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Opinión Jurídica

Print version ISSN 1692-2530On-line version ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.22 no.47 Medellín Jan./June 2023  Epub Sep 06, 2023

https://doi.org/10.22395/ojum.v22n47a13 

Artículos

A sucessão de estados em matéria de tratados territoriais e de fronteira à luz da jurisprudência da corte internacional de justiça

The Succession of States in Matters of Territorial and Border Treaties in the Light of the Jurisprudence of the International Court of Justice

La sucesión de estados en materia de tratados territoriales y de fronteras a la luz de la jurisprudencia de la Corte Internacional de Justicia

Tatiana Cardoso Squeff1 
http://orcid.org/0000-0001-9912-9047

Augusto Guimarães Carrijo2 
http://orcid.org/0000-0001-9492-6434

Antônio Teixeira Junqueira Neto3 
http://orcid.org/0000-0003-3624-3066

Willy Ernandes Costa Batista4 
http://orcid.org/0000-0003-0971-2699

1 Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, Brasil tatiafrcardoso@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-9912-9047

2 Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, Brasil; Saint Mary University, Halifax, Canadá augustocarrijo@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-9492-6434

3 Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, Brasil antoniojunqueira.cg@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-3624-3066

4 Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, Brasil willy7batista@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-0971-2699


Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir os efeitos e as consequências da sucessão de Estados no tocante aos tratados internacionais, especificamente, quanto aos regimes fronteiriços e territoriais edificados por tais documentos. Para tanto, utilizando-se do método dedutivo de abordagem, divide-se o presente estudo em duas partes. Primeiro, desde o procedimento descritivo de análise e a partir das técnicas bibliográfica e documental de pesquisa, pretende-se por meio deste texto realizar um estudo amplo das teorias que guiam os efeitos sucessórios de tratados em casos de separação estatal, isto é, a teoria da continuidade e o princípio da tabula rasa. Em seguida, seguindo o procedimento analítico de análise, busca-se verificar objetivamente os regimes territoriais e de fronteira, apontando, respectivamente, a partir de um estudo dos casos Gabdikovo-Nagymaros e Lybia vs. Chade perante a Corte Internacional de Justiça, quais as modulações que podem ser feitas nos tratados fronteiriços e territoriais para os Estados sucessores. Ao cabo, conclui-se que, apesar da teoria da tabula rasa ser utilizada como exceção ao princípio da continuidade de vinculação do Estado, este é ainda aplicado quando se refere aos tratados em matéria de fronteiras e territoriais, em que pese a sua aplicação não seja isenta a críticas.

Palavras-chave: sucessão de Estados; regimes fronteiriços; regimes territoriais; tabula rasa; princípio da continuidade

Abstract

This article aims to discuss the effects and consequences of the succession of States regarding international treaties; specifically, regarding the border and territorial regimes built by such documents. For that matter, using the deductive method o, we divide the present study into two parts. First, following a descriptive procedure of analysis and from the use of bibliographic and documental research techniques we intend to carry out a broad study of the theories that guide the succession effects of treaties in cases of state separation, that is, the continuity theory and the tabula rasa principle. Then, following an analytic procedure of analysis, we aim at objectively and respectively verifying the territorial and border regimes from a study of the cases Gabdikovo-Nagymaros and Lybia vs. Chad before the International Court of Justice, pointing to provisions that could be made to borders and territories treaties regarding successor States. In the end, it is concluded that, although the tabula rasa theory is used as an exception to the principle of continuity of State binding, it is still applied when referring to treaties in matters of borders and territories, although its application is not free from criticism.

Keywords: succession of states; border regimes; territorial regimes; tabula rasa; principle of continuity

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir los efectos y las consecuencias de la sucesión de Estados respecto de los tratados internacionales, específicamente, de los regímenes fronterizos y territoriales construidos por tales documentos. Por lo tanto, utilizando el método de enfoque deductivo, el presente estudio se divide en dos partes. En primer lugar, desde el procedimiento de análisis descriptivo y desde las técnicas de investigación bibliográfica y documental, pretendemos llevar a cabo a través de este texto un amplio estudio de las teorías que orientan los efectos sucesorios de los tratados en los casos de separación de Estados, esto es, la teoría de la continuidad y el principio de la tabula rasa. En seguida, a través del procedimiento analítico de análisis, buscamos verificar objetivamente los regímenes territoriales y fronterizos, señalando, respectivamente, a partir de un estudio de los casos Gabdikovo-Nagymaros y Lybia vs. Chad ante la Corte Internacional de Justicia, qué modulaciones se pueden hacer a los tratados de fronteras y territorios para los Estados sucesores. Al final, se concluye que, a pesar de que la teoría de la tabula rasa se utiliza como una excepción al principio de continuidad de la vinculación estatal, se sigue aplicando cuando se refiere a los tratados en materia de fronteras y territorios, a pesar de que su aplicación no se exentó de crítica.

Palabras clave: sucesión de Estados; regímenes fronterizos; regímenes territoriales; tabula rasa; principio de continuidad

Introdução

A sucessão de Estados é matéria comum e deveras constante no desenvolvimento do sistema internacional. Casos de independências, secessões, dissoluções, dentre outras formas de sucessão, são marcas do século XIX, XX e XXI. Ocorre que, como bem apresenta Verdross (1978), "cuando un sujeto de derecho internacional se extingue o cuando parte de su territorio pasa a otro Estado, surge la cuestión de si el sucesor o los sucesores territoriales adquieren ipso facto los derechos y obligaciones del anterior" (p. 235), ou se eles começariam em uma página em branco, podendo expressar o seu livre consentimento acerca das regras - convencionais - de Direito Internacional que melhor lhes convir.

A resposta não é simples, pois existem diversas implicações que um ato de sucessão pode ensejar, especialmente quando referentes aos regimes fronteiriços e territoriais. As fronteiras anteriormente demarcadas permanecem? As obrigações derivadas do uso do território, como o uso das águas de um rio ou a extração de recursos naturais, para citar alguns, se sustentam? Ou será que essas situações devem ser rediscutidas? Mais do que isso, será que questões referentes ao tipo de sucessão, se por pura secessão ou por libertação nacional, também poderiam gerar desdobramentos diferentes?

É exatamente este o objetivo do presente estudo: verificar os efeitos da sucessão de Estados em matéria de tratados atinentes aos regimes fronteiriços e territoriais. Para tanto, utilizando-se do método dedutivo de abordagem, divide-se o presente estudo em duas partes. Na primeira destinada ao estudo amplo das teorias que guiam os efeitos sucessórios de um tratado em casos de separação, isto é, a teoria da continuidade de vinculação do Estado e o princípio da tabula rasa, em que se pretende, desde o procedimento descritivo, apontar seus principais pressupostos, utilizando-se, para tal, a técnica bibliográfica e documental, esta partindo dos drafts da Comissão de Direito Internacional de 1973 e 1974 e da própria Convenção de Viena sobre a Sucessão de Estados em matéria de Tratados, concluída em 1978.

