INTRODUÇÃO
A terapia antirretroviral (TARV) trouxe melhorias evidentes à redução da morbimortalidade de pessoas que vivem com HIV (PVHIV), bem como um aumento da expectativa de vida1. Atualmente, no mundo, 77% desta população tem acesso à TARV, e o número de mortes relacionados à aids foi reduzido2.
Com o aumento da expectativa de vida, diversas complicações crônicas têm sido evidenciadas, dentre elas, as doenças cardiovasculares. Estas complicações estão relacionadas a vários processos multifatoriais como a toxicidade da TARV, presença de comorbidades e ativação inflamatória persistente1.
Do ponto de vista metabólico, os efeitos adversos da TARV têm influenciado consideravelmente no aparecimento de novas comorbidades nessa população3,4.
Pesquisas revelam um aumento de aproximadamente três vezes na prevalência de dislipidemia em PVHIV após o início da TARV, com aumento significativo na proporção de indivíduos com altos níveis de triglicérides (TG), colesterol total (CT) e lipoproteína de densidade muito baixa (VLDL-c)3-5.
Somado a isso, a própria infecção pelo HIV exerce alterações no metabolismo lipídico. Trabalhos da era pré-TARV estabeleceram que a infecção pelo HIV determina um perfil lipídico mais desfavorável. Foram observados, inclusive, implicação prognóstica dessas alterações. Quanto mais baixa a contagem de linfócitos TCD4+, maior o nível de triglicérides e mais baixos os níveis de colesterol HDL-c3,4.
A dislipidemia em PVHIV tem sido tema de pesquisas nacionais e internacionais. Há uma busca constante de fatores que possam estar associados a distúrbios no metabolismo dos lipídeos, e que vão desde aspectos sociodemográficos e hábitos de vida à investigação de esquemas terapêuticos que favorecem a dislipidemia e suas repercussões durante o tratamento6,7. Estudos brasileiros têm evidenciado que cerca de 50% de PVHIV tem alguma alteração lipídica, seja hipertrigliceridemia, hipercolesterolemia, aumento da lipoproteína de baixa densidade (LDL-c) ou diminuição da lipoproteína de alta densidade (HDL-c)8,9.
Porém, ainda existe a lacuna de estudos brasileiros que abordem a assistência a PVHIV direcionados às mudanças no estilo de vida, as quais são favoráveis à redução da dislipidemia e consequente diminuição do risco cardiovascular nessa população.
Assim, o objetivo do estudo é avaliar a presença de dislipidemia em adultos que vivem com HIV e sua associação com variáveis sociodemográficas, comportamentais e clínicas.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo analítico, transversal, realizado no período de setembro de 2014 a outubro de 2016, no interior do estado de São Paulo, região sudeste do Brasil. Estudo realizado com pessoas que vivem com HIV em uso, os quais correspondiam a 1920 indivíduos em uso de terapia antirretroviral regular, segundo dados de dispensação da TARV das unidades que fazem parte da Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto/Programa Municipal de DST, AIDS, Tuberculose e Hepatites Virais, assistidos nos Serviços de Referência a pessoas que vivem com HIV no município de Ribeirão Preto/SP.
Para determinação do tamanho amostral, foi considerado a população de 1920, adotou-se o valor de 50% como prevalência esperada para o evento de acordo com a literatura8,9, com α de 5% e erro relativo de 10%, analisados através do programa R, versão 3.0.2., obtendo-se um número de 340 PVHIV.
Ao final, 386 foram recrutados, mas apenas 340 aceitaram participar e atenderam aos critérios de elegibilidade, compondo assim a amostra esperada. Destaca-se que os mesmos foram selecionados através de amostra não probabilística, do tipo consecutiva.
Foram convidadas para participar do estudo PVHIV, de ambos os sexos, que atendiam aos critérios de inclusão: conhecimento de sua condição sorológica, independente do estágio de infecção; idade superior a 18 anos; estar em uso da TARV há mais de seis meses e estar em acompanhamento clínico-ambulatorial nos serviços escolhidos.
Foram excluídos os indivíduos que já tinham apresentado alguma doença cardiovascular anterior, aqueles em situações de confinamento (presidiários, institucionalizados e residentes em casas de apoio) e gestantes. Destaca-se que não foram descartados os indivíduos que consomem outras medicações para patologias não cardiovasculares concomitantes que podem gerar dislipidemia.
