O presente artigo tem como objetivo apresentar as concepções e os referenciais orientadores da educação popular (EP), de acordo com a percepção de alguns de seus principais protagonistas. Resultou de uma pesquisa mais ampla, dedicada à reconstituição da história da EP no estado da Paraíba, a partir do reconhecimento, valorização e registro da memória de alguns de seus principais atores, num processo investigativo que promoveu a explicitação e, consequentemente, a sistematização das ideias, reflexões e trajetórias deles.
Inicialmente, compreendemos a EP como uma perspectiva do pensar e do fazer educacional; uma orientação teórico-metodológica para as realizações educacionais tanto nos espaços formativos institucionalizados como nos movimentos e práticas sociais, nas relações humanas, nas atividades e nas ações sociais em geral, bem como nos processos empreendidos no âmbito das políticas sociais públicas. Estudada e desenvolvida teoricamente por Paulo Freire e outros autores, a perspectiva da EP implica, na acepção de Calado (2014), um processo formativo protagonizado pela classe trabalhadora e seus aliados, continuamente alimentado pela utopia, em permanente construção de uma sociedade economicamente justa, socialmente solidária, politicamente igualitária e culturalmente diversa, dentro de um processo coerentemente marcado por práticas, procedimentos, dinâmicas e posturas correspondentes ao mesmo horizonte.
O movimento de EP vem, historicamente, se construindo e afirmando sua importância para a construção da cidadania voltada para a emancipação das pessoas. Diversos coletivos sociais e populares - como a Rede de Educação Cidadã (RECID), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Rede de Educação Popular e Saúde, a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde, a Articulação Nacional de Extensão Popular (ANEPOP), dentre outros - têm mostrado reflexões e conhecimentos num processo de diálogo entre serviços, movimentos populares e espaços acadêmicos, para concretizar um projeto de sociedade mais justo e equânime, reiterando seu compromisso com a melhoria da qualidade de vida de todos os brasileiros e com a consolidação dos direitos sociais e humanos (Cruz, 2010; Neto, 1999).
A EP é um eixo teórico-metodológico orientador de ações no campo educacional e social. Desde os anos de 1950, processualmente, essa perspectiva foi se consolidando como um eixo estruturante sobre o qual se alicerçam trabalhos sociais, comunitários e pedagógicos, em que se acredita serem as atividades educativas estratégias elementares para a dinamização da promoção da cidadania, onde se estimula a proatividade da população, a interação cultural e o fortalecimento dos movimentos sociais, vitais para a emancipação e a conquista de condições de trabalho e de vida com qualidade, dignidade e alteridade (Calado, 2014; Cruz, 2010).
A EP surge em meio às perspectivas críticas de pensar a educação na América Latina, e é no final da década de 1950 que começa a se estruturar como teoria e prática social, através de uma ação pioneira do Serviço de Extensão da Universidade de Pernambuco, com ações de alfabetização com jovens e adultos. A partir dessa experiência, intelectuais e educadores voltam-se para questões populares, buscando trabalhar o homem, de forma pedagógica, com vistas a promover a criticidade a respeito da realidade e a possibilitar estratégias de luta e enfrentamento. Com isso, a EP passa a ser melhor elaborada teórica e metodologicamente como abordagem educativa, sendo também conhecida como método Paulo Freire, visto que ele foi um dos principais responsáveis pelo aperfeiçoamento filosófico desta abordagem da educação (Cruz, 2010; Cruz, 2015; Vasconcelos, 2013).
Nessa caminhada, a EP tem se configurado como uma das estratégias utilizadas em diversos movimentos sociais, práticas populares e serviços sociais para impulsionar o controle social, através de práticas educativas no cotidiano dos serviços. A EP aponta um olhar, uma escuta, um fazer com, que se contrapõe à cultura autoritária dos serviços e exercita uma ética de convívio transformadora que propicia uma valorização do saber popular e do cidadão, fazendo ver aos profissionais o caráter educativo das ações de saúde. Assim, facilita a participação de importantes atores sociais da comunidade no processo de construção da cidadania (Albuquerque & Stotz, 2004).
No estado da Paraíba, historicamente, foram construídas várias ações orientadas pela EP, com diferentes níveis de recurso material e humano, bem como com variadas conformações metodológicas e interfaces pedagógicas, atuando em distintas comunidades, instituições e cenários sociais. Algumas dessas experiências continuam em pleno andamento; outras foram extintas, enquanto muitas foram reconfiguradas e permanecem em construção com diferentes nuances e arranjos daqueles com os quais iniciaram suas atividades.