Já na segunda parte do texto, volta-se especificamente aos regimes de fronteira e territoriais, em que, para além da explicação doutrinária seguindo o procedimento analítico, como forma de tornar a explanação mais objetiva, refere-se a dois casos julgados pela Corte Internacional de Justiça que versaram sobre o tema aqui em análise, porquanto selecionados qualitativamente, quais sejam, Gabdikovo-Nagymaros (sobre tratados territoriais) e Lybia vs. Chade (sobre tratados de fronteiras).

Espera-se, dessa forma, sintetizar os principais argumentos existentes sobre o tema, os quais, avulta-se, foram objeto do Jessup Moot Court Competition de 2019, em que os autores participaram representando a Universidade Federal de Uberlândia, restando em nono lugar nas rodadas nacionais. Por oportuno, aponta-se que a participação dos mesmos foi registrada no âmbito da Pró-Reitoria de Extensão, assim como na Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade, tendo esta última financiado essa atividade acadêmica, cuja duração fora de dois semestres letivos (2019/2-2020/1).

1. A teoria da continuidade de vinculação do estado aos tratados versus o princípio da tabula rasa

O surgimento de novos Estados impõe a necessidade de organização e negociação no contexto internacional, notadamente em função da abrangência das obrigações internacionais, sobretudo as convencionais, já existentes em Direito Internacional. É assim, então, que o processo de descolonização nos revela duas correntes opostas no que tange às bases conceituais de tal matéria: a ideia da tabula rasa, na qual qualquer vínculo com o país antecessor é negado, não exercendo impacto ou relevância ao novo Estado a não ser com o seu próprio consentimento; e o extremo oposto, em que o novo sujeito de Direito Internacional estaria obrigado a prosseguir com os vínculos anteriormente criados pelo Estado predecessor, mesmo sem a sua anuência.

Correntes essas que, por sua vez, permanecem presentes na contemporaneidade, constando na Convenção de Viena sobre a Sucessão de Estados em matéria de Tratados (CVSET), concluída em 1978 (Casella, 2007). Nesse viés, impende detalhá-las, a fim de que se possa ponderar, posteriormente, acerca da sua aplicação em relação aos tratados territoriais e de fronteira.

1.1 A regra da continuidade nos tratados e as exceções explícitas do art. 34(2) da CVSET

De acordo com interpretações da teoria da continuidade, a sucessão de Estados não representa uma completa interdependência e "genuinidade" do novo sujeito de Direito Internacional. Isso porque tal sujeito ainda compartilha de semelhanças com o Estado predecessor, como o território e a população, na medida em que elas não se alteram drasticamente com a sucessão estatal, tornando, assim, relativa à ideia de que um Estado "supernovo" venha, de fato, a emergir (Mullerson, 1993). Esse argumento sustenta a doutrina da continuidade, a qual determina que Estados sucessores devem assumir as responsabilidades e tratados adquiridos pelo seu predecessor.

Consoante O'Connell (1956), após a Segunda Guerra Mundial, diante da descolonização de diversos Estados africanos e asiáticos, haveria a necessidade de se manter uma continuidade no que tange a sucessão de Estados em matéria de tratados para a sustentação da identidade e do interesse coletivo dos Estados, em favor da minimização de conflitos que poderiam surgir, especialmente ao se considerar o pano de fundo histórico em que estavam inseridos. E justamente por isso é que um grande impasse é observado no tocante à sucessão de Estados em matéria de tratados, pois, como poderiam ser verdadeiramente independentes estes Estados se ainda vinculados em alguma medida ao Estado antecessor?

Essa controvérsia, portanto, se tornou alvo de esforços da Comissão de Direito Internacional (ILC, na sigla em inglês) para que uma codificação das regras que rodeiam essas relações fosse criada, dando origem aos Draft Articles on State Succession. Esses, por sua vez, foram adotados na Conferência das Nações Unidas sobre Sucessão de Estados em Matéria de Tratados em 1974 e, posteriormente, transformados em Convenção - a CVSET - em 1978 (O'connell, 1979). Nesta são apresentadas diferentes soluções para os tipos específicos de sucessão de Estados, tendo como foco a distinção entre os novos países emergentes do processo de descolonização e aqueles que não perpassaram por um período de dominação colonial.

Apesar da citada criação, a CVSET somente alcançou número suficiente de ratificações para a entrada em vigor em 1996, quando a Macedónia aderiu ao documento, sendo possível inferir que ela não teve grande impacto prático no momento de sua criação. No entanto, a sua contribuição é deveras importante se levada em consideração a sua característica, em grande medida, de costume internacional1 - além, também, das diversas vezes em que esta Corte invocou os seus pressupostos (Casella, 2007).

Pontualmente, em seu artigo 34(1), a CVSET versa sobre os casos de separação de Estados - esses característicos das sucessões nas quais não há vínculos coloniais. Mais do que isso, esse artigo se configura como clara adoção da teoria da continuidade para esse tipo específico de sucessão. Sobre isso, estipula a Convenção, in verbis:

  1. Todo tratado que estivesse em vigor na data da sucessão de Estados relativamente à totalidade do Estado predecessor continuará em vigor relativamente a cada Estado sucessor assim formado;

  2. Todo tratado que estivesse em vigor na data da sucessão do Estado relativamente apenas àquela parte do território do Estado predecessor que tenha passado a ser o Estado sucessor continuará em vigor relativamente a esse Estado sucessor somente. (ONU, 1978)

Embora apresente forte representação da teoria da continuidade na qual o sucessor é ipso facto ligado aos tratados assumidos pelo Estado predecessor, neste mesmo artigo são apresentadas exceções à regra proposta (ILC, 1974). No artigo 34(2), tem-se que não há sucessão automática quando as partes convencionarem de outra forma ou quando "a aplicação do tratado relativamente ao Estado sucessor venha a ser incompatível com o objeto e o propósito do tratado ou venha a alterar radicalmente as condições da sua execução" (ONU, 1978, art., 34.2.b). Ademais, existe o princípio da tabula rasa, cujos pressupostos geram uma exceção à regra da sucessão automática, isto é, do princípio da continuidade, o qual será apresentado na sequência.

1.2 O princípio da tabula rasa: outra exceção.

Para além da CVSET, a qual apresenta sua própria exceção à teoria da continuidade no artigo 34, outra teoria tem força no direito internacional, especificamente no que tange à sucessão de Estados em matéria de tratados: o princípio da tabula rasa (também conhecida como clean slate ou 'folha em branco'). Sob uma ótica descolonial, o citado ditame prescreve que todo e qualquer vínculo assumido pelo Estado predecessor - aqui visto como a metrópole - não deve causar impacto algum sobre o novo sujeito de Direito Internacional que emerge a partir de sua independência.

