Narrar experiências e histórias é uma habilidade necessária para se comunicar socialmente de forma clara e também para organizar e dar sentido a nossas experiências e memórias. Bruner (1991) defende que a narrativa é a forma mais natural de transmissão da história e da cultura de uma sociedade.
Além disso, a habilidade oral de narrar histórias tem sido correlacionada, em diversos estudos, com o sucesso escolar futuro (Peterson, 1994; Zevenbergen et al., 2003). Barra e McCabe (2013) aponta que as crianças que possuem maior compreensão da linguagem falada e maior vocabulário tendem a conseguir melhores notas escolares ao longo da vida.
As habilidades orais, incluindo a narração de histórias, estão inseridas no contexto sociocultural que a criança vivencia. Assim, embora esteja presente em todas as culturas, trata-se de uma habilidade que sofre alterações tanto em relação à cultura quanto dentro de uma mesma cultura, ao se considerar diferentes comunidades (Barra & McCabe, 2013; Bruner, 1991; Kelly & Bailey, 2012; McCabe & Rollins, 1994; Minami, 1994). Diante disso, faz-se necessária a delimitação de especificidades linguístico-narrativas dentro de cada cultura ou sociedade.
Grande parte dos estudos descritivos (e.g., Khan et al., 2016; Peterson & McCabe, 1994) são realizados com crianças falantes do inglês ou norte-americanas bilíngues, mas com narrativas produzidas em inglês. Barra e McCabe (2013) evidencia a importância de atentar para a cultura e a língua falada pela criança no momento de avaliar sua narrativa e propõe adaptações em metodologias de avaliação para crianças falantes do espanhol. A autora aponta, por exemplo, que a referenciação por meio do uso de pronomes não pode ser igualmente pontuada em narrativas em inglês e em espanhol, visto as diferenças micro-estruturais entre as duas línguas.
Além disso, a maior ou menor exigência de que a criança se mantenha focada no assunto, sem desvios, também varia de cultura em cultura, havendo culturas em que as tergiversações são mais toleradas que em outras. Barra e McCabe (2013) afirma que o falante de línguas latinas costuma inserir mais detalhes e descrições em suas narrativas, dando a impressão de que o assunto não foi mantido (principalmente diante de instrumentos avaliativos de narrativas em inglês).
O campo de estudos sobre o desenvolvimento das habilidades narrativas ainda é pouco explorado no Brasil. Oliveira et al. (2013) realizaram uma revisão de literatura sobre narrativas infantis, entre 2007 e 2011, com o objetivo de "analisar a produção de conhecimento e as investigações que buscam padrões de desenvolvimento da narrativa oral infantil" (p. 208). Os critérios de inclusão/ exclusão da revisão resultaram em nove artigos selecionados para análise, sendo observado que a maioria (oito) abordava aspectos do desenvolvimento atípico da habilidade de narrar, e que somente um utilizou delineamento experimental. As autoras concluíram que havia uma carência de estudos voltados para a intervenção e mapeamento do desenvolvimento típico dessa habilidade.
Spinillo (1993) realizou um dos poucos estudos descritivos das habilidades narrativas em crianças brasileiras com desenvolvimento típico. As 60 crianças participantes (de 4, 6 e 8 anos) foram solicitadas a realizar quatro tarefas de produção de narrativa ficcional: com base em desenhos feitos pela própria criança; com base em sequência de figuras; livremente, sem quaisquer dicas; e ditar uma narrativa ao pesquisador. Para avaliar as narrativas das crianças, Spinillo (1993) utilizou uma classificação que parece ter como base a gramática narrativa: (1) não-história; (2) introdução de cenas e de personagens; (3) estrutura narrativa elementar; (4) estrutura narrativa elementar, com um desfecho súbito; e (5) estrutura narrativa elaborada. Os resultados indicaram três grupos de habilidades narrativas: (1) elementar, (2) intermediária e (3) elaborada. Todas as crianças de 4 anos e 75 % das crianças de 6 se enquadraram no grupo 1, enquanto que o grupo 3 foi preenchido somente por crianças de 8 anos (50 % delas). Houve, ainda, influência da tarefa, com narrativas mais elaboradas para as tarefas sem ajuda de imagens, principalmente para as crianças do grupo intermediário. Diante da discrepância entre os resultados obtidos em relação à tarefa proposta para a criança, a autora enfatizou a importância de atentar, não somente para a forma de avaliação, mas também para a tarefa utilizada (e.g., contar histórias com base em figuras, recontar histórias previamente ouvidas etc.).
