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Prolegómenos

Print version ISSN 0121-182XOn-line version ISSN 1909-7727

Prolegómenos vol.26 no.52 Bogotá July/Dec. 2023  Epub Dec 15, 2023

https://doi.org/10.18359/prole.6726 

Artículos

Da possibilidade de usucapião de bens de empresas públicas*

On the Possibility of Prescription of Assets Owned by Public Enterprises

De la posibilidad de usucapión de bienes de empresas públicas

Luiz Carlos Goiabeira Rosaa 

Vinícius Cesar Félixb 

Isabela Aparecida Resende Silvac 

a Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Brasil). Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil). Professor da graduação e do Programa de Pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2350-5154. Correio eletrônico: lgoiabeira@yahoo.com.br

b Pós-graduado lato sensu em Direito Empresarial e em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professor no curso de Direito da Faculdade Esamc Uberlândia. Advogado. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6478-8840. Correio eletrônico: vinicius@felixadvocacia.adv.br

c Graduada em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Advogada. ORCID: https://orcid.org/0009-0000-4420-533X. Correio eletrônico: isabela_resende0910@icloud.com


Resumo:

O presente trabalho tem como objetivo analisar a possibilidade de usucapião de bens pertencentes a empresas públicas, como decorrência da efetivação do imperativo constitucional de função social da propriedade. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, partindo-se da efetividade dos direitos fundamentais. Serão examinados o direito à propriedade e o instituto da usucapião, incluindo seus conceitos, limites e relevância para o contexto social. Além disso, serão exploradas as funções e finalidades das empresas públicas e, ao final, buscar-se-á a possibilidade de usucapião com base na atividade praticada pela empresa pública, de forma a que não se configure desobediência à insuscetibilidade de bens públicos prevista pela Constituição Federal.

Palavras-chave: propriedade; função social; usucapião; Administração Pública; empresa pública

Abstract:

This work aims to analyze the possibility of the prescription of assets belonging to public enterprises as a consequence of the effectiveness of the constitutional imperative of the social function of property. The deductive method was used, starting from the effectiveness of fundamental rights. The right to property and the institute of prescription will be examined, including their concepts, limits, and relevance to the social context. Additionally, the functions and purposes of public enterprises will be explored, and in the end, the possibility of prescription based on the activity carried out by the public enterprise will be sought, ensuring compliance with the inalienability of public assets as provided by the Federal Constitution.

Keywords: Property; Social Function; Prescription; Public Administration; Public Enterprise

Resumen:

El presente trabajo tiene como objetivo analizar la posibilidad de usucapión de bienes pertenecientes a empresas públicas, como consecuencia de la efectividad del imperativo constitucional de la función social de la propiedad. Para ello, se utilizó el método deductivo, partiendo de la efectividad de los derechos fundamentales. Se examinarán el derecho de propiedad y el instituto de la usucapión, incluyendo sus conceptos, límites y relevancia para el contexto social. Además, se explorarán las funciones y finalidades de las empresas públicas y, al final, se buscará la posibilidad de usucapión basada en la actividad realizada por la empresa pública, de manera que no se configure desobediencia a la inalienabilidad de bienes públicos prevista por la Constitución Federal.

Palabras clave: propiedad; función social; usucapión; administración pública; empresa pública

Introdução

Muito se discute acerca da (im)possibilidade de se usucapir bens de empresas públicas, tendo em vista que alguns doutrinadores os intitulam como bens públicos e, de acordo com o artigo 183§3° da Constituição Federal, bem como o artigo 102 do Código Civil brasileiro, não podem ser usucapidos.

Essa tese é aceita por alguns tribunais, embora haja muita controvérsia, uma vez que o referido Código dispõe, em seu artigo 98, que somente serão públicos os bens que pertencem a pessoas jurídicas de direito público, ao passo que os bens de empresas públicas, que são pessoas jurídicas de direito privado, devem ser, em regra, tratados como bens particulares.

Por outro lado, há caso em que os bens de empresas públicas não se prestam propriamente para a satisfação do interesse público ou social, ou seja, não cumprem com sua função social. Nesse sentido, surge um aparente conflito entre princípios de direitos fundamentais, tendo em vista a contraposição do princípio da supremacia do interesse público ao da função social da propriedade, ao qual se questiona: seria possível usucapir bens de empresas públicas?

A esse respeito, o presente trabalho tem por finalidade analisar a possibilidade de se configurar usucapião de bens de empresas públicas. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, partindo-se da efetividade dos direitos fundamentais, analisando-se o direito à propriedade e o instituto da usucapião, seus conceitos, limites e relevância para o contexto social, além de investigar as funções e finalidades das empresas públicas.

Ao final, pretende-se determinar a possibilidade de usucapião a depender da atividade praticada pela empresa pública e de forma a que não se configure desobediência à insuscetibilidade de bens públicos prevista pela Constituição Federal.

Efetividade e alcance dos direitos fundamentais

Direitos fundamentais são, basicamente, aqueles de que todo e qualquer cidadão é titular e que se prestam a garantir uma vida digna: são direitos que, segundo Canotilho (2017, p. 408), "cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos", de modo que visam a proteger, preservar e garantir ao indivíduo o mínimo para sua subsistência e dignidade.

Essa concepção, longe de ser perfeita e acabada - posto que, conforme afirma Alexy (2015, p. 39), "toda teoria dos direitos fundamentais realmente existente consegue ser apenas uma aproximação desse ideal" -, dá, no entanto, uma noção aproximada da relevância dos direitos fundamentais no contexto da dignidade humana, cerne de todos os ordenamentos jurídicos democráticos.

Conforme Tepedino (2009, p. 48), ao serem previstos na Constituição como direitos fundamentais, os direitos humanos, consubstanciam-se em uma "alteração valorativa que modifica o próprio conceito de ordem pública, tendo na dignidade da pessoa humana o valor maior, posto no ápice do ordenamento". Destarte, as prerrogativas essenciais para uma vida digna são asseguradas não apenas sob a forma de direitos humanos em relação ao ser humano em si, mas também enquanto direitos fundamentais em relação ao ser humano enquanto cidadão pertencente a uma sociedade regida pela Constituição, que os prevê, e que os positiva a partir do macro princípio da dignidade humana, no caso da Constituição brasileira, previsto no art. 1°, inciso III.

Em outras palavras, os direitos fundamentais têm a dignidade humana como paradigma hermenêutico para sua afirmação e identificação, embora, como observa Sarlet (2010, p. 177) em relação aos direitos fundamentais, o princípio da dignidade humana "cuida-se em verdade, de critério basilar, mas não exclusivo, já que em diversos casos outros referenciais podem ser usados". E nesse sentido, Duque (2014, p. 162) bem assinala que, "quanto maior for o significado concreto de um direito fundamental para a realização da dignidade humana, maior será o peso que lhe deve ser conferido".