Vale mencionar, também, que é essa mesma ótica descolonial que impacta na distinção dos tipos de sucessão apresentados na Convenção de 1978, sendo adotada apenas no caso de independência de domínio colonial, em que o sujeito emergente é fadado a seguir o princípio da tabula rasa, logo, não assumindo responsabilidades ligadas ao seu predecessor, nos termos do artigo 16. O seu objetivo é tentar a todo custo proteger o direito à autodeterminação que lhes é inerente, forte nas prescrições contidas na Carta da ONU (ONU, 1945) e em alguns documentos emanados da Assembleia Geral2, principalmente em matéria de tratados multilaterais (Dumberry, 2015).

Todavia, não só o movimento histórico descolonial favoreceu a sedimentação3 da teoria da 'folha em branco'. Há exemplos anteriores, como ao final da guerra Franco-Prussiana e a transferência da Alsácia-Lorena, em que os tratados franceses ligados a esses Estados, em sua maioria, deixaram de surtir efeito para os Estados recém-formados, dando lugar a responsabilidades ligadas à tratados celebrados por alemães (Vegacenteno, 2007, p. 410).

Esta regra, inclusive, é igualmente prevista na CVSET, em seu artigo 15(a). Neste, tem-se que a tabula rasa se aplica nas situações em que parte do território de um Estado passa a ser parte do domínio de outro, em que "os tratados do Estado predecessor deixam de estar em vigor relativamente ao território a que se refere a sucessão de Estados desde a data dessa sucessão de Estado", vinculando-se às regras do sucessor (Vegacenteno, 2007, p. 422). Sendo assim, pode-se afirmar que essa onda teórica tem suas raízes em diferentes tendências históricas que não apenas a descolonização, sendo sustentadas, para além do princípio da autodeterminação dos povos, na própria autonomia soberana do Estado e, logo, no res inter alios acta4 - 5.

São nesses pressupostos que se encontram, então, as bases para que um novo sujeito do Direito Internacional negue submissão aos compromissos realizados por seus predecessores. Isso porque, tratados possuem um viés personalizado, além de pressupor uma ideia de soberania - até mesmo territorial - das partes que celebram o acordo. Noutras palavras, um novo Estado deve ser livre para exercer a sua soberania e tomar suas próprias decisões, fazendo com que os tratados assumidos por seu predecessor sejam apenas impostos a si com o seu consentimento, nos termos do artigo 17 da CVSET6.

Outrossim, quando se refere especificamente de tratados que versam sobre limites fronteiriços e territoriais, a aplicação do clean slate não parece ser tão óbvia, muito em função da própria previsão contida nos artigos 11 e 12 da CVSET, de modo que a interpretação da Corte Internacional de Justiça (CIJ) sobre o tema mostra-se extremamente relevante para uma melhor compreensão sobre o tema, tal como se discutirá no ponto seguinte.

2. A particularidade de tratados territoriais e de fronteiras em matéria de sucessão de estados

Com a sucessão de Estados, uma das maiores discussões existentes em Direito Internacional é como restarão as fronteiras do(s) novo(s) Estado(s) que se forma(m), nomeadamente, se serão mantidas as prescrições fronteiriças estabelecidas por tratados firmados entre os antigos possuidores (forte no princípio da continuidade) ou se será permitido rediscuti-las haja vista a inexistência de consentimento por parte do novo Estado (fruto da tabula rasa). Por uma simples interpretação do que já seria considerado parte do Direito Consuetudinário consoante o desenvolvido no ponto 1, o tema não ensejaria grandes discussões; porém, com a inserção dos artigos 11 e 12 na CVSET e com a constante manifestação das Cortes Internacionais7 em torno do princípio uti possidetis juris8, considerado uma regra costumeira (Mullerson, 1993, p. 486), esse tema ganha relevo exatamente por rechaçar a ideia da 'folha em branco'.

Tendo como objetivo garantir a estabilidade (pacífica) e a integridade territorial dos novos Estados que emergem, a ideia de continuidade ganha relevo quando não são firmados tratados posteriores à sucessão estipulando os novos limites fronteiriços entre os países, os quais, aliás, são bastante raros (Lupi, 2008, p. 69).9 Mas justamente por não permitirem que os novos Estados determinem em alguns casos como restarão os limites de seu(s) território(s), fazendo subsistir a vontade do colonizador ou antigo administrador, é que o tema é considerado controverso, sendo objeto de estudo neste ponto.

2.1 Tratados territoriais e o posicionamento da CU no caso Gabdikovo-Nagymaros

Os tratados territoriais ou, tratados de uma natureza territorial (no inglês territorial treaties), são assim chamados por determinarem as áreas10 que serão dividias por uma linha fronteiriça, diferenciando-se de tratados fronteiriços (no inglês frontier ou boarder treaties) na medida em que estes estabelecem o local em que a linha entre dois ou mais Estados divisória restará (Thirlway, 2017, p. 4). Enquanto os tratados territoriais são regidos pela regra do artigo 12 da CVSET, os tratados de fronteira são disciplinados pelo artigo 11 do mesmo documento.

Tais prescrições derivam dos debates havidos para a confecção dos Draft Articles sobre Sucessão de Estados em matéria de Tratados da ILC, quando, com base em diversos precedentes históricos relativos a esta matéria (ILC, 1973, p. 196), a Comissão encontrou exemplos que sustentavam tanto a utilização do princípio da continuidade como o da tabula rasa. Embora fosse perceptível na maioria dos casos abordados pela Comissão que a continuidade dos acordos deveria prevalecer, estabelecendo-se, assim, tal prática como sendo a regra geral, haviam casos em que o tratado seria afetado pela sucessão de Estados.

Esses casos, percebeu a Comissão, em sua grande maioria versavam sobre situações de sucessão em que um novo Estado emergia quando pondo termo a um regime colonial (ILC, 1973, p. 196 - paras. 11-12). Ou seja, o argumento levantado era de que o novo Estado não deveria estar preso a quaisquer amarras formuladas pelo colonizador. Por outro lado, nos casos em que a sucessão não versava sobre um regime colonial, os precedentes não falharam em demonstrar que o princípio adotado era o princípio da continuidade (ILC, 1973).

Uma das principais e mais antigas decisões neste sentido ocorreu no caso Free Zones of Upper Savoy and the District of Gex (CPJI, 1930), onde a então existente Corte Permanente Internacional de Justiça emitiu uma Ordem que endossou a existência da regra que requer que o Estado sucessor respeite um tratado territorial que afete o território sobre o qual a sucessão se dá (ILC, 1973, p. 196 - paras. 3-4). Na ocasião, a Corte decidiu que o Tratado de Turin, celebrado entre Suíça e Sardenha, que estabelecia uma zona em Saint-Gingolph, na qual haveria restrições à imposição de tarifas alfandegárias, obrigava também a França, sucessora da Sardenha, enquanto (nova) soberana daquele território.

