INTRODUÇÃO
Estomia é uma palavra de origem grega cujo significado está relacionado à abertura ou boca, representando a exteriorização de vísceras ocas do corpo, no intuito de realizar a eliminação de secreções ou excreções de forma não fisiológica. A confecção de uma estomia pode acontecer por vários motivos, geralmente doenças inflamatórias, tumores ou traumas, caracterizando-se como temporária ou definitiva conforme sua etiologia. No Brasil, as estomias intestinais e urinárias são as mais frequentes, porém a ausência de sistematização no registro destes procedimentos dificulta a precisão dos dados sobre sua prevalência1,2,3.
O cuidado à pessoa que possui uma estomia consolida-se como um processo complexo. Os problemas que permeiam o cuidado envolvem principalmente as feridas ao redor do estoma, que podem ocorrer devido à exposição da pele às eliminações fecais ou urinárias. A especificidade das demandas apresentadas vai além do fornecimento de equipamentos coletores e adjuvantes, sendo necessária uma gama de ações e serviços em saúde. Por sua vez, estas são desenvolvidas por equipes multiprofissionais de saúde, articuladas de forma interdisciplinar e capacitadas para tal fim, sendo a enfermagem protagonista neste processo, dado que as enfermeiras que atuam na comunidade identificam e tratam os impasses associados aos estomas na atenção básica1,4,5.
Ainda, a pessoa com estomia necessita da resposta de vários serviços de saúde para solucionar os problemas que irão se apresentar, os quais podem ser cíclicos e duradouros1. Como os serviços em saúde, de forma isolada, não fornecem a totalidade de ações necessárias a esse cuidado, a articulação e integração entre eles, em formato de Rede de Atenção à Saúde (RAS), pode desfazer alguns gargalos de atendimento, proporcionando mais resolutividade. Compreende-se que a RAS congrega ações e serviços de saúde, nas mais diversas densidades tecnológicas, as quais, quando integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, podem garantir a integralidade do cuidado8,9,10.
Na busca pela integralidade do cuidado por meio da RAS, destaca-se como importante ferramenta a gestão do cuidado (GC) em saúde. A GC em saúde pode ser definida como a disponibilização e utilização de tecnologias de saúde, conforme as demandas apresentadas pelos indivíduos, nos mais diversos momentos de suas vidas, com o intuito de proporcionar bem-estar, segurança e autonomia para viver de forma produtiva e feliz. A GC é realizada em múltiplas dimensões (a individual, a familiar, a profissional, a organizacional, a sistêmica e a societária), as quais, articuladas entre si, apresentam, todas e cada uma delas, uma especificidade que pode ser desvendada para fins de reflexão, pesquisa e intervenção11.
Sendo assim, esta pesquisa teve como objetivo compreender a GC à pessoa com estomia sob a perspectiva da RAS, visando a elaboração de um modelo teórico explicativo fundamentado nos dados empíricos.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de uma pesquisa transversal, de abordagem qualitativa, tendo como referencial metodológico a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD). Para fins desta pesquisa, optou-se pela utilização da corrente construtivista, proposta por Charmaz (2009)12.
A pesquisa foi desenvolvida em Florianópolis, Santa Catarina (SC), sul do Brasil, mais precisamente nos pontos de atenção da RAS que realizam ações e se configuram como serviços ambulatoriais, sob a gestão do município e do Estado.
O município de Florianópolis possui uma população de mais de 450.000 habitantes. Está dividido em cinco Distritos Sanitários, nos quais localizam-se 49 Centros de Saúde (CS) no nível da atenção primária e alguns pontos de oferta no nível da atenção secundária (AS, ex. Policlínicas). Florianópolis é responsável pelo recebimento e distribuição dos materiais para cuidado com estomias, provenientes da Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina (SES-SC), aos Distritos Sanitários. Sob gerenciamento do profissional de enfermagem, este serviço realiza atendimentos às pessoas com estomias como abertura do processo para recebimento dos materiais, avaliação das condições da pessoa, manejo da estomia, incentivo ao autocuidado e educação em saúde, primeiro atendimento de complicações com a estomia, dificuldades de manejo, seleção de equipamentos, entre outras atividades de apoio as equipes de saúde da família (atenção primária). Em caso de complicações ou reversão da estomia, realiza a referência de pacientes para o serviço especializado - Centro Catarinense de Reabilitação (CCR) - por meio do sistema de regulação. Sendo assim, caracteriza-se como uma ponte entre as equipes de saúde da família e o serviço especializado.
