses conflitos em saúde:: sempre existirão... porque eu tenho demandas que são altamente sensíveis ao paciente... enfim:: ele sempre que se vê numa situação:: ele seus familiares:: de muita dificuldade néh? de:: lidar com a doença néh? qualquer resistência que se faça... e resistência eu digo qualquer resposta que seja contrária aquilo que se acreditava que era melhor... de alguma forma vai gerar um conflito... sempre se buscará então o Judiciário (PE10)
A amplitude das normas constitucionais que tratam do direito fundamental social à saúde e a tendência do judiciário em deliberar o fornecimento da primeira indicação terapêutica, assim como a própria condição de saúde, colocam para o usuário possíveis movimentos objetivos e subjetivos na luta pela provisão do medicamento prescrito. Seu corpo ganha uma potência para agir, agenciado pela possibilidade de obter o recurso necessário ao cuidado à sua saúde. A esse movimento de resistência às imposições do Executivo, chamamos “biopotência”, o que impulsiona o usuário a agir nesse cenário. A biopotência não se contrapõe necessariamente à biopolítica, mas ela produz uma política da vida própria dos que sofrem, criação dos “de baixo”, que procura a garantia plena de oportunidades, mínimas ou existenciais, para uma vida qualificada e produtiva.
acaba sendo inevitável porque não decidem lá... então corre todo mundo pro Judiciário... porque é - - - - queira ou não - - - - a última trincheira a que o cidadão vai dizer assim “olha aqui... eu tenho esse direito... estão me tirando o direito”... é aqui que resolve e é aqui que mais se marreta... infelizmente (D4)
O cuidado para o Judiciário é pautado na plena efetivação do direito à saúde, mas capturado sobretudo pela norma legal, sem que haja um encontro produtivo e cumpliciado com o cidadão. Portanto, não se estabelecem vínculo e corresponsabilidade com a vida em juízo, embora, esse cuidado potencie a vida na luta contra a medida restritiva do Executivo estadual e zele pelo direito à vida e à saúde.
Assim, ao reverberar frequentemente a decisão do médico em manter ou não a prescrição, o Judiciário passa a fomentar a ideia geral segundo a qual o cuidado está associado ao consumo. Age por parâmetros de uma ética biomédica, promovendo assim um encontro entre o usuário e as lógicas instrumentais e capitalísticas de cuidado. O encontro com toda a instrumentalização da relação de cuidado produz no usuário a sensação de estar sendo objetificado, deixando no plano secundário o seu sofrimento e dor; seu corpo afetivo é reduzido ao plano da “coisa”. O feito desses afetos no seu corpo causa-lhe o sentimento de tristeza, o que reduz a sua potência de agir nesse cenário, em benefício do próprio cuidado. Para Spinoza 23, quando o corpo é exposto a afetos negativos, proveniente de um mau encontro, ele é tomado por uma “paixão triste”, que reduz a sua potência de agir; trata-se de uma condição subjetiva que interfere no modo como a pessoa conduz a sua ação no mundo da vida. O inverso também acontece, ou seja, a alegria produzida por um bom encontro aumenta essa potência.
Portanto, o Judiciário, como um último recurso acessível ao cidadão, pode também produzir um agenciamento, pelo qual ele tem sua energia vital aumentada, na medida em que há a possibilidade de obter os recursos necessários ao seu cuidado, no caso, o medicamento.
Do mesmo modo, o agir do Judiciário, pautado nos parâmetros de uma ética de cuidado na prática médica, proporciona um bom encontro com o usuário, aumentando sua potência de agir e, portanto, ampliando sua percepção de produção de vida com autonomia.
quem avalia o que o paciente necessita é o médico... o Judiciário julga se há direito àquele pedido (D2)
o Judiciário acaba sendo utilizado como um meio pra/:: promoção de interesses que não são os interesses de saúde do paciente:: mas interesse econômico da indústria (PE10)
a indústria pode sim:: tornar um medicamento relevante para o manejo de alguma doença... e pela falta de acesso daquele referido medicamento no sus acaba acarretando um número significativo de ações (G1)
às vezes a judicialização é uma via pra/ forçar a incorporação (DP11)
a saúde ela ainda é vista pelo Poder Judiciário - - - - até estimulado muito pela:: lógica da medicalização - - - - apenas na sua dimensão negativa... como a ausência de doenças... cabe apenas ao médico:: e infelizmente muitas vezes influenciado pela indústria farmacêutica:: dizer o que vai garantir saúde (PE10)
Cabe ressaltar que a dificuldade em ter parâmetros para avaliar a pertinência da demanda, comparando-a à padronização ou verificação quanto ao mérito técnico, balizada com interesses de mercado sobre aquele produto, inviabiliza o julgamento objetivo. Resta sempre a dúvida de qual parte está defendendo de fato a vida; logo, o ato de atribuir a plena responsabilidade do cuidado com o cidadão ao médico, reproduzindo a decisão que consta na prescrição, sem um olhar mais criterioso sobre a demanda e as condições oferecidas pelo sistema público de saúde, permite ao Judiciário, sob os efeitos da tutela do desconhecimento da matéria apreciada, isentar-se da responsabilidade sobre aquela vida em juízo e seu eventual risco de morte.