No entanto, Spinillo (1993) avaliou somente a estrutura geral da narrativa, sem levar em conta a quantidade de eventos ou detalhes contados pelas crianças, elementos que podem tornar as narrativas mais ricas e complexas. Por ser a única tentativa de normatização dessa habilidade com crianças brasileiras, é possível que os resultados obtidos sejam específicos às tarefas e medidas usadas. De fato, diversos autores apontam a influência do método de avaliação sobre os escores obtidos (e.g., Heilman, Miller & Nockerts, 2010; Westerveld & Gillon, 2010). Esses métodos incluem narrativas produzidas pelas crianças (e.g., Bento & Befi-lopes, 2010; Carvalho et al., 2013) e narrativas recontadas pelas crianças (e.g., Heilman, Miller, Nockerts & Dunaway, 2010; Lever & Senéchal, 2011; Spencer et al., 2014; Van Kleeck et al., 2011; Vandewalle et al., 2012; Westerveld & Gillon, 2010).
Narrar não é uma habilidade monolítica e invariável e as habilidades componentes podem variar, a depender dos objetivos e do contexto. Por exemplo, fazer o relato de uma vivência pessoal pode exigir competências diferentes que recontar uma história. Segundo Heilman, Miller e Nockerts (2010), os estudos que avaliam as habilidades de narrar histórias não apresentam um consenso sobre quais elementos devem ser avaliados, além de não haver um acordo de como essas habilidades deveriam ser investigadas.
De forma geral, estudos sobre narrativa costumam adotar a distinção entre micro e macroestrutura narrativa. A primeira refere-se a aspectos mais locais, como uso de conectivos, pronomes, ordenação adequada das sentenças, uso de elementos anafóricos e catafóricos. Já a segunda contempla aspectos mais globais, como cronologia (início, meio e fim), citação das dimensões temáticas importantes, coerência e clareza (Heilman, Miller & Nockerts, 2010).
Rogoski et al. (2020) realizaram uma revisão das principais metodologias utilizadas nos estudos sobre avaliação de narrativas orais de crianças no período de 1969 a 2010. De acordo com a análise das autoras, a avaliação de narrativas orais de crianças tem sido realizada por meio das seguintes metodologias: (1) Histórias amplamente usadas para esse fim: Frog Where are you? e Frog Goes to dinner (e.g., Mayer, 1969, 1974), (2) Teste padronizado: Bus story test (Renfrew, 1969), (3) Unidades de pausa (e.g., Trabasso & Sperry, 1985), (4) Gramática narrativa (e.g., Van Kleeck et al., 2011), (5) Índice de complexidade da narrativa (Index of Narrative Complexity, INC) (e.g., Petersen et al., 2008), e (6) Esquema de pontuação de narrativa (Narrative Scoring Scheme, NSS) (e.g., Heilman, Miller & Nocherts, 2010).
O presente estudo buscou ampliar a análise de Rogoski et al. (2020) realizando uma revisão da literatura, de 2010 a 2018, sobre as metodologias que têm sido utilizadas para avaliar a narrativa oral de crianças. Além disso, a partir da análise e sistematização dos resultados dessa revisão de literatura, é proposta uma nova forma de categorização dos métodos de avaliação de narrativas orais, que permite resumir a avaliação utilizada e facilita a comparação entre diferentes estudos. Essa categorização é utilizada aqui para descrever os estudos revisados e para sugerir diretrizes que favoreçam a consideração das diversas dimensões da habilidade narrativa, visando avaliações mais eficientes desse repertório.
Método
O presente artigo traz uma revisão metainter-pretativa (Xiao & Watson, 2019) da literatura. Ou seja, a revisão foi realizada a partir de uma questão específica (avaliação de narrativas orais) dentro de uma determinada área do conhecimento que, no caso deste artigo é intrinsecamente interdisciplinar (incluindo linguística, fonoaudiologia, psicologia, educação, dentre outras). Ainda segundo Xiao e Watson (2019), revisões metainterpretativas são voltadas à aplicabilidade e geram, a partir dos dados analisados, novas propostas de categori-zação e/ou descrição de conceitos, conforme a presente proposta.
Com o objetivo de localizar artigos sobre avaliações de narrativas orais infantis, o primeiro passo foi definir as bases de dados a serem utilizadas: Proquest, Scielo e Google Scholar. Essas bases de dados foram escolhidas por serem amplamente utilizadas por pesquisadores de diversas áreas, visto ser o tema interdisciplinar. Ainda, considerou-se suas abrangências e probabilidade de conter material relevante para a revisão. A partir disso, em um segundo momento, foram escolhidas as palavras-chave para realização das buscas, sendo elas "Narrative Skills" AND "children", "oral narrative skills" AND "child", "Narrative assessment", "Avaliação de narrativas orais" AND "crianças".
