Introdução
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) passam a se consolidar no sistema de saúde brasileiro, a partir da reforma psiquiátrica. Enfrenta-se, desde então, o grande desafio de mobilizar seus atores para o trabalho em uma lógica diversa da tradicional, com a inclusão de novas dinâmicas no cotidiano dos serviços, agenciando recursos múltiplos para a construção de uma clínica ampliada, que tenha como foco as relações que se estabelecem entre usuários e trabalhadores, neste contexto.
A micropolítica é produzida no cotidiano, no plano subjetivo individual e coletivo, agenciando movimentos de diversas ordens, sejam estes de sensibilidade, experiências e práxis (Guattari & Rolnik, 2011). Assim, é nos trajetos vitais que os platôs atravessam e emergem a partir dos encontros e de uma cartografia dos afetos produzidos a partir das relações do corpo com o mundo (Santos & Brito, 2016).
Neste sentido, a micropolítica produzida nos serviços de saúde envolvem relações que podem assumir aspectos contraditórios em sua orientação, sendo estes de transformação e criação, assim como de manutenção e conservação em suas dinâmicas. Estes processos relacionais entre os atores envolvidos, denominamos como a micropolítica das organizações de saúde, e resultam na produção do cuidado em saúde (Cecilio et al., 2014).
Após a aprovação da lei 10.216 (Brasil, 2001), são implantados os CAPS, no âmbito do Sistema Único de Saúde brasieliro (SUS), como modelos substitutivos ao modo asilar de atenção psiquiátrica. O modelo de cuidado proposto passa a ser o modo de atenção psicossocial, que pressupõe espaços que potencializem novos dispositivos de relação no plano individual e coletivo, de conexão e interação na sociedade, com a produção de projetos de vida e cidadania, na perspectiva de criação de territórios existenciais possíveis, incluindo a experiência da loucura.
Os CAPS são serviços de saúde mental que possuem caráter aberto e comunitário, e contam com uma equipe multiprofissional com atuação interdisciplinar. São destinados ao acolhimento de pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, estimulando sua integração social e familiar, a partir de iniciativas que visam o aumento da autonomia.
A organização destes serviços seguem critérios populacionais, tal como o CAPS I, que atende municípios com populações inferiores a 70 mil habitantes, e que podem articular-se em microrregiões para sua constituição e o CAPS II, que se propõe a atender populações maiores que 70 mil habitantes. O CAPS III se caracteriza pelo funcionamento 24h ao dia, contando com a possibilidade de internação breve, de no máximo 7 dias, para a atenção a crises que necessitam essa modalidade de cuidado. Estes podem ser referência para populações maiores de 150 mil habitantes, incluindo cidades ou regiões. O CAPS Álcool e Drogas (CAPS AD) é um serviço responsável pelo cuidado a pessoas adultas ou adolescentes que fazem uso de álcool e outras drogas. O CAPS Infantil ou infanto-juvenil acolhe a população de crianças e jovens em sofrimento psíquico decorrentes de transtornos mentais e ou álcool e outras drogas (Brasil, 2001).
O Modo Psicossocial é um modo de atenção em saúde mental que se contrapõe, nos seus saberes, práticas e discurso, ao Modo Asilar, ou seja, caminha em sentido oposto no que se refere a seus parâmetros basilares, que são: "as concepções do objeto e meios de trabalho; as formas de organização do dispositivo institucional; as formas do relacionamento com a clientela e, concepção dos efeitos típicos em termos terapêuticos e éticos" (Costa-Rosa, 2006, p. 143). Assim, propõe a desospitalização, a desmedicalização, a horizontalização das relações, a implicação subjetiva e sociocultural e a singularização nas ações (Costa-Rosa, 2006). Deste modo, o paradigma da Atenção Psicossocial se refere a questões de ordem subjetivas, intersubjetivas, com foco nas relações individuais e coletivas, que implicam em alteridade e ética produtora de um resultado político no cenário institucional, sendo este possibilitador da afirmação de outro paradigma para o campo da saúde mental, ou seja, a "mudança do paradigma psiquiátrico para o paradigma psicossocial" passa pelas práticas desenvolvidas cotidianamente sob a égide do modo psicossocial (Silva, Zanini, Rabelo & Pegoraro, 2015).