Embora nesta sentença a CPJI tenha esclarecido a problemática de que o estabelecido no Tratado de Turin deveria ser respeitado, ela o fez utilizando termos muito gerais para tal, expondo uma problemática que reinaria por muito tempo e se repetiria em outras ocasiões relacionadas à sucessão de tratados territoriais, qual seja: a sucessão é relativa ao tratado por completo ou relativa apenas à situação territorial resultante da execução do tratado? Para aqueles tratados que se encaixavam no artigo 11, ou seja, os tratados relativos a fronteiras, a Comissão, após revisitar alguns precedentes com o intuito de explorar a problemática em questão, viu-se, inicialmente, dividida em duas principais vertentes (ILC, 1973, p. 196 - para. 19):

(a) aqueles que consideravam que separar a aplicação do tratado como um todo da situação resultante de sua execução seria um movimento artificial, afinal, dentre outras razões, o tratado por completo é importante para solucionar disputas relativas à demarcação das fronteiras e, logo, contém provisões auxiliares que deveriam fazer parte do regime fronteiriço contínuo criado pelo próprio tratado;

(b) e aqueles que acreditavam que um tratado relativo a fronteiras possuía seus próprios efeitos constitutivos e que estabelecia uma situação legal e factual que possuía sua própria existência, devendo apenas esta situação, ao invés do tratado como um todo, ser transmitida para o Estado sucessor. Além disso, estes acreditavam que frequentemente tratados dessa natureza também continham cláusulas desconexas ao regime territorial (como, por exemplo, cláusulas políticas) e que não mereciam tratamento especial quando da sucessão de Estados.

Diante deste impasse, a Comissão percebeu que as críticas à segunda abordagem não poderiam prosperar se fosse considerado que a situação legal constituída pelo tratado compreendia não apenas a própria fronteira, mas também o regime fronteiriço destinado a acompanhá-la. Portanto, a Comissão decidiu formular o artigo 11 no sentido de que apenas a fronteira estabelecida e seu regime fronteiriço seriam herdados pelo Estado sucessor, e não o Tratado como um todo. Dessa maneira, o artigo 11 da CVSET ficou estipulado da seguinte forma (ONU, 1978):

ARTIGO 11 - Regimes de fronteira

Uma sucessão de Estados não afetará como tal:

a) Uma fronteira demarcada por um tratado; nem

b) As obrigações e os direitos estabelecidos por um tratado e que se refiram a um regime de fronteira.

Já sobre aqueles tratados de natureza territorial que foram enquadrados no artigo 12 da Convenção, embora amplamente reconhecidos pelo Direito Consuetudinário como integrantes de uma categoria especial à sucessão de Estados, logo, uma exceção ao clean slate, também houve uma discussão relativa ao fato de se aquilo que sucede é o tratado por completo ou apenas as consequências de sua execução (ILC, 1973, p. 196 - para. 21-35). No entanto, a Comissão considerou que, ao formular uma regra para o efeito da sucessão de Estados sobre regimes objetivos estabelecidos por um tratado, ela deveria adotar o mesmo ponto de vista utilizado no caso dos regimes fronteiriços. Logo, a ILC compreendeu que a regra deveria se relacionar com o regime resultante do Tratado (isto é, os seus efeitos) e não com a sucessão do tratado em si (por completo).

Desta forma, no artigo 12, a Comissão lidou com casos nos quais o regime territorial foi estabelecido em benefício de um território em particular de outro Estado - no primeiro parágrafo - e em benefício de um grupo de Estados, ou todos os Estados - no parágrafo segundo (ILC, 1973, p. 196 - para. 38-39), restando o mesmo formulado da seguinte forma (ONU, 1978):

Artigo 12 - Outros regimes territoriais

1. Uma sucessão de Estados não automaticamente afetará:

a) As obrigações relativas ao uso de qualquer território, ou às restrições ao seu uso, estabelecidas por um tratado em benefício de qualquer território de um Estado estrangeiro e consideradas como vinculadas aos territórios em questão;

b) Os direitos estabelecidos por um tratado em benefício de qualquer território e relativos ao uso, ou às restrições ao uso, de qualquer território de um Estado estrangeiro e considerados como vinculados aos territórios em questão.

2. Uma sucessão de Estados não automaticamente afetará:

a) As obrigações relativas ao uso de qualquer território, ou às restrições ao seu uso, estabelecidas por um tratado em benefício de um grupo de Estados ou de todos os Estados e que se considerem vinculadas a esse território;

b) Os direitos estabelecidos por um tratado em benefício de um grupo de Estados ou de todos os Estados e relativos ao uso de qualquer território. ou às restrições ao seu uso, e que se considerem vinculados a esse território.

Assim, a questão parecia pacífica, até que, em 2 de junho de 1993, os Governos de Hungria e Eslováquia submeteram à CIJ, um special agreement com o objetivo de que fossem solucionados certos problemas relacionados à interpretação de ambas as partes perante o Tratado de Budapeste de 1977 sobre a Construção e a Operação do sistema de barragens Gabcíkovo-Nagymaros (ICJ, 1997). Isso, pois, dentre as problemáticas levantadas, estava uma questão sobre o tema dos artigos 11 e 12 da CVSET.

A Hungria, levando em consideração que o Tratado de Budapeste havia sido firmado com a então existente Tchecoslováquia, não reconhecia a Eslováquia como parte do mesmo, argumentando que ele não haveria subsistido à sucessão de Estados ocorrida. A Eslováquia, por sua vez, argumentava que havia sucedido ao tratado no lugar da Tchecoslováquia (ICJ, 1997, paras. 116-118). Para sua ponderação quanto ao fato de a Eslováquia ser ou não uma sucessora da Tchecoslováquia perante o Tratado de 1977, a CIJ decidiu levar em consideração o artigo 12(2) da CVSET.

A Corte considerou este artigo como reflexo do costume internacional (Zimmerman, 2015), e, neste sentido, citou o entendimento da ILC em seus Draft Articles sobre o tema, a qual identificou que "tratados de caráter territorial" têm sido considerados tanto pela doutrina tradicional quanto pelo entendimento moderno como não afetados por Sucessão de Estados (CIJ, 1997, para. 123).

A Hungria, mesmo que não tenha questionado a força do artigo 12 como norma do direito consuetudinário, submeteu que o Tratado de 1977 não criava obrigações e direitos relativos à um regime fronteiriço, defendendo que o curso existente da fronteira não seria afetado pelo Tratado e negou que o mesmo havia criado direitos considerados como anexos ao território. Ademais, a Hungria teceu que o Tratado seria apenas um investimento conjunto entre os países, logo, não se encaixando nas hipóteses dos artigos 11 e 12 da CVSET e que, consequentemente, o Tratado não havia sobrevivido ao desaparecimento da Tchecoslováquia por sucessão à Eslováquia (CIJ, 1997, para. 118-119).