Na terceira etapa, as buscas foram realizadas. Essa busca resultou em 12.052 itens bibliográficos. Em seguida, os critérios de inclusão estabelecidos foram aplicados. Assim, somente artigos (1) empíricos, (2) publicados em revistas com avaliação por pares, (3) que indicassem, no título ou no resumo, o uso de medidas para avaliar narrativas orais infantis e (4) limitado ao período de 2010 a 2018 foram selecionados. O resultado das análises preliminares com base nos critérios de inclusão chegou a um total de 27 artigos que constituíram o material de análise do presente estudo.1 A figura 1 mostra o fluxograma dos passos descritos acima.
Os 27 artigos selecionados foram lidos na íntegra e analisados com foco nas medidas avaliativas para narrativas utilizadas por cada um deles. Essa análise era feita a partir de um protocolo em que se identificava e descrevia: título do artigo; nome dos autores e ano; área de conhecimento; idioma da narrativa e país de origem; material provocador da narrativa oral das crianças, por exemplo, livros comercialmente disponíveis; tarefa de narração oral; instrumento de medida utilizado; medidas específicas utilizadas; caracterização dos participantes (quantidade, idade) e qualquer outra observação importante sobre os estudos.
As avaliações dos artigos foram realizadas pela primeira e pela segunda autora, em conjunto. Quando se chegava a alguma discordância, esta era discutida com os demais autores, até se chegar a um consenso. A partir disso, os estudos selecionados foram, então, comparados em termos de quais medidas e instrumentos eram utilizados para avaliar as narrativas infantis, suas vantagens e desvantagens.
Resultados e discussão
Dos 27 artigos analisados, a maioria (15) apresentou estudos realizados com crianças falantes da língua inglesa, sendo três deles (Bitetti & Hammer, 2016; Heilman, Miller & Nockerts, 2010; Heilman, Miller, Nockerts & Dunaway, 2010) com algumas crianças bilíngues inglês-espanhol, mas com as narrativas solicitadas e avaliadas em inglês. Três artigos foram feitos com falantes de português (Bento & Befi-Lopes, 2010, português do Brasil; Carvalho et al., 2013, português de Portugal; e Verzolla et al., 2012, português do Brasil); três com falantes de sueco (Holck et al., 2011; Reuterskiold et al., 2011; Reutrskiold et al., 2010); e dois com falantes de espanhol (Castilla-Earls et al., 2015; Peñaloza, 2017). Bonifacci et al. (2018) avaliaram crianças falantes de italiano ou bilíngues, sendo uma das línguas o italiano. As línguas holandesas (Vandewalle et al., 2012), turca (Isitan & Dogan, 2015) e chinesa (Hao et al., 2018) foram encontradas em um artigo cada.
A tabela 1 apresenta os 27 artigos analisados e as categorias de medidas de avaliação narrativa utilizadas em cada um (para as categorias ver a tabela 2). A partir da análise dos artigos na presente revisão, ficou evidente que um tipo de instrumento amplamente usado para avaliação de narrativas é o teste padronizado, presente em sete dos artigos revisados (Cleave et al., 2012; Holck et al., 2011; Lever & Sénéchal, 2011; Spencer et al., 2014; Westerveld & Roberts, 2017; Van Kleeck et al., 2011; Vandewalle et al., 2012). De forma geral, o teste consiste em uma tarefa proposta à criança, com a utilização de material provocador específico (e.g., sequência de imagens a partir da qual as crianças devem montar uma narrativa oral), instruções padronizadas e medidas específicas relativas ao tipo de tarefa solicitada.