Assim, retomando-se a discussão sobre o conceito de direitos fundamentais, Ferrajoli (2008) assim os define:

[...] são "direitos fundamentais" todos aqueles direitos subjetivos que correspondem universalmente a "todos" os seres humanos dotados do status de pessoas, de cidadãos ou de pessoas com capacidade de produzir, entendendo por "direito subjetivo" qualquer expectativa positiva "de prestações", ou negativa (de não sofrer lesões) vinculada ao sujeito por uma norma jurídica; e por status a condição de um sujeito, prevista assim mesmo por uma norma jurídica positiva, como pressuposto da sua idoneidade para ser titular de situações jurídicas e/ou autor dos atos que caracterizem seu exercício. (p. 100)

A importância e densidade dos direitos fundamentais enquanto imperativos de proteção de uma vida digna são inegáveis. Esses direitos são irrenunciáveis por seu titular, ou seja, são invioláveis e inalienáveis, pois também não podem ser violados ou transferidos a terceiros, nem mesmo pelo Estado. Também são imprescritíveis, o que implica que podem ser exigidos a qualquer tempo e momento, não se falando em prescrição.

Não obstante, não basta que os direitos fundamentais estejam positivados no ordenamento jurídico brasileiro; há a necessidade de que estes sejam efetivados e produzam eficácia a seus titulares, a fim de que haja efeitos no mundo prático e real e não somente que sejam disposições escritas em um papel. O objetivo é que esses direitos atinjam o propósito pelo qual foram criados: conforme Canotilho (2017, p. 1170) "a importância das normas de direitos fundamentais deriva do facto de elas, direta ou indiretamente, assegurarem um status jurídico material aos cidadãos".

Portanto, quando se realiza a interpretação e análise da norma, deve-se sempre considerar os direitos fundamentais, de forma a garantir que a norma seja sempre interpretada para priorizar e favorecer os imperativos de dignidade humana do indivíduo. Conforme Canotilho, Mendes, Sarlet et al (2017, p. 303), "a interpretação a ser levada a cabo em cada caso concreto deve tender à máxima efetividade, como rezam as regras da boa hermenêutica", máxima efetividade esta que é bem explicada por Canotilho (2017):

Este princípio, também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais). (p. 1.224)

À vista disso, conclui-se que a interpretação das normas previstas na Constituição Federal, mesmo que elas não estejam explicitamente inseridas no título dos direitos e garantias fundamentais, deve sempre orientar-se no sentido de conferir eficácia e efetividade aos direitos fundamentais. Isso significa que, no momento de sua aplicação ao caso concreto, a decisão deve sempre levar em conta a máxima efetividade dos direitos fundamentais, estejam esses implícitos ou explícitos na norma interpretada. A dignidade humana deve ser o vetor a ser adotado, garantindo que os direitos fundamentais sejam dotados da maior efetividade possível, para que possam viabilizar uma vida digna ao cidadão.

Contudo, admitir-se como absoluta a amplitude dos direitos fundamentais equivaleria a dizer que estes são absolutos, o que o consenso indica não o serem:

Tornou -se voz corrente na nossa família do Direito admitir que os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos. Tornou -se pacífico que os direitos fundamentais podem sofrer limitações, quando enfrentam outros valores de ordem constitucional, inclusive outros direitos fundamentais. [... ] Não há, portanto, em princípio, que falar, entre nós, em direitos absolutos. Tanto outros direitos fundamentais como outros valores com sede constitucional podem limitá-los. (Mendes; Branco, 2017, pp. 133-134)

Com efeito, admitir o caráter absoluto dos direitos fundamentais equivaleria a dizer que todos os direitos fundamentais de todos os cidadãos deveriam ser satisfeitos integralmente, pouco importando as circunstâncias. Em princípio, os direitos fundamentais são entendidos como direitos que são aplicáveis em sua plenitude a qualquer tipo de caso concreto, os quais devem ser observados em quaisquer circunstâncias em sua máxima efetividade. Porém, essa abordagem levanta a problemática de um inevitável confronto entre direitos fundamentais de titulares diferentes: se ambos os direitos são absolutos, como satisfazê-los quando os interesses são conflitantes?

Isso ocorre porque há inúmeras normas previstas no texto constitucional que, se observadas sob uma perspectiva absoluta, podem conflitar entre si ou até mesmo gerar contradições quando aplicadas sem observância de seus limites e restrições. Assim, é necessário definir quais são os limites e o alcance da aplicabilidade das normas e princípios fundamentais aos casos concretos, conforme ensinam Gilmar Mendes e Paulo Branco (2017):

O exercício dos direitos pode dar ensejo, muitas vezes, a uma série de conflitos com outros direitos constitucionalmente protegidos. Daí fazer -se mister a definição do âmbito ou núcleo de proteção, e, se for o caso, a fixação precisa das restrições ou das limitações a esses direitos. (p.173)

Certamente, para que não haja contradições entre os direitos fundamentais no que tange à sua aplicabilidade em cada caso específico, é necessário entender que eles não são absolutos, apesar da necessidade de observá-los na aplicação das normas e da necessidade de se dar a devida eficácia e efetividade as disposições. É necessário reconhecer que os direitos fundamentais podem sofrer restrições, que têm como objetivo especificar as hipóteses de casos concretos em que deverão ser observados e aplicados, o que equivale a uma espécie de relatividade dos direitos fundamentais. É importante ressaltar que não se trata de restringir os direitos em si, mas delimitar a sua aplicabilidade conforme o objeto do direito, a necessidade do sujeito e as circunstâncias do caso concreto, buscando a não colisão entre normas, conforme entendem Mendes e Branco (2017):

Em relação ao âmbito de proteção de determinado direito individual, faz -se mister que se identifique não só o objeto da proteção (o que é efetivamente protegido?), mas também contra que tipo de agressão ou restrição se outorga essa proteção. Não integraria o âmbito de proteção qualquer assertiva relacionada com a possibilidade de limitação ou restrição a determinado direito. (p. 173)

A esse respeito, Canotilho (2017, p. 450) explica haver três modalidades de restrições de direitos fundamentais. A primeira perfaz-se em restrições impostas expressamente pela Constituição, onde o texto constitucional expressamente restringe ou condiciona o direito fundamental. Na própria descrição normativa do direito ou ao longo do corpo da Constituição, prevê-se, inequivocamente, a limitação do respectivo alcance e a intensidade do conteúdo do direito fundamental, o que ocorre, por exemplo, com o direito fundamental à reunião (CF, art. 5°, XVI), onde o aludido inciso é claro ao restringir a liberdade de se reunir a fins pacíficos caso prejudique outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local.

O segundo tipo é a restrição feita por lei, prévia e expressamente autorizada pela Constituição nesse sentido. Tem-se como exemplo o direito fundamental à proteção do consumidor (CF, art. 5°, XXXII), onde respectivo inciso determina que o Estado garantirá tal direito de acordo com a lei infraconstitucional que o regulará.