As vivências e experiências desenvolvidas no seio dessas várias atividades corroboraram para a deflagração de um rico processo de sistematização e de reflexão crítica, teórica e metodológica, resultando num significativo mosaico de produções acadêmicas e literárias acerca dessas experiências e, para além delas, sobre a educação brasileira, a educação de jovens e adultos, os processos de ensino e aprendizagem, a interface educativa de políticas públicas, o ensino universitário e os movimentos sociais, dentre outros.
Metodologia
O presente estudo teve seu caminho investigativo pautado na pesquisa qualitativa, conforme fundamentado por Gadamer (1999) e Minayo (2008). Para seu desenvolvimento, utilizou-se da metodologia da sistematização de experiência para chegar aos objetivos almejados. Esta metodologia, empregada conforme os fundamentos estabelecidos por Holliday (2006a), serviu para verificar as condições do contexto em que se desenvolveram as práticas educativas das experiências pesquisadas, bem como os resultados esperados e inesperados obtidos no decorrer do processo. A estratégia de operacionalização da pesquisa constituiu de entrevistas semiestruturadas individuais (Minayo, 2008; Triviños, 1987).
O corpo de entrevistados foi composto por dez pessoas que tiveram um protagonismo na história das experiências de EP na Paraíba. Seu critério de inclusão envolveu aquelas pessoas que sistematizaram e publicaram experiências, reflexões e ideias no campo da EP, com produções escritas ou literárias. A escolha dos entrevistados deu-se a partir de consulta a grupos de pesquisa e coletivos que historicamente priorizam o estudo no campo da EP e sua interface com práticas sociais e populares, mais especificamente o Grupo de Pesquisa em Educação Popular e Saúde e o Grupo de Pesquisa em Extensão Popular, além da Rede de Educação Popular em Saúde, a ANEPOP, a RECID e o MST.
Nesta perspectiva, dentre dez indicados, foram contemplados necessariamente atores com experiências em diferentes tempos históricos, abrangendo necessariamente homens e mulheres. Como dito anteriormente, este artigo resulta de subprojeto de uma pesquisa mais ampla, cujo roteiro foi constituído das seguintes questões:
Você se considera um/a educador popular? Por quê?
Como você se tornou um/a educador/a popular?
Ao longo de seu percurso, quais foram às temáticas ou as questões que mais despertaram o seu interesse?
Quais foram às ideias, as referências mais significativas/expressivas? Por quê?
Seria possível sintetizar um conceito de EP?
Em sua opinião, quais são os principais desafios e possibilidades da EP hoje?
Numa autoavaliação crítica, quais seriam suas principais contribuições - teóricas e práticas - à EP?
Como podemos fazer um levantamento de suas principais produções?
Nesta perspectiva, o estudo centra-se em analisar, por meio da ótica dos entrevistados, os referenciais e concepções da EP expressos por eles, particularmente quanto às respostas das questões 1, 2, 4 e 5, sem exclusão de respostas a outras questões que contemplem o foco deste manuscrito. Apesar de serem orientadas por um roteiro contemplando algumas questões significativas para o estudo, tais entrevistas foram pautadas pelo referencial da história oral (Selau, 2004), estando, portanto, plenamente abertas e livres às iniciativas dos entrevistados e aos vários aspectos, nuances e considerações que avaliassem ser oportuno compartilhar diante do objeto de estudo. Os depoimentos orais foram registrados por meio de filmagem em câmera digital e de gravador de voz em aparelho celular.
Esta pesquisa está em consonância com os preceitos que regem a portaria n. 466/2012 (Ministério da Saúde do Brasil, 2012) e foi submetida no Comitê de Ética e Pesquisa do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal da Paraíba. Antes de proceder com a coleta das informações cedidas pelos sujeitos do estudo, como pesquisadores explicamos clara, detalhada e precisamente os objetivos do estudo, expomos os instrumentos e o roteiro da entrevista, e entregamos cópia do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que foi lido e, mediante concordância dos sujeitos, assinado.