Autores (Ano) | Categoria das medidas utilizadas |
---|---|
Bento e Befi-Lopes (2010) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Bitetti e Hammer (2016) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Plano psicológico | |
Riqueza linguística geral | |
Bonifacci et al. (2018) | Estrutura narrativa básica |
Riqueza linguística geral | |
Correção gramatical / proximidade da convenção gramatical | |
Fluência / velocidade | |
Barton-Hulsey et al. (2017) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Plano psicológico | |
Carvalho et al. (2013) | Coesão e coerência narrativa |
Castilla-Earls et al. (2015) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Plano psicológico | |
Cleave et al. (2012) | Estrutura narrativa básica |
Riqueza linguística geral | |
Autonomia | |
Finestack et al. (2012) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Plano psicológico | |
Hao et al. (2018) | Estrutura narrativa básica |
Riqueza linguística geral | |
Correção gramatical / proximidade da convenção gramatical | |
Heilman, Miller e Nockerts (2010) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Plano psicológico | |
Heilman, Miller, Nockerts e Dunaway (2010) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Plano psicológico | |
Holck et al. (2011) | Estrutura narrativa básica |
Riqueza linguística geral | |
Isitan e Dogan (2015) | Estrutura narrativa básica |
Riqueza linguística geral | |
Fluência/velocidade | |
Khan et al. (2016) | Estrutura narrativa básica |
Riqueza linguística geral | |
King et al (2013) | Coesão e coerência narrativa |
Riqueza linguística geral | |
Fluência / velocidade | |
Plano psicológico | |
Lever e Senéchal (2011) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Riqueza linguística geral | |
Pearce et al. (2010) | Coesão e coerência narrativa |
Peñaloza (2017) | Estrutura narrativa básica |
Riqueza linguística geral | |
Reese et al. (2010) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Plano psicológico | |
Reuterskiöld et al. (2010) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Riqueza linguística geral | |
Reuterskiöld et al. (2011) | Estrutura narrativa básica |
Riqueza linguística geral | |
Spencer et al. (2014) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Van Kleeck et al. (2011) | Estrutura narrativa básica |
Riqueza linguística geral | |
Vandewalle et al. (2012) | Estrutura narrativa básica |
Riqueza linguística geral | |
Verzolla et al. (2012) | Estrutura narrativa básica |
Coesão e coerência narrativa | |
Westerveld e Gillon (2010) | Riqueza linguística geral |
Correção gramatical / proximidade da convenção gramatical | |
Westerveld e Roberts (2017) | Estrutura narrativa básica |
Riqueza Linguística geral | |
Correção gramatical / proximidade da convenção gramatical | |
Fluência / velocidade gramatical |
Um dos testes que aparece de maneira mais frequente nos estudos é o Bus story test (Renfrew, 1969). Nele, o aplicador lê para a criança uma história sobre um ônibus que foge de seu motorista (apresentando 12 figuras ao longo de quatro páginas). Após a leitura, é solicitado que a criança reconte a história para o examinador, que avalia a narrativa a partir de medidas de microestrutura (número médio de palavras nas cinco maiores sentenças, número de sentenças com estrutura subordinativa) e macroestrutura (frases ou trechos da história - um total de 32 trechos) (Van Kleeck et al., 2011).
O Bus story test é um teste de medidas padronizadas e foi utilizado em cinco dos estudos selecionados (Barra & McCabe, 2013; Bruner, 1991; Kelly & Bailey, 2012; McCabe & Rollins, 1994; Minami, 1994) Seu uso exige a normatização e validação para cultura/população na qual se pretende utilizá-lo; principalmente considerando que a narrativa oral sofre forte influência do contexto sociocultural. No entanto, não existe uma equivalência brasileira desse tipo de instrumento, nem sequer uma normatização para narrativas orais de falantes do português brasileiro.
Uma medida de macroestrutura da narrativa frequente na literatura analisada são os modelos baseados na Gramática Narrativa, utilizados em quatro dos artigos encontrados pela presente revisão (Hao et al., 2018; Khan et al., 2016; Reuterskiold et al., 2010; Reuterskiold et al., 2011). Além disso, instrumentos formulados para avaliação de narrativa (e.g., o protocolo de pontuação de narrativa -Narrative Schoring Scheme (NSS)-, explicado mais adiante) comumente também se baseiam na gramática narrativa para a análise da macroestrutura. Esta medida se baseia na divisão da história e da sua narrativa pela criança (reconto) em elementos como cenário, evento inicial, objetivo, resposta interna, tentativas e resolução final. Conta-se a frequência desses elementos, considerados essenciais, no reconto da criança, para avaliar sua qualidade e sua correspondência com a narrativa modelo.
Todavia, diante da amplitude e riqueza das obras de literatura infantil (Andruetto, 2012), a Gramática Narrativa é uma medida de avaliação que pode deixar de abarcar todos os elementos presentes em uma narrativa, desconsiderando, por exemplo, elementos que estão apenas ilustrados no livro, mas que também fazem parte do enredo da história. Isso acaba por tornar o reconto da criança subavaliado. Além disso, a depender da narrativa escolhida (por exemplo, narrativas com estrutura de repetição, comumente encontradas em literatura infantil), sua estrutura pode não se encaixar à proposta de análise da gramática narrativa e resultar em avaliações pouco precisas (ver Rogoski et al. 2020, para um exemplo de uso da Gramática Narrativa em diferentes estruturas da literatura infantil).
A Unidades-C (C-units) é o tipo de medida de microestrutura mais usada. Ela foi encontrada em seis dos artigos analisados (e.g., Hao et al., 2018; Isitan & Dogan, 2015; Peñaloza, 2017; Reese et al., 2010; Reuterskiold et al., 2010; Reuterskiold et al., 2011). Ela consiste na análise da narrativa infantil em orações principais e orações subordinadas referentes a cada uma. