INTRODUÇÃO
A hanseníase também denominada Mal de Hansen (MH), cujo agente etiológico é o Mycobacterium leprae, tem predileção pelas células epiteliais e pelos nervos periféricos. A ação do bacilo causa distúrbios de sensibilidade nas fibras sensitivas, motoras e autonômicas, o que confere a doença um alto poder incapacitante1. É considerada uma doença tropical negligenciada por atingir camadas mais pobres da população e receber pouca visibilidade e investimentos da indústria farmacêutica2.
A MH representa a principal causa infecciosa de deficiência e, importante causa de morbidade na população, cuja transmissão ainda ocorre de forma contínua e sustentada em algumas áreas endêmicas do mundo2, 3.
Os pacientes com MH são classificados quanto ao nível de acometimento dos nervos periféricos, através da avaliação neurológica simplificada, no momento do diagnóstico. A avaliação do Grau de Incapacidade Física (GIF) é um indicador epidemiológico que permite uma estimativa indireta da efetividade das ações de detecção precoce da doença4. Consideram-se três GIFs, em ordem crescente, de acordo com o acometimento de olhos, mãos e pés: O grau 0: ausência de incapacidades; grau 1: decorre de alterações sensitivas nas mãos e/ou pés e/ou olhos; e o grau 2, está associado à presença de alterações motoras com incapacidades visíveis instaladas, tais como: reabsorções ósseas, lagoftalmo, úlcera, garras, entre outras5.
A avaliação neurológica simplificada é uma das etapas preconizadas pelo Ministério da Saúde (MS), realizada pelos profissionais que compõem a equipe multiprofissional de saúde, que precisam estar atentos a indícios de comprometimento nos nervos, tais como: dor e/ou espessamento à palpação, alterações da sensibilidade no trajeto dos nervos, déficit de força muscular nas mãos e pés, entre outros5. Devem, também, estar capacitados para diagnosticar precocemente os comprometimentos neurais, intervindo oportunamente com vista a prevenir a instalação das incapacidades6.
O Brasil é o segundo país em números de casos novos de MH detectados no mundo, com 25.218 casos em 20167, e é um dos poucos países a não atingir a meta de eliminação da doença caracterizada pelo alcance da cifra de 01 caso ou menos para cada 10.000 habitantes, proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS), admitindo a necessidade de uma longa jornada para alcança-la2-3.
A distribuição desses casos é heterogênea entre as regiões brasileiras e alguns estados mantêm taxa de prevalência elevada, destacando-se: Mato Grosso (7,71/10.000 habitantes); Tocantins (7,39/ 10.000); Maranhão (4,03/10.000); Mato Grosso do Sul (2,66/10.000 habitantes) e o Pará (2,55/10.00 habitantes)8. Vale ressaltar que o estado do Pará está entre os seis estados que agrupam 10 “clusters” de municípios, onde estão concentradas cerca de metade dos casos novos de hanseníase do país4.
Dados do MS, de 2016, apontam que 7,9% dos casos novos de MH diagnosticados apresentaram grau 2 de incapacidade física, ou seja, alguma deficiência visível nos olhos, nas mãos e/ou nos pés8. No Pará, nesse mesmo ano, foram registrados 171, ou seja, 7,2% de acometidos com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico, dado este considerado preocupante8.
As incapacidades físicas, quando instaladas, afetam a vida dos indivíduos e interferem na sua qualidade de vida, resultando em danos sociais e psíquicos que podem levar à exclusão social4, 9. Apesar de curável, a MH ainda é considerada uma doença estigmatizada10.
Diante do desafio do Programa Nacional de Controle da Hanseníase (PNCH) para assistência integral e minimização das incapacidades físicas decorrentes da patologia, o conhecimento das variáveis clínicas que levam ao desenvolvimento dessas complicações é importante para ações de prevenção de incapacidades. Nesse contexto, esse estudo teve como objetivo analisar a associação entre as variáveis clínicas e os graus de incapacidades físicas em casos novos de MH, diagnosticados na Unidade de Referência em hanseníase do Estado do Pará no período de janeiro de 2005 a dezembro de 2014.
MATERIAIS E MÉTODOS
Estudo transversal e analítico11, realizado na Unidade de Referência Especializada em Dermatologia Sanitária - URE “Dr. Marcello Cândia”, localizada no município de Marituba, na região metropolitana de Belém, no estado do Pará.