Os dados foram coletados por meio de entrevistas utilizando instrumento sociodemográfico e clínico e consulta ao prontuário do paciente em salas do próprio ambulatório, antes ou após a consulta médica e/ou de enfermagem. As entrevistas tiveram duração média de 30 minutos e foram realizadas pelo pesquisador principal e por auxiliares de pesquisa devidamente treinados.
O questionário foi dividido em variáveis sociodemográficas: sexo (masculino/feminino), idade (anos completos), escolaridade (anos de estudo completos); clínicas: tempo de diagnóstico para HIV (em anos), tempo de TARV (em anos), contagem de células TCD4+, carga viral, resultado do último exame laboratorial de colesterol total, HDL e Triglicérides; estilo de vida: atividade física (ativo/moderadamente ativo/inativo) e qualidade da dieta (baixa/intermediária/satisfatória); conhecimento sobre ter dislipidemia (sim/não) e uso de medicamentos hipolipemiantes (sim/não).
Para avaliação da dislipidemia - colesterol total, High Density Lipoprotein (HDL) e triglicerídeos - foi considerado o último resultado de exame válido (dos últimos 12 meses, conforme Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para o Manejo da Infecção pelo HIV em Adulto1 contido no prontuário, e foi avaliado de acordo com as recomendações da Atualização da Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose10. Os valores de referência considerados desejáveis foram: colesterol total <190 mgl/dL; HDL-c >40 mg/dL e triglicérides <150 mg/dl10. Foram classificados como dislipidêmicos os indivíduos que apresentaram, pelo menos, um exame alterado.
O nível de atividade física foi avaliado por meio das questões “Você realiza alguma atividade física? (sim/não)”, “Se sim, qual atividade?”, “Com qual frequência?”. E foi classificado em inativo (não realiza nenhuma atividade física), moderadamente ativo (realiza atividade física não regular) e ativo (realiza atividade física regular – no mínimo 150 minutos/semanais de atividade moderada ou 75 minutos/semanais de atividade de alta intensidade, conforme recomendação da Organização Mundial da Saúde11.
Os dados relacionados com as variáveis da alimentação foram obtidos por meio de um questionário estruturado com 18 perguntas que avalia a frequência alimentar – “Como está sua alimentação?” construído pelo Ministério da Saúde (2013), no qual a pontuação total é obtida pela soma de todas as questões, sendo cada uma com um peso diferente (valor mínimo possível 1, valor máximo possível 58). O resultado pode ser um escore menor que 28 (baixo); entre 29 a 42 (intermediário); acima de 43 (satisfatório)12.
Para análise dos dados utilizou-se estatística descritiva para caracterizar a amostra. Após, realizou-se o teste Kappa para avaliar a concordância do diagnóstico de dislipidemia pelos exames laboratoriais com o conhecimento dos pacientes sobre o seu próprio diagnóstico e com a utilização de medicamentos hipolipemiantes. Para efeitos de interpretação, considera-se concordância pobre os valores de Kappa < 0,0; leve (0,0-0,2); aceitável (0,21-0,40); moderada (0,41-0,60); considerável (0,61-0,80); quase perfeita (0,81-1,00)13.
Além disso, realizou-se os testes Qui-quadrado e Exato de Fisher para avaliar a associação entre as variáveis categóricas, adotando nível de significância p<0,05. Todas as análises foram realizadas através do software Statistical Package for Social Science (SPSS), versão 22.0.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo conforme protocolo nº 749.563/2014. E a todos os participantes da pesquisa foi garantido o caráter sigiloso dos dados e o anonimato. A coleta de dados só foi realizada após a concordância dos entrevistados, em uma sala que resguardasse a privacidades dos mesmos, utilizando o termo de consentimento livre e esclarecido, seguindo os preceitos preconizados pelo Conselho Nacional de Saúde do Brasil, através da Resolução 466/2012.
RESULTADOS
Participaram do estudo 340 adultos vivendo com HIV. Destes, mais da metade era do sexo masculino, tinha mais de oito anos de estudo. A média e desvio padrão da idade foram de 44±12 anos.
Com relação ao estilo de vida adotado, a maioria (64,1%) foi considerado inativo, não tabagista (67,9%), não etilista (60,0%) e qualidade da dieta considerada intermediária (69,4%).