Os dados descritos no estudo contaram com a aprovação dos entrevistados, como também houve autorização para revelação de suas identidades. A partir dessa relação no quadro, passou-se à nova leitura do material transcrito com vistas à elaboração de sínteses finais, considerando a análise crítica e a problematização de todos esses aspectos na perspectiva da concepção metodológica dialética. De acordo com o entendimento de Holliday (1996), esta concepção metodológica vai muito além do que um procedimento de análise científico, visto que considera a realidade numa perspectiva de conhecê-la de forma crítica e ser capaz de transformá-la.
Resultados e discussão
Concepções e referenciais da EP para os protagonistas da Paraíba
Ao considerar a relevância e as contribuições para o contexto da EP, serão expostas (quadro 1) apenas as informações relativas à atuação dos sujeitos entrevistados com foco no conceito e nos referenciais da EP. Contudo, é importante ressaltar que a história desses autores e demais informações advindas da entrevista semiestruturada é de fundamental importância, porquanto constará dentro de outros materiais em fase de elaboração, a exemplo de livros e outros produtos.
Análise das concepções de EP na ótica dos entrevistados
Levando em consideração as concepções evidenciadas pelos entrevistados no Quadro 1, Síntese das ideias dos protagonistas da EP na Paraíba, podemos compreender e ampliar um pouco mais a discussão sobre como e de que forma os educadores populares compreendem concepções alicerçantes do fazer e agir dos sujeitos. Foi possível identificar nas falas dos entrevistados a relação da EP com a construção do sujeito pensante, crítico-reflexivo. Compreende-se ainda, como bem esclarece alguns educadores, a importância do saber vivido, das experiências e saberes guiado através da concepção de EP. Quanto a esse princípio sobre a experiência cotidiana, na obra póstuma Pedagogia dos sonhos possíveis,Freire (2001) nos traz que, seja ele como pessoa, seja como educador, ao pensar na sua prática educativa e no fazer a prática educativa, declara ter respeito ao educando:
E um grande respeito, também, pelo saber "só de experiências feito", como diz Camões, que é exatamente o saber do senso comum. Discordo dos pensadores que menosprezam o senso comum, como se o mundo tivesse partido da rigorosidade do conhecimento científico. De jeito nenhum! A rigorosidade chegou depois. (p. 232)
A partir desse pensamento, o autor nos incita a considerar que o agir e o pensar na cotidianidade promove nos sujeitos a possibilidade de fortalecer suas ideias, suas lutas, uma vez que são saberes construídos nas relações com o outro, por meio do diálogo, de forma que não existem saberes mais e saberes menos, sendo a dimensão do saber um dos eixos centrais da EP. Nessa perspectiva, vale ressaltar que os conhecimentos são produzidos nas relações afetuosas e até mesmo de conflitos, pois é nas relações também conflituosas que novos saberes são produzidos. Essa relação é marcada pela valorização do saber do outro e pela escuta.
Para Albuquerque (2020), "a leitura crítica do mundo mediada coletivamente revela o caráter político na sua concepção educacional. [...] o ato educativo se faz na amorosidade, acolhendo para além do verbal outros sentidos e expressividades" (p. 3). Essa dimensão de experiências construídas na cotidianidade também coaduna com o que a entrevistada Maria Valéria Rezende aborda ao destacar que se faz necessário esse intercâmbio de saberes, que os sujeitos tenham uma visão de mundo bastante aberta, pois esse é o princípio basilar para entender o outro e as suas subjetividades e particularidades; é ter essa consciência crítica e aberta quanto ao outro.
Torres (2018) contribui com a discussão ao oportunizar um debate bastante contextualizado com o que Maria Valéria Rezende traz com relação à visão de mundo e, atrelado a isso, o agir crítico. Para ele:
En un sentido aún más amplio, podemos reconocer como críticas, las actitudes, posiciones y acciones de colectivos sociales que resisten a situaciones o condiciones que interpretan como injustas, y frente a las cuales despliegan un conjunto de sentires, saberes y sabidurías portadores de sentidos crítico [Num sentido ainda mais amplo, podemos reconhecer como críticas, as atitudes, posicionamentos e ações dos coletivos sociais que resistem a situações ou condições que interpretam como injustos, e diante dos quais exibem um conjunto de sentimentos, saberes e sabedorias que carregam significados críticos]. (p. 176, tradução nossa).