o médico que acompanha o paciente é a pessoa mais habilitada para decidir o que é melhor para ele (D2)
não é possível ficar se alegando sempre que existem terapias alternativas... até porque a gente não sabe bem... o Estado nunca diz bem... nunca produz a prova do que é essa terapia alternativa (D4)
essas demandas de saúde são altamente complexas... mas são tratadas como se fossem demandas muito simples::... o que eu acho que acontece é que se estabelece pra/ tornar fácil até o processo decisório:: nessas demandas de saúde:: (PE10)
((juízes)) acabam deferindo ((a favor)) por uma insegurança em relação ao outro... o medo de você tá/ intervindo na vida de algumas pessoas e que isso possa resultar num/ dano maior (G7)
o magistrado ele acaba tendo uma posição de mais conforto... ainda que aquilo juridicamente possa ser indicado como equivocado ele é moralmente aceito... é:: uma área ainda que é fácil atuar sem muito:: compromisso ou responsabilidade técnico-jurídica... não gera nenhum tipo de ônus:: ao Judiciário (PE10)
O acesso ao sistema judiciário é uma primeira dificuldade para os que decidem a via judicial para obter medicamentos. É necessário que o usuário esteja imbuído de uma potência que aja sobre seu corpo, como energia propulsora, e o coloque em condições de enfrentar o Estado. Isso diz respeito à sua subjetividade, ou seja, a potência nasce do desejo de realizar o seu direito e reivindicar aquilo que lhe cabe na defesa da sua vida.
Nesse contexto, cabe destacar que as repercussões das decisões individuais não são estendidas a outras pessoas, que eventualmente se encontram na mesma situação dos que demandam as ações de fornecimento.
sem dúvida nenhuma eu tenho aí um efeito de exclusão daqueles que não acessam e que não conseguem:::: obter os mesmos caminhos para aquela pretensão... néh:: que se deduziu em juízo (PE10)
eu hoje vejo a Defensoria Pública como também uma porta de entrada do sus... nós viramos isso infelizmente... por n motivos:: mas viramos:: e a gente precisa saber lidar com isso... de uma forma construtiva e não destrutiva do sistema... (DP11)
Obviamente, o Judiciário também é acionado por meio de ações coletivas que, quando resolutivas, tendem a garantir direitos antes não efetivados no âmbito individual. Todavia, quando essas causas coletivas são indeferidas, acabam por contribuir para o aumento de ações movidas individualmente.
nós temos as ações coletivas... mas ainda há uma liti- giosidade individual muito forte (D4)
A insustentabilidade da decisão que decorre do não acompanhamento do cumprimento da deliberação de fornecimento da pretensão pelo Judiciário, ao longo do tempo, é outro ponto que deve ser destacado. Ela indica uma fragilidade do controle do jurídico sobre a política, que abre espaço para a desassistência do cidadão pelo Executivo, após um curto período de cumprimento da decisão judicial, a fim de permitir, apenas, o arquivamento da ação ajuizada.
o Judiciário de forma assim:: quase que automatizada néh? defere qualquer prestação a qualquer tempo:: qualquer momento sem nenhum tipo de juízo em relação à resistência do sus... e aquilo então se perpetua... porque ah:: tudo bem:: então no seu caso concreto você recebeu... vai receber... vai ter muita dificuldade de continuar recebendo porque você não foi incorporado ao sus... você saiu dele (PE10).
foi muito dificultoso pegar o remédio... às vezes eu não conseguia... minha filha disse “desiste disso... porque a gente vai fazer um esforço pra/ comprar o remédio” e comprava... é tanta rigidez... é tanta exigência... muita gente:: às vezes até:: morre porque tem dificuldade de:: fazer as coisas que o Estado... o governo exige néh::... e as pessoas mais pobre acabam morrendo por que:::: não correm atrás... mas:: graças a Deus agora eu tô/ bem... tô/ pegando pelo plano de saúde:: não tem problema nenhum:: eles marcam o dia certinho e eu vou lá pego... e:: tá/ bem melhor que antes (C5)
ter que pagar o plano de saúde pesa... a mensalidade já aumentou porque eu já tô/ com setenta e um... então aumentou outra vez (C6)
eu recebia... aí parou... quando foi um tal dia:: eu fui receber e não tinha... aí eu fiquei ligando... fiquei ligando... nunca tem mais néh::::... tem talvez uns cinco meses que parou ou mais... eu comprei alguns meses... mas agora eu estou recebendo porque eu tenho um planozim/ ((plano de saúde)) néh:::: me informaram que o plano dava remédio... agora tem uns dois meses que eu recebo pelo plano... aí deixei de comprar... não posso parar... porque se parar o câncer volta (C8)
eu não tô/ recebendo desde o ano passado... eu cheguei a ter que comprar... eu não posso ficar sem ele néh? então eu tive que comprar (C9)
Observa-se que, de modo geral, tanto o sistema de saúde quanto o sistema de justiça não foram resolutivos para os casos em questão.