Os dados foram obtidos de 341 prontuários de pacientes diagnosticados como casos novos de hanseníase na URE, no período de 01 de janeiro de 2005 a 31 de dezembro de 2014. Esse quantitativo foi calculado a partir do total de prontuários correspondentes aos casos, que era de 2.314. A partir desse total calculou-se o valor do (n) amostral, segundo a fórmula de Fontelles12: n=N.n0/N+n0, onde: n0=1/E02; N= tamanho da população estudada; n0=primeiro valor aproximado do tamanho da amostra e E0=erro amostral de 5%.
Adotou-se como critérios de inclusão: ser caso novo de MH e ter o GIF avaliado e registrado no prontuário. Foram excluídos 18 prontuários que apresentaram falha e/ou erros no registro do GIF. Foram delimitadas as variáveis: classificação operacional, baciloscopia, episódios reacionais, tempo transcorrido entre a percepção dos sinais e sintomas da doença e o diagnóstico, número de nervos afetados e Grau 1 e 2 de incapacidade física avaliados no diagnóstico.
Foram coletadas informações relativas ao GIF do “Formulário para Avaliação Neurológica Simplificada” que se encontra anexado ao prontuário, onde enfermeiros, fisioterapeutas e médicos avaliam e classificam o paciente quanto ao GIF na URE1.
Os dados coletados foram armazenados em planilha eletrônica no Microsoft Excel; posteriormente foram transferidos para o Programa Statistical Package for Social Science (SPSS), versão 20.0, e analisados segundo as variáveis selecionadas.
Realizaram-se análises das forças de associação, através do cálculo da Razão de Prevalência, entre a presença (GIF 1 e 2) e ausência (Grau 0) de incapacidades físicas no momento do diagnóstico, e as variáveis: classificação operacional, baciloscopia, episódios reacionais, tempo transcorrido até o diagnóstico e número de nervos afetados12. Adotou-se nível de significância de ٥٪ (p<٠,٠٥) e intervalo de confiança IC= 95 %.
Foram garantidos o anonimato e confidencialidade das informações obtidas, assim como as demais prerrogativas éticas, de acordo com a resolução nº466/12 do Conselho Nacional de Saúde, e a pesquisa só teve início após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos (CEP) do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade do Estado do Pará (UEPA), em 02/12/15, sob o parecer nº 1.348.296.
Por tratar-se de dados secundários, o funcionário da URE responsável pela guarda dos prontuários assinou o Termo de Autorização de Acesso aos Prontuários previamente a disponibilização dos mesmos para coleta de dados.
RESULTADOS
No período de estudo observou-se predomínio da forma clínica dimorfa em 60,1% (n=194) dos casos e classificação operacional multibacilar (MB) em 77,1% (n=249). Um percentual considerável, 36,5% (n=118), possuía de 1 (um) a mais nervos afetados. Destaca-se que os graus de incapacidades físicas 1 e 2 atingiram 28,1% (n=91) dos casos e que o grau 2 de incapacidade apareceu em mais de 10% (n=34) da amostra examinada (Tabela 1).
Variáveis Analisadas | n | % |
---|---|---|
Forma Clínica | ||
Indeterminada | 21 | 6,5 |
Tuberculóide | 52 | 16,1 |
Dimorfa | 194 | 60,1 |
Virchowiana | 56 | 17,3 |
Classificação Operacional | ||
Paucibacilar | 74 | 22,9 |
Multibacilar | 249 | 77,1 |
Nº de Nervos Afetados | ||
Um | 37 | 11,5 |
Dois | 36 | 11,1 |
Três | 8 | 2,5 |
Quatro ou mais | 37 | 11,4 |
Nenhum | 205 | 63,5 |
Grau de Incapacidade Física | ||
Zero | 232 | 71,8 |
Um | 57 | 17,7 |
Dois | 34 | 10,5 |
Fonte: Dos autores, elaborado com dados coletados na Unidade de Referência Especializada (URE) em Dermatologia Sanitária “Dr. Marcello Candia” - abr/2016.
Na Tabela 2 observa-se que 23,8% (n=77) dos casos aguardaram de 6 a 12 meses entre a percepção dos sinais e sintomas ao diagnóstico da doença, essa informação não constava em 32,2% (n=104) dos casos. Em relação à baciloscopia, um percentual considerável, 31,6% (102), apresentou baciloscopia positiva; 17,9% (n=58) dos casos tiveram episódios reacionais e, dentre estes, a maioria, 67,3% (n=39), apresentou reação do tipo 1.
Variáveis Analisadas | n | % |
---|---|---|
Tempo Transcorrido | ||
Menor que 6 meses | 49 | 15,2 |
6 a 12 meses | 77 | 23,8 |
13 a 24 meses | 56 | 17,3 |
Maior que 25 meses | 37 | 11,5 |
Ignorado | 104 | 32,2 |
Baciloscopia | ||
Negativa | 140 | 43,3 |
Positiva | 102 | 31,6 |
Não realizada | 68 | 21,1 |
Ignorada | 13 | 4,0 |
Episódios Reacionais | ||
Não | 259 | 80,2 |
Sim | 58 | 17,9 |
Ignorado | 6 | 1,9 |
Tipos de Reações (n=58) | ||
Tipo 1 | 39 | 67,3 |
Tipo 1 e 2 | 10 | 17,2 |
Tipo 2 | 9 | 15,5 |
Fonte: Dos autores, elaborado com dados coletados na Unidade de Referência Especializada (URE) em Dermatologia Sanitária “Dr. Marcello Candia” - abr/2016
De acordo com a Tabela 3 o percentual de incapacidade física grau 1 e 2 foi de 28,1% e as variáveis clínicas que se associaram ao mesmo foram: ser multibacilar (RP=7,2 – p-valor 0,0001), ter baciloscopia positiva (RP= 2,0 – p-valor 0,0163), apresentar episódios reacionais (RP=2,4 – p-valor 0,0036), e possuir 4 ou mais nervos afetados (RP=17 – p-valor 0,0010). A variável tempo transcorrido, foi a única a não apresentar associação estatisticamente significativa com o GIF 1 e 2.
Variáveis | Grau 0 | Grau 1 e 2 | RP 1 | P-Valor2 | ||
---|---|---|---|---|---|---|
N | % | n | % | |||
Classificação Operacional | ||||||
Paucibacilar | 69 | 21,3 | 5 | 1,5 | 7.2 | <0.0001* |
Multibacilar | 163 | 50,4 | 86 | 26,6 | ||
Baciloscopia (n=242) | ||||||
Negativa | 104 | 42,9 | 36 | 14,8 | 2.0 | 0.0163* |
Positiva | 60 | 24,7 | 42 | 17,3 | ||
Episódios reacionais (n=317) | ||||||
Sim | 32 | 10,0 | 26 | 8,2 | 2.4 | 0.0036* |
Não | 195 | 61,5 | 64 | 20,1 | ||
Tempo transcorrido (n=219) | ||||||
Até 12 meses | 90 | 41,1 | 36 | 16,4 | 1.0 | 0,9289 |
Acima de 12 meses | 66 | 30,1 | 27 | 12,3 | ||
Número de nervos afetados (n=118) | ||||||
1 a 3 | 26 | 22,0 | 55 | 46,6 | 17.0 | 0.0010* |
4 ou mais | 1 | 0,85 | 36 | 30,5 | ||
(1) Razão de Prevalência (RP). (2) Significância ao nível de 0.05. |
Fonte: Dos autores, elaborado com dados coletados na Unidade de Referência Especializada (URE) em Dermatologia Sanitária “Dr. Marcello Candia” - abr/2016.
DISCUSSÃO
Para o espaço temporal delimitado de 2005 a 2014, 28,1% dos participantes do estudo apresentaram GIF 1 e 2, no momento do diagnóstico, sinalizando que o mesmo é tardio. A proporção de casos com GIF2 apresentou média considerada alta (10,5%), segundo os parâmetros preconizados pelo MS1. Esses dados apontam a persistência do ciclo da doença e prevalência oculta. Ressalta-se que, devido às falhas no processo de trabalho, os pacientes precisaram ser referenciados à URE para receberem o diagnóstico e iniciarem o tratamento da doença, mesmo estando com incapacidades visíveis.
O tratamento da patologia, a avaliação neurológica simplificada, a aplicação de técnicas básicas de prevenção de incapacidades, entre outros são procedimentos que deveriam ser realizados nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Diante da complexidade de determinadas situações que não possam ser resolvidas no âmbito das UBS, deve-se encaminhá-los aos Centros de Referência1.