O autor ainda acrescenta o pensamento crítico sobre a realidade e sobre as situações de injustiça que estão presentes nas relações sociais. Além disso, ele sinaliza que os setores populares, nos diversos espaços de interação, são forjados por experiências e saberes que produzem uma multiplicidade de conhecimentos e que, através dessa polissemia, corroboram para a produção do novo, endossado nas experiências construídas no fazer cotidiano dos sujeitos, ou seja, da realidade e da pluralidade de cada sujeito (Torres, 2007). De acordo com o entendimento de Mejía (2016),
La tradición freireana de la educación popular se constituye desde el diálogo de saberes, en el cual el educando enuncia su mundo y sale del silencio [A tradição freiriana de educação popular se constitui a partir do diálogo de saberes, no qual o aprendiz anunciase no mundo e sai do silêncio]. (p. 47, tradução nossa)
Pode-se compreender que a EP tem como uma de suas incumbências a transitivação da passividade, da imposição para o inédito viável. No que tange ao conceito de EP, os entrevistados, em vários momentos, trouxeram para o debate a EP como sendo um processo formativo, que vai constituindo o sujeito por meio de suas experiências, saberes e subjetividades.
Segundo Schõnardie (2018), "uma das questões de maior centralidade na educação popular é a sua perspectiva emancipatória. Sujeitos e coletivos se constroem protagonistas de sua história" (p. 30). Através dessas dimensões, podemos considerar que a EP não esgota enquanto processo formativo, mas desabrocha, necessariamente, como uma frente de emancipação, que olha para o indivíduo em sua totalidade, enquanto protagonista de sua história, com seus diferentes saberes e experiências, que constitui o seu agir e pensar na sociedade. Por este motivo, a EP desponta como um solo fértil de diálogo com a realidade, entre os diferentes saberes, de ruptura com a ideologia de ser mais e saber menos, assim como de valorização dos protagonistas, de suas experiências e saberes.
Pela ótica dos entrevistados, no Quadro 2, Síntese das dimensões identificadas por meio das falas dos entrevistados, o diálogo é uma das questões fundantes quanto à concepção de EP. Na linha de pensamento de Fleuri (2019), o diálogo é uma das dimensões mais importantes na perspectiva da EP. Explicita-se como dimensão permeada em experiências culturais distintas, dentro das quais se expressa como uma possibilidade de luta, resistência e fortalecimento do outro com o outro, ou seja, sendo matéria-prima desse processo o encontro de saberes, numa busca por novas alternativas de viver em sociabilidade, de forma democrática, libertária, emancipatória, amorosa e respeitosa com o outro.
Na acepção dos entrevistados, o diálogo não é um processo apenas raciocinante, mas se desvela num encontro dos atores e autores populares entre si, com o mundo e com todas as suas dimensões, ou seja, corpos, mentes, sentidos, emoções, saberes e experiências dotadas de conhecimentos, que são construídos através do agir e do pensar diariamente, das trocas e dos conflitos. Pelo diálogo, os setores populares promovem uma releitura do que é o fazer e o ser social. É na coletividade com esses atores e autores populares que somos convidados a observar a realidade também sob outra ótica (Freire, 2013).
Contudo, a efetivação desse diálogo ainda é um desafio, principalmente diante do cenário hegemônico do cotidiano da educação e outros espaços em que opera a ação humana - por causa do autoritarismo, antidemocracia e paternalismo -, que se configura como uma cultura avessa a práticas transformadoras, cultura que ataca esses protagonistas por meio da opressão, silenciamento e do cerceamento de liberdade. Como categoria fundante, o diálogo defendido pelos entrevistados é aquele envolvido com o outro, desintoxicado de determinismos e autoritarismo.
Paralelo a isso, Oliveira e Cananéa (2016) consideram que o diálogo "move a educação popular e a educação ao longo da vida numa perspectiva da educação popular, seja esta pautada nas suas origens históricas que fundamentam seus ideais primórdios ou na sua reformulação para atender às necessidades atuais da sociedade" (p. 1).
Conforme expresso nas entrevistas, a concepção de EP aponta para um olhar do educador também como sujeito aprendente, de modo que o seu conhecimento não finda na formação inicial. Ninguém é sábio o bastante que não precise do outro, das relações, sejam ela afetuosas ou não. Por este motivo, como aponta Freire (2013), é preciso ter fé no outro e assumir uma postura humilde, reconhecendo que o outro sempre tem algo a contribuir. Logo, a relação entre educadores e educandos, deve ser permeada na solidariedade, no respeito ao outro, no reconhecimento de que não há verdade absoluta, como também é preciso lutar contra a ideologia de conhecimentos hegemônicos.