A terceira modalidade é a restrição decorrente de ponderação de princípios no caso concreto. Nesse caso, busca-se identificar qual princípio é mais adequado à efetivação dos direitos fundamentais no caso concreto, de modo a satisfazer, com a maior amplitude possível, os direitos envolvidos e se produza o mínimo possível de prejuízo. É o que se entende por "limites imanentes" que, conforme o escólio de Canotilho (2017, p. 1.282), são o resultado de uma ponderação de princípios jurídico-constitucionais que conduzem ao afastamento definitivo, num caso concreto, de uma dimensão que, prima facie, caberia no âmbito protetivo de um direito, liberdade ou garantia. Segundo o autor:

Assim, por exemplo, o direito de greve inclui, prima facie, no seu âmbito de proteção, a greve dos trabalhadores dos serviços de saúde, mas, através da ponderação de princípios (bens) jurídico-constitucionais - direito à greve, saúde pública, bem da vida -, pode chegar-se a excluir, como resultado dessa ponderação, a "greve total" que não cuidasse de manter os serviços estritamente indispensáveis à defesa da saúde e da vida.

É o caso da liberdade de expressão (OF, art. 5°, IX), que estabelece que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Por um lado, a CF não restringe nem autoriza expressamente a restrição por lei infraconstitucional. Por outro lado, o excesso no exercício de tal liberdade pode resultar em ofensa à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, garantindo ao ofendido o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (CF, art. 5°, X) (BRASIL, 1988).

No mesmo sentido, entendem Canotilho, Mendes et al. (2018):

No que diz respeito às espécies de limitações, registra-se substancial consenso quanto ao fato de que os direitos fundamentais podem ser restringidos tanto por expressa disposição constitucional como por norma legal promulgada com fundamento na Constituição. Da mesma forma, há quem inclua uma terceira alternativa, vinculada à possibilidade de se estabelecerem restrições a direitos por força de colisões entre direitos fundamentais, mesmo inexistindo limitação expressa ou autorização expressa assegurando a possibilidade de restrição pelo legislador. Embora tal hipótese possa ser subsumida na segunda alternativa, considera-se que a distinção entre os três tipos de limites referidos torna mais visível e acessível o procedimento de controle da atividade restritiva em cada caso. Além disso, verifica-se, como já demonstram as três espécies de limitações referidas, que, em qualquer caso, uma restrição de direito fundamental exige, seja direta, seja indiretamente, um fundamento constitucional. (p. 405)

Nesta última modalidade (colisão de direitos fundamentais), uma situação concreta exige a renúncia ao exercício de um direito fundamental por um dos titulares envolvidos. Canotilho (2017) explica a respeito:

De um modo geral, considera-se existir uma colisão autêntica de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Aqui não estamos perante um cruzamento ou acumulação de direitos (como a concorrência de direitos), mas perante um "choque", um autêntico conflito de direitos. (p. 1270)

Alexy (2015, p. 217) afirma que a colisão poderá ocorrer em sentido estrito ou amplo, sendo que o primeiro acontecerá quando o exercício do direito fundamental de um indivíduo possuir decorrências negativas ao direito fundamental de outro indivíduo. Já no sentido amplo, a colisão acontece quando houver um conflito entre um direito fundamental e bens coletivos protegidos pela Constituição. Já na visão de Canotilho (2017), a colisão poderá ocorrer quando:

Os grupos que, tendo como base a titularidade dos direitos e a natureza dos bens em conflito (direitos, posições, interesses), se podem descortinar, são os seguintes: Grupo 1 - Colisão de direitos entre vários titulares de direitos fundamentais (colisão autêntica); Grupo 2 - Colisão entre direitos fundamentais e bens jurídicos da comunidade e do Estado (colisão não autêntica). (p. 1271)

Para tratar da resolução da colisão entre os direitos fundamentais, é necessário entender que se tratam de normas com alta carga valorativa e conteúdo axiológico. Portanto, essas normas possuem a natureza de princípios e, consequentemente, contêm uma alta flexibilidade interpretativa, diferentemente das regras que são aplicadas somente quando ocorre determinada situação específica prevista por ela, conforme explica Amaral Júnior (1993):

Princípios são pautas genéricas, não aplicáveis à maneira de "tudo ou nada", que estabelecem verdadeiros programas de ação para o legislador e para o intérprete. Já as regras são prescrições específicas que estabelecem pressupostos e consequências determinadas. A regra é formulada para ser aplicada a uma situação especificada, o que significa em outras palavras, que ela é elaborada para um determinado número de atos ou fatos. O princípio é mais geral que a regra porque comporta uma série indeterminada de aplicações. Os princípios permitem avaliações flexíveis, não necessariamente excludentes, enquanto as regras embora admitindo exceções, quando contraditadas provocam a exclusão do dispositivo colidente. (p. 27)

Na visão mais atualizada de Dworkin (2002), mas consagrando este mesmo raciocínio, temos o seguinte:

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (p. 39)

Assim, devido à sua natureza de princípios, a colisão entre direitos fundamentais, conforme defende a maioria dos doutrinadores, será tratada com base na lógica da colisão entre princípios e não seguindo a lógica da colisão entre regras. Isso ocorre porque não se pode simplesmente escolher entre um direito fundamental e outro para que um prevaleça e o outro seja excluído, como acontece na solução dos conflitos entre regras.

O que se aplica ao conflito entre princípios de direitos fundamentais, portanto, segundo Alexy (2015, p. 96), é a ponderação ou precedência, na qual serão avaliados os direitos fundamentais em conflito de acordo com sua valoração, visando não à exclusão de um princípio/direito conflitante, mas a conciliação entre eles de forma a propiciar a aplicação de ambos e garantir o que foi constitucionalmente assegurado para cada um dos sujeitos do caso concreto. A respeito, Silva (2014) define a proporcionalidade como:

[...] uma regra de interpretação e aplicação do direito, [...] empregada especialmente nos casos em que um ato estatal, destinado a promover a realização de um direito fundamental ou de um interesse coletivo, implica a restrição de outro ou outros direitos fundamentais. O objetivo da proporcionalidade [...] é fazer com que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais. (p. 265)

Por intermédio da ponderação decorrente do princípio da proporcionalidade, busca-se analisar a possibilidade de limitar ou reduzir a aplicação de um direito no conflito quando este se demonstre com menos peso diante da situação imposta. Isso não implica em prioridade absoluta de um princípio sobre o outro, mas sim em uma aplicação diferenciada, onde um dos princípios será observado com maior ênfase no caso concreto, enquanto o outro, não excluído, será resguardado, porém aplicado com maior cautela. Acerca disto Farias (2000) afirma que:

[...] a colisão será solucionada levando-se em conta o peso ou importância relativa de cada princípio, a fim de se escolher qual deles no caso concreto prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro. (p. 120)

É válido ressaltar que a ponderação e a proporcionalidade não são exercidas de forma arbitrária pelo magistrado. Este não pode simplesmente escolher qual direito privilegiar com base em seus ideais, mas deve seguir um formato de discurso para determinar qual princípio prevalecerá no caso concreto.

