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Universitas Psychologica
Print version ISSN 1657-9267
Univ. Psychol. vol.7 no.3 Bogotá Sep./Dec. 2008
Educação em direitos humanos: reflexões sobre o poder, a violência e a autoridade na escola
Education in Human Rights: Reflections on Power, Violence and Authority in the School
FLÁVIA SCHILLING**
Universidade de São Paulo, Profesora de la Facultad de Educación de la Universidad de São Paulo (USP), Brasil. Integrante de la cátedra UNESCO de Educación para la Paz, Derechos Humanos y Tolerancia. Correo electrónico: oak1@uol.com.br
Recibido: febrero 12 de 2008 Revisado: abril 27 de 2008 Aceptado: agosto 15 de 2008
RESUMO
Este artigo apresenta uma reflexão sobre direitos humanos e educação a partir de uma experiência de intervenção em três escolas da Cidade de São Paulo, visando reduzir a violência existente em seu cotidiano. Propõe-se a necessidade de pensar articuladamente a questão da realização da educação como um direito humano considerando as relações de poder e autoridade existentes na escola. Quais são os dilemas que enfrentamos na atualidade para a realização da educação como um direito humano, na difícil história brasileira? É possível pensar em uma autoridade democrática na escola, quando predomina a visão de que autoridade seria aquela do chefe despótico ou quando se verifica a ausência da possibilidade de ocupação do lugar de autoridade na escola? Como esta discussão se articula com a da violência no cotidiano escolar? Estas são algumas questões que permeiam o debate proposto neste artigo.
Palavras chave Direitos humanos, educação, autoridade, poder, violência.
Key words plus Human Rights, Educational Institutions, Violence in Education, Authority, Power (Psychology).
ABSTRACT
This article explores human rights and education based on an intervention experience conducted in three schools located in Sao Paulo City, which had as its main goal a substantial reduction in violence (2004-2005) . The guideline was that education should be considered a basic human right, taking into consideration the power and authority relations that exist within this institution. What are the problems that we face, nowadays, to consider education as a human right, in the difficult Brazilian history? Is it possible to think about some kind of democratic authority within the school, when our vision of authority is linked to despotic leaders, or even when there is no space for any authority? How does this discussion associate with the violence in our daily life in school? These are some of the questions included in the debate proposed by this article.
Key words Education, Human Rights, Authority, Power, Violence.
Key words plus Human Rights, Educational Institutions, Violence in Education, Authority, Power (Psychology).
Só se pode confiar nas palavras quando se tem certeza que a função delas é revelar e não dissimular. (Arendt, 1973, p. 139)
Nos últimos anos, presencia-se o esforço desenvolvido por setores governamentais e não governamentais para disseminar a informação, o debate e a prática dos direitos humanos nas organizações.
Há uma primeira dificuldade a ser destacada: a difícil história dos direitos -e das leis que os materializam-, no Brasil. Como trabalhar com "direitos", quando os direitos são vistos como privilégios, quando demoram tanto para serem universais?, Quando parecem desligados dos deveres, seu correlato imprescindível?, Como trabalhar com o Estado de Direito, com o respeito às leis, em um país que as percebe como injustas, ineficazes, reprodutoras da desigualdade social?, (Schilling, 1999). Quando lidamos com a violência, com suas múltiplas faces?
Este é, ainda hoje, o grande desafio de um trabalho de educação em direitos humanos. O valor da lei para a manutenção da liberdade, da igualdade, da segurança sem privilégios nem discriminação precisa ser construído coletivamente. O mesmo acontece com o reconhecimento dos direitos como universais e recíprocos. Enfrentar estas questões é fundamental para este discurso sobre os direitos humanos e a educação não seja mais um "discurso bonito" e impotente. Como realizar os DH no cotidiano, quais são as responsabilidades da escola e quais os seus limites, qual será o caminho para a construção de uma vida justa em comum?, Qual é o lugar a ser ocupado por nós, professores?
Neste pequeno artigo pretende-se articular a discussão sobre o trabalho com direitos humanos nas escolas com as questões do poder, da violência e da autoridade. Para tanto, recorro ao relato de uma experiência de intervenção em escolas da rede pública, que apresentavam situações de violência em seu cotidiano. O trabalho de intervenção revelou que o tema da autoridade, a possibilidade de construção de relações de poder democráticas e de uma autoridade democrática é chave para a resolução não violenta de conflitos, para o não apagamento do outro.
