Introdução
Para muitos estudantes, a experiência do ingresso e permanência no ambiente universitário denota um marco importante na sua constituição enquanto sujeito. Dados do último Censo da Educação Superior (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [INEP], 2019) apontam que o Brasil conta com pouco mais de 2.500 Instituições de Ensino Superior, sendo que em 2018 cerca de 8,45 milhões de alunos ingressaram e mais de 1 milhão e 200 mil estudantes concluíram sua graduação no país.
Em um período marcado por diversos desafios, tais como desenvolvimento de autonomia, vivência de novas experiências e responsabilidades, há também o aumento da vulnerabilidade para a experimentação de substâncias psicoativas por estes universitários (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas [SENAD], 2014). O autor Dalgalarrondo (2018) compreende substância psicoativa como “qualquer substância química que, quando ingerida, modifica uma ou várias funções do sistema nervoso central (SNC), produzindo efeitos psíquicos e comportamentais” (p. 344), citando como exemplos o álcool e a nicotina, composto químico presente em produtos do tabaco.
As variáveis que configuram as motivações para o consumo de ambas as substâncias, álcool e tabaco, pelos universitários, podem ser diversas. No estudo de Zeferino et al. (2015), por exemplo, os autores verificaram que o consumo de drogas lícitas (álcool e tabaco) esteve associado à influência de amigos que faziam uso de algum tipo de droga, lícitas ou ilícitas. Além disso, neste mesmo estudo, os universitários que não se encontravam em algum tipo de relacionamento amoroso demonstraram maior vulnerabilidade para o consumo dessas substâncias (Zeferino et al., 2015).
Sobre as razões que determinam o consumo de substâncias, numa visão psicanalítica, Alencar (2018), em sua obra sobre drogas e pulsão na Modernidade, afirma que não se tratar apenas da droga, mas do sujeito e associações que este produz acerca da droga, da vida familiar, dos amores etc. O autor cita a compreensão do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi sobre essa temática, afirmando que para ele o consumo de drogas não seria a causa de problemas, mas sim consequências de conflitos psíquicos, sendo o uso de substâncias um modo de busca para solucioná-los (Alencar, 2018). À vista disso, pensando nos possíveis desencadeadores do consumo de bebidas alcoólicas e de produtos de tabaco, é necessário que se conheça o contexto no qual o universitário está inserido, bem como as suas representações sociais acerca dos sentidos subjetivos atribuídos a este tipo de prática.
Para Lefèvre e Lefèvre (2003), uma das formas de se compreender as representações sociais “consiste em entendê-las como a expressão do que pensa ou acha determinada população sobre determinado tema” (p. 30), em outras palavras, buscando compreender o senso comum, como e por quais razões as pessoas partilham conhecimentos e constroem uma realidade comum (Pinto et al., 2020). Em se tratando ao modo como se pensa saúde/doença, de acordo com Medeiros (2014), essa compreensão pode justificar a prática profissional na área de saúde, ou melhor, a angústia do profissional da saúde em sua prática e, consequentemente, em sua concepção da problemática do consumo das drogas lícitas.
Entre as representações acerca do álcool, observa-se um exemplo compartilhado culturalmente no país ao longo dos anos: os discursos presentes em letras de músicas do gênero sertanejo, especialmente o “sertanejo universitário” na atualidade. Na dissertação de Lioto (2012), a autora, analisando letras de canções deste gênero musical que citam o álcool, observa semelhanças nos discursos das canções, as quais atribuem à bebida a capacidade de solucionar ou amenizar problemas e de trazer alegria.
Além dos discursos retratados pelas letras do sertanejo, há outro conteúdo difundido ao longo dos anos, capaz de exemplificar e representar o modo como o consumo de bebidas alcoólicas é percebido: o contexto apresentado nas propagandas das marcas de cerveja. Em uma análise de 18 comerciais de cerveja, realizada por Oliveira, Romera e Marcellino (2011), os autores identificaram alguns padrões nesse tipo de publicidade, entre eles: a unanimidade da presença de pessoas jovens, reunidas em situações de lazer distintas que incluíam o consumo de bebida alcoólica, tais como em bares, eventos festivos (ex: carnaval) e praias; exposição da sensualidade feminina, incluindo a presença de cantores ou personalidades conhecidas pela mídia.