A proporcionalidade, por sua vez, tem três estágios: (i) a adequação, que basicamente é analisar se a medida ou o princípio em questão é adequado para proteger o direito que está tentando ser protegido; (ii) a necessidade, onde se observa se a aplicação de determinado princípio é realmente necessária para proteger o direito em questão; e (iii) a ponderação, que consiste em uma medida de comparação entre os efeitos para aplicação de um princípio e os efeitos para aplicação de outro princípio decorrentes de uma decisão jurídica. O magistrado analisa os resultados que podem ser trazidos pela aplicação de um princípio em relação ao outro e suas consequências para o caso concretos e para os sujeitos de direito.

Destarte, em um caso concreto em que haja conflitos de interesses e, portanto, colisão de direitos fundamentais, há que se perquirir sobre a preponderância dos direitos envolvidos, de modo a garantir, da forma mais justa, a efetividade das condições concretas de dignidade humana dos envolvidos. Isso deve ser feito com ênfase na garantia do que é básico à vida e o mínimo de subsistência para o cidadão, considerando uma perspectiva que antecede a relativa à dignidade da pessoa humana.

Usucapião de bens pertencentes a empresa pública

Conforme já dito, nenhum direito fundamental é absoluto. O mesmo ocorre com o direito à propriedade, o qual encontra limitação expressa pela própria Constituição Federal cujo art. 5°, inciso XXIII, é claro ao preconizar que a propriedade deverá atender à sua função social. Diniz (2010) é elucidativa ao preconizar que:

A Constituição Federal, no art. 5° XXII, garante o direito de propriedade, mas requer, como vimos, que ele seja exercido atendendo a sua função social. Com isso, a função social da propriedade a vincula não só à produtividade do bem, como também aos reclamos da justiça social, visto que deve ser exercida em prol da coletividade. (p. 107)

A função social da propriedade é conceituada pela Lei Maior (Brasil, 1988):

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. [...] § 2° A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. [...] Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Nessa mesma linha, é o art. 1.228 §§ 1° e 2° do Código Civil (Brasil, 2002):

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. § 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

Silva (2014, p. 282) afirma que a norma que dispõe acerca da função social da propriedade possui eficácia plena e imediata, uma vez que se trata sobretudo de um princípio constitucional. Além disso, não se limita a ser apenas um direito fundamental individual, mas também de interesse público, tendo em vista que busca atender os interesses sociais, a fim de dar a propriedade um destino vinculado ao benefício social e coletivo. Tal princípio possui tamanha relevância que está positivado não só no artigo 5° da Constituição, mas também em seus artigos 170, 182 § 2° e 186. Portanto, conforme Didier Júnior (2008):

Trata-se de imposição de um dever positivo, dever de dar ao objeto da propriedade fim específico, que, no caso, corresponde ao interesse coletivo e não ao interesse do próprio dono - embora, nada impeça que possam conviver harmonicamente. (p. 8)

Este princípio restringe o direito de propriedade, pois estabelece que este deve observar uma função social, de acordo com a necessidade e o interesse coletivo de determinada região. Embora o proprietário tenha todos os direitos já descritos, ele também possui ou pode possuir restrições quanto ao uso desses direitos, uma vez que deve utilizar sua propriedade não só em função de interesses próprios e privados, mas da sociedade também. A função social é aplicável a toda propriedade e todos os tipos de bens, portanto, é imperioso mencionar que, conforme Fortini (2004), os bens públicos não estão excluídos do dever de ser úteis a sociedade e de cumprir sua função social:

A Constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação que se distancie do proposito da norma constitucional não encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insustentável conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens públicos de tal senhor. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever inexorável de atender a função social. (p. 117)

Além disso, é relevante frisar que os bens públicos possuem como finalidade o atendimento ao interesse social e coletivo, de forma que, por óbvio, devem cumprir a função social da propriedade, uma vez que esta está indivisivelmente ligada ao caráter de bem público e, caso não a atendam, ignorar-se-á seus próprios propósitos. É evidente que cada bem possui uma finalidade distinta e uma função social diferente para cada caso. Contudo, o que não se deve admitir é que um bem público, cuja finalidade precípua é atender um interesse coletivo, não cumpra qualquer função social e, especialmente quando se trata de propriedade de empresa pública com caráter e finalidade de direito privado, que o explora economicamente. Para Venosa (2010, p. 90), "toda a propriedade, ainda que resguardado o direito do proprietário, deve cumprir uma função social.".

Não se pode dizer que um bem público cumpre a função social meramente por ser público, pois não se trata de ser denominado como tal, mas sim de prestar um serviço real ao interesse coletivo. Mesmo que um bem seja público, se estiver inutilizado e sem exercício de qualquer direito inerente à propriedade, ou sem serventia por qualquer pessoa, este não cumprirá a sua função (Farias; Rosenvald, 2017):

Entrementes, a Constituição Federal não atendeu a essa peculiaridade, olvidando-se de ponderar o direito fundamental difuso à função social com o necessário dimensionamento do bem público, de acordo com a sua conformação no caso concreto. Ou seja: se formalmente público, seria possível a usucapião, satisfeitos os demais requisitos; sendo formal e materialmente público, haveria óbice à usucapião. Essa seria a forma mais adequada de tratar a matéria se lembrarmos que, enquanto o bem privado "tem" função social, o bem público "é" função social. (p. 342)

Ora, se a função social é o limite para o exercício do direito de propriedade e se um bem não a atende, desvirtua-se o mister de atender ao interesse público (Mello, 2015):

Em face do exposto, fácil é ver-se que as prerrogativas inerentes à supremacia do interesse público sobre o interesse privado só podem ser manejadas legitimamente para o alcance de interesses públicos; não para satisfazer apenas interesses ou conveniências tão só do aparelho estatal, e muito menos dos agentes governamentais. (p. 73)

Portanto, um proprietário inerte, que não cuida e não exerce nenhum tipo de direito ou dever sobre seu bem, não está cumprindo o que regulamenta o princípio da função social da propriedade. Isso ocorre porque, ao possuir um bem, há uma obrigação e um direito de explorá-lo, principalmente com o objetivo de promover o interesse social.

Nesse contexto, sobressai-se a usucapião. A palavra "usucapião" deriva do latim usu de usar e cor-peres de tomar. Pode ser definido como o modo de aquisição originária da propriedade pelo exercício da posse por determinado tempo, conforme previsto em lei, desde que também sejam preenchidos outros requisitos legais, os quais variam de acordo com a modalidade da usucapião. Pereira (2004, p. 138) define usucapião como "[...] a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei".