O CCR, de responsabilidade da SES-SC, possui uma equipe multiprofissional que realiza atendimento de reabilitação a pessoas com estomias, sendo a referência para casos de difícil manejo na atenção primária. Esta equipe é composta por médico, enfermeiro, assistente social, nutricionista e psicólogo.
A seleção da amostra foi intencional, sendo elencados, na atenção primária em saúde (APS) os CS de três dos cinco distritos sanitários, os quais possuíam o maior número de pessoas com estomia em sua área de abrangência, no momento da coleta de dados. Na atenção secundária, optou-se pela realização da pesquisa nas Policlínicas Municipais. No âmbito estadual, selecionou-se a equipe multiprofissional e especializada no cuidado à pessoa com estomia que atende no CCR.
Os participantes desta pesquisa foram incluídos segundo critérios: profissionais de saúde e gestores, trabalhadores na RAS municipal e estadual de Florianópolis nos diversos pontos de atenção situados na APS e na atenção secundária ambulatorial, assim como nas secretarias municipal e estadual de saúde, com pelo menos um ano de experiência assistencial. Foram excluídos profissionais e gestores que estavam de férias ou licença do serviço por qualquer motivo, no período da coleta dos dados.
O primeiro grupo amostral foi composto pelos enfermeiros vinculados aos pontos de atenção da RAS municipal. Foram entrevistados dez enfermeiros vinculados à Estratégia Saúde da Família e dois enfermeiros que trabalham em Policlínicas.
O segundo grupo amostral foi formado com os profissionais integrantes da equipe que presta cuidados à pessoa com estomia no CCR, sendo eles: uma enfermeira, uma nutricionista e um médico. O terceiro grupo amostral teve como componentes três membros da gestão da SES-SC e Secretaria Municipal de Saúde SMS de Florianópolis, pessoas que trabalham diretamente com o tema em estudo.
Os dados foram coletados por meio de entrevista individual semiestruturada, realizadas pela pesquisadora principal, no local de trabalho dos participantes, entre os meses de maio e agosto de 2015, gravadas em áudio e transcritas na íntegra utilizando o Microsoft Office Word®.
O roteiro de entrevista continha as seguintes questões: Conte-me sobre sua experiência com pessoas com estomia. Fale-me sobre como você realiza o cuidado à pessoa com estomia. Quais ações você realiza para este cuidado? Quais as características do cuidado à pessoa com estomia? Em sua opinião, qual o papel da APS/AS na gestão do cuidado à pessoa com estomia? Comente sobre a relação do cuidado às pessoas com estomia na APS/AS e os demais pontos da RAS.
As questões aplicadas na entrevista com o primeiro grupo amostral foram adaptadas aos demais grupos, buscando aprofundamento das categorias e elaboração do modelo teórico. As hipóteses que levaram à composição do segundo e terceiro grupo amostral estiveram relacionadas ao papel dos demais pontos de atenção da rede de saúde no cuidado à pessoa com estomia, bem como a compreensão dos aspectos gerenciais, para além dos assistenciais, no cuidado à pessoa com estomia na perspectiva da rede de atenção.
Os dados foram analisados à luz do referencial metodológico da TFD, por meio de métodos comparativos constantes, estabelecendo distinções analíticas e realizando comparações a cada nível do processo de análise12. No intuito de auxiliar na organização e classificação dos dados coletados foi utilizado o software NVIVO 10®.
A TFD compreende algumas etapas de codificação para se alcançar o modelo teórico. Na codificação inicial, os trechos das entrevistas foram analisados exaustivamente e deles resultaram códigos iniciais, os quais foram reformulados quando necessários. A segunda etapa consistiu na codificação focalizada, na qual os códigos são mais direcionados, seletivos e conceituais quando comparados com a codificação inicial. Durante o processo de codificação focalizada emergiram as subcategorias, a partir da agregação dos códigos iniciais, pelo processo contínuo de comparação dos dados analisados. A terceira etapa realizada na análise dos dados foi a codificação teórica, caracterizada como um nível mais sofisticado de codificação, no qual as categorias e subcategorias que emergem dos códigos são formadas e integradas de forma a expor o fenômeno ou a categoria central12.