Relato de uma experiência de intervenção: violência, poder e autoridade na escola
É como se estivéssemos sob algum encantamento, que nos permitisse realizar o "impossível" com a condição de não podermos mais fazer o possível, para realizarmos proezas fantasticamente extraordinárias com a condição de não sermos mais capazes de atender nossas mais banais necessidades diárias. (Arendt, 1973, pp. 155-156)
Em 2004/2005 participamos de um trabalho de cultura da paz nas escolas1. O projeto teve como ponto central a construção de um diagnóstico sobre as situações de violência no ambiente escolar de três escolas da rede pública e, a partir deste diagnóstico, a construção, naqueles coletivos, de uma proposta de metodologia de intervenção. O ponto de partida foram as queixas dos professores, coordenadores e diretores. Uma primeira constatação foi a verificação de ausência de precisão na descrição das violências que permeavam o cotidiano escolar. Algumas escolas pareciam mergulhadas em um ambiente de violência. Foi preciso perguntar: quais são as situações compreendidas como violentas?, O que é violência?, Onde aparece?, Ocorre contra quem, entre quem? Verificava-se que, em algumas escolas, predominava um ambiente hostil: o bairro e os alunos eram temidos, a relação entre os adultos era de desconfiança. A sensação predominante era de desamparo, impotência, temor.
Percebeu-se, no decorrer do trabalho, que a instituição escolar não tinha compreensão de sua história -no bairro, por exemplo-, do lugar que ocupava, da importância de sua fundação naquele lugar. Qual é a história de uma instituição considerada pelos seus agentes como "violenta"? Há uma história desta violência que precisava ser recuperada. Havia uma atribuição de responsabilidade à situação vivida internamente, na escola, ao bairro, ao entorno. Porém, constata-se que a violência não é uma fatalidade e a violência externa à escola não necessariamente produz uma escola violenta.
Havia ausência de clareza nos papéis desempenhados pelos diversos atores envolvidos: diretor, coordenadores, professores, alunos, pais. Nestas escolas, ninguém sabia qual era o lugar que ocupava ou como construir um lugar de autoridade, quais seriam as competências e atribuições de cada um. Esta observação reforçava algo que já sabíamos a partir de alguns relatos:
De um modo geral, pudemos perceber que se a omissão ou a postura autoritária e repressiva de diretores e professores tem efeitos devastadores na piora da violência nas escolas, a superação desse quadro de medo parece estar diretamente ligada à capacidade que a escola demonstra ter para debater e enfrentar os problemas e as situações de violência como uma situação comum a todos e que, por isso, necessita do apoio e da compreensão de todos para ser superada. (Rede de Observatorios de Direitos Humanos, p. 81)
As estratégias propostas refletiram uma determinada compreensão da complexidade da instituição escolar em suas relações com a localidade, a cidade, o Estado. Não haveria, portanto, possibilidades de intervenção -transformação das relações estabelecidas no cotidiano escolar- sem levar em consideração essa complexidade-. Algumas dimensões e princípios que nortearam as ações foram os seguintes:
1. A escola está na cidade. Discutiu-se a escola vista como um bem público, que representasse um lugar de interlocução e de desenvolvimento local, com uma história e uma contribuição. Desta constatação surgiram estratégias que diziam respeito à participação de diversos parceiros locais, de acordo com os projetos que se desenvolveram.
2. A escola está em um sistema de educação. Não é uma instituição isolada, pertence a um sistema com determinadas normas e regras. Não tem autonomia total para mudanças, depende de um bom relacionamento com os demais níveis hierárquicos. Muitos dos problemas detectados no cotidiano escolar derivam das regras gerais de funcionamento do sistema. Este é, portanto, um dos pontos a ser considerado no desenvolvimento de estratégias de intervenção.
3. A escola é um espaço de encontros (e de conflitos) entre gerações, entre profissionais de diferentes especializações e hierarquias, entre diferentes visões sobre educação, sobre ensinar e aprender. As relações entre equipe de direção e professores, professores e alunos, alunos, professores, direção e demais funcionários, alunos entre si, professores entre si, são, desta forma, um ponto central das estratégias de intervenção que visaram a compreensão da possibilidade do fazer educativo sem violência a partir do tratamento dos conflitos, constituintes deste fazer. Parte-se do princípio que o que define uma democracia ou uma instituição democrática não é necessariamente o consenso, mas a possibilidade de lidar com o dissenso de forma não violenta. Daí a orientação geral, nestas estratégias de intervenção, de refazer (ou construir) possibilidades de encontro e interlocução entre os vários atores que estão na escola.