No entanto, a construção de um novo modo de atenção passa a ser um desafio para os trabalhadores, que seguem os pressupostos da reforma psiquiátrica, buscando diferenciar o cuidado produzido, no modelo asilar. Este se produz também, no contexto do sistema capitalista, que institui as relações de produção, a divisão do trabalho e as relações de poderes próprios desta organização social. Deste modo, enfrenta-se com dilemas e problemas referentes a esta conjuntura. O poder que permeia toda a sociedade atinge a realidade concreta do indivíduo, o seu corpo e o corpo social, sendo denominado como micropoder e é identificado como uma prática social, construída historicamente, não localizável em um ponto específico da estrutura social, do qual ninguém e nada escapa, uma vez que todos exercem poder e estão submetidos aos seus efeitos (Foucault, 2012).
É neste contexto social que se propõe a transformação no modelo de atenção em saúde mental e a constituição do modo psicossocial, que tem dentre seus pressupostos, a questão da implicação subjetiva de trabalhadores e usuários na concepção do trabalho. Tal aspecto interfere nas relações no âmbito dos serviços, e com a sociedade, no plano macropolítico. Portanto, o modelo psicossocial apresenta-se como um modo de cuidado que incluí e prioriza a horizontalidade entre poderes e práticas, através do compartilhamento das ações; que passa a ter como objeto da atenção, o sujeito em sua singularidade, para além da doença e dos sintomas; e que deste modo rompe com as restrições e hierarquias entre os campos de saberes, próprias do modelo psiquiátrico tradicional construindo outras relações éticas e políticas com a clientela (Costa-Rosa, 2006).
A proposta deste estudo é problematizar os processos micropolíticos produzidos em um dos serviços substitutivos à estrutura manicomial no país - os Centros de Atenção Psicossocial, a partir da reforma psiquiátrica brasileira. Diante do exposto, se justifica a importância da problematização dos processos micropolíticos institucionais de um CAPS na produção de subjetividade de trabalhadores e usuários, enfocando as relações de poder, de resistência e de potência produzida no modo psicossocial.
Metodologia
Este artigo faz parte da dissertação intitulada "A produção de subjetividade no modo de atenção psicossocial", que analisou dados da pesquisa de avaliação de CAPS da região sul do Brasil - Capsul II, aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, sob o parecer de n° 017/11, e financiada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia através do CNPQ, em parceria com o Ministério da Saúde. Os procedimentos da pesquisa respeitaram o constante na Declaração de Helsinki (1964) e emendas, e nos preceitos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde N.466 de 12/12/2012 e N.251 de 07/08/97. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e tinham conhecimento pleno da pesquisa.
A avaliação dos Centros de Atenção Psicossocial da Região Sul do Brasil (Capsul), trata-se de uma pesquisa que abrange os 3 estados do sul do país, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina (Kantorski, 2011). Elegemos, dentre os locais de pesquisa, o município de Alegrete-RS, para a realização do estudo, devido à significativa história na construção de uma rede de atenção (CAPS II, CAPS I, CAPS AD, SRT, leitos em hospitais gerais); pelas inovações propostas em sua experiência (rodas de saber, programas de rádio, parada do orgulho louco) e a promoção de movimentos em relação à garantia dos pressupostos da reforma psiquiátrica.
O estudo investiga a estrutura, o processo e o resultado do trabalho desenvolvido nos CAPS, ouvindo trabalhadores, usuários e familiares. Este utiliza metodologias quantitativas e qualitativas. A avaliação qualitativa utilizou a metodologia de quarta geração de Guba & Lincoln (2011), adaptada por Wetzel (2005) , para abordar a realidade pesquisada como um estudo de caso.
Na Avaliação de Quarta Geração, é proposto um processo avaliativo participativo que dá voz aos diferentes grupos de interesse envolvidos, sendo de extrema importância sua utilização no campo da saúde mental, o qual preconiza a produção do poder contratual dos grupos e a sua participação no processo de avaliação possibilita que isso ocorra (Kantorski, et al., 2009; Wetzel, Pavani, Olschowsky & Camatta, 2017).
A coleta dos dados ocorreu entre julho e agosto de 2011, utilizando a entrevista semi-estruturada e a observação participante. A entrevista parte de 3 questões norteadoras que passam a ser aprofundadas com a técnica do círculo hermenêutico, em que os participantes indicam um novo informante, e aprofundam as informações.
Entrevistaram-se 11 usuários e 21 trabalhadores. Os sujeitos estão identificados pelas letras U (usuários) e T (trabalhadores), seguindo a ordem das entrevistas, preservando o anonimato. A observação participante totalizou 253 horas e os dados dos diários de campo foram identificados pelas letras DC.