Foram elaborados 19 memorandos, os quais elevaram o nível de abstração das ideias e possibilitaram novos insights durante a elaboração do modelo. A validação do modelo teórico foi realizada com os participantes do terceiro grupo amostral, no intuito de discutir sua credibilidade, originalidade, ressonância e utilidade12.
A pesquisa seguiu as diretrizes e normas regulamentadoras da pesquisa envolvendo seres humanos que compõem a Resolução 466/2012, obtendo primeiramente a aprovação das instâncias municipais e estaduais para a sua realização, com posterior submissão e aprovação do projeto de pesquisa no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (CEPSH-UFSC) - número do parecer 948.045. Todos os participantes foram esclarecidos sobre os objetivos e métodos da investigação e consentiram a participação via assinatura em Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
A coleta e análise concomitante dos dados deram origem ao fenômeno “Emergindo a gestão do cuidado à pessoa com estomia sob a perspectiva da rede de atenção à saúde”. Este é considerado a categoria central do modelo teórico, que é composto pela integração de 5 categorias, oriundas de 27 subcategorias e 167 códigos conceituais. O Quadro 1 apresenta as categorias e subcategorias analíticas, componentes do modelo.
Fonte: Dos autores do estudo.
A seguir descreve-se cada uma das categorias componentes do modelo teórico, bem como a sua contribuição para sua sustentação teórica.
A categoria Desvelando a gestão do cuidado à pessoa com estomia foi considerada nesta pesquisa como a base para o desenvolvimento de todas as outras. Nesta se fundamentam as propriedades para a construção da GC para pessoas com estomia, pelos profissionais de saúde e gestores que atuam diretamente no sistema de saúde. Foi possível captar diversas dimensões componentes do que os participantes consideram GC de forma geral e, consequentemente, à pessoa com estomia. Destaca-se o entendimento de GC como atenção integral à saúde, pois a mesma se configura também como objetivo da RAS, revelando que GC e RAS estão imbricados no desenvolvimento do cuidado em saúde. Para esta subcategoria foi identificada a atenção integral sob a forma de prevenção, promoção e reabilitação da saúde; a visualização da pessoa como um todo e não apenas como uma pessoa com estomia; bem como a integralidade nas ações e nos serviços de saúde, pensando em níveis de complexidades e complementares entre si.
Outro aspecto relevante foi a consideração da GC como planejamento em saúde, perpassando etapas fundamentais como programar, executar, avaliar e monitorar as ações realizadas, em um movimento circular que recomeça sempre que identificadas necessidades. Destacou-se a importância do planejamento em nível local. Outra forma de visualizar a GC foi desdobrando a mesma em assistência e gerência, de maneira em que cada uma dessas dimensões acontece no cuidado, porém isoladas uma da outra. Há o entendimento entre os participantes de que a GC é de responsabilidade da pessoa com estomia, de seus familiares e da equipe de saúde de forma conjunta e complementar. Nesta subcategoria, vislumbrou-se a corresponsabilização pelo cuidado entre todos os envolvidos no processo, sendo partilhado não somente em equipe, mas com funções e metas definidas para serem cumpridas pelas pessoas com estomia com o apoio dos familiares ou cuidadores.
Para os participantes, a GC deve estar embasada em autonomia profissional, conhecimento e boas práticas de cuidado, e que estas conquistas devem ser incentivadas tanto de forma individual como coletiva, com o apoio dos gestores em saúde. Por fim, destaca-se a subcategoria a qual se refere que a GC deve ser realizada com apoio das instâncias gestoras e das políticas públicas de saúde, revelando dimensões complexas da GC que interferem diretamente na realização desta nas unidades de saúde. Os participantes relatam que o apoio dos gestores para a realização da GC se consolida como peça chave para as boas práticas de cuidado, principalmente quando mencionam a questão dos recursos materiais e logísticos para a realização do cuidado.
A categoria Conhecendo a pessoa com estomia durante o período da graduação e por meio da prática profissional inclui informações acerca dos primeiros contatos dos participantes com a pessoa com estomia, bem como o reconhecimento das fragilidades e potencialidades para a realização do cuidado a este público.