4. Outro princípio que rege estas estratégias de intervenção é a confiança na capacidade de cada um dos atores envolvidos de propor, decidir e, transformar seu cotidiano. Cada um dos setores envolvidos tem seu papel, suas atribuições e capacidades para transformar a escola. Se esta tarefa apresenta-se como inglória ou impossível quando pensada no plano individual, torna-se possível quando pensada como uma construção coletiva.
5. As estratégias propostas, mesmo que humildes e simples, devem ser vistas como primeiros passos em uma tarefa de médio e longo prazo, que passa pela possibilidade de transformações mais profundas da vida da cidade, do sistema escolar estatal e da escola.
Verifica-se, portanto, que o projeto de redução da violência no ambiente escolar tem como centro um intenso trabalho de diagnóstico das condições de cada uma das escolas (Sposito, 2003). A ausência de clareza sobre possibilidades de atuação por parte dos adultos da escola era central para o clima de desânimo, medo, incerteza, temor em relação aos alunos, vistos como fonte de todas as violências. Esta situação refletia-se na dificuldade para o trabalho em conjunto, para o planejamento e formulação de um projeto político-pedagógico da escola, para as trocas cotidianas. As visões de cada um dos setores sobre si mesmos e sobre os demais apareciam marcadas por estereótipos e preconceitos. Havia, também, dificuldades como o de compreensão do que seria um "projeto". De fato: como construir um projeto -uma tentativa de construir algo que aponta para um futuro- em um ambiente marcado pela incerteza, insegurança e ausência de motivação?
A medida que este trabalho de diagnóstico se desenvolveu, as primeiras ações visaram o fortalecimento da instituição e de cada um de seus segmentos: tratou-se da formação, do fortalecimento dos professores e da equipe técnica. Isto derivou do dado já citado -da dificuldade de ocupação do lugar de autoridade- que sugeriu a necessidade de ações para que cada um pudesse ocupar o seu lugar como autoridade, que possui um saber, uma experiência, um lugar institucional. Neste trabalho de aproximação e criação de possibilidades de interlocução tentou-se dar conta de superar a relação de desconhecimento -e, desta forma, de medo-, que permeava as relações entre professores, destes com os dirigentes e de todos em relação aos alunos.
Um ponto de partida foi a discussão sobre o lugar da potência, sobre o que seria possível fazer. Desta identificação saíram as linhas mestres de atuação do projeto. Nem tudo é possível, porém, algo é possível: a identificação deste ponto é central. Desta definição conjunta do que é possível, começam as definições de competências, de responsabilidades. O que cabe ao poder público, representado pela Secretaria de Educação? O que cabe ao diretor, aos alunos? Foi fundamental, nesta reflexão, a revisão e retomada constante dos objetivos do projeto, identificando possibilidades e limites, retomando, a todo momento, as competências e os lugares a serem ocupados por cada um dos integrantes. Se em todo trabalho de intervenção há limites, estes devem ser especialmente claros quando lidamos com situações de violência. É importante reconhecer quais são os limites que podem e devem ser superados e quais são os que, detectados, não dependem diretamente da intervenção da equipe do projeto e devem ser encaminhados.
Há limites que existem por carecerem de políticas públicas mais gerais de reversão da violência. Há aqueles derivados de limites estruturais do próprio sistema de educação brasileiro, que se reflete, por exemplo, remoção e troca constante das equipes das escolas. Há uma instabilidade estrutural no corpo de professores nas escolas brasileiras que dificulta -ou impede- qualquer proposta de ação que envolva um coletivo. E, como sabemos, uma transformação do cotidiano escolar depende exatamente da possibilidade de construção de coletivos, do desenvolvimento de ações coletivas. Essa questão, estrutural, tem conseqüências: cria, nas escolas, uma enorme fragmentação entre as pessoas e grupos, não possibilitando a construção de uma história e uma trajetória comum, diálogo entre os setores, que diziam sentir-se isolados e enfraquecidos, não acreditando em qualquer possibilidade de mudança ou superação dos problemas das escolas. A instabilidade estrutural do quadro dos trabalhadores das escolas é um dado e define limites ao trabalho.