O instituto de usucapião, previsto atualmente no Código Civil e na Constituição Federal, está ligado ao interesse público e à função social da propriedade, de forma a viabilizar o cumprimento destas na medida ao retirar a propriedade do proprietário inerte, ou seja, que não cumpre a função social da propriedade, e transferi-la para quem efetivamente a explora de modo a gerar benefícios sociais:

O fundamento da usucapião está assentado, assim, no princípio da utilidade social, na convivência de se dar segurança e estabilidade à propriedade, bem como de se consolidar as aquisições e facilitar a prova do domínio. (Gonçalves, 2012, p.219)

Não obstante, também está evidentemente ligado ao interesse particular, uma vez que garante a segurança jurídica para o possuidor assim que este consagra os requisitos necessários para usucapir o bem, proporcionando a garantia de usar, gozar e dispor do bem usucapido, de acordo com a tradicional redação do art. 1.228 do Código Civil.

Além de preencher os requisitos básicos (posse mansa, pacífica e ininterrupta pelo lapso temporal correspondente), há de se considerar o tipo de bem que se pretende usucapir. Embora o ordenamento jurídico brasileiro não preveja quais bens específicos podem ser usucapidos, ele lista os bens que não podem ser objetos de usucapião. Nesse ponto, a Constituição Federal proíbe a usucapião de bens públicos, conforme se pode auferir dos artigos 183, § 3° e 191, parágrafo único, bem como conforme já entendeu o Supremo Tribunal Federal, expresso na súmula 3401 e o artigo 102 do Código Civil.

A impossibilidade de se usucapir bens públicos se fundamenta principalmente no princípio da supremacia do interesse público, que prevê que este se sobressai ao interesse particular. Em outras palavras, partindo dessa premissa, considera-se que o bem público possui uma finalidade social que atende aos interesses coletivos da sociedade, tornando assim impossível usucapir um bem público, uma vez que o instituto da usucapião está ligado também ao interesse privado.

Para os defensores desta linha de raciocínio, usucapir um bem público seria retirar uma propriedade que atende aos interesses sociais e coletivos do poder público e transferila para um sujeito de direito privado, que a utilizaria para fins particulares, prevalecendo, sob esse ponto de vista, o interesse privado sobre o público.

Ademais, o indivíduo estaria pleiteando um direito seu (propriedade do bem usucapiendo) em detrimento de outro direito que também é seu (a função coletiva e social que presta o bem):

Esta posição privilegiada encarna os benefícios que a ordem jurídica confere a fim de assegurar conveniente proteção aos interesses públicos instrumentando os órgãos que os representam para um bom, fácil, expedito e resguardado desempenho de sua missão. Traduz-se em privilégios que lhes são atribuídos. Os efeitos desta posição são de diversa ordem e manifestam-se em diferentes campos. (Mello, 2015, p.71)

No entanto, é importante observar que os bens públicos, além de serem bem definidos por lei expressa, também se submetem ao princípio da função social da propriedade. Nesse sentido, embora o termo "pública" possa remeter a uma impressão de caráter de direito público, e em que pese pertencer à Administração Pública Indireta, estando, portanto, sob controle estatal, as empresas públicas são entidade de direito privado que visam ao lucro, ainda que esse objetivo seja sopesado por ações de caráter social:

Empresas públicas são pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da Administração Indireta do Estado, criadas por autorização legal, sob qualquer forma jurídica adequada a sua natureza, para que o Governo exerça atividades gerais de caráter econômico ou, em certas situações, execute a prestação de serviços públicos. (Carvalho Filho, 2002, p. 385)

Destarte, por meio das empresas públicas, o Estado age como uma espécie de empresário ao explorar uma atividade econômica, embora também possa, por meio delas, prestar serviços de utilidade pública "como novas formas de descentralização dos serviços públicos" (Di Pietro, 2018, p. 377). É imperioso discorrer sobre a finalidade das empresas públicas, visto que se tratam de conceitos bastante distintos: a prestação de serviço público essencial e a exploração de atividade econômica. De um lado, há a necessidade de desenvolver uma atividade e utilizar recursos para prestar um serviço público e social. Por outro lado, há a utilização de recursos para a exploração de uma atividade econômica, até mesmo com fins lucrativos, para fins de interesse social.

Apesar de o Estado não ter a função precípua de exercer atividades com fins estritamente econômicos, a Constituição Federal prevê, em seu artigo 173, que excepcionalmente poderá fazê-lo por meio de empresas públicas:

[...] as atividades da alçada dos particulares -vale dizer, atividades econômicas - só podem ser desempenhadas pelo Estado em caráter absolutamente excepcional, isto é, em dois casos: quando isto for necessário por um imperativo da segurança nacional ou quando demandado por relevante interesse público, conforme definidos em lei (art. 173). (Mello, 2015, p. 768)

Já a prestação de serviço público por meio das empresas públicas é uma forma de descentralizar as atividades do Estado e, com isso, garantir que os serviços sejam prestados de forma eficaz e rápida, tendo em vista que os serviços públicos são caracterizados como essenciais para a sociedade e direitos que devem ser observados e fornecidos:

Serviço público é uma atividade pública administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, destinada a pessoas indeterminadas, qualificada legislativamente e executada sob regime de direito público. (Justen Filho, 2008, p. 566)

Fato é que, quando uma empresa pública atua como executora de atividade econômica, Meirelles (2016, p. 469) explica que, ao "explorar atividade econômica, deverá operar sob as normas aplicáveis às empresas privadas, sem privilégios estatais; que, em qualquer hipótese, o regime de seu pessoal é o da legislação do trabalho". E, de fato, não se podem atribuir privilégios e regalias do Estado a uma empresa que exerce atividade econômica, principalmente com fins lucrativos, mesmo que haja algum interesse coletivo, uma vez que essas empresas se submetem ao regime jurídico de empresas privadas, apesar de exercerem atividades comparáveis às pessoas jurídicas de direito privado:

A distinção entre uma coisa e outra é óbvia. Se está em pauta atividade que o Texto Constitucional atribuiu aos particulares e não atribuiu ao Poder Público, admitindo, apenas, que este, excepcionalmente, possa empresá-la quando movido por 'imperativos da segurança nacional' ou acicatado por 'relevante interesse coletivo', como tais 'definidos em lei' (tudo consoante dispõe o art. 173 da Lei Magna), casos em que operará, basicamente, na conformidade do regime de Direito Privado, é evidente que em hipóteses quejandas não se estará perante atividade pública, e, portanto, não se estará perante serviços público. (Mello, 2015, p. 648)

Portanto, observa-se que a responsabilidade da empresa pública que exerce preponderantemente atividades econômicas é subjetiva. Contudo, quando atua como prestadora de eminente serviço público, a responsabilidade é objetiva, isto é, poderá haver responsabilização também do Estado por meio da administração direta. Isso ocorre porque a prestação de serviço público está diretamente relacionada ao papel do Estado na prestação de serviços que este deveria desenvolver, mas que delega à empresa pública (Carvalho Filho, 2010, p. 540):

Se o objeto da atividade for a exploração de atividade econômica em sentido estrito (tipicamente mercantil e empresarial), a norma constitucional não incidirá; em consequência, a responsabilidade será a subjetiva, regulada pela lei civil. Se, ao contrário, executarem serviços públicos típicos, tais entidades passam a ficar sob a égide da responsabilidade objetiva prevista na Constituição. Essa é que nos parece a melhor interpretação para o art. 37, § 6°, da CF, sem embargo de opiniões em contrário.