A Eslováquia, ao seu turno, defendeu que o Tratado de 1977 teria sim um caráter territorial e se encaixaria no escopo do artigo 12(2). Descreveu o Tratado como um documento que possui provisões relativas a fronteiras e que estabelece um regime territorial específico que opera em favor do interesse de todos Estados ao longo do Rio Danúbio, para além de seus signatários. Neste sentido, defendeu o Tratado de 1977 como criador de Direitos Reais independentes da personalidade jurídica de seus signatários originais. Portanto, para a Eslováquia, o Tratado de 1977 não era um documento passível de terminação com o desaparecimento de suas partes originais (CIJ, 1997, para. 120-122).

A Corte, após examinar o Tratado, confirmou que para além da inegável natureza de um investimento conjunto que o Tratado possui, seus principais elementos foram a construção proposta e a operação conjunta do complexo de estruturas e instalações em partes específicas dos territórios de Hungria e da então existente Tchecoslováquia ao longo do Danúbio. O Tratado, na visão da Corte, também estabeleceu o regime navegacional de um importante setor de uma via fluvial internacional, o que, inegavelmente, afetou o interesse dos outros Estados usuários do Rio Danúbio.

Ao constatar, no entanto, que o Tratado de Budapeste seria um tratado de regime territorial e que, portanto, sobreviveria à sucessão de Estados, a CIJ, adicionando um novo capítulo à discussão sobre o que sucederia - o Tratado por completo ou apenas o regime de direitos e obrigações criados por este - entendeu que o Tratado como um todo sobreviveu à sucessão e se tornou obrigatório entre as partes, consequentemente, divergindo do entendimento da ILC (CIJ, 1997, para. 123). Para tanto, a CIJ entendeu que a construção argumentativa da Comissão visava atingir aqueles tratados que já não mais estavam em vigor e que, portanto, não se aplicaria ao caso do Tratado de Budapeste na medida em que este ainda estava vigorando.11

Esse posicionamento da Corte não foi isento de críticas. Klabbers (1998, p. 353-354), por exemplo, expressa que na medida em que a Corte determina que o Tratado de 1977 é um regime territorial nos termos do artigo 12, criando obrigações "attaching to parts of the Danube to which it relates", logo não sendo afetado pela sucessão da Tche-coslováquia (CIJ, 1997, paras. 123-124), ela não poderia ter chegado a outra conclusão que não a de o Tratado ter subsistido apenas no tocante aos direitos e obrigações derivados do território (o ato jurídico em si) - e não por completo à Eslováquia enquanto Estado sucessor.

De toda sorte, em que pese o julgado tenha trazido mais questionamentos no que tange os limites da sucessão de tratados, concebendo um fato novo - a necessidade de o tratado estar em vigor para que ele suceda por completo -, o que resta dele para os fins desse texto é justamente a força consuetudinária do artigo 12, a qual confirma a exceção à tabula rasa.12 Esse caso, porém, não foi o único a debater este tema, tal como se verificará no ponto a seguir.

2.2 Os tratados de fronteira e o posicionamento da CU no caso Líbia v. Chade

Se os tratados sobre outros regimes territoriais geram uma grande discussão quanto ao alcance de uma sucessão estatal no que tange às obrigações internacionais assumidas por um país quando ainda existente, uma outra questão parecia mais tranquila, qual seja, quanto aos tratados de fronteira. Isso, pois, conforme Mullerson (1993, p. 485)13,

[o]ne of the few clear and non-controversial norms governing issues of State succession is a customary rule enshrined in Article 11 of the Vienna Convention on Succession of States in Respect of Treaties, which pro- vides that a succession of States does not, as such, affect a boundary established by a treaty. In this case it is not exactly a treaty which is succeeded to but the boundary itself, as an objective reality, having its own de facto and de jure existence irrespective of whether or not the treaty itself is in force. (grifos nossos)

Quer isso dizer que a controvérsia central gerada pela CIJ no caso entre Hungria e Eslováquia não prosperaria no tocante ao tema das fronteiras, visto que, quando se trata da demarcação das linhas fronteiriças do Estado, não importaria se o tratado internacional cuja sucessão se discutiria ainda estivesse em vigor ou não. Tal "frieza" advém justamente do fato de os tratados de fronteiras constituírem a raiz do título do território e, como tal, detém amplo efeito dentro da comunidade internacional, indo muito além dos limites do próprio tratado (CIJ, 1992, p. 401).

Em vista disso, como preceituou a CIJ no caso Nicarágua v. Colômbia, "um regime fronteiriço estabelecido por um tratado alcança uma permanência que o tratado em si não goza necessariamente, assim, a continuação da existência deste regime não é dependente da continuação da vida do tratado sob o qual o regime foi acordado" (CIJ, 2007, p. 861 - tradução livre). Ademais, apesar de os tratados vincularem apenas aqueles que os ratificaram (forte no supracitado res inter alios acta e no artigo 34 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 - CVDT/69), os tratados de fronteira são diferentes, pois eles podem gerar efeitos para além das partes contratantes14, isto é, constituir obrigações erga omnes, logo, vinculando terceiros Estados (Shaw, 2012, p. 239).15

Ou seja, no caso de tratados fronteiriços ou mesmo daqueles que estabeleçam obrigações e direitos relacionados a um regime de fronteira, os limites estabelecidos por eles permaneceriam intocados e estes seriam aplicáveis a sociedade internacional como um todo, não sendo, até mesmo, sujeito a alegação de mudanças fundamentais de circunstâncias como forma de terminação convencional, tal como prevê a CVDT/69, em seu artigo 62(2)(a).É o que explica Miltner (2018, p. 498):

This approach was adopted in part due to doubts about any distinct legal discipline regarding State succession, but it resulted from the guidance provided by the law of treaties for succession of States in respect of treaties. In this respect, Article 62(2)(a) VCLT was of particular relevance for singling out boundary treaties as an exception to the rule permitting termination in the event of a fundamental change of circumstances.

Foi esse status "atípico" dos tratados de fronteiras que fez com que a CIJ se debruçasse sobre a possível "herdabilidade" da demarcação em uma situação de sucessão no caso Líbia v. Chade (Shaw, 2012; Miltner, 2018). O caso, proposto em 31 de agosto de 1990 por meio de um special agreement, tinha como objeto determinar os limites de seus respectivos territórios de acordo com as regras do direito internacional aplicáveis à questão, em especial, o Tratado entre França e Líbia de 10 de agosto de 1955, cuja validade nenhuma das partes questionara (CIJ, 1994, p. 18, para. 36).16

A controvérsia em questão girava basicamente em torno do artigo 3 do Tratado de 1955 previa que a França e a Líbia reconheciam que as fronteiras entre os territórios da África Equatorial Francesa e o da Líbia eram aquelas que resultavam de uma série de tratados em vigor quando da constituição do Estado líbio (CIJ, 1994, p. 22 - para. 42). Contudo, a Líbia sustentou que, na verdade, o que o Tratado de 1955 pretendia era somente reconhecer as fronteiras já existentes à época, como entre Tunísia e Líbia, de modo que, onde não havia fronteira demarcada, como ao sul do país e à leste de Tummu, cidade Líbia situada na fronteira com o Chade, o tratado não seria aplicável (no sentido de criar uma fronteira) (CIJ, 1994, p. 22 - paras. 17 e 43).