E quanto que as características clínicas relacionadas ao HIV, identificou-se que a maioria tinha o diagnóstico da soropositividade entre 11 e 20 anos, faziam uso da TARV há menos de cinco anos e tinham carga viral indetectável.
A investigação da dislipidemia constatou que a maioria dos participantes tinham dislipidemia, porém, não sabiam seu diagnóstico (74,1%) e nem faziam uso de hipolipemiantes (91,2%). (Tabela 1).
Variáveis | Categoria | n | % | |
---|---|---|---|---|
Sexo | Masculino | 197 | 57,9 | |
Feminino | 143 | 42,1 | ||
Idade (em anos) | < 30 | 52 | 15,3 | |
30 – 39 | 60 | 17,6 | ||
40 – 49 | 116 | 34,1 | ||
50 – 59 | 81 | 23,8 | ||
≥ 60 | 31 | 9,1 | ||
Escolaridade (anos de estudo) | ≤ 8 | 167 | 49,1 | |
> 8 | 173 | 50,9 | ||
Atividade física | Inativo | 218 | 64,1 | |
Moderadamente ativo | 15 | 4,4 | ||
Ativo | 107 | 31,5 | ||
Qualidade da dieta | Baixa | 61 | 17,9 | |
Intermediária | 236 | 69,4 | ||
Satisfatória | 43 | 12,6 | ||
Tabagismo | Sim | 109 | 32,1 | |
Etilismo | Sim | 136 | 40,0 | |
Tempo de diagnóstico do HIV (em anos) | < 5 | 121 | 35,6 | |
5 – 10 | 62 | 18,2 | ||
11 – 20 | 132 | 38,8 | ||
> 20 | 25 | 7,4 | ||
Células T CD4+ (cel/mm3) | ≥ 200 | 318 | 93,5 | |
<200 | 22 | 6,5 | ||
Carga viral (cópias/ml) | ≤ 40 | 275 | 80,9 | |
> 40 | 65 | 19,1 | ||
Tempo de TARV (anos) | < 5 | 153 | 45,0 | |
5 – 10 | 68 | 20,0 | ||
11 – 20 | 115 | 33,8 | ||
> 20 | 4 | 1,2 | ||
Uso de Inibidores de protease | Sim | 164 | 48,2 | |
Dislipidemia | Sim | 264 | 77,6 | |
Conhecimento DLP | Sim | 88 | 25,9 | |
Uso de hipolipemiantes | Sim | 30 | 8,8 | |
Não | 310 | 91,2 | ||
Total | 340 | 100 |
Fonte: Dados da Pesquisa, 2016. Elaboração própria dos autores
Ainda que valores desejáveis para o CT, HDL e triglicérides representem a maioria da população investigada, os valores alterados foram significativos (Figura 1).
A análise de concordância entre a presença de dislipidemia, segundo os exames laboratoriais, comparados ao conhecimento dos pacientes sobre ter a dislipidemia foi de apenas 44,7% (IC95%: 0,000 – 0,001, p<0,0001). Já a avalição entre os exames laboratoriais que apontavam para dislipidemia e o uso dos hipoglicemiantes pelos pacientes foi de 30,6% (IC95%: 0,008-0,011, p=0,009). Na análise Kappa essa baixa concordância foi comprovada (K=0,12; K=0,046).
Na análise bivariada, foi observada associação entre as variáveis lipídicas, o sexo e a idade (Tabela 2). Variáveis relacionadas ao HIV como o tempo de diagnóstico, tempo do uso da TARV, e carga viral indetectável (Tabela 3).
