INTRODUÇÃO
A doença renal crônica (DRC) tem sido reconhecida como um problema mundial de saúde pública. As doenças do rim e do trato urinário são responsáveis por aproximadamente 850 milhões de mortes anuais em todo mundo e a incidência aumenta em torno de 8% a cada ano 1 .
De acordo com as últimas Diretrizes para Avaliação e Manuseio da Doença Renal Crônica na Prática Clínica, entende-se por DRC as anormalidades funcionais e/ou estruturais dos rins que permaneçam por mais de três meses, com implicações para a saúde do paciente 2 . A taxa de filtração glomerular estimada (TFGe), que é uma adaptação da taxa de filtração glomerular calculada (TFG), é também utilizada para diagnóstico e estadiamento da DRC. Ela pode ser identificada em uma das diversas equações disponíveis utilizando os valores de creatinina sérica.
A Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration (CKD-EPI) é uma das equações recomendadas pelo Ministério da Saúde do Brasil pois apresenta um dos melhores índices para avaliação funcional dos rins, medida em mL/min/1,73m 2 . Os resultados dessa equação classificam a DRC nas seguintes categorias G1 (> 89), G2 (60-89), G3a (45-60), G3b (30-44), G4 (15-29) e G5 (< 15), sendo que o G1 representa função renal ainda preservada e os outros estágios representam a evolução gradativa para perda da função renal. Já o G5 é a fase considerada doença renal crônica terminal 2 .
No Brasil, em recente revisão sistemática de literatura (2017) sobre a prevalência de DRC em pessoas adultas, os autores identificaram que essa taxa ainda é incerta. Registraram que há parâmetros diferenciados para a definição de DRC nos estudos avaliados, bem como qualidade de rigor científico fragilizado nesses mesmos estudos. Ainda assim, existe atualmente o registro de que aproximadamente 3 a 6 milhões de brasileiros tenham a doença renal ou pelo menos algum grau de comprometimento das funções renais, sem o conhecimento prévio desse quadro de saúde 3 . Já na fase terminal da DRC onde são utilizadas terapias renais substitutivas (TRS), a taxa de prevalência de tratamento dialítico, em 2018, no Brasil, foi de 640 pacientes por milhão da população (pmp), sendo que 228 pmp iniciaram tratamento na região sudeste, demonstrando a concentração de casos novos crescente na referida região 4 , 5 .
Embora os critérios para diagnóstico de DRC sejam consagrados pela literatura, o fato da progressão ser assintomática ou oligossintomática contribui para que, na maioria das vezes, o diagnóstico ocorra já no estágio avançado da doença, quando há limitações de ações para a preservação das funções renais. Nas fases iniciais quando há registros de sinais e sintomas, esses são inespecíficos tais como inapetência, náuseas e vômitos, edema e aumento da pressão arterial (PA) e não direcionam de forma direta para o diagnóstico de doença renal. Neste sentido, identificar a função renal diminuída precocemente e fazer o encaminhamento imediato para a equipe multidisciplinar são etapas essenciais no manejo desses pacientes, pois possibilitam a educação pré-diálise e a implementação de medidas preventivas que retardam, ou mesmo interrompem, a progressão para os estágios mais avançados da DRC, diminuindo, consequentemente, os riscos de morbidade e mortalidade iniciais 6 .
Diante de todo o exposto, da "epidemia de DRC", da alta frequência do diagnóstico tardio, entende-se que há necessidade de se investir na busca ativa das pessoas em risco de desenvolver DRC como, por exemplo, pessoas com hipertensão arterial sistêmica (HAS) e com Diabetes Mellitus (DM), doenças de base mais prevalentes para DRC 7 , 8 .
No entanto, os dados brasileiros, sejam eles regionais ou nacionais sobre a prevalência de DRC ainda nas fases iniciais em pacientes com HAS e DM, são escassos e deixam claro uma lacuna nesse sentido, pois, não se tem conhecimento ou mesmo dados oficiais das funções renais dessa população que possui risco de desenvolver a DRC. Assim, o objetivo deste estudo foi identificar a prevalência da TFGe alterada e os fatores associados em usuários do sistema único de saúde com DM e/ou com HAS de alto e muito alto risco para doença cardiovascular.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de estudo transversal e analítico. Foi realizado no período de setembro de 2017 a junho de 2019, no Centro Estadual de Atenção Especializada (CEAE), localizado no Centro-Oeste Mineiro, na cidade de Santo Antônio do Monte, Minas Gerais, Brasil. Esse centro é referência para 13 cidades mineiras. Para o delineamento do estudo, esse trabalho utilizou-se das recomendações do Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology Statement (STROBE) 9 .