A diversidade das estratégias montadas espelhou a concepção original do "Cultura da Paz" que entende a escola como uma organização complexa e sujeita, portanto, a intervenções múltiplas para conquistar o objetivo da mudança das relações. Tratou-se, portanto, a partir da definição de competências, de um projeto de intervenção sobre todos os setores: os dirigentes da Secretaria da Educação; direção; equipe pedagógica da escola; professores; funcionários, alunos e pais. Envolveu, também, organizações não governamentais que trabalham no apoio às escolas. Este é um tipo de estratégia muito relevante, pelos resultados obtidos, e, principalmente, pela superação do isolamento da escola. Como exemplo desta estratégia de trabalho, cabe ressaltar as reuniões entre escolas participantes do projeto. Os participantes percebem que fazem parte de um movimento maior, que há experiências bem sucedidas que podem ser trocadas, é possível reverter um quadro de desânimo e violência. Inclusive, cabe ressaltar a justeza da escolha destas escolas participantes, com níveis diferentes de comprometimento e tempos já diferentes de intervenção. Esta heterogeneidade, do grupo de escolas participantes, revelou-se um ganho e pode ser considerado como um dos resultados do trabalho: quando se elege um grupo de instituições para intervenção, recomenda-se que se formem grupos de escolas com patamares diferentes de organização e problemas.
São ações que produzem resultados imediatos, elaboradas em dois níveis:
• Aquelas que tratam do fortalecimento da equipe de professores, da equipe técnica, para a elaboração de propostas de melhoria das relações e resolução de conflitos no cotidiano escolar.
• Aquelas que ampliam as possibilidades de diálogo entre os diversos setores da escola e da escola com setores da comunidade local, quebrando o isolamento que cerca a escola.
Alguns resultados imediatos são aparentemente singelos: a melhoria das condições de limpeza da escola, seu embelezamento, a possibilidade de que os horários pedagógicos sejam usados com esta finalidade e sejam produtivos, a possibilidade de que os professores conversem entre si, entre si e com os alunos, com a direção. Porém, sem o estabelecimento destas condições mínimas, não há como mudar o ambiente escolar, construir uma "cultura da paz".
Retomando, brevemente, podemos dizer que uma política pública que vise a redução da violência no ambiente escolar deve considerar que:
• Há especificidades em cada escola em relação à violência no ambiente escolar e há caminhos próprios para a sua superação, tanto em relação às parcerias internas e externas possíveis como em relação à linguagem e conteúdo do trabalho. Ignorá-las seria tratar os sujeitos como "coisas" e reproduzir a violência política (institucional). Daí a importância de um intenso e profundo trabalho de diagnóstico institucional. Ao mesmo tempo é possível perceber caminhos comuns, diretrizes para a ação que podem ser multiplicadas.
• A escola é uma instituição complexa, inserida em uma rede estatal e pública, com diferentes atores que devem participar. Dirigentes, diretores, equipe pedagógica, professores, alunos, funcionários, familiares, setores da sociedade civil, são chamados a ocupar o seu lugar na defesa da escola, na construção de uma escola democrática e inserida no desenvolvimento local, regional e nacional. Esta rede de cultura permite uma primeira superação da sensação de isolamento dos diversos setores que compõem a instituição escolar. Fundamentais foi a presença de organizações da sociedade civil, de representantes da diretoria de ensino apoiando e participando das ações, das famílias e os encontros entre as escolas participantes, trocando experiências.
• As atividades propostas partiram do pressuposto do reconhecimento dos problemas maiores, estruturais e organizacionais, sociais e econômicos existentes, mas centraram-se nas ações possíveis, naqueles que estão ao alcance de todo cidadão. Estas ações possíveis, propostas de dentro da escola, com os grupos que se disponham a mudar a escola e seu ambiente, podem ser pequenas ou humildes ações. Basicamente trata-se de desenvolver uma cultura de "potência" que se opõe à impotência ou à onipotência, da criação de "pontes", diálogos, encontros entre as diversas pessoas da instituição. Foi, desta forma, que houve a possibilidade de cada um, na instituição, vir a ocupar um lugar.