Os participantes estabelecem que o conhecimento do procedimento em si, que resulta em uma estomia, e da estomia como uma condição, se deu ainda no período da graduação. Nem todos tiveram a experiência de cuidar de uma pessoa com estomia nos estágios curriculares, mas todos tiveram contatos iniciados neste período, mesmo que apenas em teoria.
Para a maioria dos participantes, o primeiro atendimento à pessoa com estomia aconteceu no processo de trabalho na ESF do município em estudo. Relatam que buscaram conhecimento acerca do cuidado para desenvolver atendimentos e consideram importante a manutenção do cuidado na ESF pela possibilidade de continuidade. Os participantes vinculados ao CCR realizaram alguns atendimentos em outros serviços hospitalares nos quais trabalharam, porém, o contato mais direto foi como membro da equipe de referência do CCR. Todos reforçam que o cuidado é melhor desenvolvido quando descentralizado, principalmente por facilitar o acesso das pessoas ao cuidado e aos equipamentos coletores e adjuvantes sem ter que percorrer grandes distâncias para consegui-los.
Os participantes também destacam que as pessoas com estomia costumam utilizar com frequência os serviços em saúde prestados pelos centros de saúde. Em sua maioria, além da condição de possuir uma estomia, muitas vezes possuem outras comorbidades. Isto sinaliza no sentido de que o atendimento na ESF produz vínculo e continuidade do cuidado nas diferentes fases de vida das pessoas.
Quanto às potencialidades no cuidado à pessoa com estomia, os participantes mencionam a resiliência como uma característica. Também a participação da família no cuidado, no sentido de apoiar, incentivar e, em muitos casos, realizar o cuidado direto pela dificuldade de manejo da pessoa com estomia. Os participantes enfatizam também o conhecimento adquirido pela pessoa com estomia acerca da sua condição, dos seus direitos e das formas de se adaptar melhorando a sua qualidade de vida e das pessoas que a cercam.
Como fragilidades ao cuidado, os participantes citam o preconceito, tanto dos profissionais de saúde quanto das próprias pessoas com estomia. Na maioria das vezes, os participantes se referem ao preconceito como consequência do desconhecimento e da falta de empatia com a condição, além da vergonha e do constrangimento que a pessoa com estomia acaba adquirindo, muitas vezes dificultando a adesão ao acompanhamento. Outra fragilidade reconhecida pelos profissionais é que, por possuir em sua área de abrangência poucas pessoas com estomia, realizam poucos atendimentos, o que dificulta a ampliação da experiência dos mesmos.
A categoria Realizando o cuidado à pessoa com estomia como parte integrante do processo de trabalho na Atenção Primária e Secundária em Saúde apresenta os significados do cuidado desenvolvido por meio do processo de trabalho em saúde nos distintos pontos ambulatoriais da RAS, perpassando a ESF até as policlínicas municipais e a equipe do CCR, que é integrante da RAS.
O cuidado à pessoa com estomia em todos os pontos da RAS é desenvolvido por meio de consultas com os profissionais de saúde, sejam eles enfermeiros, médicos, nutricionistas, entre outros. Os participantes consideram a consulta de enfermagem como crucial para a GC à pessoa com estomia. Neste espaço da consulta pode-se realizar uma gama de intervenções, sejam elas de caráter assistencial ou de educação em saúde. Destaca-se que a qualidade das consultas de enfermagem, especialmente na ESF, tem evoluído e alcançado níveis mais complexos, bem como vem abrangendo novas áreas, incluindo a pessoa com estomia.
As pessoas com estomia costumam acessar o serviço em busca do material para o cuidado à estomia, conhecendo secundariamente a consulta de enfermagem, à qual ele tem direito, para além de apenas receber os insumos. Outro destaque no atendimento das equipes é a visita domiciliar à pessoa com estomia. Todos os participantes relataram que realizam visitas domiciliares com frequência, principalmente quando se trata de idoso ou pessoas com dificuldade de mobilidade. Esses atendimentos em domicílio são realizados da mesma forma que as consultas nos CS.