Pode-se considerar ainda uma empresa pública que exerça ambas as finalidades, a exemplo da Caixa Econômica Federal, que explora atividades econômicas com interesses coletivos, presta serviços públicos e ainda obtém lucro sobre isso. Nestes casos, a responsabilidade será subjetiva ou objetiva, dependendo do caso e da atuação da empresa no caso concreto. Se a empresa estiver envolvida na prestação de serviços públicos, a responsabilidade será objetiva. No entanto, se o caso concreto estiver envolvido na exploração de atividades econômicas, a responsabilidade será subjetiva.

Embora sejam pessoas jurídicas de direito privado e possam ser exploradoras de atividade econômica, as empresas públicas ainda se submetem ao interesse social, uma vez que foram criadas para atingir fins do poder público, e suas atividades devem sempre buscar cumprir esta função. Portanto, diante de situações de conflito entre interesses públicos e privados, o interesse público deverá prevalecer. Nesse contexto, Di Pietro (2018, p. 616) defende que "embora elas tenham personalidade dessa natureza, o regime jurídico é híbrido, porque o direito privado é parcialmente derrogado pelo direito público".

Quanto à natureza de seus bens, há uma grande divergência doutrinária, uma vez que alguns estudiosos defendem que são públicos, por entenderem que as empresas públicas fazem parte da administração pública de forma geral, submetendo-se, portanto, às regras e privilégios do direito público, e também porque consideram que a origem e a natureza desses ainda são públicas:

Quanto aos bens das entidades paraestatais (empresas públicas, sociedades de economia mista, serviços autônomos etc.), entendemos que são, também, bens públicos com destinação especial e administração particular das instituições a que foram transferidos para consecução dos fins estatutários. (Meirelles, 2016, p. 636)

Não obstante, as disposições no ordenamento jurídico brasileiro são claras em afirmar que são considerados bens públicos aqueles de titularidade de pessoas jurídicas de direito público, enquanto os demais são considerados bens particulares. Nesse contexto, embora a empresa pública possa prestar serviços públicos, ela também explora atividades econômicas como uma empresa privada, aufere lucros, executa contratos, empréstimos, financiamentos e até patrocina eventos esportivos e times de futebol. Isso torna inviável a aplicação dos privilégios estatais aos bens da empresa pública, dada a clara preponderância econômica de sua atividade.

Há doutrinadores que entendem que os bens, enquanto estiverem sob a administração pública, são considerados públicos, mas após a transferência de titularidade para as empresas públicas, tornam-se bens privados, tendo em vista o caráter de pessoa jurídica de direito privado que elas possuem, bem como as atividades que exercem, como explana Carvalho Filho (2010):

Os bens que passam a integrar, inicialmente, o patrimônio das empresas públicas e das sociedades de economia mista provêm geralmente da pessoa federativa instituidora. Esses bens, enquanto pertenciam a esta última, tinham a qualificação de bens públicos. Quando, todavia, são transferidos ao patrimônio daquelas entidades, passam a caracterizar-se como bens privados, sujeitos à sua própria administração. Sendo bens privados, não são atribuídas a eles as prerrogativas próprias dos bens públicos, como a imprescritibilidade, a impenhorabilidade, a alienabilidade condicionada etc. (p. 396)

Ainda nesta base de argumentação, Carvalho Filho (2010, p. 864) sustenta que o simples fato de os bens terem origem no Estado não implica necessariamente que, ao ingressarem no patrimônio da empresa pública, ainda possuam a característica de bens públicos. Isso ocorre pois, por mais que as empresas estejam sujeitas à interferência estatal, ainda atuam e possuem características de pessoas jurídicas de direito privado.

De fato, é necessário analisar cada serviço prestado pela empresa pública em cada caso concreto para determinar se o bem em questão deve ser considerado público e, consequentemente, obter os privilégios associados aos bens públicos. Se o regime das empresas públicas é híbrido e se estas são regidas tanto por normas de direito público, quanto por normas de direito privado, é necessário identificar a finalidade da empresa pública relacionada a um determinado bem. No contexto do tema ora debatido, também é importante determinar a finalidade para qual o bem que se pretende usucapir seria destinado.

Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (2015):

A noção de bem público, tal como qualquer outra noção em Direito, só interessa se for correlata a um dado regime jurídico. Assim, todos os bens que estiverem sujeitos ao mesmo regime público deverão ser havidos como bens públicos. Ora bens particulares quando afetados a uma atividade pública (enquanto o estiverem) ficam submissos ao mesmo regime jurídico dos bens de propriedade pública. Logo, têm que estar incluídos no conceito de bem público. (p. 930)

Assim, quando um bem de titularidade da empresa pública se destina ou tem como finalidade a prestação de serviços públicos com fins sociais, estes deverão se submeter ao regime público e, consequentemente, serão considerados bens públicos, com todas as suas características e privilégios, desde que sejam devidamente direcionados para essa finalidade. Conforme Marinela (2013):

Acolhe-se neste trabalho a orientação de que os bens pertencentes às pessoas privadas são bens privados, por outro lado, prestadoras de serviços públicos, em razão de diversas regras do ordenamento jurídico, se eles estiverem diretamente ligados à prestação dos serviços públicos, estarão sujeitos ao regime público; para os demais vale o regime privado. Justificam esse tratamento especial: o princípio da continuidade dos serviços públicos; o fato de os bens serem decorrentes da transferência do ente que as criou; a cláusula de reversão ao ente público que lhes deu origem e a possibilidade de a lei instituidora dar essa especialidade para esses bens (p. 158).

Já no caso do bem ser relacionado à exploração de atividade econômica por empresa pública em que não há a prestação de um serviço público essencial ou se o bem for objeto da exploração de atividade econômica, deverá ser considerado bem privado e, portanto, passível de ser adquirido via usucapião:

Exploradoras de atividade econômica: não tem imunidade tributária; seus bens são privados; respondem subjetivamente (com comprovação de culpa) pelos prejuízos causados; o Estado não é responsável por garantir o pagamento da indenização, não se sujeitam à impetração de mandado de segurança contra atos relacionados à sua atividade-fim e sofrem menor influência do Direito Administrativo. (Mazza, 2013, p. 174)

Portanto, para a análise da possibilidade de se usucapir bens de empresas públicas, é necessário examinar o caso concreto para auferir a relação do bem com o tipo de atividade de exercida pela empresa, seja relacionada à prestação de serviço público ou à exploração de atividade econômica.

Com efeito, na usucapião observa-se não apenas o animus domini do usucapiente, mas também sua capacidade e efetivo intento em fazer com que a propriedade cumpra sua função social. Isso se torna especialmente evidente quando se sobressaem outros direitos fundamentais, tais quais o direito à moradia, quando o usucapiente estabelece seu lar no imóvel usucapiendo, ou o direito à livre iniciativa, quando explora economicamente o bem, como no caso em que o usucapiente estabelece uma horta no imóvel usucapiendo com vistas a comercializar os frutos.

Outrossim, no caso das empresas públicas que exercem atividade econômica e, principalmente, aquelas que auferem lucros por meio do bem que se pretenda usucapir, este não há de ser considerado como público, tendo em vista a clareza do ordenamento jurídico ao disciplinar que apenas são públicos os bens de pessoas jurídicas de direito público, bem como a finalidade para qual se presta os bens. Ora, se este bem não se presta ao serviço público, não há de ser considerado público. Além disso, se as empresas públicas possuem caráter de direito privado e exercem atividade preponderantemente econômica, os bens de seu patrimônio são também privados e, portanto, poderão ser usucapidos.

Na ponderação de princípios, portanto, fica claro que a justiça deve se materializar a quem externa com maior acuidade os preceitos constitucionais. É certo que a livre iniciativa exercida pela empresa pública, enquanto direito fundamental, é limitada pelo imperativo da função social da propriedade (CF, art. 170, III). Por exemplo, não é razoável que o sopesamento dos direitos fundamentais envolvidos inviabilize o direito fundamental à moradia em detrimento da manutenção da propriedade de uma empresa pública regida pelo direito privado, que pratica atividades com fins econômicos e lucrativos e que não destinou o bem a qualquer finalidade social ou meramente econômica por anos, deixando transcorrer a prescrição aquisitiva.

Deve-se ponderar que a empresa pública tem uma natureza jurídica de direito privado justamente porque seu interesse e finalidade específicos não são o bem comum, mas sim o lucro. É justamente por isso que são regidas pelas normas aplicáveis às pessoas jurídicas de direito privado ordinárias. Destarte, se uma pessoa jurídica de direito privado não possui o benefício da insus-cetibilidade de usucapião de seus bens, conforme estabelecem os artigos 183 § 3° e 191 da Constituição Federal, idêntico raciocínio deve ser aplicado às empresas públicas, ainda que, subsidiariamente, haja em algumas de suas atividades uma conotação e uma finalidade sociais.

Além disso, o art. 98 do Código Civil (Brasil, 2002) é claro ao preconizar que "são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem" (grifo nosso). Nesse ponto, é cristalina a ausência de ressalva ou distinção em relação às empresas públicas. Portanto, se as empresas públicas não são consideradas pessoas jurídicas de direito público interno, seus bens são considerados particulares e, portanto, passíveis de usucapião.

Destarte, se o aludido dispositivo legal impõe uma regra sem distinguir as hipóteses a serem observadas, torna-se inexorável considerar que tal imposição se aplica a todas as situações por ele previstas. No caso em tela, se o Código Civil preconiza que não importa a pessoa a que pertençam e não faz distinção ou ressalva às empresas públicas, por conseguinte, elas estão incluídas.

Conforme bem explica Maximiliano (2011):

Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debe-mus: "Onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir." Quando o texto dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do interprete aplicá-lo a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente; não tente distinguir entre as circunstâncias da questão e as outras; cumpra a norma tal qual e, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas. (p. 201)

Ademais, é um princípio geral de direito: a lei não contém palavras inúteis (verba cum effectu sunt accipienda), ao que é apropriado o escólio de Kavanaugh (2016, p. 2.163):

Se possível, cada palavra e todos os fundamentos devem ser efetivos (verba cum effectu sunt accipien-da). Nenhum deve ser ignorado. A nenhum deve ser desnecessariamente dada uma interpretação que faça com que se duplique outro fundamento ou não tenha nenhuma consequência.2 (tradução nossa)

Destarte, se a letra da lei é clara quanto ao propósito a que se presta - máxime quando traz uma construção gramatical inequívoca e indubitável -, não pode o dispositivo ser tido por letra morta. Bem observa nesse sentido Maximiliano (2011):

Verba cum effectu, sunt accipienda: "Não se presumem, na lei, palavras inúteis." Literalmente: "Devem-se compreender as palavras como tendo alguma eficácia." As expressões do Direito interpretam-se de modo que não resultem frases sem significação real, vocábulos supérfluos, ociosos, inúteis. [...] Não se presume a existência de expressões supérfluas; em regra, supõe-se que leis e contratos foram redigidos com atenção e esmero; de sorte que traduzam o objetivo dos seus autores. [... ] Quando, porém, o texto é preciso, claro o sentido e o inverso se não deduz, indiscutivelmente, de outros elementos de hermenêutica, seria um erro postergar expressões, anular palavras ou frases, a fim de tomar um dispositivo aplicável a determinada espécie jurídica: interpretado in quacumque dispositione ne sic facienda, ut verba non sint su-perflua, et sine virtute operandi: "Interpretem-se as disposições de modo que não pareça haver palavras supérfluas e sem força operativa." (grifo do original) (pp. 204-205)

Isto posto, o fato de a empresa pública pertencer à Administração Pública, ainda que indiretamente, não a habilita a desfrutar da insuscetibilidade de seus bens serem passíveis de usucapião. O que deve ser considerado é a finalidade para a qual o bem é destinado e, nesse sentido, caso se trate de bem afetado, isto é, aquele que se destina à prestação de um serviço público, o entendimento dominante é o de que enquanto assumir essa condição, o bem será assemelhado a um bem público.