Por outro lado, sobre as representações em torno do tabaco obtidas em estudos, destacam-se: a ideia do tabagismo como algo que favorece a socialização, sensação de alívio e redução da ansiedade, além da dificuldade em abandonar seu uso (Possato et al., 2007); associação do fumo com o surgimento de doenças como o câncer, sendo um hábito considerado desagradável e de desrespeito aos outros e o ato de fumar como consequência de problemas pessoais e psicológicos (Medeiros, 2014). É importante salientar que o tabagismo está inserido no DSM-5 (American Psychiatric Association, 2014) no grupo de Transtornos Relacionados ao Tabaco, sendo a causa de aproximadamente 50 diferentes doenças incapacitantes e fatais, além de ser uma das principais causas de mortes evitáveis ao redor do mundo (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas [SENAD], 2014).
Ademais, visto que o consumo de bebidas alcoólicas e produtos do tabaco é mais recorrente entre os universitários do que na população geral (Zeferino et al., 2015), desperta-se o interesse e a necessidade de compreender quais são as percepções de estudantes da área da saúde, especialmente dos futuros enfermeiros, sobre o fenômeno do consumo dessas drogas lícitas. Afinal, posto que dentro do currículo de formação em Enfermagem o principal fio condutor é o cuidado humano (Amorim, 2009), consumir substâncias potencialmente danosas ao próprio organismo e, ao mesmo tempo, ser um agente de cuidados, prevenção e promoção em saúde o uso dessas substâncias é um fenômeno que desperta curiosidade em ser melhor entendido.
Diante disso, o objetivo geral deste estudo foi investigar e caracterizar as representações sociais que universitários dos últimos semestres de graduação em Enfermagem, de uma instituição privada de ensino superior na cidade de São Paulo - SP, possuíam acerca do consumo de bebidas alcoólicas e produtos derivados de tabaco. Especificamente, buscou-se averiguar a frequência do consumo dessas substâncias pelos participantes e as percepções das possíveis razões motivadoras para o consumo, considerando o fato dos investigados serem futuros profissionais da área da saúde.
Método
Desenho do Estudo
Para atender aos objetivos propostos, utilizou-se um levantamento de campo, de corte transversal, por meio de uma pesquisa, denominada por Lefèvre e Lefèvre (2010) como qualiquantitativa. Por se tratar de um estudo que visa captar as representações sociais, ou seja, o que pensa um grupo de sujeitos acerca de um determinado tema, os autores afirmam que a opinião coletiva estaria composta simultaneamente por uma dimensão qualitativa e outra quantitativa, não havendo oposição entre elas, pois expressam partes distintas de um mesmo fenômeno (Lefèvre & Lefèvre, 2010).
A dimensão qualitativa refere-se ao fato de que cada opinião é uma qualidade, que será apreendida por meio de uma questão aberta, onde o sujeito expressará livremente um depoimento, ideia ou opinião, que posteriormente deverão ser descritas, ou seja, qualificadas. Após o processo de descrição e agregação das qualidades, é então possível quantificá-las, processo este que permite a percepção da adesão de uma determinada opinião entre os sujeitos pertencentes àquele grupo (Lefèvre & Lefèvre, 2010). De acordo com Lefèvre e Lefèvre (2010), não há como quantificar o que não foi, a princípio, qualificado, e é por essa razão que o método recebe o nome de qualiquantitativo.
Assim, considerando os objetivos expostos, o método qualiquantitativo demonstrou atender mais satisfatoriamente ao que se pretendeu analisar, pois, conforme os autores, a metodologia qualiquantitativa permite descobrir o que pensa o coletivo sobre problemas que o afeta, bem como verificar o grau de compartilhamento dessas opiniões nos diversos grupos, como gêneros, idades, classe social etc. (Lefèvre & Lefèvre, 2010). Ainda, conforme apontou Medeiros (2014), tal método permite com que “os fenômenos sejam apreendidos de forma integrada, viabilizando tanto o aprofundamento no significado do comportamento individual e grupal, quanto à importância do mesmo entre os indivíduos" (p. 88).
Participantes
Fizeram parte da amostra 28 participantes, estudantes universitários dos dois últimos semestres do curso de graduação em Enfermagem, de uma universidade privada da cidade de São Paulo, Brasil. A amostragem configurou-se como sendo não probabilística, compondo a amostra estudantes de ambos os gêneros, maiores de 18 anos, devidamente matriculados nos oitavo e nono semestres de graduação. O critério de seleção dos participantes baseou-se na delimitação de estudantes em período de finalização da formação universitária e, portanto, mais próximos de iniciarem a atuação profissional no atendimento ao público na área da saúde.