Ademais, sustentou que: (i) o território em questão, em todos os momentos relevantes, não era terra nullius; (ii) o território era, em todos os momentos relevantes, habitado por povos, seja tribos, confederações de tribos ou outros povos que possuíam aliança com a Ordem Senoussi17, os quais aceitaram a liderança Senoussi em sua luta contra as invasões da França e Itália em suas terras; (iii) estes povos indígenas eram religiosa, cultural, econômica e politicamente parte da Líbia; (iv) os direitos e títulos do Império Otomano foram passados para Itália em 1912 e herdados pela Líbia em 1951; (v) qualquer reivindicação do Chade é apoiada na reivindicação herdada da França; (vi) a reivindicação francesa à área em disputa se baseava em actes internationaux, que não criava uma fronteira territorial à leste de Tummu e, por isso, que não há base alternativa válida para apoiar a reivindicação francesa (CIJ, 1994, p. 22 - para. 17). Desta feita, requeria a delimitação do território, tendo para si a parcela territorial em litígio.

Por outra banda, Chade solicitou que a Corte declarasse a existência de uma fronteira com a Líbia constituída pelo Tratado de 1955 ou mesmo outros instrumentos adicionais (como a Convenção de 14 de junho de 1989, a Declaração de 2 de março de 1899, o Acordo de 1 de novembro de 1902 e a Convenção de 8 de setembro de 1919), na medida em que eles denotavam a existência de uma demarcação completa das fronteiras dos Estados (CIJ, 1994, para. 21). E, no caso, sendo ele o Estado sucessor da França, signatária original, tais fronteiras já teriam sido determinadas, portanto, não devendo subsistir o argumento da Líbia quanto a sua inexistência e, logo, pelo seu pleito de demarcação.18

A Corte, em suas considerações, reconheceu que "a disputa entre as partes é definida no contexto de uma longa e complexa história de atividades militares, diplomáticas e administrativas por parte do Império Otomano, França, Grã-Bretanha e Itália, como bem como a Ordem Senoussi", as quais culminaram numa série de acordos os quais deveriam ser apreciados por ela para determinar a existência de limites pré-fixados entre Líbia e Chade (CIJ, 1994, para. 21). Particularmente em relação ao Tratado de 1955, a CIJ expôs que este realmente seria o documento-chave da controvérsia, apontando uma fronteira determinada e definitiva entre os países signatários à época (CIJ, 1994, para. 57 e 72), Líbia e França - esta que fora sucedida pelo Chade (CIJ, 1994, para. 53).

Em vista disso, o entendimento da CIJ foi de que foi desnecessário considerar a história das fronteiras entre os Estados, reivindicadas pela Líbia com base no título herdado dos povos indígenas, da Ordem Senoussi, do Império Otomano e da Itália, ou mesmo a aplicação do princípio uti posidetis juris, na medida em que este seria útil somente se as fronteiras não tivessem sido definidas pelo Tratado de 1955 (CIJ, 1994, para. 75). Além disso, neste caso, segundo a CIJ, a Líbia era uma parte original do Tratado - e não um Estado sucessor que contesta a intenção quanto à demarcação das fronteiras de um Estado predecessor (como poderia ocorrer, por exemplo, no caso de Chade contestar os limites então estabelecidos pelo tratado) (CIJ, 1994, para. 75).

Portanto, a Corte reconheceu as fronteiras nos termos do Tratado de 1955, firmado entre Líbia e França, tendo sido o mesmo estendido ao Chad, enquanto Estado sucessor da França, forte no princípio da continuidade e à luz do artigo 11 da CVSET - o qual, apesar de não ter sido citado, haja vista o documento em questão não estar em vigor, ele esteve muito presente nas entrelinhas da decisão justamente por ser um reflexo do costume internacional -, demonstrando ser essa outra exceção abertamente admitida à doutrina do clean slate.

Conclusões

O presente artigo tinha como objetivo ponderar sobre as consequências da sucessão de Estados em matéria de tratados - um tema deveras relevante para as relações internacionais, especialmente no século XX, quando diversos países africanos e asiáticos se tornaram independentes de suas metrópoles europeias, dando origem a novos Estados no plano internacional. No caso, apesar de haver uma Convenção sobre o tema, adotada pela ONU em 1978 após diversos debates travados no âmbito da ILC, a mesma só entrou em vigor em 1996, muito depois de diversas controvérsias internacionais atinentes aos eventuais efeitos gerados por tratados não firmados pelas novas nações, mas sim pelos Estados antecessores. Apesar disso, essa "demora" não afetou o ordenamento internacional, uma vez que diversas previsões contidas na CVSET já eram consideradas parte do Direito Consuetudinário.

Um de seus pontos altos foi justamente a diferenciação da separação de países que tinham se tornado recentemente independentes, forte na existência de algum tipo de vínculo colonial anterior, e casos de "simples" separação de Estados. Isso porque, essas serão distinções centrais quanto a aplicação das teses de sucessão em matéria de tratados: enquanto para os primeiros aplicar-se-ia a tese da folha em branco, em que os novos países precisariam se manifestar quanto à sua intenção de ser parte de um documento; enquanto que para os demais, utilizar-se-ia a regra geral, isto é, a tese da continuidade, sendo o Estado sucessor ipso facto obrigado aos tratados do Estado antecessor, exceto quando um tratado for firmado prescrevendo obrigações distintas, ou quando a aplicação contínua de tal documento for incompatível com o objeto/propósito do documento ou alterar-se radicalmente a sua execução.

Prescrições essas que são corretas justamente por levar em consideração a autonomia da vontade o consentimento do novo Estado, notadamente, aqueles que recentemente passaram por um processo de independência, quanto ao Direito Internacional Convencional ao qual vão se vincular, exatamente por não terem feito parte do processo decisório - o que, aliás, não ocorre nos casos de direito consuetudinário e que, por isso, são merecedores de crítica, tal como faz Chimni (2018). Ocorre que essa não é a única crítica que se pode fazer. Afinal, o princípio da continuidade persiste em ser aplicado em outras duas situações: nos tratados territoriais e de fronteira. Nessas duas situações, a ideia central seria a de que a sucessão dos Estados não afeta, via de regra, a fronteira já estabelecida, nem implica em mudanças quanto às obrigações relativas ao uso do território estabelecidas por tratado, exceto no tocante a bases militares e aproveitamento dos recursos naturais.