Resultados e discussão
O trabalho desenvolvido no cotidiano dos serviços de saúde mental reflete aspectos objetivos e subjetivos, estes se produzem nos espaços de cuidado e nas relações interpessoais, se processam no cotidiano, criando modos de subjetivação e de existência individual e coletiva.
A concepção do objeto de trabalho, dos meios de trabalho e os modos de relação e compromisso ético e político assumem configurações muito distintas daquelas operadas no modelo asilar, segundo Costa-Rosa (2006). Os dados aqui apresentados buscam evidenciar as relações micropolíticas e os processos de subjetivação presentes nestas transformações identificadas pelo referido autor, como parâmetros do Modo Psicossocial.
Concepção do objeto e dos meios de trabalho
O modo psicossocial tem como objeto de trabalho o indivíduo em seu mundo relacional numa perspectiva ampliada, incluindo família e seu entorno social. Deste modo, acessa outros meios de trabalho, revendo as concepções de saúde-do-ença-cura, os meios e modos de intervir para a realização do cuidado, as relações técnicas e o discurso ideológico, que mobilizam mudanças no paradigma tradicional de atenção psiquiátrica (Costa-Rosa, 2006).
A perspectiva de atenção ao sofrimento psíquico, que coloca o foco na pessoa, amplia o cuidado para além da doença, sintomas e conflitos, abordando também as potencialidades e projetos de vida (Paranhos-Passos & Ayres, 2013). A loucura sendo compreendida como um fenômeno de ordem coletiva, e não apenas individual, desafia as abordagens complexas, que transcendem a simples remissão de sintomas. Assim, há uma ruptura com modelos que abordam a doença e a cura como principal objetivo da atenção psiquiátrica, tal como ocorre no modelo psiquiátrico asilar. Essa mudança implica na criação de outros meios de trabalho e dinâmicas para o cuidado no cotidiano das instituições de atenção à saúde mental.
O modelo hospitalar está organizado em uma lógica biomédica, centrado na figura do médico e no enfrentamento dos sintomas. Deste modo, tem como principal instrumento de trabalho, a prescrição de medicações e o distanciamento das questões subjetivas, limitando a possibilidade de novos arranjos de produção de subjetividade, saúde e qualidade de vida, que decorrem das intervenções relacionais e de experenciações (Barbosa, Martinhago, Hoepfner, Daré & Caponi, 2016).
A ruptura com paradigmas estabelecidos historicamente no campo psiquiátrico acontece quando o objetivo da atenção deixa de ser a cura para a loucura. E este modo, sustentado por outro paradigma e outra ética, promove processos de subjetivação (Shimoguiri & Périco, 2014), já que o compartilhamento de saberes, as relações éticas e afetivas, com foco no território existencial, produzem a potencia necessária para desconstruir as relações burocráticas e de limitação característicos das instituições manicomiais (Lima & Yasui, 2014).
O cuidado na atenção psicossocial relacio-se com a produção de mobilização individual e coletiva. Trabalha para possibilitar processos de interação, produção de saberes e experiências, reinventando a corporiedade, a responsabilidade e solidariedade com o mundo em que se insere. Pressupõe aprendizagens e potencializa a lidar com o sofrimento e o prazer, produzindo singularidades e processos de subjetivação (Pelbart, 2016). No serviço estudado, identificam-se aspectos relacionados à micropolítica, no que se refere à concepção do objeto de trabalho, na valorização das relações entre os atores do processo -trabalhadores e usuários- enquanto produtoras de dinâmicas em sua ação cotidiana. Encontram-se movimentos de superação de ações prioritariamente com enfoque biomédico, construindo um espaço de cuidado com recursos diversos, provenientes dos diversos saberes presentes no campo, como mostram as falas a seguir:
[...] eles avaliam como é que está o andamento da pessoa, é muito bom. [...] Eles fazem perguntas, eles se interessam. Olha, dão um telefone para nós se precisarmos. Olha, não fiquem sozinhos se precisarem, liguem, que o pessoal daqui tem responsabilidade com vocês. (U11)
Na oficina de música [...] estão cantando sem uma uniformidade, as vozes são destoantes, desafinam e cantam com animação, a professora não procura corrigir as dificuldades para cantarem mais em conjunto [.] L. canta sozinha e dança sem se importar com os outros. (dc 1- 25/07/11)
(futebol). Estão muito alegres, divertem-se. A oficineira fica como juíza. Eles brincam, [...]. Tem música ligada, uma usuária dança o tempo todo sozinha, ela não interage com ninguém. (dc 1- 26/07/11)
A dimensão relacional presente nos serviços de saúde deve possibilitar permeabilidade à inovação e a inclusão de múltiplos saberes, não apenas técnicos, mas que derivam das interações humanas, sendo estas determinantes à produção dos serviços na área da saúde (Merhy, 2007). Assim, a atenção psicossocial pressupõe a escuta qualificada, acolhimento e visitas domiciliares, como práticas que podem ser desenvolvidas pelos diferentes profissionais que compõe a equipe. Estas ações possibilitam espaços intercessores característicos das tecnologias leves e do trabalho vivo, entendidos como potentes neste modo de cuidado.