No CCR, o cuidado à pessoa com estomia segue a mesma linha da ESF, porém é realizado para atendimento de primeira consulta após alta hospitalar e para cuidado com as complicações que não são resolvidas nos municípios de origem. A equipe realiza consultas médicas, de enfermagem, de nutrição e atendimentos com a assistente social, sendo individuais e em interconsulta, quando necessário. No entanto, os participantes referiram que a realização das primeiras consultas não é mais necessária, pois percebem que o atendimento feito pelas equipes da ESF e na atenção secundária dos municípios da Região de Saúde da Grande Florianópolis está melhorando gradativamente. Pensa-se em manter apenas o atendimento às complicações e ampliar o contato com a alta complexidade hospitalar para realização de intervenções cirúrgicas quando necessárias, às complicações ou reversão da estomia. Os participantes destacam que o cuidado no CCR é especializado no intuito de garantir a referência dos municípios e, para tanto, possuem um arsenal de equipamentos e adjuvantes para as estomias diferenciados daqueles que existem nas ESF. Mesmo considerando o enfermeiro como protagonista no cuidado à pessoa com estomia, os participantes referem a necessidade de integração de toda a equipe de saúde para a realização desse cuidado.
Compartilhar o cuidado foi citado como uma necessidade por muitos participantes, pois se vislumbra que nenhum dos pontos da RAS tem as ferramentas suficientes para prestar atendimentos de forma integral. Assim, a Realizando o cuidado à pessoa com estomia por meio da RAS, destacam a integração entre os pontos de atenção em saúde na RAS como condição essencial para o cuidado à pessoa com estomia.
Dentre as estratégias para desenvolver de forma mais integrada as ações na RAS, alguns participantes mencionaram a descentralização de algumas ações para os Distritos Sanitários que possuem policlínicas, para que o cuidado em nível secundário para a pessoa com estomia daquela região seja oferecido o mais próximo da ESF na qual possui residência. A descentralização dos materiais para as ESF em formato de kits individuais elaborados de acordo com as necessidades de cada pessoa com estomia também foi elencado pelos participantes como uma boa prática de cuidado em rede.
Segundo os participantes, a realização do cuidado por meio da RAS demonstra melhoria nas práticas de cuidado não somente à pessoa com estomia, mas em todas as condições de saúde que demandem de cuidados ambulatoriais complementares em nível secundário em saúde. Estas afirmações se sustentam na importância da troca de conhecimento entre os profissionais dos diversos níveis de atenção, no reconhecimento que a reabilitação da pessoa com estomia acontece por meio dos pontos de atenção da RAS, no reconhecimento dos Distritos Sanitários como apoiadores no desenvolvimento das ações da RAS, na necessidade de que as orientações no momento da alta hospitalar sejam realizadas da forma adequada, para que a pessoa com estomia seja direcionada de forma correta ao ponto de atenção na RAS para seguimento do seu cuidado.
Além dos pontos de atenção em saúde componentes da RAS municipal e estadual, os participantes consideraram essenciais os grupos de vivência realizados pelas Organizações não-governamentais (ONG), como fóruns privilegiados para a troca de informações entre as pessoas com estomia, familiares, cuidadores, profissionais da saúde e estudantes, dividindo angústias e comemorando conquistas na caminhada pela saúde e qualidade de vida.
No entanto, como a RAS está em permanente processo de construção, ainda se encontram percalços na sua implementação. Os participantes destacaram dificuldades de locomoção das pessoas com estomia pela RAS, principalmente devido a problemas no transporte coletivo e no trânsito. Quanto a logística da RAS, o destaque foi para os problemas encontrados com a comunicação entre os pontos de atenção. O meio eletrônico formal para a troca de informações é o sistema INFOSAÚDE®. No entanto, ele está disponível e interligado apenas nos pontos de atenção da RAS municipal, não atingindo, por exemplo, o CCR.
Para estes casos em que os sistemas de informação eletrônicos não se comunicam, persiste o uso de sistemas de referência e contrarreferência por meio de formulários próprios. Quanto a isso, os participantes relatam fragilidades, pois nem sempre as informações chegam ou são devolvidas adequadamente ao profissional interessado, além de ser levada entre os pontos de atenção pela própria pessoa com estomia. Alguns participantes referiram não conhecer os serviços existentes nas policlínicas e no CCR, bem como desconhecer o encaminhamento entre enfermeiros componentes da RAS.
Em relação ao acesso aos serviços disponíveis na RAS, todos referiram que enfrentam ou já enfrentaram dificuldades no acesso às consultas especializadas, exames complementares bem como fragilidades no Sistema Nacional de Regulação (SISREG). Mesmo com todas as fragilidades apresentadas pelos participantes, todos também apontam o atendimento em RAS como resolutivo e potencial para desenvolvimento de boas práticas de cuidado.
Na categoria Caracterizando o papel dos pontos de atenção em saúde no cuidado à pessoa com estomia, pode-se vislumbrar a importância para os profissionais de saúde, gestores e pessoas com estomia, de se ter a definição correta dos papeis de cada ponto de atenção em saúde dentro da RAS. Caracterizá-los enquanto níveis de densidade tecnológica, tipo de serviços oferecidos e funções exercidas na RAS se configuram como essencial para se evitar a transposição de papeis, bem como os encaminhamentos desnecessários ou inadequados entre os serviços de saúde.
Quanto o papel da APS na GC à pessoa com estomia, os participantes destacaram o vínculo, a continuidade e a coordenação do cuidado na RAS. Esta possui também a função de reabilitação, além da prevenção de doenças e promoção da saúde. Portanto, reabilitar a pessoa com estomia por meio da APS se faz necessário e deve ser uma ação estimulada e incentivada pelos gestores. A prevenção de complicações nas estomias também foi citada como papel da APS.
Os participantes da pesquisa declararam que a integralidade do cuidado só pode ser alcançada por meio da colaboração e integração entre os pontos de atenção em saúde da RAS. Isso se explica pela noção de que os pontos não são independentes, pois a complexidade de ações e serviços estão restritas à densidade tecnológica do seu nível de atenção. Os participantes da RAS municipal estimularam o compartilhamento do cuidado entre os CS e as policlínicas, considerando cada nível de complexidade com sua especificidade e importância para o funcionamento adequado da GC e do sistema de saúde de um modo geral.
O papel do CCR foi descrito pelos participantes como apoiador das ações desenvolvidas na atenção secundária municipal e pelas ESF, além de se configurar como um polo de capacitação em educação permanente em saúde. Além disso, os participantes mencionaram reformulações nas funções da equipe do CCR que presta o cuidado à pessoa com estomia, no intuito de qualificar sua função de referência para cuidado das complicações e encaminhamentos para a alta complexidade, quando necessário.
Além das definições dos papéis dos pontos de atenção na RAS, alguns participantes ainda caracterizaram a importância do papel da pessoa com estomia e sua família no cuidado. Este papel seria identificado como a realização do autocuidado, a co-responsabilização pela manutenção da saúde por meio da prevenção de complicações e promoção da saúde e qualidade de vida, bem como a troca de informações da pessoa com estomia com familiares e com a equipe de saúde, no intuito de sanar inquietações, compartilhar angústias e conquistas diárias no processo de cuidado.
Finalizando a análise das relações entre as categorias, subcategorias e códigos conceituais destacados nos resultados, conforme suas propriedades e dimensões, foi possível elaborar o modelo teórico representativo da GC à pessoa com estomia sob a perspectiva da RAS. Essa RAS deve contemplar equipes capacitadas para o cuidado à pessoa com estomia na APS, bem como equipes especializadas na atenção secundária municipal e estadual que exerçam a função de referência para os casos complicados, e que estas referenciem para a atenção terciária conforme a necessidade, retornando à APS para a continuidade do cuidado. Entende-se que esse movimento acontece dentro da RAS de forma geral, não existindo, portanto, uma RAS exclusiva para a pessoa com estomia. O que existe são ações e serviços específicos para esse fim, os quais fortalecem a RAS como um todo pela diversidade que esta apresenta. Uma RAS geral se fortalece conforme a diversidade de ações e serviços de saúde que a contemplam, proporcionando a construção e execução da GC a qualquer condição de saúde, inclusive à pessoa com estomia.
DISCUSSÃO
O modelo considera e defende que, para a que a GC à pessoa com estomia seja realizada da melhor forma, necessita-se de uma RAS fortalecida, composta de ações e serviços diferenciados e qualificados, com potencial para atender às demandas das pessoas com estomia, dentro da complexidade por ela apresentada8,13.
Nesse sentido, para que a GC à pessoa com estomia seja consolidada, faz-se necessário o conhecimento da pessoa com estomia desde o período da graduação e durante a atuação dos profissionais de saúde, realizando o cuidado no seu ponto de atenção, bem como encaminhando esta pessoa para os demais níveis da RAS, conforme as demandas apresentadas. Para que esse encaminhamento aconteça de forma adequada, os pontos de atenção devem possuir seus papéis no cuidado à pessoa com estomia claros e definidos, no sentido de realizar as ações que a ele competem. Essas ações não se sobrepõem, elas acontecem de forma integrada e circular, reiniciando com o surgimento de novas situações, fazendo emergir a GC à pessoa com estomia na perspectiva do cuidado em rede como um processo em constante construção, coordenado pela APS7,13,14.
Nesta pesquisa, os participantes reforçaram que as dimensões apresentadas para a construção da GC à pessoa com estomia situam-se no mesmo nível de importância, bem como se interligam e compartilham responsabilidades, criando relações horizontais entre as mesmas. Destaca-se que a GC deve propiciar o cuidado planejado, por meio da utilização dos recursos disponíveis e elencando objetivos, metas e estratégias, manifestando-se como processo criativo e motivacional, com a intenção de manter e favorecer o cuidado, assegurando sua qualidade aos usuários e suas famílias. A GC deve ser entendida como processo humano e social que se apoia na relação interpessoal, liderança, motivação, participação, comunicação e colaboração. No âmbito da RAS, a GC deve ser o produto da efetiva implantação dos mecanismos de coordenação do cuidado15,16,17.
O cuidado à pessoa com estomia exige reflexão dos profissionais de saúde acerca das potencialidades e fragilidades desenvolvidas pela pessoa no processo de reabilitação, tornando-se indispensável conhecer as suas reais necessidades que, além de serem diversas, mudam constantemente e devem caminhar no sentido do desenvolvimento da aceitação e da convivência harmônica e saudável com esta nova situação19. A realização do cuidado à pessoa com estomia no nível da APS, pelas equipes de saúde da família, foi considerado estratégico para construção da atenção integral e para geração de impacto positivo na qualidade de vida das mesmas. As visitas domiciliares, bem como, as consultas de enfermagem, realizadas periodicamente, apresentam-se como recursos importantes para a reabilitação desta pessoa em todos os níveis de complexidade da RAS, incluindo e estimulando ações de reabilitação na APS. Partilhar o cuidado entre os membros das equipes da APS, incluindo o NASF, reforça a necessidade de uma postura interdisciplinar, valorizando os diferentes olhares para esta condição. O incentivo ao autocuidado e a prevenção de complicações na estomia é o foco central da APS14. Estimular o autocuidado é essencial no intuito de desencadear ganho de autonomia da pessoa com estomia e, consequentemente, do familiar/cuidador, possibilitando a reinserção social e melhorando a qualidade de vida19.
Na atenção secundária à saúde destaca-se a equipe multiprofissional que presta cuidado à pessoa com estomia no CCR, a qual está estruturada nos moldes exigidos pela portaria nº 400, de 2009, consolidando-se em um Serviço de Atenção à Saúde da Pessoa Ostomizada (SASPO) II. A equipe do CCR, para além das atividades de reabilitação, exerce função de polo formador, sendo responsável por estimular e desenvolver ações relacionadas à educação permanente em saúde tanto para as pessoas com estomia e seus familiares durante os atendimentos, quanto para os profissionais de saúde de outros níveis de atenção. Os participantes reforçam que o compartilhamento do cuidado com os outros pontos de atenção está em fase de implantação e já ocorrem no âmbito da RAS investigada. Entretanto, ressalta-se que o planejamento de ações programáticas de reabilitação voltadas à pessoa com estomia devem respeitar os princípios do sistema de saúde brasileiro7,13,14.
Realizar o cuidado à pessoa com estomia por meio da RAS prevê a integração entre pontos de atenção em saúde, no sentido de compartilhar não somente o cuidado, mas os valores e objetivos finais a serem atingidos. Os participantes afirmaram que o cuidado, quando realizado em conjunto e dividido entre os profissionais dos diversos níveis de atenção pode alcançar a resolutividade e a integralidade. Destacam a melhoria na qualidade do cuidado quando este se desenvolve em formato de rede e que a descentralização do cuidado à pessoa pode se consolidar como uma estratégia de boa prática de cuidado, no sentido de minimizar os grandes deslocamentos da pessoa com estomia pela RAS. Estes fatores citados são legitimados pela literatura, confirmando que articulações e conexões com outros profissionais e serviços proporcionam a continuidade da assistência, bem como a organização do cuidado em RAS proporciona o acesso universal, equânime e integral, com base na regionalização e hierarquização dos serviços. Ainda, os autores referem que a concentração de alguns serviços e a desconcentração de outros pode se consolidar como uma boa prática de cuidado15,20-23.