Variáveis | Dislipidemia | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||||||
Colesterol total | HDL-c | Triglicérides | ||||||||
Desejável | Alterado | p* | Desejável | Alterado | p* | Desejável | Alterado | p* | ||
Sexo | 0,21 | 0,007 | 0,39 | |||||||
Masculino | 122 (60,7) | 75 (54,0) | 98 (51,6) | 99 (66,0) | 108 (56,0) | 89 (60,5) | ||||
Feminino | 79 (39,3) | 64 (46,0) | 92 (48,4) | 51 (34,0) | 85 (44,0) | 58 (39,5) | ||||
Idade (em anos) | 0,02 | 0,29 | 0,43 | |||||||
≤ 39 | 74 (36,8) | 38 (27,3) | 58 (30,5) | 54 (36,0) | 68 (35,2) | 44 (29,9) | ||||
40 – 59 | 115 (57,2) | 82 (59,0) | 117 (61,6) | 80 (53,3) | 110 (57,0) | 87 (59,2) | ||||
≥ 60 | 12 (6,0) | 19 (13,7) | 15 (7,9) | 16 (10,7) | 15 (7,8) | 16 (10,9) | ||||
Escolaridade (em anos) | 0,54 | 0,55 | 0,96 | |||||||
≤ 8 | 96 (47,8) | 71 (51,1) | 96 (50,5) | 71 (47,3) | 95 (49,2) | 72 (49,0) | ||||
> 8 | 105 (52,2) | 68 (48,9) | 94 (49,5) | 79 (52,7) | 98 (50,8) | 75 (51,0) | ||||
Atividade física | 0,27 | 0,63 | 0,66 | |||||||
Inativo | 123 (61,2) | 95 (68,3) | 119 (62,6) | 99 (66,0) | 123 (63,7) | 95 (64,6) | ||||
Moderadamente ativo | 08 (4,0) | 07 (5,0) | 10 (5,3) | 05 (3,3) | 07 (3,6) | 08 (5,4) | ||||
Ativo | 70 (34,8) | 37 (26,6) | 61 (32,1) | 46 (30,7) | 63 (32,6) | 44 (29,9) | ||||
Qualidade da dieta | 0,47 | 0,61 | 0,89 | |||||||
Baixa | 32 (15,9) | 29 (20,9) | 37 (19,5) | 24 (16,0) | 35 (18,1) | 26 (17,7) | ||||
Intermediária | 144 (71,6) | 92 (66,2) | 131 (68,9) | 105(70,0) | 135 (69,9) | 101 (68,7) | ||||
Satisfatória | 25 (12,4) | 18 (12,9) | 22 (11,6) | 21 (14,0) | 23 (11,9) | 20 (13,6) | ||||
Tabagismo | 0,71 | 0,49 | 0,15 | |||||||
Sim | 66 (32,8) | 43 (30,9) | 58 (30,5) | 51 (34,0) | 68 (35,2) | 41 (27,9) | ||||
Não | 135 (67,2) | 96 (69,1) | 132 (69,5) | 99 (66,0) | 125 (64,8) | 106 (72,1) | ||||
Etilismo | 0,32 | 0,07 | 0,62 | |||||||
Sim | 76 (37,8) | 60 (43,2) | 84 (44,2) | 52 (34,7) | 75 (38,9) | 61 (41,5) | ||||
Não | 125 (62,2) | 79 (56,8) | 106 (55,8) | 98 (65,3) | 118 (61,1) | 86 (58,5) |
Fonte: Dados da Pesquisa, 2016. Elaboração própria dos autores.
*Teste Qui-Quadrado
Variáveis | Dislipidemia | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||||||
Colesterol total | HDL-c | Triglicérides | ||||||||
Desejável | Alterado | p* | Desejável | Alterado | p* | Desejável | Alterado | p* | ||
Tempo diagnóstico HIV (em anos) | 0,07 | 0,34 | 0,04 | |||||||
< 5 | 82 (40,8) | 39 (28,1) | 62 (32,6) | 59 (39,3) | 77 (39,9) | 44 (29,9) | ||||
5 – 10 | 32 (15,9) | 30 (21,6) | 35 (18,4) | 27 (18,0) | 39 (20,2) | 23 (15,6) | ||||
11 – 20 | 71 (35,3) | 61 (43,9) | 81 (42,6) | 51 (34,0) | 67 (34,7) | 65 (44,2) | ||||
> 20 | 16 (8,0) | 09 (6,5) | 12 (6,3) | 13 (8,7) | 10 (5,2) | 15 (10,2) | ||||
Tempo de TARV (em anos) | 0,14† | 0,11† | 0,04† | |||||||
< 5 | 94 (46,8) | 59 (42,4) | 83 (43,7) | 70 (46,7) | 93 (48,2) | 60 (40,8) | ||||
5 – 10 | 46 (22,9) | 22 (15,8) | 33 (17,4) | 35 (23,3) | 41 (21,2) | 27 (18,4) | ||||
11 – 20 | 59 (29,4) | 56 (40,3) | 73 (38,4) | 42 (28,0) | 59 (30,6) | 56 (38,1) | ||||
> 20 | 02 (1,0) | 02 (1,4) | 01 (0,5) | 03 (2,0) | 00 (00) | 04 (2,7) | ||||
Contagem TCD4+ (cells/mm3) | 0,07 | 0,30 | 0,26 | |||||||