A equipe de trabalho estrutura sua atuação de forma interdisciplinar. As decisões são tomadas conjuntamente, com a participação de todos os trabalhadores, garantindo maior horizontalidade no planejamento e gestão do serviço. Estes referem o compartilhamento de responsabilidades, com a utilização de saberes e recursos oriundos das diferentes áreas de conhecimento de seus profissionais, ampliando assim, a oferta de atividades aos usuários. Deste modo, se busca superar as práticas tradicionais instituídas na atenção psiquiátrica, como aponta um trabalhador, a seguir:
É, são as reuniões [...] que nos dão essa sustentação, sempre foram nossa fortaleza, [...] a gente se encontrava e definia como nós íamos agir [...]. É o que nos dá assim a noção vamos fazer assim, vamos fazer assado, sempre as decisões independente da administração [...] as decisões sempre foram muito de coletivo. (T3)
O trabalho no modo psicossocial demanda capacidade relacional, com efetiva capacidade de interlocução aos profissionais que compartilham seus objetivos e o desenvolvem de forma integrada. A competência relacional não é uma prerrogativa da formação técnica, mas sim dos processos de subjetivação do trabalhador, que se implica diretamente na construção destes vínculos no ambiente do CAPS. As reuniões se caracterizam como espaços estratégicos para elaboração de planejamento conjunto das ações.
As ações dos trabalhadores estão voltadas para a vida no cotidiano e no espaço social, mediante uma "clínica artesanal", por se construir a partir dos acontecimentos. E neste movimento, o serviço de saúde mental vai tecendo possibilidades de subjetivação ao focar sua atenção nas pessoas e seus projetos de vida, sejam eles individuais ou coletivos, produzindo novas formas de experienciar a loucura (Argiles, Kantorski, Willrich & Coimbra, 2017). Assim, a atenção psicossocial caracteriza-se pela complexidade, que implica pensar, fazer e ser afetado pelo cuidado, assim como, negociar e criar possibilidades em âmbito individual, coletivo e institucional.
O CAPS de Alegrete mantêm em seu trabalho cotidiano, aspectos relacionados às práticas tradicionais de cuidado e atenção na área psiquiátrica, tais como a busca da remissão da sintomatologia e de processos adaptativos às demandas familiares e sociais. Deste modo, se reduzem os espaços para processos de subjetivação, singularização e produção de diferença.
Os movimentos produzidos na dinâmica cotidiana do serviço comportam tensionamentos de ordem diversas, tais como: agenciamentos, deslocamentos, empoderamentos e inovações no âmbito do cuidado e nas relações. Produzem ainda, bloqueios do potencial criativo, práticas de controle e interdições.
No serviço estudado percebem-se aspectos que limitam as relações e dinâmicas de trabalho no interior do serviço, em contraposição aos avanços já registrados nas informações anteriores. As dificuldades de efetivar as relações de negociação e contratualização com os usuários, respeitando a proposta de construção conjunta dos planos terapêuticos, demonstram uma fragilidade do serviço, como é possível perceber quando um trabalhador diz, "Aqui no caso quem decide o PTI: tal usuário vai para tal oficina ou para outra é a terapeuta ocupacional [...]. Ela que decide" (T14), ou de um registro em diário de campo: "Quem decide sobre as oficinas, são os profissionais, mesmo que o usuário não goste da atividade indicada, tem que ficar" (DC 1-04/08/11).
As alterações produzidas no interior dos serviços de caps devem, necessariamente, possibilitar que seus atores possam protagonizar fissuras nas redes de relações de poder que permeiam o espaço de atenção psicossocial. Deste modo, trabalha-se para garantia de transformação no modelo de produção de cuidado.