A população elegível foi composta por 2305 pessoas usuárias do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), com HAS e/ou DM de alto e muito alto risco para doença cardiovascular (DCV). Todos esses pacientes foram provenientes das unidades básicas de saúde (UBS) das cidades parceiras do CEAE. Quando ainda estavam nas UBS foram cadastrados e classificados, pelos médicos e/ou enfermeiros, como pessoas com Hipertensão Arterial sistêmica (HAS) e/ ou com diabetes Mellitus (DM) conforme as diretrizes do SUS 10 , 11 .Esses cadastros e classificações estão registrados no sistema integrado de saúde (SIS) e no sistema de cadastramento e acompanhamento de Hipertensos e/ou Diabéticos (HIPERDIA), disponíveis para todos os profissionais dos níveis de atenção à saúde.
Quanto ao risco cardiovascular, também nas UBS, as pessoas são classificadas, por médicos e enfermeiros, a partir das recomendações da Secretaria Estadual de Saúde do estado de Minas Gerais/ Brazil (SES/MG/BRAZIL), denominadas "Framingham Revisado" 12 . Essas recomendações categorizam os usuários do SUS em: baixo risco, probabilidade menor que 10% de desenvolver a DCV (escore < 3 - 10); risco médio/moderado e alto risco para DCV, entre 10% e 20% (escore 11- 14) e alto risco e muito alto risco, igual ou maior que 20% (escore >14) 13 . Quando os usuários com HAS e DM são classificados como alto e muito alto risco para DCV, são encaminhados para acompanhamento compartilhado com os CEAE, devido ao maior risco de desenvolver complicações e outras doenças crônicas.
Como critérios de inclusão definiu-se: pessoas usuárias do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), com HAS e/ou DM de alto e muito alto risco para doença cardiovascular (DCV) que apresentaram no prontuário o valor de creatinina sérica, por no mínimo uma vez durante a coleta de dados. E ainda, que tivessem sido atendidos no período de primeiro de julho de 2016 a 31 de julho de 2017. O cálculo amostral foi realizado com base na população elegível para um nível de confiança de 95%, precisão de 5%, proporção de 50% para desfechos múltiplos, valor este que fornece o maior tamanho amostral, para população finita (n=2305). Segundo os critérios de Hulley et al 14 , calculou-se (programa OpenEpi) uma amostra de 331 pessoas. Para o sorteio eletrônico aleatório dos prontuários, realizado por meio do Programa Open Epi, respeitou-se a proporcionalidade de atendimento de cada município, tendo por base o número de pessoas atendidas por cidade. Neste sentido, a coleta de dados ocorreu em fonte secundária nos prontuários dos usuários do CEAE.
Foram coletadas informações sociodemográficas: idade (anos completos e categorizada em menor que 60 anos e ≥ 60 anos), sexo, escolaridade categorizada em (não alfabetizado, ensino fundamental incompleto, ensino fundamental completo e outros), estado civil (com companheiro e sem companheiro) e município de residência.
Quanto às variáveis clínicas, foram coletados dados de diagnóstico HAS e DM; valores da pressão arterial sistólica e diastólica aferidos no dia da consulta no CEAE e categorizadas em alterada e normal conforme referência das Diretrizes para Avaliação e Manuseio da Doença Renal Crônica na Prática Clínica Sociedade Brasileira de Nefrologia 2 ; os resultados do exame de creatinina sérica necessários para o cálculo de TFGe e glicemia de jejum, ambos estavam registrados em mg/dL. Também foi coletado o número de medicações em uso, categorizado em até cinco medicamentos e maior ou igual a cinco medicamentos, sendo esse último identificado como polifarmácia.