≥ 200 | 184 (91,5) | 134 (96,4) | 180 (94,7) | 138 (92,0) | 183 (94,8) | 135 (91,8) | ||||
< 200 | 17 (8,5) | 05 (3,6) | 10 (5,3) | 12 (8,0) | 10 (5,2) | 12 (8,2) | ||||
Carga viral (cópias/ml) | 0,06 | 0,04 | 0,25 | |||||||
≤ 40 | 156 (77,6) | 119 (85,6) | 161 (84,7) | 114 (76,0) | 152 (78,8) | 123 (83,7) | ||||
> 40 | 45 (22,4) | 20 (14,4) | 29 (15,3) | 36 (24,0) | 41 (21,2) | 24 (16,3) | ||||
Uso de Inibidor de Protease | 0,26 | 0,71 | 0,04 | |||||||
Sim | 102 (50,7) | 62 (44,6) | 90 (47,4) | 74 (49,3) | 84 (43,5) | 80 (54,4) | ||||
Não | 99 (49,3) | 77 (55,4) | 100 (52,6) | 76 (50,7) | 109 (56,5) | 67 (45,6) |
Fonte: Dados da Pesquisa, 2016. Elaboração própria dos autores.
*Teste Qui-Quadrado †Teste exato de Fisher
DISCUSSÃO
Dos pontos de vista fisiológico e clínico, o colesterol e os triglicerídeos estão entre os lípides biologicamente mais relevantes para a saúde, uma vez que o colesterol é precursor dos hormônios esteróides, dos ácidos biliares e da vitamina D10.
No contexto das PVHIV, a dislipidemia é uma temática que tem sido amplamente discutida, tanto pela sua origem multifatorial e suas implicações cardiovasculares, quanto pelas possíveis estratégias de prevenção14.
A baixa concordância entre o conhecimento dos pacientes sobre ter a dislipidemia, comparado às alterações presentes nos exames laboratoriais, suscita uma reflexão sobre a assistência prestada nos serviços de referência ao atendimento de PVHIV, apontado para possíveis lacunas relacionadas à comunicação no atendimento e tratamento.
A avaliação das alterações lipídicas com as variáveis sociodemográficas sugeriu associação com o sexo e com a idade. Há, na literatura, discussões sobre a influência do sexo e os papeis sociais que cada pessoa assume e quanto contribuem para alterações dos exames clínicos15,16.
O sexo masculino é o mais prevalente entre as PVHIV e, no geral, os que têm menos cuidados com à alimentação e frequentam menos os serviços de saúde14,15. Uma coorte americana que avaliou as comorbidades em PVHIV, demonstrou maior prevalência de dislipidemia em homens17.
Já as mulheres, apesar de serem mais assíduas nos espaços de saúde, estão mais expostas. Essa exposição é causada muitas vezes pela dupla jornada de trabalho, que inclui o cuidado com o marido, filhos, casa e com o trabalho. Além da contribuição hormonal nos diversos ciclos da vida, que influenciam o funcionamento do organismo15,16,18.
Quanto à idade, há evidências que a longevidade favorece a um maior risco de doenças, mesmo em indivíduos com a infecção controlada. Com o avançar da idade, há declínios funcionais dos principais sistemas biológicos8,14,18-20.
Além disso, ocorre uma maior exposição ao HIV, consequentemente a um processo inflamatório crônico e/ou maior tempo de uso de TARV. A longo prazo, verifica-se mudanças nos padrões de comportamento celular e metabolismo dos lipídeos e glicídios6.
Assim, pode ocorrer inflamação arterial, a qual facilita a formação de ateromas causando obstruções. Estas alterações favorecem ao desenvolvimento da aterosclerose e suas implicações, como infarto do miocárdio e doença vascular periférica21.
Ademais, a dislipidemia é particularmente mais frequente nos homens entre 30 e 60 anos e nas mulheres, após a menopausa22.