O modo psicossocial prevê o trabalho a partir de relações horizontalizadas entre os profissionais dos diferentes campos de saberes que atuam neste contexto. Assume assim, um caráter de questionamento e tensionamento, em relação à gestão e às normas organizacionais e burocratizadas das políticas de saúde. Deste modo, constitui-se com características de resistência biopolítica, buscando a superação e a captura dos movimentos institucionalizantes de reprodução da existência.
As questões relativas aos poderes que transitam no interior da equipe, que detonam posturas hierárquicas e enrijecidas, fazem sentir-se no serviço de saúde mental estudado, por parte da equipe técnica em relação aos profissionais de nível médio. As divergências entre estes atores não aparecem nas discussões de equipe, cujas pautas são definidas por profissionais que ocupam funções específicas e representam determinados campos de saber, porém, se concretizam na dinâmica relacional do CAPS. Essa verticalidade nas relações, presente no interior da equipe, compromete em determinados aspectos o funcionamento do trabalho interdisciplinar, como demonstra a fala a seguir:
A coordenação do CAPS tem uma boa relação com a coordenação do sistema, entre eles, nós funcionários, não temos. Acho que isso é uma situação que considero negativa. [...] Não é uma questão de passar por cima de ninguém, [...] estamos cheios de chefes aqui dentro. Chefe de enfermagem, chefe da terapia ocupacional. Não gosto disso, nunca foi assim, não aprendi a trabalhar desse jeito, esse tipo de hierarquia em vez de facilitar a relação entre a gente complica. [...] Acho que se centralizou [...] mais as decisões, [...] sinto falta de decidir mais coisas na reunião, acho que a gente decide bem menos hoje do que a gente já decidiu antes. (T3)
A análise dos dados indica que a gestão e o modo de organização da atenção psicossocial, constituem-se espaços de liberdade e diferença, assim como produzem mecanismos de controle e limitação de processos de vida criativa e autônoma.
O trabalho na atenção psicossocial, deste modo, pode assumir vertentes distintas, tais como: tornar os loucos e os trabalhadores adaptados, produtivos e inseridos nas instituições sociais, e outra que potencializa neles a capacidade de criação e de subjetivação (Oliveira, 2006).
Relações com a clientela e compromissos éticos e políticos
O modo de produzir saúde é uma tarefa coletiva colocada aos trabalhadores de saúde no sentido de ressignificar o sujeito, promovendo sua autonomia, no modo de operar o trabalho no interior dos serviços de saúde. O trabalho em saúde abarca a organização dos processos de trabalho em função de seus elementos constituintes, porém de acordo com processos próprios, considerando que este não se realiza sobre coisas ou objetos, mas sobre indivíduos. Ele se dá através de uma interação relacional significativa e que se torna fundamental para a produção do cuidado em saúde. Merhy (2007) nomeia como espaço intercessor o encontro entre o profissional de saúde e o usuário, momento de relação, vínculo, e o próprio processo de intervenção, onde se processam as tecnologias que caracterizam o cuidado em saúde.
A clínica construída neste espaço se faz em relação, quando estabelece vínculos no momento do cuidado, responsabilizando-se e implicando--se frente ao sofrimento do outro. Neste sentido, constrói uma postura técnica, ética e comprometida com a produção de subjetividade maquínica e singularizada, na produção da atenção em saúde (Guattari & Rolnik, 2013).
Nas falas dos usuários do serviço de saúde mental estudado, encontra-se o reconhecimento de espaços de encontro e relação, que assumem caráter de criação e gerenciamento sobre sua própria vida. Também, encontram-se percepções de aspectos de poder sobre a vida individual ou coletiva, na qual se estabelecem relações de tutela e controle sobre a vida do outro, mantendo dependência e submissão ao poder institucional.
Podem-se associar as dinâmicas relacionais presentes nos espaços de cuidado em saúde com estratégias de poder-saber nos contextos institucionais, a partir de Foucault (2012). Bem como a potência destes espaços para a produção de outros modos de encontrar-se na vida em sociedade, que podem ser denominados como biopolítica e biopotência, respectivamente.
Para Foucault (2012) , a biopolítica relaciona as modalidades do poder que se exerce sobre a vida, e que tem como objeto a população. Trata dos mecanismos de domínio explícito do poder, afirmando o poder-saber como constituinte e agente de transformação e apropriação da vida da humanidade. É uma estratégia ampliada de exercício de biopoder que se refere a modos de dominação da vida, mas também a formas de resistência ativa. Já a biopotência, entendida enquanto potência de vida do coletivo é um misto de inteligência coletiva, afetação recíproca, produção de laços, inserção em redes e projetos de vida coletivos (Pelbart, 2016).