Sobre as variáveis relativas aos hábitos de vida, foram coletadas conforme o relato do paciente e a avaliação do profissional de saúde responsável, seguindo o padrão de registros do CEAE. A variável alimentação inadequada foi categorizada de acordo com consumo de açúcar, incluindo alimentos açucarados e consumo de sal, além dos temperos industrializados e embutidos, sendo as respostas classificadas como: consumo muito alto, alto, moderado e não utiliza.
Além disso, o tabagismo e etilismo foram registrados com o auto relato de sim ou não (padrão de registro do CEAE). O sedentarismo foi registrado de acordo com o auto relato da prática de atividade física, sim ou não, considerando qualquer tipo de atividade física, não sendo avaliada a periodicidade dessas atividades e mais uma vez, seguindo o padrão de registro do CEAE.
Quanto ao evento do estudo, registra-se que a variável desfecho TFGe em mL/min/1,73m 2 foi categorizada em alterada (< 60 mL/min/1,73m 2 ) e não alterada (≥ 60 mL/min/1,73m 2 ) a partir dos resultados da creatinina sérica, cálculo da TFGe utilizando a equação CKD-EPI e calculadora online disponível em aplicativo da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) 15 .
Por fim no que diz respeito a adequação do programa público e saúde e atendimento à população, a cobertura populacional pelo programa público de saúde brasileiro na atenção primária denominado Estratégia de Saúde da Família (ESF), foi categorizada como igual a 77,7% (categoria um) e menor que 77,7 % (categoria dois) 16 .
As análises estatísticas foram feitas a partir do software estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 19. Realizou-se o cálculo da prevalência de TFGe alterada e análise descritiva para caracterização da população do estudo. Para identificar os fatores associados ao desfecho (TFGe alterada ou não) realizou-se a análise univariada utilizando o teste de qui-quadrado de Pearson que é adequado para variáveis categóricas.
Para a entrada das variáveis na análise multivariada por Regressão Logística foi utilizado como referência um valor-p menor que 0,20 na análise univariada e o modelo foi obtido por meio do método stepwise backward . No modelo final, permaneceram somente as variáveis com nível de significância igual ou menor do que 5%. Também foi avaliada a estimativa do Odds Ratio (OR) com respectivo Intervalo de Confiança de 95% (IC95%), por meio do referido modelo logístico tanto uni quanto multivariado.
A pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética e pesquisa em seres humanos da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) sob o parecer Número: 2.280.494CAAE:74015317.9.0000.5545.
RESULTADOS
Foram incluídos no estudo prontuários de 331 usuários do SUS com HAS e/ou DM de alto e muito alto risco para DCV. Entre esses, 118 tiveram a TFGe alterada, representando uma prevalência de 35,6%. Dessa população total, a maioria era do sexo feminino (60,7%), com 60 anos ou mais (60,1%), vivendo com o companheiro (65,9%), tinha ensino fundamental incompleto (53,2%), não etilista (68,9%), não tabagista (78,9%), sedentária (60,7%) e com hábitos de alimentação inadequada (66,5%). No que diz respeito à cobertura populacional, aqueles classificados com taxa maior igual a 77,7% apresentaram maior percentil (n=209/63,1%). As variáveis sociodemográficas e hábitos de vida associadas à TFGe alterada ou não de pessoas com DM e/ou HAS de alto e muito alto risco cardiovascular estão demonstradas na Tabela 1 .
TFG | Valor-p* | OR** [IC 95%] | ||
---|---|---|---|---|
| ||||
Não alterada (n=213) | Alterada (n=118) | |||
Sexo | 0,752 | |||
Feminino | 128 (60,1%) | 73 (61,9%) | 1,00 | |
Masculino | 85 (39,9%) | 45 (38,1%) | 1,07 [0,67; 1,70] | |
Idade | <0,001 | |||
Menos de 60 anos | 112 (52,6%) | 20 (16,9%) | 1,00 | |
60 anos ou mais | 101 (47,4%) | 98 (83,1%) | 5,43 [3,13; 9,42] | |
Estado civil | 0,003 | |||
Sem companheiro | 47 (22,1%) | 66 (55,9%) | 1,00 | |
Com companheiro | 152 (71,4%) | 44 (37,3%) | 2,15[1,30 ; 3,56] | |
Escolaridade | <0,001 | |||
Não alfabetizado | 22 (10,3%) | 22 (18,6%) | 1,00 | |
Ensino fundamental incompleto | 106 (49,8%) | 70 (59,3%) | 1,05 [0,43; 5,73] | |
Fundamental completo ou mais | 62 (29,1%) | 13 (11,0%) | 0,45 [0,30; 0,68] | |
Etilismo | 0,004 | |||
Não | 137 (64,3%) | 91 (77,1%) | 1,00 | |
Sim | 57 (26,8%) | 15 (12,7%) | 0,39 [0,21; 0,74] | |
Tabagismo | 0,097 | |||
Não | 161 (75,6%) | 100 (84,7%) | 1,00 | |
Sim | 35 (16,4%) | 12 (10,2%) | 0,55 [0,27; 1,11] | |
Sedentarismo | 0,886 | |||
Não | 50 (23,5%) | 28 (23,7%) | 1,00 | |
Sim | 127 (59,6%) | 74 (62,7%) | 1,04 [0,6; 1,79] | |
Alimentação inadequada | 0,060 | |||
Não | 36 (16,9%) | 30 (25,4%) | 1,00 | |
Sim | 148 (69,5%) | 72 (61,0%) | 0,58 [0,33; 1,02] |
Fonte: Dados da Pesquisa, 2016-2017.
*Teste Qui-quadrado de Pearson **OR = OddsRatio IC95%=Intervalo de Confiança de 95%.
E a mesma associação da TFGe alterada com as variáveis clínicas estão apresentadas na Tabela 2 .
TFG | Valor-p* | OR** [IC 95%] | ||
---|---|---|---|---|
| ||||
Não Alterada (n= 213) | Alterada (n=118) | |||
Grupos | 0,001 | |||
DM | 34 (16,0%) | 4 (3,4%) | 1,00 | |
HAS | 65 (30,5%) | 35 (29,7%) | 5,41 [1,87;15,66] | |
DM e HAS | 114 (53,5%) | 79 (66,9 %) | 1,75 1,10; 2,81] | |
PAS | 0,014 | |||
Normal | 172 (80,8%) | 81 (68,6%) | 1,00 | |
Alterada | 41 (19,2%) | 37 (31,4%) | 1,91 [1,14; 3,21] | |
PAD | 0,190 | |||
Normal | 191 (89,7%) | 100 (84,7%) | 1,00 | |
Alterada | 22 (10,3%) | 18 (15,3%) | 1,56 [0,80; 3,04] | |
Glicemia | 0,736 | |||
Normal | 63 (29,6%) | 37 (31,4%) | 1,00 | |
Alterada | 150 (70,4%) | 81 (68,6%) | 0,91 [0,56; 1,49] | |
Número total de medicamentos | < 0,001 | |||
Até 5 | 113 (53,1%) | 35 (29,7%) | 1,00 | |
Acima de 5 | 100 (46,9%) | 83 (70,3%) | 2,68 [1,66; 4,32] |
Fonte: Dados da Pesquisa, 2016-2017.
*Teste Qui-quadrado de Pearson **OR= OddsRatio IC 95%=Intervalo de Confiança de 95%
A análise multivariada mostrou que a TFGe alterada apresentou associação significativa com a idade, sendo que os idosos na faixa etária ≥ 60 anos apresentaram 5,53 vezes (OR=5,53; IC 3,07 - 9,44) mais chance de ter a TFGe alterada se comparada a faixa etária < que 60 anos. E os pacientes que tomavam acima de cinco medicamentos (polifarmácia) tinham 2,64 vezes [OR= 2,64; IC 1,59 - 4,38] mais chance de ter a TFGe alterada se comparada aqueles pacientes que tomavam até cinco medicamentos.
DISCUSSÃO
O presente estudo evidenciou uma prevalência da TFGe alterada em 35,6% (n=118/331) nos usuários com HAS e/ou DM de alto e muito alto risco para DCV. Associado a esse resultado, identificou-se que não havia quaisquer registros dessa alteração da função renal nos prontuários avaliados, o que revelou o não conhecimento prévio dessa condição de saúde, nem por parte dos usuários do SUS e nem pela equipe assistencial.
A prevalência encontrada de alterações das funções renais é considerada importante sob o ponto de vista clínico e de saúde pública, pois mesmo que de forma isolada, essas alterações são um alerta de acometimento renal que deve ser abordado de forma precoce. Esse tipo de abordagem poderia minimizar os impactos da provável evolução para a instalação efetiva da DRC e para a fase terminal da doença. A fase terminal da DRC implica em possíveis e graves complicações que poderão culminar em outras doenças crônicas não transmissíveis, como a DCV, por exemplo, que é a principal causa de morte de pessoas com DRC.
O diagnóstico precoce e ações preventivas voltadas para a busca ativa e conscientização dos usuários em risco de desenvolver a DRC ou mesmo daqueles já com a doença instalada, poderiam preservar e/ou retardar a evolução da DRC para as fases terminais 7 .
Para se fazer analogia aos resultados encontrados, elencou-se um estudo desenvolvido em Goiânia, no estado de Goiás/Brasil, com 511 indivíduos adultos maiores de 20 anos, que foram atendidos por oito equipes de saúde da família 17 . Nesse trabalho, observou-se 10,6% de prevalência de TFGe<60mL/min/1,73m 2 . Em outra pesquisa, que teve como base populacional a cidade de Tubarão, Santa Catarina, Brasil, em 371 adultos entre 18 a 59 anos 18 , foi encontrada uma prevalência de TFGe alterada de 1,4%. Nota-se em ambas as pesquisas citadas, prevalências menores que as encontradas no estudo em questão.
É possível que essa diferença se justifique em função de dois fatores específicos: primeiro, ao fato das populações daquelas pesquisas serem compostas basicamente por adultos e no estudo atual, a população é predominantemente idosa, destacando aqui o envelhecimento per si como um fator predisponente para a diminuição da TFG 19 , 20 . Segundo, naqueles estudos, não foi critério de inclusão pessoas com HAS e DM de alto e muito alto risco para DCV. Já no estudo atual, a população era acometida por esses quadros de saúde que elevam a chance de desenvolvimento da DRC 21 , 22 .
Quando os fatores associados à TFGe alterada foram avaliados, identificou-se que as pessoas com 60 anos ou mais, tinham 5,53 mais chances de terem a TFGe alterada (OR= 5,53[3,07; 9,44]). Além disso, verificou-se que os usuários que tomavam cinco ou mais medicamentos também tinham 2,64 vezes mais chance de terem a TFGe alterada (OR = 2,64[1,59; 4,38]). A partir desses achados, foi possível identificar que as variáveis idade e polifarmácia foram classificadas pela análise multivariada, como fatores independentes para alteração da TFGe.
Esses resultados vão ao encontro da literatura. Constata-se isso, por relação à idade avançada, pois como já descrito, é consenso que a função renal tende a diminuir com o avançar da idade pelo processo fisiológico do envelhecimento orgânico acompanhado de mudanças estruturais do sistema renal 20 , 21 , 22 . No que diz respeito à polifarmácia propriamente dita, essa mostrou-se predominante (53,1%) e pode ser justificada com a observação de que a população do estudo foi composta por pessoas idosas e com doenças crônicas (HAS e/ou DM) 20 , 22 , 23 . O uso de medicamentos prescritos para idosos aumentou significativamente de 1988 a 2010, assim como o uso de polifarmácia 23 . Nesse sentido, é preciso salientar que muitos fármacos, que anteriormente eram considerados seguros, como os inibidores de bomba de prótons, por vezes também utilizados para amenizar os desconfortos gástricos causados pela polifarmácia, são apontados, atualmente, como fatores de risco para DRC e, por isso, precisam ser cuidadosamente prescritos com vistas a preservar a função renal 23 , 24 .
Outro achado de relevância no atual estudo foi o fato de que o medicamento mais utilizado foi um antiinflamatório não esteroidal (AINE) (56,4%), fármaco comprovadamente nefrotóxico. O uso de AINE pode levar a episódios de lesão renal aguda, principalmente na população idosa e, também, ao desenvolvimento de DRC quando utilizado em longo prazo 25 , 26 . Este achado suscita a reflexão sobre a importância do acompanhamento do usuário hipertenso e/ou diabético com a equipe multiprofissional, envolvendo a atenção primária/secundária para avaliação da função renal e do risco/benefício do uso de medicamentos potencialmente inapropriados para a faixa etária idosa 24 , 25 , 26 , 27 .