Naquela situação, pontualmente, o que vai possibilitar alguma discussão é se o caso tratar de um Estado que se tornara independente, quando seria possível tentar utilizar do princípio uti posidetis juris para eventualmente questionar uma fronteira que não fosse aquela estabelecida pelos limites administrativos fundados em títulos legais a respeito do território apresentados, interpretados e aplicados pelas autoridades coloniais à época (Lima, 2017, p. 135). Em que pese essa análise não tenha sido objeto do presente texto, vez que no caso Líbia v. Chade esse poderia ter sido um argumento eventualmente alegado por Chade, se este estivesse questionando os limites fronteiriços - e não a Líbia -, nota-se que essa situação é igualmente preocupante, na medida em que os títulos jurídicos sob certo território também podem ser alvo de críticas na medida em que não necessariamente representariam os interesses de povos originários, senão mera expressão de um ato discricionário europeu quando do princípio de sua administração/dominação/colonização.

Além disso, algumas questões permaneceram em aberto pela falta de previsão específica na CVSET (em que pese a ILC tenha se manifestado), como os limites da continuidade - se apenas sob as questões territoriais propriamente ditas ou se o tratado por completo sucederia no caso dos tratados que versarem sobre regimes territoriais; e se há a necessidade de o tratado estar em vigor para que o mesmo possa suceder. Quanto à primeira questão, a insegurança jurídica gerada pela decisão da Corte no caso Gabdikovo-Nagymaros foi notória, vez que, ao invés de seguir os debates da ILC no sentido de que, naquele caso, apenas parte do tratado deveria suceder, pontualmente, a que tratava de questões territoriais, ela determinou que o tratado por completo sucederia, gerando grande controvérsia no plano internacional. Já em relação ao segundo ponto, teceu a Corte em ambos os casos analisados no texto que a eventual falta de vigência do documento não impacta na sucessão, seja para tratados fronteiriços ou territoriais.

Enfim, trata-se de um tema importante que ainda pode gerar grandes debates, particularmente pelo crescente questionamento internacional sobre as consequências da colonização europeia ao redor do globo, o que, eventualmente, poderá gerar discussões sobre os tratados que foram concluídos por seus Estados e as consequências dos mesmos. E, para além de questões atinentes às fronteiras, esse tema também pode gerar, na atualidade, discussões no campo dos tratados de direitos humanos, na medida em que estes prescrevem importantes diretrizes para os Estados quanto ao tratamento de pessoas e, eventualmente, podem ensejar, por um lado, uma crítica à aplicação da teoria da tabula rasa pelo seu conteúdo de viés humanístico, mas por outro, podem ser questionados se aplicado o princípio da continuidade, vez que os mesmos não consentiram livremente para com a sua adoção, perpetuando questões, por vezes, assinaladas ainda por suas antigas metrópoles (logo, fomentando a sustentação da colonialidade).

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1"The convention is generally declaratory of customary international law, although not all articles may have that character" (REMBE, 1984, p. 143 - grifos nossos). "Dans un niveau plus concret nous trouverons les règles générales selon le type de succession. Les articles concernés à la dissolution, la fusion et la décolonisation donnent plus facilement des motifs pour l'affirmation des règles coutumières, une fois que la pratique et la Convention sont consonantes. Avec les restrictions susmentionnées, on peut dire que les articles 31 à 38 révèlent des règles coutumières" (LUPI, 2008, p. 73 - grifos nossos). Apesar disso, há quem diga que "[t]he rule enshrined in Article 34(1) is too rigid and simplistic and does not correspond to international practice: therefore it cannot be considered a customary norm" (Mullerson, 1993, p. 488 - grifos nossos). Por oportuno, nota-se que CIJ não se manifestou sobre a eventual característica costumeira do citado artigo 34 no caso Gabcikovo-Nagymaros (CIJ, 1997, para. 123).

2São três os documentos que abordam o princípio da autodeterminação como forma de obter a independência: a) a Declaration on the Granting of Independence to Colonial Countries and Peoples, adotada em 1960; b) a Resolução n. 1541 (XV) de 14 de dezembro de 1960; e c) a Declaration on Principles of International Law Concerning Friendly Relations and Co-operation among states (ou Resolução 2625 de 24 de outubro de 1970), nos itens preambulares 13 e 16(e), e princípio n. 8. (LU, 2018 p. 49-52 e 110)

3Diferentemente da regra de continuidade, no tocante à tabula rasa, cumpre salientar que a International Law Commission compreende esse princípio como sendo regra consuetudinária: "The majority of writers take the view, supported by State practice, that a newly independent State begins its life with a clean slate, except in regard to "local" or "real" obligations. The clean slate is generally recognized to be the "traditional" view on the matter. It has been applied to earlier cases of newly independent States emerging either from former colonies (i.e. the United States of America; the Spanish American Republics) or from a process of secession or dismenberment (i.e. Belgium, Panama, Ireland, Poland, Czechoslovakia, Finland)" (ILC, 1974, p. 211 - item 3)

4"Esse princípio determina que os Estados só estão vinculados aos acordos que expressamente consentirem, preservando-se, assim, a autonomia da sua vontade. Isso significa que, como regra geral de direito internacional e em conformidade com a igualdade soberana e com a consequente liberdade de escolha, os Estados só estão comprometidos a cumprirem os acordos internacionais a que decidiram vincular-se" (Zanella, 2015, p. 87).

5Não se deve confundir o princípio da tábula rasa com a inexistência de obrigações, como um todo, aos Estados recém independentes. Isso porque, "[o]nly those norms of the conventions which had become part of customary international law would be obliga- tory for newly born State" (Mullerson, 1993, p. 474). No mesmo sentido, cf. Vegacenteno, 2007, p. 417. Por oportuno, cumpre salientar nesse ponto a opinião separada do Juiz Weeramantry no caso Bósnia e Herzegovina v. Sérvia e Montenegro (primeiro caso Genocídio), para quem a sucessão de tratados de direitos humanos deveria ser ponderada de maneira semelhante às regras costumeiras (CIJ, 1996, p. 63-64).

6Aliás, ressalte-se que esse foi o posicionamento da CIJ no caso Croácia v. Sérvia- o segundo caso Genocídio -, em que a primeira alegava que a Iugoslávia havia violado a Convenção para a Prevenção do Crime de Genocídio de 1948 quando da ocorrência de tais atos no país entre 1991 e 1995. No caso, apesar da Sérvia ter sido considerada sucessora da Iugoslávia, a priori, não se poderia falar na sua responsabilidade na medida em que o país, enquanto tal, só surge depois dos fatos em questão, de modo que estes, ao violarem certos dispositivos da Convenção não poderiam ser impostos à Sérvia - enquanto Estado sucessor - pois ela, por não existir, não teria consentido com os mesmos (o que ocorrera apenas em 27 de abril de 1992). A Corte, em um primeiro momento, diz que o artigo décimo do Projeto de Tratado sobre Responsabilidade Internacional dos Estados "is concerned only with the attribution of acts to a new State; it does not create obligations binding upon either the new State or the movement that succeeded in establishing that new State" (CIJ, 2015, para. 104). Cf. também: CIJ, 2015, paras. 79-82. Sobre outra possibilidade ventilada pela CIJ, no sentido de que a Sérvia seria responsável não com base na Convenção, mas sim por uma proibição geral do genocídio (que, registra-se, não fora comprovado consoante a leitura da CIJ sobre o caso), cf. paras. 107-115.