Vale ressaltar que se refere à prestação de um serviço público, não de um serviço aberto ao público. O bem deve estar destinado a um serviço público típico, exercido sob a égide das normas de Direito Público, conforme observa Figueiredo (2003, pp. 78-79):

Serviço público é toda atividade material fornecida pelo Estado, ou por quem esteja a agir no exercício da função administrativa se houver permissão constitucional e legal para isso, com o fim de implementação de deveres consagrados constitucionalmente relacionados à utilidade pública, que deve ser concretizada, sob regime prevalente de Direito Público. (grifo nosso)

É nesse sentido o entendimento de Filho (2003):

Mas há também bens privados, aplicados à prestação do serviço público. São bens integrantes do patrimônio do próprio concessionário (em princípio). Esses bens se sujeitam a um regime jurídico especial. Não são bens públicos porque não integram o domínio do poder concedente. No entanto, sua afetação à prestação do serviço produz a aplicação do regime jurídico dos bens públicos. Logo, esses bens não são penhoráveis, nem podem ser objeto de desapossamento compulsório por dívidas do concessionário. [...] Todos os bens passam a ter um regime próprio de direito público, ainda que se trate de bens de propriedade original do concessionário. A afetação do bem à satisfação da necessidade coletiva impede a aplicação do regime de direito privado comum. Não é possível, por isso, o concessionário invocar seu domínio para dar ao bem o destino que bem lhe aprouver. Nem poderia pretender usar e fruir do bem como bem entendesse. Portanto e ainda que se configurem bens privados, não é possível cogitar da sua penhorabilidade ou alienabilidade, sem prévia desafetação - a qual se fará por ato formal do poder concedente, depois de verificada a viabilidade da continuidade do serviço público sem sua utilização. (pp. 265-330)

Assim, seguindo essa lógica, o entendimento do Supremo Tribunal Federal é materializado no julgamento do Recurso Extraordinário n° 536.297 (Brasil, 2010), no qual se reconheceu a possibilidade de usucapião de empresa pública - no caso, a Caixa Econômica Federal:

[...] Com relação às empresas públicas e sociedades de economia mista, cuja natureza jurídica é de direito privado, há duas situações distintas, uma vez que essas entidades estatais podem ser prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade econômica. Os bens das empresas públicas ou sociedades de economia mista prestadoras de serviço público e que estejam afetados a essa finalidade são considerados bens públicos. Já os bens das estatais exploradoras de atividade econômica são bens privados, pois, atuando nessa qualidade, sujeitam-se ao regramento previsto no art. 173, da Carta Magna, que determina, em seu § 1°, II, a submissão ao regime jurídico próprio das empresas privadas. Nessa linha de entendimento, esse Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 220.906/DF, declarou a impenhorabilidade de bens da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, tendo em vista que a atividade econômica precípua da ECT está direcionada à prestação de serviço público de caráter essencial à coletividade. Esta, entretanto, não é a hipótese dos autos, na medida em que a Caixa Econômica Federal, quando atua na realização de empréstimos e financiamentos, exerce atividade tipicamente econômica, inclusive, em concorrência com outras instituições financeiras privadas. Por essa razão, insere-se a Caixa Econômica Federal, no caso presente, no regime normal das demais pessoas jurídicas de direito privado, não havendo óbice a que seus bens sejam adquiridos por usucapião, caso presentes os pressupostos constitucionais e legais. [... ] Exatamente em decorrência da preeminência do direito comum - ressalvadas, se for o caso, as cautelas necessárias a garantir a continuidade na prestação do serviço público a elas cometido - é que os bens integrantes do patrimônio das empresas públicas (em que a totalidade do capital é formado por recursos de pessoas de direito público) e, com mais razão, do das sociedades de economia mista (em cujo capital se conjugam recursos públicos e, minoritariamente, recursos particulares), são bens penhoráveis e executáveis.

Assim, seguindo o mesmo entendimento da Corte Maior, o cerne da questão redunda em determinar se o bem pertencente à empresa pública é ou não destinado à prestação de serviço público típico: se é o caso, o bem passa a ser considerado afetado, uma vez que se presta a atender uma finalidade exclusivamente pública e, portanto, não é passível de usucapião. Por outro lado, se o bem que se pretenda usucapir não tiver relação com a prestação de serviço público da empresa ou seja objeto de exploração de atividade econômica, ele não será considerado afetado e, portanto, passível de aquisição meio de usucapião.

Conclusão

Quando se trata de usucapião de empresas públicas, ocorre um conflito de princípios fundamentais. De um lado, estão direitos tais quais a moradia, a propriedade (aqui entendida sob a perspectiva de quem quer adquirila por meio da usucapião) e a função social da propriedade, exercida pelo usucapiente. Do outro lado, temos a supremacia do interesse público, invocada para se justificar a in-suscetibilidade de os bens da empresa pública serem usucapíveis, ao argumento de que tal pessoa jurídica, mesmo sendo de direito privado, é pertencente à Administração Pública, ainda que de forma indireta.

Para enfrentar esta questão, consideramos que a função social por si só impõe uma espécie de limitação ao direito de propriedade, estabelecendo que o imóvel deverá cumprir não apenas o interesse de seu proprietário, mas também da coletividade. Assim, perquiriu-se acerca da ideia de bem afetado e bem particular, partindo do pressuposto de que ambos podem existir e coexistir em uma empresa pública. Concluímos que as empresas públicas podem se apresentar sob duas finalidades distintas, que podem ser exercidas conjuntamente ou não: a prestação de serviços públicos e a exploração de atividades econômicas.

Nesse ponto, constatou-se que, se a empresa pública é prestadora de serviços públicos essenciais e o bem que se pretende usucapir está relacionado exclusivamente a esta finalidade, este será considerado público e, consequentemente, não poderá ser usucapido, pois está sujeito à afetação e, tendo em vista a ponderação dos princípios conflitantes, prevalecerá a supremacia do interesse público. Por outro lado, se a empresa pública explora atividade econômica, principalmente se aufere lucro disso, e o bem usucapiendo está relacionado a essa atividade, ele será considerado privado e poderá ser usucapido.

Nos casos em que a empresa pública exerce ambas as atividades, ou seja, preste serviço público essencial e explora atividade econômica, deverá ser analisado cada caso concreto, para determinar se o bem possui relação única e exclusiva com a prestação de serviços ou também com a exploração de atividade econômica. Se esta última estiver comprovada, o bem será considerado privado e poderá ser usucapido; do contrário, não. Esta conclusão visa resguardar todos os sujeitos de direito, bem como, de maneira justa e juridicamente coerente, garantir a ponderação dos princípios que entram em conflito nestas situações, de forma a garantir a preponderância de um ou de outro, de acordo com as circunstâncias do caso concreto.

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* Artigo de investigação produto do projeto “Usucapião de empresas públicas”, derivado de trabalho de conclusão de curso junto à faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.

1Desde a vigência do código civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.

2No original: If possible, every word and every provision is to be given effect (verba cum effectu sunt accipienda). None should be ignored. None should be needlessly be given an interpretation that causes it to duplicate another provision or to have no consequence.

Cómo citar: Goiabeira Rosa, L. C., Cesar Félix, V., & Resende Silva, I. A. Da possibilidade de usucapião de bens de empresas públicas. Prolegómenos, 26(52), 61-77. https://doi.org/10.18359/prole.6726

Recebido: 26 de Abril de 2023; Aceito: 30 de Junho de 2023; Publicado: 15 de Dezembro de 2023

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