Quanto às variáveis sociodemográficas, observou-se uma prevalência maior do sexo feminino (60,7%) e com companheiro (65,9%), corroborando estudos que analisaram o perfil de pacientes com HAS e DM 7 , 28 . Sabe-se que no contexto nacional brasileiro de acesso à saúde, é predominante a presença do sexo feminino na busca da assistência à saúde nos serviços públicos 29 . Estudos alertam que a caracterização do sexo é de fundamental importância na abordagem de pacientes com risco ou com diagnóstico de DRC 29 , 30 . De acordo com esses autores as diferenças entre homens e mulheres relativas à fisiologia renal, fisiopatologia de base da doença, complicações, sinais e sintomas são suficientes para justificar uma abordagem diferenciada.
Embora o sexo seja um forte determinante da perda natural de TFGe em animais e humanos, as mulheres são protegidas contra danos renais relacionados à idade. Os mecanismos subjacentes a essa proteção não são totalmente elucidados e são somente explicados por diferenças nos hormônios sexuais ou na regulação do óxido nítrico (NO) que desempenha um papel essencial na regulação do tônus vascular 29 . Estudo nacional (2018), que teve com objetivo avaliar a associação entre características sociodemográficas e qualidade de vida em pacientes renais crônicos em hemodiálise, identificou que a maior parte dos participantes (57,1%) eram homens, confirmando que a DRC avançada acometeu, com maior freqüência, pessoas do sexo masculino 31 .
No que se refere à escolaridade, os resultados mostraram predominância de níveis baixos, refletidos pelo ensino fundamental incompleto em 176 participantes (53,2%). Considerando o contexto desse estudo e a importância da compreensão das orientações relativas aos cuidados com a saúde, essa questão precisa ser trabalhada. Pois, associada à baixa escolaridade está a faixa etária avançada, na presença da qual, geralmente, se identifica o surgimento de déficits cognitivos naturais do envelhecimento e que também favorecem a limitação da compreensão 32 . Para amenizar as condições limitantes de aprendizado, uma alternativa seria os serviços de saúde e também os pesquisadores em saúde, trabalharem de forma mais efetiva de orientações à saúde com abordagem do Letramento em Saúde (LS). Essa abordagem desenvolve a habilidade do paciente no âmbito da leitura e do numeramento. Isso permite um acesso com mais qualidade ao ambiente de saúde e dessa maneira, viabiliza os benefícios referentes ao autocuidado com sua própria saúde 32 .
Com relação aos fatores de risco modificáveis avaliados, 60,7% se declararam sedentários e 66,5% com alimentação inadequada. Acredita-se que a alta frequência desses hábitos de vida inadequados para saúde possa estar relacionada às taxas aumentadas de sobrepeso (27,5%) e obesidade (47,1%) encontradas (dados não demonstrados em tabelas). A associação entre a aumento da gordura central (relação cintura-quadril) com a redução da TFG foi descrita em estudo com 7.676 holandeses publicado em 2017 33 . Em contrapartida, a obesidade é um fator de risco modificável e, portanto, pode ser alterado ou mesmo evitado com medidas de educação e conscientização acerca da importância de um estilo de vida saudável, com prática de exercícios físicos e alimentação adequada, diminuindo não só os riscos DRC como também os riscos para DCV.
No concernente às variáveis clínicas, a pressão arterial sistêmica mostrou-se dentro de padrões fisiológicos, sendo PAS normal em 76,4% da população estudada e PAD normal em 87,9%. Em outros estudos, com populações semelhantes, a PAS e PAD apresentaram-se alteradas na maioria dos participantes 34 , 35 . A presença da equipe assistencial multidisciplinar, incluindo o cardiologista na assistência a população do estudo atual, pode ter influenciado no grande número de pacientes com pressão arterial sistêmica controlada.