Instrumentos
Utilizou-se para a coleta de dados um questionário para caracterização do perfil da amostra, elaborado pelas autoras com o objetivo de obter dados dos participantes, tais como gênero, idade, estado civil, bem como de verificar informações sobre os seus hábitos relacionados ao consumo de álcool e tabaco; além da apresentação escrita de uma questão-caso, narrando uma situação específica referente ao consumo de bebidas alcoólicas e derivados de tabaco, seguida de uma pergunta: “Um grupo de estudantes universitários costuma se reunir à noite para irem a bares próximos à faculdade. Lá, alguns bebem álcool, outros fumam cigarro, e alguns compartilham o narguilé. Por que você acha que os universitários fazem o uso destas substâncias?”, para posterior análise do Discurso do Sujeito Coletivo - DSC. A criação da questão-caso baseou-se no que foi proposto no estudo de Medeiros (2014), que também apresentava uma breve narrativa sobre um contexto de consumo de tabaco, substância que foi o enfoque no estudo da autora.
Procedimentos de coleta de dados
A pesquisa utilizou as diretrizes e normas do Conselho Nacional de Saúde, respeitando os preceitos da Resolução 466 de 2012 que trata da pesquisa com seres humanos, garantindo-se o sigilo das informações e anonimato dos participantes (Ministério da Saúde/Brasil, 2012). Após a autorização da coordenação do curso de Enfermagem e posterior aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade selecionada (CAAE nº 13473219.5.0000.0089, parecer nº 3.327.709), a coleta efetuou-se no dia e horário combinados previamente com a coordenação e professores do curso. Após a apresentação dos objetivos principais e de orientações gerais de resposta à pesquisa, os instrumentos foram entregues em ambiente de sala de aula dos estudantes, por uma das autoras do estudo, dentro de envelopes individuais para cada aluno que voluntariamente se propôs a participar. Os estudantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em duas vias, e em seguida responderam aos instrumentos autoaplicáveis, durando aproximadamente 30 minutos para preenchimento completo. Conforme a finalização das respostas, os envelopes foram sendo entregues novamente à autora responsável pela coleta, que realizou a verificação imediata do preenchimento adequado aos instrumentos, sobretudo quanto ao consentimento para a participação no estudo.
Procedimentos de análises dos dados
As respostas obtidas pelo questionário de caracterização da amostra no presente estudo estão apresentadas com frequência, porcentagem, média e desvio padrão. Os dados obtidos pela questão-caso foram analisados pela metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) de Lefèvre e Lefèvre (2003) e posteriormente articulados à luz da teoria psicanalítica.
O Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) consiste em uma técnica qualiquantitativa de pesquisa empírica proposta por Fernando Lefèvre e Ana Maria Cavalcanti Lefèvre da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), que vem sendo desenvolvida desde o final da década de 1990 para pesquisas de representação social, entre outros tipos, que tenham materiais verbais como base (Lefèvre & Lefèvre, 2010).
Enquanto recurso metodológico que permite generalizações, o DSC tem como objeto o pensamento coletivo (Lefèvre & Lefèvre, 2003). Por ser uma técnica qualiquantitativa, possibilita apresentar as distintas categorias de pensamento existentes entre os sujeitos de um grupo acerca de um determinado assunto ou tema, por meio da qualificação desses depoimentos ou discursos, além de permitir identificar semelhanças e diferenças nestes modos de pensar, verificando também o grau de compartilhamento de uma opinião entre os indivíduos que compõem essa coletividade (Lefèvre & Lefèvre, 2010).
Portanto, para obter como produto o pensamento coletivo, é necessário que se convoque os indivíduos a expressar seus pensamentos por meio de questões abertas, de modo que o conjunto das individualidades retratadas possa representar de modo estatístico e sociológico uma coletividade (Lefèvre & Lefèvre, 2003; Lefèvre, 2017). Assim, o Sujeito Coletivo é expresso na primeira pessoa do singular (eu), pois, ao passo que revela a existência de um sujeito individual de discurso, ao mesmo tempo faz referência ao coletivo, sendo que este “eu” fala em nome ou por uma coletividade (Lefèvre & Lefèvre, 2003). Segundo os autores da proposta, o DSC é baseado na Teoria das Representações Sociais e, “utilizando uma estratégia discursiva, visa tornar mais clara uma dada representação social, bem como o conjunto das representações que conforma um dado imaginário” (Lefèvre & Lefèvre, 2003, p. 19).