A questão da autoridade: quando ninguém ocupa seu lugar
A tirania moderna é multicentrada, além de substituir a autoridade pela força, cria um vazio de ordem, preenchido pela violência, onde os mecanismos educacionais deveriam funcionar. À incivilidade e à incapacidade de negociar, adicione-se a incapacidade de exercer compaixão ou empatia, isto é, de se colocar no lugar do outro. Em vez disso, a rapidez em colocar rótulos e em identificar os inimigos ou culpados, junto com a rapidez de justiçá-los através da violência. (Zaluar, 1994, p. 261).
A participação neste projeto deixou clara a importância de discutir poder e autoridade na educação. Uma das constatações do diagnóstico nas escolas que apresentavam queixas sobre violência no ambiente escolar foi a de que "ninguém ocupa o seu lugar": o aluno não ocupa o seu lugar de aluno, o professor não ocupa o seu lugar de professor, os coordenadores não coordenam, a direção não dirige. A percepção era de ambientes abandonados, lugar de passagem, não lugar.
Porém, o que é ser professor senão ocupar um lugar? Que lugar é este, na atualidade? Nós, como professores expomos nosso corpo, ocupamos um lugar -no espaço e no tempo- diariamente. Ocupar um lugar e expor o corpo é algo difícil, algo que mobiliza. Expor o corpo é expor sua vulnerabilidade. Sua fragilidade. Como fazer para que nosso frágil corpo não sofra violência, quando exposto, quando ocupa um lugar - separado?, Ou como ocupá-lo, no Brasil, sem cair no autoritarismo, na repressão, gerando mais violência?, O que é autoridade?
Encontramos uma interessante discussão sobre a autoridade no Brasil, em um texto de Alba Zaluar, que tem um título muito significativo: "A Autoridade, o Chefe e o Bandido" (1996). Verifica a fusão do conceito de autoridade à de autoridade governamental. Quem não ouviu falar de "desacato à autoridade?" Constata, no país, o cruzamento entre o tipo de autoridade tradicional com a autoridade racional-legal, como se o pré-político houvesse entrado na república, fazendo com que o conceito de autoridade, entre nós, se tornasse fársico. Percebe o "uso indevido do termo autoridade para camuflar um poder não mais derivado do valor moral do superior hierárquico que acumula as funções educativas, na medida em que servem de exemplo para as gerações seguintes" (Zaluar, 1994, p. 258).
Aqui, a autoridade confunde-se com o "chefe", aquele cuja autoridade não induz ao respeito, mas consegue obediência pelo medo do seu poder (Apple, 1989). É materializada na figura de uma chefia despótica, que se rege por valores privados, com pouca atenção às regras da impessoalidade ou da justiça. Desta forma, por conta desta contaminação, hesitamos quando nos pedem que atuemos como autoridades. Teme-se que esta atuação esteja impregnada de autoritarismo, de violência, de despotismo. Daí a dificuldade em exercer um poder democrático, em pensar na autoridade democrática. É como fosse imprescindível ocupar o lugar daquele "chefe", daquele que manda. Como se não fosse possível ocupar o lugar de uma outra forma. A alternativa, frente a este dilema, é muitas vezes o que verificamos nas escolas estudadas, ninguém ocupando lugar algum.
Porém, haveria, segundo vários autores, antagonismo entre autoridade e violência e entre poder e violência. Para Arendt (1973, p. 123) o poder é a capacidade não apenas de agir, mas de agir de comum acordo. Há uma autorização dada a uma autoridade que é legitimamente vista como tendo poder para agir, de comum acordo com o decidido. A violência, em troca, se opõe ao poder e à autoridade.
O poder não necessita de justificação, sendo inerente à própria existência de comunidades políticas; o que realmente necessita é de legitimidade. O comum emprego destas duas palavras como sinônimos é tão enganoso e confuso quanto a identificação entre obediência e apoio. O poder brota onde quer que as pessoas se unam e atuem de comum acordo, mas obtém sua legitimidade mais do ato inicial de unirse do que de outras ações que se possam seguir. A legitimidade quando desafiada fundamenta-se a si própria num apelo ao passado, enquanto a justificação se relaciona com um fim que existe no futuro.
A violência pode ser justificada, mas nunca será legítima. (Arendt, 1973, p. 129).2
E a autoridade e o poder da pedagogia? A autoridade da pedagogia advém dela ser uma área que detém um saber sobre a criança (sobre o adolescente e o jovem) sabendo como governar seus corpos e suas almas, como dispor as coisas no tempo e no espaço de forma a alcançar seu objetivo: a boa educação.