A potência de vida do coletivo foi observada nas ações realizadas no serviço de saúde mental de Alegrete, através da mobilização, participação, relações e interações no cotidiano do mesmo. As posturas ativas de usuários e trabalhadores no contexto do serviço e da cidade denotam atitudes potentes e que favorecem a inserção dos usuários na sociedade, com respostas de caráter ético e político em suas ações, como referem as falas dos trabalhadores e as observações realizadas:
Na rádio comunitária informam sobre questões de interesse da sociedade [...]. A comunicadora é líder comunitária, conselheira municipal de saúde, participante da associação dos usuários, familiares e militantes da saúde mental. (dc 2- 29/07/11)
A participação no conselho, nossa saúde mental desde o início acompanhou as discussões da política de saúde, [...] e questões do sus, isso foi empoderando as pessoas a respeito dos direitos de saúde, o direito do usuário e do trabalhador [.]. Eu vejo muita potencialidade, muita potência, a participação dos usuários, a organização deles, a vontade deles de construir o sistema isso é tudo de bom, isso é potência pura [...] e eles têm esse interesse mostra o quanto a gente tem um andar aí, uma trajetória, para construir, muito boa [...]. (T4)
Os dados apontam que se desencadeiam relações micropolíticas nas instituições que trabalham com o modo psicossocial, que partem de relações éticas e estabelecem assim, compromissos com a clientela, garantindo a construção de espaços potentes para processos de singularização, produção de sentido e de desejos. Agenciam novos modos de existir quando produzem resistências às formas instituídas pela dinâmica de trabalho do modo asilar, e assim, coloca-se como biopotência para produzir espaços de criação, produção, alteridade e subjetivação.
As mudanças paradigmáticas no âmbito da reforma psiquiátrica envolvem o trabalho com foco nas tecnologias leves, ou seja, nas relações, vínculos e espaços de escuta e troca entre aqueles que se propõem ao cuidado e os usuários do serviço de saúde. Assim, o modo psicossocial propõe um paradigma ético-estético-político, que direciona a clínica para a criação de territórios existenciais, para relações de implicação com o meio ambiente, com a sociedade e com a possibilidade subjetiva de afetar e ser afetado. O uso do termo paradigma ético-estético e político apoia-se em um universo de referência, que se contrapõe ao paradigma técnico-científico, compreendendo as dimensões humanas da subjetividade e das relações sociais (Guattari, 1990). A dimensão estética relaciona-se ao desejo, à sensibilização, às relações de alteridade e à singularidade, enfim à produção de territórios existenciais que promovam uma mudança crítica dos modos de existência e das lutas sociais.
É possível reconhecer nas relações que se produzem no serviço estudado, a possibilidade destas desencadearem mobilizações individuais e coletivas, que permitem a ocupação de territórios subjetivos e de espaços na vida em sociedade, a partir das concepções de cuidado referidas pelos usuários, como segue:
"Isso aí eles dão oportunidade. Tem jogo. [...] Tem coisas assim tem de tudo que a gente quiser. Aí, eu acho uma maravilha isso aqui, não tenho do que me queixar" (U4). "Bom, a gente se sente tão feliz sabe, [...]. Então a gente tem apoio de-les,tanto das enfermeiras, como das psicólogas e das doutoras. A gente se sente amado" (U9).
As experiências encontradas neste serviço se apresentam como dispositivos coletivos e grupais, que trabalham com a perspectiva da sociabilidade. As políticas de saúde que trabalham na perspectiva de políticas de subjetivação, como processos contínuos de produção de modos de existência, podem colocar-se de forma a potencializar ou limitar a experiência vital. A política que afirma a singularidade enquanto modo de vida é indissociável da liberdade, da ética, do pensar e agir (Argiles, 2012). Assim, as políticas de subjetivação se encontram na criação, no devir, na diferenciação e resistências que produzimos (Macerata, Soares & Ramos, 2014).
Desta maneira, o serviço de atenção psicossocial pode configurar-se como espaço intercessor, onde se torna possível uma ruptura com processos de sofrimento e adoecimento que se relacionam à submissão e a situações de vida que limitem a potência criativa, as possibilidades de resistência e a perspectiva da alteridade. Assim, o CAPS pode colocar-se como máquina de subjetivação no sentido da singularidade, de potência e diferença.