Em relação à classificação operacional houve predominância dos casos multibacilares (MB) com 77,1%, corroborando com estudos realizados em outras localidades: São Paulo13, Maranhão14, região de saúde de Diamantina15, província de Corrientes16, Bogotá/Colômbia17 e Etiópia18, que também mostraram percentuais elevados em relação à classificação MB, apresentando 73%, 72,9%, 73,2%, 70,3%, 67,9% e 99,2%, respectivamente. Dessa forma, esse achado constitui um alerta para o serviço de saúde, uma vez que há predomínio das formas transmissoras e potencialmente incapacitantes da doença17.
O diagnóstico da MH deve ocorrer nas formas clínicas iniciais Paucibacilar (PB): indeterminada e tuberculóide. No entanto, observamos maior número de notificações no pólo instável da doença e em suas formas transmissoras MB: dimorfa e virchowiana, nas quais ocorre multiplicação do bacilo, com lesões de pele extensas e numerosas e acometimento de nervos. Dessa forma, a detecção está ocorrendo tardiamente com maior possibilidade de instalação das incapacidades físicas, principalmente, nas áreas mais carentes e desassistidas nas grandes metrópoles2.
As características peculiares da doença, como o seu longo período de incubação, os sinais e sintomas insidiosos, aliados às deficiências operacionais dos serviços, a carência de profissionais de saúde capacitados e o difícil acesso aos serviços de saúde, tornam-se um entrave para o diagnóstico precoce19.
Quanto à associação da classificação operacional com o GIF dos pacientes, as evidências mostraram que 26,6% (n=86) dos casos que apresentavam incapacidades físicas foram classificados como MB. Estes possuem 7.2 vezes maior prevalência de incapacidades físicas decorrentes da MH em relação aos pacientes com classificação PB (p-valor < 0.05).
Achado compatível com os de outros estudos: Na Colômbia, os pacientes MB apresentaram 1.3 vezes maior risco de desenvolverem incapacidades se comparado aos paucibacilares17. Em Aracaju, foi observado fator de risco de 2.7 de incapacidades nos multibacilares em comparação aos paucibacilares19. De forma que os pacientes multibacilares apresentaram 5.7 vezes mais chances de desenvolverem incapacidades físicas em Minas Gerais20. A proporção de casos de MH multibacilares é um indicador de risco para desenvolver complicações e está fortemente relacionada à sustentação da cadeia de transmissão e a prevalência oculta1.
Quanto à baciloscopia, observou-se que 31,6% (n=102) dos casos apresentaram baciloscopia positiva. Esse achado é consistente com estudos anteriores: Em João Pessoa 12,1%6; em Bogotá 55,5%17; na Etiópia 41,5%18e no Maranhão 42,3%14, embora nem todos os pacientes fossem submetidos ao exame.
Quanto à baciloscopia associada ao GIF, observou-se que 43,3% (n=140) dos casos tiveram resultado negativo; porém a RP mostra que os casos de pacientes com resultado positivo de baciloscopia possuem 2.0 vezes a prevalência de incapacidades físicas decorrentes da MH (p-valor < 0.05).
Estudo internacional constatou associação significativa do índice baciloscópico inicial ≥ 2 com a ocorrência de incapacidades, e estes possuíam 1.4 vezes maior risco de desenvolverem incapacidades se comparados àqueles que possuíam índice baciloscópico < 217. Isso também foi relatado por outros estudos em nível nacional em que se observou que a baciloscopia positiva está associada com o GIF 1 e 26 e aumenta as chances de incapacidade física em 1.7 vezes20.
A baciloscopia cutânea serve de suporte ao diagnóstico, bem como compõe um dos critérios para confirmação de recidiva14. O índice bacilar > 2 tem sido relatado como fator de risco para neuropatia, pois os pacientes diagnosticados com baciloscopia positiva são mais predispostos a evoluírem com quadros reacionais e, consequentemente, com incapacidades físicas20.
Quanto aos episódios reacionais, constatou-se que 17,9% (n=58) apresentaram reações, sendo a maioria 67,3% (n=39) tipo 1. A RP mostra prevalência de 2.4 vezes maior de pacientes que apresentaram reações hansênicas evoluírem com incapacidades físicas, quando comparados aos que não tiveram reação (p-valor < 0.05). Alguns estudos indicam proporções diferentes de ocorrência de reações em diferentes cenários: Oliveira e colaboradores observaram 40% dos pacientes acompanhados em dois centros de tratamento apresentaram reações, sendo a reação tipo 1, a mais frequente em 75,1% dos pacientes4ao passo que Santos e colaboradores encontraram reações em 13,3% dos casos avaliadas19 e Corrêa e colaboradores observaram reação em 43,5%14.