Esse mesmo controle já não pôde ser observado na glicemia de jejum entre os diabéticos, pois a mesma se apresentou alterada na maioria deles (69,8%). Embora não tenha sido identificada, no modelo final, a relação entre níveis glicêmicos e alteração da TFGe, sabe-se que o controle glicêmico rigoroso é fundamental nos pacientes diabéticos, particularmente aqueles com DRC, pois o descontrole desses níveis influência de forma direta a pior evolução da função renal 36 .
Ao resgatar a cobertura populacional em relação à ESF, a maioria foi categorizada como maior ou igual a 77,7%, tida como satisfatória 37 . Os serviços da ESF devem contemplar o cuidado não só para as demandas espontâneas da população, mas também para outras necessidades de saúde não tão evidentes, como por exemplo, o rastreio de doenças de evolução assintomática e a prática de educação em saúde com foco preventivo. Em um estudo realizado na Atenção Primária à Saúde, no município de Fortaleza, CE, com 62 médicos da família, foi demonstrado que a TFG foi mensurada por apenas 8,1% dos médicos para pacientes com DM e 4,8% para pacientes com HAS. Satisfatoriamente, 51,2% referenciariam o paciente com redução leve/moderada da TFG ao nível secundário 38 . Em contrapartida, 25,8% não referenciariam o paciente com DRC avançada ao especialista. Essa é a triste realidade observada nas maiorias dos serviços de saúde de atenção primária no Brasil, seja por falta de planejamento, informação ou até mesmo por falta de especialistas para atender a demanda 3 .
Por fim é importante ressaltar que, embora os resultados desse estudo tenham gerado informações de impacto no que diz respeito da realidade de saúde da atenção primária e secundária de um típico município brasileiro, é preciso registrar algumas limitações. Por se tratar de um estudo transversal não foi possível avaliar a relação causa e efeito, além de ser passível de vieses característicos de estudos transversais. De qualquer modo, apesar dessas limitações, entende-se que esse estudo apresenta potencialidades, pois revelou resultados importantes que merecem reflexão por parte da gestão pública em relação à abordagem preventiva a pacientes em risco de desenvolverem a DRC. É preciso atentar que essa abordagem está aquém do preconizado e que, com a prevenção, é possível reduzir complicações de saúde que não só impactam na qualidade de vida dos pacientes como oneram os custos do Sistema Único de Saúde. Além disso, ressalta-se ainda que, mesmo que os resultados atuais tenham sido referentes a uma população regional, foram revelados achados semelhantes a estudos nacionais e internacionais já publicados.
CONCLUSÕES
Considerando todas as abordagens e análises estatísticas desse relato científico, é conveniente reafirmar que a doença renal crônica é uma grave condição de saúde e que se desenvolve silenciosamente até lesionar de forma definitiva o tecido renal. Mesmo com essa constatação, na atualidade, se verifica que embora doença renal seja apresentada com um crescente nível epidêmico, a busca ativa por pessoas em risco de desenvolvê-la, ainda é ignorada. Nesse estudo, a taxa de prevalência de TFGe alterada foi de 35,6% na população usuária do SUS com Diabetes Mellitus e/ou com Hipertensão Arterial Sistêmica de alto e muito alto risco para doença cardiovascular, sem qualquer registro de conhecimento prévio por parte das pessoas acometidas e da equipe de saúde.
Por outro lado, a idade é reconhecida consensualmente pela literatura como fator de risco para DRC e, neste estudo, houve associação significativa da TFGe alterada e idade avançada. No entanto, os indivíduos em faixas etárias consideradas de risco, não foram avaliadas pelos profissionais que fazem o acompanhamento das doenças crônicas. Além disso, houve associação da TFGe alterada com a polifarmácia. Esse resultado resgata a importância da avaliação criteriosa das medicações prescritas, considerando os riscos de acometimento de órgãos vitais. Diante de todos os achados, esse estudo reforça que para amenizar os reflexos negativos da instalação de doenças insidiosas e graves, é de extrema importância que os profissionais de saúde, bem como os gestores públicos de saúde, se atentem para a efetivação de políticas públicas de saúde voltadas para o foco preventivo e o acompanhamento rigoroso dos usuários considerados potencialmente em risco de desenvolver as referidas doenças.