Nós, educadores que ocupamos uma posição particular na transmissão da cultura da sociedade (...) temos um poder e uma autoridade que nos transcendem como indivíduos e que estão associados à posição social que ocupamos" (Dussel & Caruso, 2003, p. 226).
A erosão do conceito de autoridade -ou o fato da autoridade, no Brasil, ser fársica-, leva às seguintes perguntas: sabemos sobre as crianças, sobre seus corpos e almas?, Sabemos como governar a sala de aula?, Qual é o nosso prestígio social em uma época de erosão deste prestígio?, De erosão do valor do saber, do conhecimento?, Vive-se a condição de desprestígio ligado á condição salarial, de feminização do magistério, de falência da condição do adulto como alguém capaz de guiar -o jovem- a um lugar seguro. Há, ainda, algum lugar seguro?
Para situar as alternativas que temos, traremos algumas contribuições do livro "A invenção da sala de aula" (Dussel & Caruso, 2003):
A palavra autoridade vem do latim AUCTOR: aquele que causa ou faz crescer -portanto, fundador, autor. Vem também do francês antigo, em sua raiz AUGERE: incrementar. Nas duas acepções existe a idéia de uma força ou poder externo que provoca alguma coisa, que institui, que determina um sentido de mudança. Pensemos nestas afirmações: a autoridade decreta, a autoridade ordena, a autoridade penaliza, e a autoridade castiga (...) a autoridade também implica a ação de autorizar: dar permissão, deixar falar, sancionar como válido e legítimo. (p. 227).
É possível continuar a explorar o termo, pensar em como podemos ser autores: de uma idéia, de uma música, de uma história; ser autores de um determinado modo de fazer algo. Ser autores de nossa própria história. Encontrar, na palavra "autoridade" a "idade". Pensar, que, para sermos autores, é preciso ter uma certa idade. Estar no tempo, além de estar em determinado lugar. Ter idade, entre outras coisas para reconhecer que o mundo existiu antes de nós, que outros autores criaram antes de nós. Supõe uma determinada relação com os saberes anteriores.
Para complicar, e enriquecer um pouco mais a discussão, proponho retomar a classificação de tipos de autoridade, segundo os tipos de controle que exerce, de Weber (citado por Dussel & Caruso, 2003, p.228). Teríamos, portanto:
• A autoridade tradicional, cujo fundamento é a tradição e o costume.
• A autoridade racional-legal, cujo fundamento é a legalidade das normas e o direito dos indivíduos de ocuparem postos de comando em virtude de seus méritos para ocupá-los (diploma, concurso).
• A autoridade carismática, que se baseia no vínculo entre o líder e as massas.
É evidente que não há "tipos puros" de autoridade. Se pensarmos em nós, professores, como autoridades, veremos que esta se caracteriza por possuir elementos dos três tipos descritos por Weber: a tradicional, a racional-legal (que cresce nos últimos anos com as exigências de diplomas, cursos, concursos) e a carismática.
Para Weber, a questão primordial da autoridade é sua legitimidade: as pessoas obedecem voluntariamente à autoridade porque acreditam que é justa e as levará a um lugar seguro. Quando a autoridade é imposta por meio da força, já não se trata de um gesto de autoridade e sim de uma falta de autoridade, que fracassou na conquista do apoio voluntário das pessoas. Esta mesma idéia aparece nos escritos sobre autoridade de Hannah Arendt (1973). Diz, quando tenta diferenciar, poder, violência, força, autoridade:
Autoridade, que se refere ao mais ardiloso destes fenômenos, e que, portanto, é o termo mais maltratado, pode ser aplicado a pessoas -existe algo assim com a autoridade pessoal, como no caso das relações entre pai e filho, entre professor e aluno- ou pode ser aplicado a cargos, como no sentido romano nos cargos hierárquicos da igreja. Sua garantia é o reconhecimento incondicional daqueles que devem obedecer; não é necessária coação nem persuasão. (Arendt, 1973, ps.123-124).
Aquele que é autor, que causa e faz crescer, incrementa, que limita, que sanciona e legitima não precisa nem da persuasão nem da coação. Precisa do reconhecimento da justiça do seu argumento e sua legitimidade.
São, portanto, elementos da autoridade:
• O saber, vinculado à tradição.
• A experiência.
• O apoio legal, institucional.