As etapas para a confecção dos DSC são denominadas por Lefèvre (2017) como operações, ou figuras metodológicas, sendo elas: a primeira, Expressões-Chave (ECH), consiste em trechos destacados pelo pesquisador do material verbal que revelam a essência do conteúdo do depoimento. A segunda, Ideias Centrais (IC), refere-se a uma expressão linguística ou nome que indica sinteticamente o sentido de cada depoimento ou de um conjunto de depoimentos, comunicando, por exemplo, o que foi dito, ou sobre o que o sujeito do discurso está dizendo (Lefèvre, 2017). O terceiro, Ancoragem, se assemelha às IC, sendo que ambas podem ser denominadas como “categorias”, mas que ao invés de descrever o sentido, descreve ideologias, crenças e valores partilhados pelo autor do discurso, por meio de afirmações genéricas (Lefèvre, 2017). Como produto final, tem-se o Discurso do Sujeito Coletivo, que é um discurso-síntese escrito em primeira pessoa do singular, que consiste na reunião das Expressões-Chave, presentes nos depoimentos, que têm IC e/ou Ancoragens de sentidos semelhantes ou complementares (Lefèvre, 2017).
Resultados
Inicialmente, serão apresentados os resultados obtidos através do questionário de caracterização da amostra, que buscou descrever alguns dados dos participantes, incluindo informações acerca da frequência do consumo das substâncias avaliadas no estudo. Em um segundo momento serão apresentados os resultados e análise qualiquantitativos para apreensão das representações sociais provenientes da elaboração dos Discursos do Sujeito Coletivo, a partir das respostas da questão-caso.
Caracterização da amostra e consumo de tabaco e álcool
Participaram da pesquisa 28 estudantes universitários, com predominância pelo gênero feminino (82,14%; n=23), de idades entre 21 a 44 anos (M=24,96; DP=5,2), todos alunos dos dois últimos semestres de graduação em Enfermagem de uma universidade privada de São Paulo - Brasil, sendo 71,43% (n=20) alunos do nono semestre e 28,57% (n=8) do oitavo. Pouco mais da metade da amostra (53,57%, n=15) foi composta por sujeitos que se declararam brancos e 42,86% (n=12) por pardos. Quanto ao estado civil dos participantes, 85,71% (n=24) eram solteiros.
Em relação ao hábito de fumar algum produto de tabaco (cigarro ou narguilé) atualmente, 71,43% (n=20) da amostra se consideraram “não fumantes” e 17,86% (n=5) dos participantes afirmaram ser fumantes. Do total de participantes, 10,71% (n=3) não responderam à essa questão, entretanto, posteriormente estes mesmos assinalaram consumir narguilé, fazendo deste um dado relevante a ser discutido posteriormente. Dentre o total de 8 participantes que relataram usar alguma das substâncias derivadas do tabaco, o narguilé demonstrou ser o produto mais consumido, correspondendo a 87,5% (n=7), enquanto que apenas 1 universitário (12,5%) relatou consumir tanto cigarro quanto narguilé. Nenhum sujeito afirmou fumar apenas cigarro. Um dado de bastante relevância obtido, refere-se ao fato de que, no total da amostra, 3 participantes (10,71%) afirmaram consumir narguilé, mas não se consideraram fumantes.
A maioria dos universitários (75%, n=21) afirma consumir bebidas alcoólicas atualmente, sendo que os tipos mais citados foram a cerveja e o vinho, seguidos por bebidas destiladas, tais como a vodca, tequila, entre outras. Acerca do uso conjunto de tabaco e álcool, verificou-se que 28,57% (n=8) do total da amostra afirmou beber e fumar (cigarro e/ou narguilé), e 25% (n=7) não bebem nem fumam nenhum dos produtos mencionados pelo estudo.
Conforme consta na Tabela 1 quanto à frequência do uso das substâncias avaliadas, nota-se que, entre os produtos de tabaco, o percentual de universitários que nunca experimentaram cigarro foi maior do que a quantidade de sujeitos que nunca experimentaram narguilé. Já em relação ao consumo de bebidas alcoólicas, mais da metade dos universitários afirmaram beber apenas em ocasiões de eventos sociais, e apenas 2 participantes afirmaram nunca ter consumido.