No serviço estudado, encontram-se processos de intervenção no cotidiano que produzem mobilidade subjetiva individual e coletiva, entre usuários e trabalhadores, quando estes vivenciam momentos especiais de solidariedade, de trocas afetivas, de responsabilização pela própria vida e pelo cuidado com o outro, assim como pelas iniciativas de criação e experimentação do inusitado. Ao trabalhar com estes recursos, ganha potência de máquina capaz de produzir subjetividades singularizadas, como mostram os fragmentos a seguir.
(relato de um grupo) "duas usuárias tomam a palavra e informam que farão uma dinâmica. De um saco de tnt, onde está escrito, Mentaleiros 2011 surgem frases que são lidas e comentadas pelas pessoas. É muito significativo e até emocionante ver a clareza, os sentimentos, as emoções envolvidas. Algumas já estão de alta e retornam para compartilhar com os amigos e com a [.]. Observo muita emoção neste encontro, há muita demonstração de empoderamento, de autonomia, e crescimento. (DC 1 - 27/07/11)
A gente faz as atividades, as dinâmicas de grupo e valoriza as pessoas que vão lá. [...] o tratamento, o cuidado em saúde mental, ele é um cuidado muito em longo prazo, talvez permanente. Eu antes me incomodava um pouco porque eu achava que tinha que dar alta. Hoje os usuários me ensinam outra coisa, que é o grau de autonomia. [...] Então a gente tem vários processos de alta e essa alta quer dizer muita coisa para muita gente e de forma diferente. (T4)
As vezes eu digo as coisas, eu não sou de ficar quieta, eu chego lá e falo. Eu quero falar tal coisa. Me ouvem, eu vou lá, converso lá na prefeitura, falo porque não vou ficar guardando coisas, porque o que é bom para mim, é bom para os outros. (U11)
As questões relativas à ética implicam trabalhar com foco na singularização, na horizontalização, na interlocução e implicação subjetiva (Costa-Rosa, 2006). Estas concepções possibilitam as trocas afetivas, solidárias e de responsabilidade com o coletivo, e partem de uma postura política assumida com os pressupostos da reforma psiquiátrica, norteando seus rumos enquanto movimento social. Assumir compromisso com uma sociedade democrática favorece aos usuários e aos trabalhadores o desenvolvimento destas concepções em suas próprias existências.
O compromisso do trabalho alicerçado em uma ética do cuidado, de respeito à dignidade e direitos da pessoa, é pilar da proposta psicossocial. Quando se faz presente no cenário dos serviços de saúde mental e nas ações e dinâmicas construídas, transpassa estes locais e se consolida na existência das pessoas, através de atitudes e iniciativas concretas, de solidariedade e de responsabilidade social (Argiles, 2012).
O serviço estudado demonstra iniciativas que partem de usuários, familiares e trabalhadores relativos ao exercício de uma ética afetiva e compromissada com políticas e mudanças sociais. A associação dos usuários da saúde mental constituída no serviço desenvolve diversas atividades para além dos interesses diretos, relacionados ao CAPS e às questões da saúde mental, inserindo-se em diversos projetos de ordem comunitária, assumindo postura cidadã e de responsabilidade social:
Referem algumas lutas desta associação, entre outras: pela moradia transitória, pela casa do idoso, pela universidade em Alegrete, [...] pela criação dos demais CAPS, SRT, leitos no hospital geral. (DC 1- 25/07/11)
A associação mantém a oficina dos documentos perdidos, recolhe documentos, localiza os donos e faz a entrega. É um serviço de utilidade pública, que traz reconhecimento para a associação. A ideia é mostrar a sociedade o quanto os usuários assumem responsabilidades sociais. Membros da associação participam do conselho de saúde. (DC 1- 25/07/11)
A dinâmica estabelecida no serviço estudado permite espaços de criação, relações, alteridade e de intersubjetividade em seu âmbito de abrangência. Contudo, favorece também espaços de retrocessos, de aprisionamento, de captura das potências de criação e resistência, que são resultantes de processos de conservação, reprodução e manutenção de modos de existência. Estes se relacionam à produção de subjetividade capitalística, que opera de forma a homogeneizar e controlar, através da serialização e normatização individual e coletiva (Argiles, 2012). Tais movimentos estão presentes na vida em sociedade e também no interior do CAPS, como pode ser observado na fala a seguir: "Por que é a mesma coisa que a gente falar para o vento, [...] Não ser só ouvido. Ouvir, qualquer um ouve, todo mundo ouve" (U1).