Estes são alguns parâmetros para que possamos pensar no poder democrático, na autoridade democrática, que trabalha com as tensões institucionais, sem o uso da violência ou o apagamento do outro. Pensar sobre a diferenciação entre autoridade e violência ou poder e violência permitirá que ocupemos nosso lugar, em uma educação comprometida com os direitos humanos e a democracia. O desafio de pensar uma autoridade democrática implica em primeiro lugar poder conter estas duas questões: construir uma certa ordem que esteja, ao mesmo tempo, aberta e disposta à crítica e á transformação. O desafio seria pensar em ordens que contenham o paradoxo da autoridade e da liberdade em uma equação que não subordina a segunda nem desfaça a primeira (Dussel & Caruso, 2003).
Caminhos possíveis para a realização dos direitos humanos na educação
Sem um certo ordenamento simbólico e jurídico que nos "nomeie" e nos estruture em nossas relações com os outros, não há subjetividade, nem tampouco temos a possibilidade de contestar e discutir essa posição. (Dussel & Caruso, 2003, p. 233).
Há um número considerável de experiências em educação em direitos humanos em desenvolvimento por uma série de atores sociais: ONGs, setores governamentais, escolas. A primeira constatação a ser feita é a de que a educação é um direito humano (Organização das Nações Unidas [ONU], 1948) ONU, ). É um direito humano e um dos direitos humanos que serve como suporte e base para a realização de uma outra série de direitos. Desta forma não cabe falar em "educação para os direitos humanos" e sim em "educação em direitos humanos". Não se trata de ensinar um conteúdo que será usado em algum futuro provável e sim fazer com que as atitudes cotidianas reflitam a prática do respeito aos direitos humanos.
É um dos direitos humanos fundamentais para a realização de uma série de outros direitos humanos. Apenas as práticas educativas das escolas podem realizar de forma intensa o direito humano que nos diz que toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 27). Este é o objetivo central da escola, possibilitar o acesso aos bens científicos e culturais produzidos pela humanidade. Da mesma forma, é nestas práticas que conquistamos o exercício da liberdade de expressão, do acesso à informação que possibilite o usufruto dos direitos civis e políticos, dos direitos sociais e econômicos. Lembrando, sempre, que cada um destes direitos implica em seu dever correlato posto que o direito é necessariamente universal e recíproco.
As experiências de educação em DH são diversas. Tratam do acesso à justiça, da redução da violência e atendimento a vítimas, da luta contra a discriminação por idade, sexo, opção sexual, origem regional, raça. Desenvolvem projetos sobre saúde, trabalho e consumo, meio ambiente, de luta pela realização dos direitos econômicos e sociais. Estes projetos refletem a multidimensionalidade dos direitos humanos. Os direitos humanos são um conjunto de direitos, estreitamente relacionados entre si - indivisíveis- o que não quer dizer que mantenham, entre si, uma relação isenta de conflitos. São os direitos civis e políticos -os direitos da liberdade de expressão, reunião, associação, de crença e religião, de ir e vir, de escolher seus representantes, de não ser torturado, de ter um julgamento justo (Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigos 11, 12, 13, 18, 19, 20). São os direitos econômicos e sociais, da igualdade, de um trabalho (Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigos 22, 23, 24, 25) e vida digna, de saúde, previdência social, moradia e educação. São os direitos culturais e ambientais, os direitos da fraternidade, o direito ao desenvolvimento, à paz. São direitos que dependem uns dos outros para serem realizados: como poderemos assegurar o direito de todos à vida, à liberdade e à segurança pessoal em uma sociedade que não respeita o direito de todos a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar? (Declaração Universal dos Direitos Humanos. Artigos 3 e 25, respectivamente ).
Há experiências de educação em DH nas escolas, em diferentes níveis do ensino fundamental e médio. Priorizam, em alguns casos, a inserção da temática nos conteúdos das áreas e, em outros, a transformação da gestão escolar, a construção de uma gestão democrática. Sustentamos que o relato da intervenção no projeto Cultura de Paz nas escolas é um exemplo que ilustra a necessidade de uma intervenção no cotidiano escolar.
Trata-se do desafio de transportar o conteúdo das declarações contidas nos documentos escritos à vida das pessoas, alunos e professores, professores e comunidade. Como, porém, desenvolver um trabalho desta natureza, contrariando aspectos culturais que parecem extremamente persistentes, quando contamos com escolas que se encontram em posição de grande fragilidade, quando há aspectos estruturais e conjunturais tão negativos para a realização plena e universal destes direitos?