Resultados e Análise qualiquantitativos
A seguir serão apresentados os dados qualiquantitativos obtidos por meio da questão-caso, sendo os resultados quantitativos expostos sob a forma de tabela, e os dados qualitativos sob a forma de todos os Discursos do Sujeito Coletivo produzidos por cada categoria de respostas. Tal como foi determinado nos objetivos, a questão-caso tinha como função apreender as possíveis razões motivadoras para o consumo de bebidas alcoólicas e produtos de tabaco, segundo a percepção dos estudantes de Enfermagem.
DSC 1 - Socialização e influência do meio:
"Acredito que os universitários fazem o uso destas substâncias inicialmente para estabelecer vínculos, fazer amigos, pois creio que esse é um modo deles se ambientarem e serem inseridos neste novo grupo, a partir da sensação de bem estar social que é proporcionada. Além disso, eu percebo que o consumo possui associação com o ingresso desses sujeitos ao ambiente universitário, que inclui idas a bares e baladas, onde a grande maioria dos estudantes usa pelo menos uma dessas substâncias como forma de diversão e confraternização com os amigos. Assim, por estarem sempre próximos de pessoas que consomem, e para não ficarem de fora, acabam sendo influenciados a também usá-las".
DSC 2 - Válvula de escape:
"Eu acredito que o uso destas substâncias funciona como uma forma de fuga da rotina cansativa e pesada que os universitários possuem. O dia a dia de estudos, conciliado com trabalho e vida pessoal, geram sentimentos de cobrança, estresse, cansaço físico e mental. Então, eu acho que esses sujeitos bebem e/ou fumam, porque precisam de uma válvula de escape, de modo a aliviar toda essa pressão, para desestressar, relaxar e distrair a cabeça. Além disso, também é uma forma de criar uma 'realidade' desejada para fugir dos problemas".
DSC 3 - Prazer:
"Eu penso que os universitários consomem por opção pessoal, porque gostam dos efeitos que estas substâncias causam. O uso talvez proporcione uma sensação de prazer, misturada com um bem estar social. Eu também acho que os universitários buscam ter prazeres momentâneos".
DSC 4 - Moda:
"Eu percebo que hoje em dia os estudantes usam essas substâncias porque acabam entrando na famosa "modinha", pois muitos deles não usavam antes de entrarem na universidade. Por isso, eu acho que pelo fato de frequentarem ambientes em que todos fumam e bebem, alguns acabam consumindo por moda”.
DSC 5 - Dependência:
"Acho que uns consomem porque já tinham estes hábitos antes de serem universitários, outros porque se tornaram viciados nestas substâncias".
DSC 6 - Experimentação:
"Eu creio que, pelo fato de alguns universitários pertencerem à faixa etária de 18 a 24 anos, é comum estarem se descobrindo e experimentando coisas novas, entre elas, estas substâncias. Acho que para uns esta fase de experimentação é passageira, mas para outros não".
DSC 7 - Desconsideração dos riscos:
"Eu vejo que esses universitários não tem noção do quanto o consumo destas substâncias pode causar prejuízos à própria saúde".
Discussão
Deve-se reforçar que, para a composição da amostra, buscou-se incluir ambos os gêneros, entretanto, a predominância pelo feminino fortalece os resultados obtidos por Mendonça, Jesus e Lima (2018) e por Sawicki, Barbosa, Fram e Belasco (2018), que em seus estudos também identificaram predominância feminina entre universitários da área da saúde, incluindo Enfermagem. De acordo com a literatura, estes resultados ilustram um cenário social já antigo, em que as mulheres adquirem predominância na profissão de Enfermagem, conforme apontado por Amorim (2009). Para a autora, mesmo que a tarefa do cuidar compreenda homens e mulheres, o modo como a divisão do trabalho se deu ao longo dos anos culminou para a concepção social de que funções que demandem sensibilidade, carinho e afeto fossem tidas como femininas, estando a atuação em Enfermagem desde sempre associada com conceitos relacionados à submissão e devoção (Amorim, 2009). Tendo em vista a desigualdade quanto ao gênero no número de participantes do estudo, cabe afirmar que os resultados aqui obtidos sobre o consumo das substâncias avaliadas revelam um padrão de uso e de representações sociais majoritariamente femininas.