As questões éticas propostas no modo psicossocial passam a ser requeridas e priorizadas neste contexto de cuidado, devido ao estabelecimento de relações com maior horizontalidade, e os atravessamentos que rompem estes processos, são reconhecidos e enfrentados pelos usuários e trabalhadores. Estes se encontram comprometidos com a criação de rotinas, procedimentos, dinâmicas e relações em rede no território de vida das pessoas, sem negar que estas também incluem disputas, hegemonias, políticas e interesses diversos (Merhy et al., 2014). A afirmação da política de atenção psicossocial envolve mudanças de referenciais teóricos e estruturais nos serviços de saúde, instaurando uma lógica de cuidado em liberdade, para pessoas que historicamente viveram segregadas. Estas transformações extensas e profundas não se constituem sem um período de luta, entre os protagonistas deste processo. Mobiliza-se a dimensão micropolítica da subjetividade, ao questionar-se os saberes e poderes hegemônicos e consolidados na área psiquiátrica (Soares, 2016).
O processo de construção da reforma psiquiátrica se reflete no serviço estudado, na tentativa de romper com paradigmas instituídos sobre a loucura e se propor a inventar outros modos de cuidar e acompanhar pessoas em sofrimento psíquico. Produz, assim, processos de resistência e subjetivação singularizada em suas relações micropolíticas, potencializando agenciamentos que possibilitam a criação de novos referenciais, de produção de desejos, de solidariedade e ética, constituindo um serviço comprometido com a qualidade de vida em sua comunidade.
Considerações finais
O modo psicossocial, tal como discutido aqui, se potencializa a partir das relações entre usuários e trabalhadores, na dinâmica do processo de trabalho desenvolvida no caps, e mostra-se como estratégico na construção do cuidado na atenção à saúde mental e na afirmação do processo de de-sinstitucionalização.
No transcorrer da análise, foi possível compreender que o trabalho se constrói na perspectiva de superar objetivos como a simples remissão sinto-matológica e adaptativa à sociedade, direcionando a abordagem para aspectos individuais e coletivos que proponham outras formas de convívio com a loucura e a alteridade. Delineia-se, desta maneira, como uma tarefa complexa, que transpõe o caráter individualizante e configura-se em uma ação política.
O modo como são propostas as ações e como se estabelecem as dinâmicas e relações no processo de trabalho, traduzida na micropolítica do serviço, resulta em possibilidades diversas de produção subjetiva para usuários e trabalhadores, a partir de sua construção no cotidiano da atenção psicossocial.
O processo de trabalho prioriza o uso de tecnologias leves, com foco no acolhimento, nos vínculos, na dinâmica grupal e nos diferentes espaços de oficinas, que possibilitam expressão, criação e aprendizagens. O ambiente do serviço caracteriza-se como espaço intercessor, para estas intervenções, potencializando os processos de subjetivação, interação relacional e trocas intersubjetivas.
A presença de hierarquia e verticalidade entre as diferentes funções encontradas na micropolítica do trabalho do CAPS de Alegrete derivam dos poderes produzidos pelos saberes que compõe o campo de atenção, e ainda assumem caráter hegemônico nos serviços de saúde. A desinstitucionalização traz o ideário de liberdade e de espaços democráticos para o contexto de atenção à saúde. Entretanto, a desconstrução de modos de funcionamento tradicionais e hierarquizados, ainda está em processo no cenário brasileiro. Os trabalhadores trabalham para liberar-se do mandato social deste exercício de saber-poder, para reconhecer-se na diversidade possível que pode ser construída a partir de suas intervenções no campo psicossocial.
A dimensão relacional da atenção psicossocial, a qual implica em aumento ou redução de potência para a vida das pessoas implicadas, se potencializa nos encontros, nos devires, nos agenciamentos de desejo e resistências, de valorização de saberes, na possibilidade de afetar e ser afetado pelas interações vivenciadas. Estas caracterizam a postura ética no âmbito das relações desenvolvidas no serviço. Mesmo com fixação e retrocessos em determinados aspectos, observou-se um processo produtor de diferença e de subjetivação singular e coletiva.
Por fim, entende-se que os serviços de atenção psicossocial apresentam-se como espaços onde a reconstrução de novos modos de vida e cuidado para pessoas com a experiência da loucura podem ocorrer.