Quanto aos episódios reacionais associados ao GIF, alguns estudos ratificam a tendência das reações aumentarem o risco de incapacidades quando comparados aos que não tiveram reações: Em Aracaju os pacientes que apresentaram reações aumentaram em 2 vezes o risco de incapacidades19; na Etiópia os pacientes com reação tipo 1 apresentaram 1.8 vezes maior risco de incapacidades, valores aproximados ao encontrado em nosso estudo18.
As reações e neurites são complicações decorrentes da MH, devido períodos de hipersensibilidade imunológica aguda, e o tratamento desses quadros é relevante e visa evitar e/ou diminuir as sequelas, amenizar os gastos com a reabilitação e impactar positivamente na funcionalidade e na qualidade de vida dos acometidos. Os pacientes que apresentam surtos reacionais são mais suscetíveis a danos neurais e possíveis sequelas4, 19.
O GIF e, consequentemente, a severidade da patologia estão relacionados com o número de surtos reacionais que podem ocorrer durante o curso da doença, antes do diagnóstico, durante o tratamento e após a alta medicamentosa e causar lesões neurais, com potencial risco de incapacidade física, se não forem adequadamente tratados4, 14. As reações podem ser confundidas com recidivas da doença, por isso requerem diagnóstico diferencial e tratamento oportuno.
A avaliação neurológica frequente contribui para o diagnóstico precoce do acometimento dos troncos nervosos periféricos, bem como para monitorar a evolução do quadro neurológico, auxiliando tanto o tratamento medicamentoso quanto o fisioterápico20.
Em relação ao tempo transcorrido entre a percepção dos sinais e sintomas até o diagnóstico, observa-se que 23,8% dos casos aguardaram de 6 a 12 meses o diagnóstico da doença. Chama atenção o fato de tal informação está omissa em 32,2% dos casos. Diante desse fato, não é possível indicar os motivos pelos quais essa informação relevante, esteja ausente nos prontuários. Acredita-se que a falta desse registro comprometeu a avaliação dessa variável e apesar do estudo não demonstrar significância estatística para essa variável (p-valor > 0.05), acredita-se que a demora no diagnóstico influencia o desenvolvimento das incapacidades físicas.
A associação estatística significativa da demora no diagnóstico com o GIF foi observada nos estudos: Na Etiópia os casos avaliados com duração dos sintomas 6-12 meses e acima de 24 meses foram mais suscetíveis a desenvolver incapacidades, apresentando risco de 2.1 e 2.4 respectivamente18. Na Colômbia os pacientes com a demora > 1ano para o diagnóstico apresentaram risco duas vezes maior de desenvolver incapacidades, se comparados aqueles com diagnósticos feitos igual ou menor que um ano17.
A demora no diagnóstico da doença é fator preocupante e recorrente em diversos estudos: Em São Paulo a média de tempo decorrido entre a percepção dos sinais e dos sintomas até o diagnóstico da patologia, foi de 12 meses, com uma variação de 1 mês a 10 anos13; em Bogotá apenas 32,1% dos pacientes receberam o diagnóstico da doença durante o primeiro ano do aparecimento dos sintomas e o tempo entre o surgimento dos primeiros sintomas e o diagnóstico dos 333 pacientes de seu estudo foi em média de 2,9 anos17.
O tempo transcorrido entre o aparecimento da sintomatologia e a elucidação diagnóstica constitui um fator prognóstico chave para a presença de incapacidade, e quanto maior o atraso no diagnóstico maior é a proporção de pacientes com incapacidades. Neste sentido, o risco de apresentar deformidades no momento do diagnóstico cresce significativamente à medida que este é atrasado13, 17.
Do mesmo modo Santos e colaboradores, constataram em seu estudo que algumas pessoas levaram até três anos entre a primeira consulta e o fechamento do diagnóstico, e afirmaram, a partir dos relatos dos seus entrevistados, que a grande dificuldade advinha do despreparo dos profissionais de saúde em reconhecer a doença19.
Ao passo que na região de Diamantina, MG, as evidências também sugerem diagnóstico tardio, pois alguns pacientes relataram o diagnóstico após sete meses de consultas subsequentes e a maioria precisou ser atendida por dois ou mais profissionais de saúde para concluir o caso15.