Em relação ao consumo do tabaco, a baixa quantidade de usuários de cigarro vai ao encontro com resultados de pesquisas nacionais que demonstram a redução do tabagismo ao longo dos anos. Dentre elas, destacam-se as pesquisas nacionais do Vigitel, que demonstram a redução da porcentagem de fumantes adultos de 16,2% em 2006 para 9,5% em 2020 (Ministério da Saúde/Brasil, 2021). A partir disso, no que tange ao uso específico de cigarro, é possível afirmar que o conjunto destes dados corroboram com as medidas centrais da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQTC), ratificada pelo Senado Federal em 2005 que, tendo como foco a redução da demanda e oferta de tabaco, contribuiu tanto para a proibição de propagandas de cigarro na mídia (exceto nos pontos de venda), bem como limitou a exposição à fumaça do tabaco em locais públicos (INCA, 2018).
É válido salientar que as pesquisas nacionais do Vigitel mencionadas anteriormente não avaliam o consumo de narguilé. Entretanto, este frequentemente aparece como o produto de tabaco de maior adesão do que propriamente o cigarro industrializado, tal como foi evidenciado pelos dados do presente estudo, bem como em outras pesquisas (Beckertet al., 2016; Martins et al., 2014).
Entre uma das possíveis causas para que o uso do narguilé tenha se disseminado, tem-se o êxito obtido pelas campanhas em território nacional e no mundo, incentivando tanto o cessamento do tabagismo, no caso de cigarros, quanto prevenindo o início de seu consumo. Consequentemente, este fator contribuiu para a migração do cigarro para outras formas de consumo do tabaco, além da existência de julgamentos equivocados entre os usuários, sobre o narguilé ser uma alternativa segura para o uso de tabaco, somado à percepção de que há baixos riscos de desenvolver dependência (Martins et al., 2014).
Os achados da pesquisa apontam para as diferenças existentes atualmente no reconhecimento e nas representações sociais que permeiam os dois produtos de tabaco abordados pelo estudo. A autora Medeiros (2014) verifica que o ato de fumar cigarro já não possui mais o caráter de elegância e charme como antigamente, percebendo discursos que envolvem fortemente o incômodo com a fumaça desagradável, muito associado à preocupação com os prejuízos à saúde. Por outro lado, o mesmo incômodo não se pode afirmar no caso do narguilé. Conforme é revelado no estudo internacional de Nakkash, Khalil e Afifi (2011), o narguilé possui qualidades sensoriais que tornam o consumo bastante prazeroso, entre elas: diferentes sabores e cheiros, o som da água borbulhando e a visão da fumaça sendo expelida. Neste caso, a fumaça do narguilé não é percebida diretamente como prejudicial à saúde, ao contrário da proveniente do cigarro. Assim, pensa-se na hipótese de que o título de “fumante” esteja mais atrelado às representações sociais negativas, que por sua vez, associa-se com o hábito de fumar cigarro, e não narguilé.
Em relação ao consumo de bebidas alcoólicas, verificou-se que a maioria dos universitários (75%, n=21) relata tal consumo, assemelhando-se ao obtido nas amostras de Gomes et al. (2019) e Pinheiro et al. (2017), em que o uso atual de álcool entre acadêmicos de Medicina foi um pouco mais elevado, correspondendo a 81,95% e 81,2%, respectivamente. Verifica-se que na amostra de universitários de Enfermagem de Sawicki et al. (2018), a porcentagem do uso atual de álcool foi de 76,7%, dado que se aproxima mais do observado pelo presente estudo.
Quanto a análise qualiquantitativa, ao analisar as respostas obtidas pelos participantes para apreensão e construção dos DSC, verificou-se que alguns dos estudantes fizeram menção a mais de uma categoria, o que justifica que na Tabela 2 a soma dos participantes em todas as categorias resulte superior ao total de participantes da pesquisa. No que tange aos conteúdos presentes nos Discursos do Sujeito Coletivo (DSC) quanto às razões que motivam o uso de substâncias, a categoria com maior grau de compartilhamento (60,71%; n=17) entre os participantes refere-se à “Socialização e influência do meio”. A partir do que é expresso no DSC 1, demonstra-se o sentido atribuído às substâncias enquanto recurso para o estabelecimento de vínculos sociais, inserção no ambiente universitário, além da capacidade de influência que este meio pode exercer perante o consumo. Frente à essas representações obtidas através das percepções dos universitários de Enfermagem, Reveles, Segri e Botelho (2013) explicam que o uso do narguilé favorece questões de socialização e vivências de descontração entre amigos. Zeferino et al. (2015) também constatou que o consumo de álcool e tabaco possuía relação com a influência de amigos que eram consumidores, tal como verificou Medeiros (2014) em relação ao tabaco.