7São exemplos a própria Corte Internacional de Justiça, no caso Burkina Faso v. Mali (CIJ, 1986, para. 23: "[...] The essence of the principle lies in its primary aim of securing respect for the territorial boundaries at the moment when independence is achieved. Such territorial boundaries might be no more than delimitations between different administrative divisions or colonies all subject to the same sovereign. In that case, the application of the principle of uti possidetis resulted in administrative boundaries being transformed into international frontiers in the full sense of the term") e a Comissão de Arbitragem da Conferência de Paz sobre a Iugoslávia (ou Comissão Badinter), mais especificamente no seu parecer n. 3 datado de 11 de janeiro de 1992 (in Honrubia, 1995, p. 695-696: "[La] falta de acuerdo en contrario, los límites anteriores adquieren el carácter de fronteras protegidas por el derecho internacional. Tal es la conclusión a la que conduce el principio del respecto del status quo territorial y particularmente del uti possidetis iuris que, aunque inicialmente reconocido en la solución de los problemas de descolonización en América y África, constituye hoy un principio que presenta un carácter general [...]" - grifos nossos).Outrossim, importante lembrar a anotação feita por Thirlway (2017, p. 4) no sentido de que "the [International] Court [of ]ustice]'s jurisprudence is generally consistent, and it frequently cites earlier judgments in support of its decisions [...] [d]espite the lack of a strict rule of stare decisis" - grifos nossos.

8"Em poucas palavras, a principal característica do princípio resulta que, quando um ou mais Estados se tornam independentes, as antigas divisões administrativas constituem o elemento primário para o estabelecimento das fronteiras do novo Estado" (Lima, 2017, p. 122 - grifos nossos).

9Inclusive, a rejeição a estes é comum, segundo Lupi (2008, p. 69): "Dans les cas connus, il faut citer le rejet de la Somalie à une célèbre et importante Résolution de l'Assemblée des Chefs d'États de l'Organisation de l'Union Africaine, à cause d'un différend frontalier, et la mise en cause des frontières héritées par la Roumanie et la Lettonie après la dissolution de l'URSS".

10Essas áreas, exemplificativamente, contemplariam: "(... ) el régimen de derechos de tránsito por vías internacionales, de agua o sobre otros estados, de uso de ríos, de los territorios desmilitarizados o neutrales y, en general, de las servidumbres que un territorio soporta a favor de outro" (Vegacenteno, 2007, p. 419).

11Outrossim, há de ser mencionado que esta não foi exatamente a motivação da comissão para formular o artigo 12 da maneira como foi formulado.Nada obstante, há quem argumente que o reasoning da Corte foi correto, como Fitzmaurice (2002, p. 81).

12Por oportuno, salienta-se que existe um entendimento consolidado quanto à não aplicação do princípio da continuidade no caso do tratado cujos efeitos em uma sucessão são discutidos, quando estes versarem sobre a manutenção de bases militares (ONU, 1978, art. 12.3) ou quando do comprometimento da soberania sobre os recursos naturais (ONU, 1978, art. 13) (cf. também Yesseen, 1978, p. 88). A primeira situação, inclusive, advém do caso Aland Islands, em que, como explica Miltner (2018, p. 501), "Sweden sought enforcement of an 1856 Treaty between France and Great Britain on one side and Russia on the other to forbid the latter from constructing military fortifications on the island", muito embora, nessa situação, "[t]he Committee of Jurists rejected Sweden's claim that the demilitarisation provision constituted a real servitude [for itsself]".

13No mesmo sentido, cf.Crawford, 2012, pp. 439-440.

14"One prominent source of authority for this position was the Case Concerning the Temple of Preah Vihear, in which Cambodia and Thailand agreed that their boundary dispute was governed by a 1904 treaty between Siam and France. The case has thus been cited for the fact that neither party disputed Cambodia's status as successor to France under boundary treaty" (Miltner, 2018, p. 500)

15Essa posição é amparada pela jurisprudência, pontualmente, no caso Eritréia v. lêmen: "The Imam was not a party to the Treaty of Lausanne and in that technical sense the Treaty was res inter alios acta as to Yemen. If title had lain with Yemen at that time, the parties to the Treaty of Lausanne could not have transferred title elsewhere without the consent of Yemen. But, as indicated above, title still remained with Turkey. Boundary and territorial treaties made between two parties are res inter alios acta vis-à-vis third parties. But this special category of treaties also represents a legal reality which necessarily impinges upon third states, because they have effect erga omnes. If State A has title to territory and passes it to State B, then it is legally without purpose for State C to invoke the principle of res inter alios acta, unless its title is betterthan that of A (rather than of B). In the absence of such better title, a claim of res inter alios acta is without legal import" (CPA, 1998, para. 153 - grifos nossos).

16Na verdade, a Líbia chegou a tecer que "at the time of the Treaty's conclusion, it lacked the experience to engage in difficult negotiations with a Power enjoying the benefit of long international experience", muito embora "it has not however taken this argument so far as to suggest it as a ground for invalidity of the Treaty itself" (CIJ, 1994, p. 18 -para 36, grifos nossos). Inclusive, a Líbia chegou a sustentar que, no momento de sua independência, nenhum outro tratado a não ser o de 1955 (e o acordo Franco-Italiano de 1919, posteriormente denunciado pela Itália em 1947) estariam em vigor (CIJ, 1994, p. 22 - para. 44). Outrossim, como argumentado supra, mesmo se não estivesse mais em vigor, por se tratar de um tratado de fronteira, isso não seria um problema, vez que a sua previsão subsistiria na medida em que fora considerada válida no momento da celebração. É o que disse a CIJ: "(...) when a boundary has been the subject of agreement, the continued existence of that boundary is not dependent upon the continuing life of the treaty under which the boundary is agreed" (CIJ, 1994, p. 35 - para 73) e "The establishment of this boundary is a fact which, from the outset, has had a legal life of its own, independently of the fate of the 1955 Treaty" (CIJ, 1994, p. 35 - para 72).

17Esta seria uma "religious confraternity, founded some time during the early part of the nineteenth century which wielded great influence and a certain amount of authority in the north and north-east of Africa" (CIJ, 1994, para 21).

18Aliás, Thirlway (2017, p. 4-5) faz um argumento interessantíssimo quanto ao uso dos termos por Chad e Líbia: enquanto o primeiro afirmava ser este um "boundary dispute' was 'on the basis that there is an existing boundary [defined by a Treaty of 1955], and [it] asks the Court to declare what that boundary is"; já a Líbia, argumentava no sentido de que chamar a controvérsia de "'territorial dispute' [would be more] appropriate because it 'proceeds on the basis that there is no existing boundary, and asks the Court to determine one'".

Recebido: 17 de Janeiro de 2022; Aceito: 29 de Abril de 2022

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