O projeto de intervenção citado explicitou em seu título um termo: "paz". Para não correr o risco de ser mais um "discurso bonito" e inócuo, focalizou as situações vistas como violentas pelos atores das escolas. Foi um projeto de resistência a um certo estado das coisas, um projeto que se opôs à idéia da violência como inevitável. Porém, qual é o significado do direito à paz?
Tratou-se de lidar com os conflitos. Significou, portanto, alguns reconhecimentos essenciais:
• O reconhecimento do conflito.
• O reconhecimento do outro.
• O reconhecimento da possibilidade de agir, de fazer, de dialogar com este outro ou com o reconhecimento de que podemos encontrar aliados que nos ajudem a resolver o conflito.
Três momentos, portanto, essenciais, nesta primeira e simples proposta de compreender o significado que, neste projeto, teve o termo "paz": os conflitos existem, fazem parte da vida em sociedade; os outros não são o nosso inferno; somos potentes, podemos resolver estes conflitos. Coube, portanto, a partir desta definição simples e inicial, perguntar: quais são estes conflitos, quais são as relações de poder envolvidas, quem são estes outros, qual é a possibilidade de agirmos e com quem? O que é possível fazer? Contrapondo-se ponto a ponto -sombra que é- a esta definição, podemos pensar que a violência expressa a existência de conflitos, porém é uma tentativa de eliminação do conflito eliminando o outro como sujeito (Schilling, 2004, 2005).
Resumindo, a concepção de "paz" do projeto, não foi sinônimo de supressão de conflitos. Foi, ao contrário, a de mostrar a possibilidade de lidar com eles, de forma a abrir as visões e as escolas para um mundo maior, conseguir encontrar formas de superar o silenciamento, o isolamento, o abandono, a impossibilidade de ocupar um lugar na instituição. O projeto trabalhou o tempo todo em torno do eixo de "colocar em contato, conectar". Partiu do pressuposto de que era necessário escolher uma ação inicial, começar a fazer, sem se preocupar com o tamanho ou dimensão da ação. Parte do pressuposto de que o trabalho de potência começa dentro da escola, depende da qualidade da relação do coletivo da escola. É de dentro que se transforma uma instituição. Além de conectar internamente, houve preocupação em conectar externamente. Enfrentou o desafio de construir coletivamente um lugar que pudesse orgulhar a todos que o freqüentam, que pudesse ser apresentado como exemplo, por opor, em seu dia-a-dia, a que gente seja tratada como coisa. Lidou, desta forma, com a idéia de autoridade (autor): autoria de projetos, autoria de ações, recuperação de saberes e experiências.
Este pode ser um exemplo de uma ação de direitos humanos nas escolas. Simples e complexa, girou em torno de uma determinada compreensão do lugar da escola, da complexidade das relações da instituição escolar, verificando seus limites e possibilidades de atuação. Para tanto, mais do que apresentar a informação sobre os direitos (e deveres) tentou-se uma transformação do cotidiano que permitisse que estes começassem a acontecer. Este movimento teve como ponto central a discussão sobre a autoridade na escola, a possibilidade de pensar -e ocupar- este lugar dentro de uma perspectiva democrática e de direitos humanos.
1 Projeto Cultura de Paz nas Escolas. SEE- FDE / Comunidade Presente - PREAL. Este projeto foi coordenado -brilhantemente-, pelas professoras Jurema Reis Corrêa Panza e Maria Lúcia Viera Libois. Contou com a participação de Uyara Schimittd, Adriana Gomes Mendonça, Dirce Maria Silva Banti e Paula Guimarães Marques de Souza. Participaram deste projeto piloto três escolas da rede estadual de ensino. 2004-2005.
2 "Resumindo: em termos de política, não basta dizer que violência e poder não são a mesma coisa. Poder e violência se opõem; onde um deles domina totalmente o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em perigo, mas se a permitem seguir seus próprios caminhos, resulta no desaparecimento do poder. Isto implica em não ser correto pensar no oposto da violência como sendo a não violência; falar em poder não violento é uma redundância. A violência pode destruir o poder, mas é totalmente incapaz de criá-lo" (Arendt, 1973, p. 132).
Referencias
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