O “reconhecimento parte da subjetividade e não da generalização dos modos de vida” (24, p. 274). Assim, um cuidado ético em saúde só pode ser minimamente reconhecido pelo próprio cidadão se resultar no atendimento satisfatório e, sempre que possível, resolutivo de suas necessidades. Portanto, é indesejável que um cuidado que se propõe ético resulte em desassistência, seja contínua, seja transitória, do vulnerado, o que tende a gerar desacreditação e insatisfação com o serviço público prestado, conduzindo-o a buscar outras vias para a continuidade terapêutica, seja pela compra direta, seja migrando para os planos de saúde.
Nesse sentido, na cadeia de encontros que constituem a microjustiça de medicamentos oncológicos, os diversos protagonistas agem em uma dinâmica consecutiva e sucessiva de decisões, que determinam e impactam diretamente no cuidado que é produzido com o cidadão.
Nessa cadeia de encontros, há a adoção de distintos parâmetros éticos, contrários ou complementares, tais como os parâmetros de uma ética biomédica, centrada na medicalização; uma ética de mercado, centrada na mercantilização da doença ou da vida; uma ética utilitarista, centrada na maximização do bem-estar comum; ou, propriamente, uma ética de cuidado, centrada na defesa da vida e do direito à saúde.
Esses parâmetros éticos tendem a fundamentar a argumentação e orientam as deliberações dos protagonistas envolvidos nesses litígios. Podem promover a “potência de vida” pelo exercício de uma política em defesa da vida, quando o cuidado produzido é reconhecidamente resolutivo, expressando um compromisso ético com a vida qualificada, ou podem promover a “potência de morte” pelo exercício de uma política sobre a vida, quando, em defesa de interesses avessos a um cuidado singular, os atos resultam em uma assistência insatisfatória e ineficiente. Ou, na pior das hipóteses, resultam em desassistência, acelerando a abreviação da vida ou contribuindo para isso.
Conclusões
No contexto da microjustiça, que contempla o cenário da judicialização, observa-se que as deliberações dos profissionais são consoantes, direta ou indiretamente, com a normalização médica ou com a normalização político-administrativa, gerando tensões na efetivação do direito constitucionalizado à saúde. Isso compromete a sua devida aplicabilidade e operacionalização política devido ao incessante movimento ora de ampliação, ora de redução da força da norma constitucional, respectivamente, pelo agir médico e pelo agir político.
Nesse sentido, pode-se observar que há uma tensão constitutiva das relações que visam ao provimento de medicamentos no âmbito do SUS, e a variação que se observa é da intensidade das forças que, em disputa, compõem essa relação e operam tanto na dinâmica do poder sobre a vida, o biopoder, quanto no poder da vida, a biopotência.
Esses distintos parâmetros éticos, tal como exposto, e quando se encontram com o usuário, provocam um efeito que se associa à produção no seu corpo de uma “potência de vida” e uma “potência de morte”, ao orientarem o agir profissional diante de um cidadão vulnerado, transformando-o em cidadão pleno ou um ser objetificado. Há uma radical variação de sentidos, potências e vida, dependendo da forma como o Estado, nas suas várias esferas de governo, ou o poder judiciário se relaciona com a necessidade do outro, em manter a sua saúde e na defesa da vida.
A prática de cuidado pode conduzir a uma política da vida, quando, por exemplo, os projetos terapêuticos são pactuados, o acesso a medicamentos e outros insumos são proporcionados, enfim, quando há uma composição entre o mundo das necessidades e os recursos disponibilizados ao usuário. Nesse caso, a produção do cuidado pode contribuir para o processo de maior vitalidade, o que significa que o usuário terá um protagonismo no seu processo de cuidado, podendo resultar objetivamente em melhoras no quadro clínico.
A situação contrária a esta, em que o usuário é objetificado, a ele é imposta uma intervenção sobre seu corpo sem nenhuma negociação. Sua atividade de autocuidado será diminuída, como efeito da redução da sua vitalidade, pois não há uma composição de afetos positivos sobre seu corpo nesse caso. Desse modo, conclui-se que todo cuidado é ético, já que distintos parâmetros éticos orientam a ação dos envolvidos, mas nem todo cuidado é reconhecido como ético, especialmente pelo cidadão, pois pode resultar na satisfação de interesses divergentes às necessidades ou aos interesses propostos no pacto de cuidado estabelecido entre profissional e usuário.