Como fragilidades para a organização do cuidado em RAS, os participantes citaram as inúmeras dificuldades de comunicação e a desarticulação dos sistemas de informação, o que tem gerado práticas de informalidade e a perda de informações importantes para o processo de cuidar. A manutenção do sistema de referência e contrarreferência por meio de formulários, muitas vezes mal preenchidos pelos profissionais de saúde, também se caracterizou como uma dificuldade. Destaca-se o prontuário eletrônico como uma importante ferramenta para disseminação de informações entre os profissionais. Porém, nesta pesquisa, ele é utilizado somente pelos pontos de atenção sob gestão municipal. Para a construção e implementação da RAS deve-se prever sistemas logísticos e de informação que qualifiquem o acesso e apoiem a coordenação do cuidado entre os pontos de atenção. Os sistemas de referência e contrarreferência, quando bem organizados e articulados, podem favorecer a integração entre os serviços e profissionais de saúde, melhorando o compartilhamento de informações entre eles. Cita-se a APS como estratégica para esse fim por ser considerada a principal porta de entrada para o sistema de saúde e coordenadora do cuidado na RAS15, 21-24.
Como limitação para a realização deste estudo destaca-se a escassa literatura científica voltada para a atuação dos profissionais frente ao cuidado à pessoa com estomia, bem como o desenvolvimento deste cuidado em formato de rede, dificultando a discussão com os dados empíricos obtidos. Encontrou-se uma vasta literatura acerca das potencialidades e fragilidades de se viver com uma estomia, com foco no impacto das mudanças, na adaptação e no autocuidado, as quais auxiliaram sobremaneira nesta pesquisa. No entanto, a visão do profissional de saúde, especialmente de enfermagem, acerca das implicações que envolvem o cuidado à pessoa com estomia, ainda se apresenta de forma incipiente na literatura.
Outra limitação foi a realização da pesquisa apenas nos pontos de atenção ambulatorial da RAS, não incluindo o âmbito hospitalar. Ressalta-se a importância de se investigar o cuidado à pessoa com estomia em nível da atenção terciária em saúde. Parece ser relevante estudos que tratem da temática objetivando a compreensão e a definição do papel deste nível no cuidado à pessoa com estomia, bem como a integração deste com os serviços existentes na RAS.
Sugere-se a realização de outras pesquisas orientadas para a temática da estomaterapia, aprofundando as possíveis ações a serem realizadas por todos os envolvidos no processo de cuidado. Sugere-se também a utilização de outras abordagens metodológicas que incluam dados de natureza quantitativa. Por fim, ressalta-se a importância da realização de pesquisas voltadas para a temática da RAS de forma geral, pensada como modelo organizacional para os sistemas de saúde que pretendem ser integrados.
CONCLUSÕES
A compreensão da GC à pessoa com estomia sob a perspectiva da RAS afirmou-se, nesta pesquisa, como a estratégia para a implementação do cuidado qualificado a este grupo populacional, que demanda de atenção específica, nos diferentes níveis do sistema de saúde.
A elaboração do modelo teórico desta pesquisa reforça a importância de que o cuidado à pessoa deve ser desenvolvido por equipes de saúde multiprofissionais, que atuem de forma interdisciplinar, independentemente do nível de complexidade em que se encontrem na RAS. A cooperação e integração destas equipes podem resultar em maior qualidade e resolutividade no cuidado à pessoa com estomia.
Os dados trazidos pelos participantes do estudo justificam a necessidade de abordar o cuidado à pessoa com estomia a partir de um trabalho em rede. O modelo teórico proposto considera que uma RAS fortalecida em termos de diversidade de ações e serviços proporcionará uma melhor GC à pessoa com estomia. A complexidade deste cuidado reforça a importância da implementação da RAS, proporcionando a integração dos serviços e profissionais de saúde, com vistas à integralidade no cuidado.