No Pará, em uma unidade de referência de saúde, o intervalo entre o começo da sintomatologia e a elucidação do diagnóstico foi de mais de 1 ano em 73,2% dos menores de 15 anos acometidos pela patologia e 46,3% deles foram consultados por 3 ou mais médicos para obter um diagnóstico21. Em Belém, em um Centro de Saúde Escola, a maioria obteve o diagnóstico em um período de dois meses a três anos após início da busca por atendimento10.
Assim, a busca pelo diagnóstico da MH aponta uma sucessão de erros diagnósticos, delineando um percurso longo e tortuoso10. Entretanto, quando o tratamento é bem conduzido por equipes de saúde qualificadas e sensibilizadas para o problema, ocorre a redução das incapacidades6. Neste contexto, destacamos a relevância da assistência de enfermagem na prestação dos cuidados aos pacientes atingidos pela doença, com ações para o autocuidado, bem como para a prevenção das incapacidades, entre outras.
Referente ao número de nervos afetados, foi constatado que 22% (n=26) dos pacientes tinham de 1 a 3 nervos afetados. Porém, a RP apontou que os casos de pacientes com mais de 3 nervos afetados possuem 17 vezes a prevalência de desenvolverem incapacidades físicas decorrentes da MH, em relação aos pacientes com até 3 nervos afetados (p-valor < 0.05). Resultado que revela forte associação dessa variável com o GIF 1 e 2. O comprometimento neural também foi relatado em outros estudos6, 15, 18,20.
Quanto ao número de nervos afetados relacionados ao GIF outros estudos também observaram associação estatística dessa variável com o GIF: Em Aracaju 55,5% dos casos tinham mais de 2 nervos afetados e estes apresentaram risco de 6.7 de incapacidade quando comparados aos que possuíam até 2 nervos acometidos19; em MG a ocorrência de um ou mais nervos afetados aumentou o risco em 8,4% de desenvolver grau 2 de incapacidade20; na Etiópia observou-se que os casos com dano no nervo foram mais propensos a desenvolverem incapacidades e apresentaram 13.1 vezes maior risco18.
Assim, o número de nervos afetados está significativamente associado ao aumento do risco de comprometimento físico20, como evidenciado em estudo sobre fatores relacionados à prevalência de incapacidades físicas o qual mostrou que pacientes com GIF 1 tiveram em média de 2 nervos afetados, já os com GIF 2 a média duplicava, passando a 4 nervos15.
Tais resultados demonstram que a lesão do nervo está associada às incapacidades físicas. Desse modo, a monitorização regular da função do nervo, combinado com o manejo clínico adequado das neurites, neuropatias e reações hansênicas, são estratégias eficazes para prevenir-lás1, 15,19.
A frequência de neuropatia aumenta significativamente, em casos com diagnóstico tardio e em pacientes com maior número de nervos comprometidos20. Em nossa análise, essa variável apresentou as chances mais precisas de desenvolver incapacidade física, logo, o número de nervos espessados deve ser avaliado e sua importância prognóstica reconhecida.
Este estudo apresenta limitações e fragilidades, pois envolveu apenas uma Unidade de Referência em Dermatologia Sanitária e dados secundários que, devido a lacunas nos registros de algumas variáveis, nos prontuários, podem ter gerado algum viés aos resultados.
CONCLUSÕES
Os graus de incapacidades físicas 1 e 2, estão relacionados à classificação operacional MB (RP=7.2), baciloscopia positiva (RP=2.0), episódios reacionais (RP=2.4) e número de nervos afetados (RP=17). Essas características clínicas, em especial, o número de nervos afetados podem predizer resultados deletérios, logo necessitam de maior atenção dos profissionais de saúde.
Acreditamos que o conhecimento das variáveis clínicas relacionadas ao GIF apresentadas neste estudo pode oferecer subsídios para o estabelecimento de intervenções voltadas ao seu manejo, controle e prevenção, bem como auxílio para ampliação do campo de pesquisa em MH no estado.
Existem lacunas na operacionalização da assistência às pessoas atingidas pela doença. A atenção básica deveria ser a porta de entrada, no entanto, apresenta capacidade operacional reduzida referente às ações de controle da patologia. Faz-se necessário os gestores planejarem ações de combate à MH nos municípios em conformidade com as políticas públicas vigentes.