Os fatos supracitados também podem justificar a associação dos valores alterados dos lipídeos e o tempo de diagnóstico.
Outro pronto relevante na perspectiva das PVHIV, é o uso de alguns medicamentos antirretrovirais específicos, que podem estar relacionados ao aumento do risco para desenvolvimento de doença arterial coronariana (DAC), por agir no metabolismo dos lipídeos e dos glicídeos23.
Os Inibidores de Protease (IP), por exemplo, como ritonavir e lopinavir, são geralmente associados à hipercolesterolemia, hipertrigliceridemia, ao LDL elevado e HDL diminuído4,21. Neste estudo, 48,6% dos participantes faziam uso de algum IP, o que representa um alerta para o risco de dislipidemias. E estão presentes em 48,6% dos esquemas terapêuticos dos participantes deste estudo.
Importante destacar que, apesar dos esforços para descobrir quais agentes antirretrovirais são responsáveis especificamente pelas alterações lipídicas para a DAC, na prática, essa diferenciação ainda é muito difícil, pois existe uma combinação de muitas drogas com uma grande variedade de classes que mudam de acordo com a evolução da indústria farmacológica e que respondem diferentemente em cada paciente23.
Corroborando com dados encontrados na literatura, valores desejáveis dos lipídeos foram visualizados com maiores frequências no que possuíam carga viral indetectável. Resultado que reflete sobre o efeito catalisador da atividade inflamatória, causada pelo HIV, sobre as alterações lipídicas18,24.
Por fim, vale ressaltar que, ainda que os efeitos sob o metabolismo dos lipídeos e glicídios sejam expressivos em PVHIV em uso de TARV, o tratamento medicamentoso não deve ser interrompido, e sua eficácia não pode ser questionada pelas medidas de redução de doenças secundárias1,25.
Destaca-se, ainda, a importância da adesão ao tratamento medicamentoso e a adoção de hábitos de vida mais saudáveis com vistas à prevenção dessas comorbidades.
Nesse contexto, o enfermeiro desempenha papel fundamental na promoção da adesão à TARV e na elaboração de um plano terapêutico não farmacológico, com base da reeducação alimentar, cessação do tabagismo, redução do consumo do álcool, incentivo à prática de atividade física e controle do estresse10,26. Estudos sobre a adesão terapêutica de PVHIV sinalizam para a importância da educação em saúde pelo enfermeiro, bem como o apoio processo de tratamento, o qual poderá implicar na melhora de percepção do paciente sobre seu tratamento e consequente estabilidade clínica26.
Tais ações são estratégias sabidamente reconhecidas por promover um estilo de vida favorável à redução da dislipidemia e consequente risco cardiovascular nessa população, propiciando uma melhor qualidade de vida.
Como limitações do estudo identifica-se as aquelas provenientes do delineamento transversal, o qual não nos permite aplicar a análise de causa e efeito, assim, não é possível identificar em que momento a dislipidemia iniciou, se antes ou depois o tratamento. A utilização de dados secundários para análise dos dados laboratoriais e a amostra por conveniência também foram considerados limitações. No entanto, seguiu-se o protocolo de pesquisa de modo a minimizar possíveis vieses.
CONCLUSÕES
A dislipidemia nas PVHIV apresentou-se, em sua maioria, com valores desejáveis para o colesterol total, colesterol HDL e triglicérides; e houve associação entre os lipídeos e as variáveis sexo, idade, tempo de diagnóstico do HIV, tempo de uso da TARV, carga viral e uso de inibidores de protease.
Diante dos resultados, ressalta-se a importância do diagnóstico precoce e mudanças no estilo de vida que minimizem a adversidade dos efeitos farmacológicos, como a intervenção nutricional com reeducação alimentare o estímulo à prática de exercício físico. Destaca-se ainda o importante papel do enfermeiro ao promover ações preventivas e educativas voltas à melhoria dos hábitos de vida.
Deste modo, este estudo poderá contribuir para um melhor entendimento da epidemiologia das comorbidades metabólicas em pessoas que vivem com HIV e alerta para o surgimento de uma nova prioridade de saúde nesta população.
Logo, faz-se necessário o desenvolvimento de estratégias que busquem gerenciar o risco de alterações metabólicas e cardiovascular de PVHIV com foco na promoção da saúde e prevenção de comorbidades.