Nessa relação com os campos ativos e polissêmicos, como as comunidades, Valla (1993) acredita existir dois pontos cruciais que ajudam a entender como as classes subalternas são enxergadas. O primeiro é que há uma enorme dificuldade em compreender que esses setores possuem conhecimento e, principalmente, que são capazes de produzi-lo. Somado a isso, está a concepção de que esses sujeitos são incapazes de interpretar aspectos importantes na sociedade e, muito menos, opor-se a qualquer injustiça. O segundo aspecto parte da nossa falta de compreensão e insensibilidade de entender o que o outro tem a falar, ou seja, para entendê-los é preciso estar disposto a ouvi-los e ter humildade para perceber a polissemia de saberes e conhecimentos presentes nesses espaços vivos. De acordo com o pensamento de Gonzalez et al. (2018),
por viver em uma sociedade que possui uma ideologia neoliberalista onde impera o conceito de meritocracia, o lugar de fala das minorias é, quase por via de regra - se não fossem as lutas e o empenho dos movimentos sociais - suprimido. (p. 2).
Como resultado disso, acaba por criar o afastamento dos setores populares e a academia, uma vez que os setores populares não se sentem representados pela universidade, visto que a comunidade acadêmica expressa cada vez seu poder e elitismo, e os saberes produzidos nos setores populares são por sua vez minimizados e ignorados.
A EP faz-se com o outro, no processo de construção compartilhada do conhecimento, assim como no cuidado com o outro, na sensibilidade para entender que cada indivíduo tem sua historicidade, seu repertório, ou seja, experiências que são constituintes da sua identidade. É importante salientar que a EP, como explicita Socorro Borges, no quadro 1 sobre Síntese das ideias dos protagonistas da EP na Paraíba, é "a desconstrução de saberes hegemônicos que servem ao capitalismo", ou seja, essa concepção freiriana não nega aqueles saberes tidos como do senso comum, pelo contrário, é através desses conhecimentos que a EP se delineia.
Análise dos referenciais da EP na ótica dos entrevistados
O quadro 3, Referenciais da EP mais apontados conforme os entrevistados, apresenta os referenciais da EP mais comentados pelos entrevistados. Muitos deles destacaram Freire como sendo uma das principais referências quando se trata de EP, seguido da marca da teologia da libertação. Demais referências, como Leonardo Boff, Clodovis Boff, Oscar Jara, Irmã Augustinha, Frei Betto, Francisco Gutierrez, Carlos Mesters, José Comblin, Dermeval Saviani, Moacir Gadotti, Carlos Rodrigues Brandão, Victor Vincent Valla, Eymard Mourão Vasconcelos, Miguel Arroyo, Raúl Leis e Marco Raúl Mejía, assim como outros educadores populares ligados a Red Alforja, como Carlos Nuñez Hurtado e outros, foram elencados.
É possível observar que todos os educadores destacaram Freire como basilar quando nos referimos à educação e, especialmente, à EP. De acordo com os entrevistados, Freire é a maior representação para a perspectiva da educação. Além disso, apontaram que esta referência é inspiração para a construção do fazer e do ser social, como forma de entender os espaços em que estão inseridos, como também na compreensão do inacabamento do ser humano e, mais do que isso, na possibilidade de educar o olhar quanto aos vários espaços de interação, de desenvolvimento e de resistência, a exemplo dos setores populares.
Para Gadotti (2007), Freire trouxe muitas contribuições para a educação, sempre com um olhar transformador e de sensibilidade com o outro e com a natureza. Aponta que, através de suas obras, tem contribuído no pensar e no agir de muitos profissionais quanto à ação pedagôgica e a suas práticas, numa possibilidade de incitar esses sujeitos a produzirem o conhecimento crítico-reflexivo com o outro e com os espaços dotados de significados e sentidos. Freire coloca-nos as virtudes como exigências ou virtudes necessárias à prática educativa transformadora. Como exemplo dessas virtudes, têm-se: a tolerância e a coerência, teoria e prática, simplicidade, o legado de luta e de esperança, práxis, transdisciplinaridade etc.
Outro referencial que também contribui para a concepção de EP e para a compreensão do sujeito social e crítico é Valla. Ele traz uma discussão bastante significativa quanto à importância de ouvir as falas das classes subalternas, visto que os setores populares não são ouvidos, como também são vistos como espaços não pensantes, e a que o conhecimento popular dos indivíduos é irrelevante. Para Valla (1996), "nós oferecemos nosso saber por que pensamos que o da população é insuficiente e, por esta razão, inferior, quando, na realidade, é apenas diferente" (p. 179).
Expressa-se ainda como base na ótica dos entrevistados a importância de José Comblin para a EP. Alicerçado no pensamento de Comblim e no que Valla defende quanto à participação popular, entendemos ser necessário fortalecermos as bases e incitar a participação de todos, rumo à produção de conhecimento com as classes populares e à possibilidade de reorientação das práticas universitárias quanto ao diálogo com as comunidades, mesmo aquelas orientadas pela EP. Conforme aponta Comblin (1988), "a manifestação da liberdade é o serviço mútuo voluntário no amor... sem constrangimento, sem pressão, sem alienação da própria vontade" (p. 53).
Para Holliday (2006b), no que concerne a essa atmosfera preocupante e desumana, "são necessárias uma busca e uma reflexão em torno dos fundamentos filosóficos, políticos e pedagógicos de um paradigma educacional que oriente as perspectivas de transformação social e a formação plena das pessoas" (p. 238), objetivando a constituição de novas estruturas e relações sociais fundamentadas no respeito ao outro e ao espaço de vivência, assim como na solidariedade, justiça e equidade. Esse repensar sobre nossas ações é necessário, do mesmo modo que lutar coletivamente para a construção de uma sociedade democrática, dialógica, libertária e emancipadora.
Alguns entrevistados pontuaram sobre estarem fortemente influenciados pelo pensamento cristão, assim como do marxismo, e nas raízes intelectuais dos pensadores internacionalmente relevantes como Karl Marx e Rosa Luxemburgo. Com base nessas compreensões, podemos considerar a EP como um processo capaz de formar sujeitos autônomos, críticos-reflexivos, capazes de romper com a ordem social dominante, de problematizar, de contextualizar, de interpretar sua realidade de forma consciente como também de criar espaços de participação compromissada com o outro e com a diversidade de saberes, negando padrões determinados pela sociedade e verdades absolutas entre outros protagonismos.
Conclusões
Numa atmosfera de reflexões, concepções, informações e experiências, o estudo foi capaz de trazer, de forma crítica-reflexiva, elementos fundantes da EP, como o diálogo, os saberes construídos na cotidianidade e a realidade como cenário de (re)construção de nossas ações de forma consciente e politizada. Os educadores populares de referência no estado da Paraíba trouxeram elementos constituintes de seu fazer social e docente e se posicionaram enquanto sujeitos inconclusos e aprendentes. Elucidaram a importância de se construir espaços de diálogo numa perspectiva humanizada e respeitosa com o outro e com suas singularidades.
Por meio do ser e estar no mundo, os educadores entrevistados fertilizaram ainda mais a EP na Paraíba, pois foram capazes de experimentar na prática momentos de produção de conhecimentos diversos com o protagonismo desses atores populares. Com base nas experiências dos educadores populares explicitadas no estudo, notou-se a necessidade de uma discussão ainda mais compromissada com as classes populares, visto que se delineiam em projetos de extensão orientados pela EP alguns entraves que dificultam a efetivação de uma relação, de fato, horizontalizada.
Além disso, o autoritarismo e os roteiros prontos e acabados não compreendem o processo de construção coletiva-humana e respeitosa que estão imbricados na EP. Também foi evidenciada nas falas dos entrevistados a relevância de se desintoxicar de preconceitos e roteiros predefinidos que engessam e descaracterizam o que Freire nos alerta sobre a EP, como sendo uma categoria fundante para a construção coletiva com os espaços populares, comunidades e periferia com os contextos institucionalizados.
A partir das dimensões apontadas pelos entrevistados, somos incitados a pensar que a EP tem uma matriz pedagógica problematizadora, emancipatória, que resulta numa pedagogia da pergunta. Deste modo, é por meio desses princípios que a nossa ação tem cada vez mais relevância e nos provoca a refletir e agir conscientemente sobre nossas ações, visto que, em nossa realidade vivida, estamos imersos num mundo de complexidade, de trocas, de saberes e de conhecimentos. Logo, somos compreendidos enquanto sujeitos políticos, e é através dessas experiências que nos constituímos com os outros sujeitos críticos e conscientes, denunciando injustiças, práticas pedagógicas autoritárias e negligentes. Em razão disso, faz-se necessário exercitarmos a práxis, sendo este um movimento permanente.