Dando sequência aos motivadores do consumo, destaca-se a íntima relação entre os DSC 2 “Válvula de escape” e DSC 3 “Prazer”. Enquanto que o primeiro ilustra o consumo associado ao alívio de sentimentos penosos que circundam a rotina do universitário, o segundo discurso assume o potencial que estas substâncias têm de proporcionar sensações de prazer, ainda que momentâneas que, ao mesmo tempo, também podem atuar na diminuição do sofrimento do sujeito. Essa ligação entre prazer e válvula de escape relembra o que Freud (1930[1929]/1974) escreveu sobre o propósito de vida dos seres humanos, sendo que estes “querem ser felizes e assim permanecer” (p. 94). De acordo com o autor, esta condição envolveria tanto a ausência de sofrimento, quanto a vivência de “intensos sentimentos de prazer” (Freud, 1930[1929]/1974, p. 94).
Semelhante a isso, Gorgulho (1996) afirma que o uso de drogas serve exatamente a estes dois propósitos: produzir prazer e aliviar sofrimento, que coincidentemente são dois aspectos presentes nas várias letras de sertanejo universitário que faziam menção ao álcool analisadas por Lioto (2012) e no conteúdo das propagandas de cerveja estudadas por Oliveira, Romera e Marcellino (2011). Afinal, como o termo “droga” dificilmente é vinculado ao álcool, há maior aceitação quanto à associação das bebidas alcoólicas à contextos de diversão e felicidade presentes nos veículos publicitários (Mendonça et al., 2018).
Dentre as diversas formas existentes de se aliviar o sofrimento, Freud (1930 [1929]/1974), apesar de mencionar que a intoxicação química é o modo mais grosseiro de alívio de sofrimento, reconhece que é também a mais eficiente, sendo a droga uma forma de anestesiar o organismo, preservando-o de impulsos desagradáveis. No caso das bebidas alcoólicas, considerando se tratar de uma droga “depressora” (SENAD, 2014), ou seja, afeta o cérebro e torna seu funcionamento mais lento, diminuindo algumas capacidades cognitivas, pode existir a percepção errônea de que ao beber, ao menos momentaneamente, o sofrimento do sujeito possa ser diminuído ou esquecido, sensação esta capaz de ser percebida pelo usuário como prazer e alívio. Já no caso dos produtos de tabaco, tanto no cigarro como no narguilé, há o componente da nicotina, substância que estimula o sistema de recompensa do cérebro, produzindo também sensações de bem-estar (SENAD, 2014).
Embora a discussão sobre o tema da dependência não tenha sido o enfoque deste estudo, este aparece em uma das categorias, enquanto motivo que leva ao consumo de substâncias. Tendo sido o DSC 5 “5- Dependência” compartilhado entre uma pequena parcela da amostra (14,29%; n=4), não se observa no conjunto dos discursos a associação imediata entre o uso de álcool ou produtos de tabaco pelos universitários com a problemática da adicção. Analisando isso de modo particular, pode-se pensar que o álcool é um exemplo de substância psicoativa que, diferentemente de outros tipos, não necessariamente irá desencadear um quadro de dependência, considerando que existem variáveis, como o uso moderado e o controle que o sujeito consegue exercer sobre seu consumo (Fiore, 2008). Assim, as sensações de prazer proporcionadas pelas doses consumidas continuam a ser vivenciadas, sem que o indivíduo se torne escravo do consumo para aliviar o desprazer da abstinência, o que corresponderia ao quadro de dependência (Fiore, 2008). Todavia, no caso dos produtos de tabaco, sabe-se que a nicotina induz à dependência rapidamente e de modo intenso (SENAD, 2014), sem que o indivíduo precise consumir grandes doses da substância.
A partir do que é avaliado nos resultados, ambas as substâncias lícitas configuram-se como objetos externos que são introjetados via oral no organismo pelo sujeito, a fim de atender aos propósitos mencionados pelos participantes nos DSC, girando bastante em torno da função de gratificação. Do ponto de vista psicanalítico, Klein (1936/1996) assinala que a primeira fonte de gratificação externa que a criança obtém é via alimentação, que inicialmente se dá via sucção do seio materno. Ao ser amamentado, o bebê não vivencia apenas o alívio de tensão gerada pela fome, pois, no contato com o seio, o bebê tem a possibilidade de introjetar inconscientemente sentimentos de amor, paciência e compreensão (Klein, 1936/1996). Transpondo essas reflexões para a relação que o sujeito estabelece com a droga ingerida, criam-se hipóteses se esta prática seria um modo de retorno à satisfação primária que lhe oferecia, pela presença de um objeto externo também introjetado oralmente, tantas gratificações e alívio de angústias de se estar vivo.
Todavia, ainda que hipóteses sejam aqui formuladas, ao buscar analisar e discutir a questão das drogas com o auxílio da teoria psicanalítica, Alencar (2018) atenta para a complexidade presente nesta tarefa. Conforme é apontado pelo autor, há a tendência de associar o uso de substâncias diretamente à produção de prazer, sem que haja a contextualização histórica que torne possível compreender por quais razões as drogas ocupam este lugar de satisfação para o sujeito (Alencar, 2018).
Ao recuperar a opção em escolher estudantes de Enfermagem dos dois últimos semestres de graduação, tinha-se o intuito de averiguar as representações sociais de universitários prestes a adentrar o mercado de trabalho enquanto profissionais de saúde. Apoiado nessa premissa, havia a expectativa de que nos DSC pudessem surgir pontuações acerca dos danos do consumo, justamente por serem futuros agentes de promoção de saúde, como de fato apareceu no DSC 7. Entretanto, é válido destacar que as três categorias mais mencionadas consideraram o contexto que permeia o uso, para além dos prejuízos, dado que reforça o que preconizam as políticas públicas de álcool e drogas sobre a importância de considerar “aspectos clínicos, socioculturais e políticos que constituem tais práticas” (Conselho Federal de Psicologia, 2019, p. 47).
Considerações finais
Ao buscar verificar a frequência do consumo de bebidas alcoólicas e produtos de tabaco por universitários dos últimos semestres de graduação em Enfermagem na cidade de São Paulo - Brasil e, paralelamente, compreender as representações sociais dos participantes ao analisar as percepções das possíveis razões motivadoras para o consumo, o uso do Discurso do Sujeito Coletivo demonstrou atender satisfatoriamente ao que se pretendeu apreender da opinião coletiva dos participantes. Aliado ao método qualiquantitativo, pôde-se identificar o grau de compartilhamento destas opiniões, além de estabelecer relações entre elas, favorecendo discussões mais integradas.
Tal como já era esperado, com base na literatura, a substância mais consumida pelos universitários foram as bebidas alcoólicas, seguida pela preferência pelo narguilé como modo de consumir o tabaco, sendo que ambas favorecem experiências de socialização, momentos de prazer e de válvula de escape, tal como demonstram as representações sociais aqui descobertas.
De modo geral, a escolha por compreender melhor o que há por trás do consumo específico de bebidas alcoólicas e produtos de tabaco, dá-se pela valorização e reconhecimento social que estas substâncias possuem, além de sua dimensão lícita, uma presença sóciohistórica. Os anos de história nos mostram o quanto dentro das diversas culturas o vinho é valorizado em rituais religiosos, e o quanto a cerveja marca presença em confraternizações de família, em eventos como Carnaval e Copa do Mundo, ou em festas universitárias, por exemplo.
É importante salientar as limitações deste estudo, considerando as características amostrais e temporais, dentre elas a difícil comparação entre as representações sociais por gênero, levando em consideração o predomínio de descrição e representações de mulheres mais presentes em cursos de enfermagem, ou entre sujeitos consumidores e não consumidores.
Apoiado nas descobertas deste estudo, observa-se o quanto a dimensão do prazer permeia o contexto do consumo de substâncias. Visto isso, pensando na criação de políticas públicas que buscam a redução do uso, estas devem ser cuidadosas em não descontextualizar tal prática, sob o risco de se recair em julgamentos morais, sociais e de criminalização. Ademais, outra problemática que merece maior investigação, que também não foi o enfoque do estudo, refere-se à quais seriam as etapas anteriores ao quadro de dependência e como se configura a linha tênue entre o consumo social e o consumo tido como problemático.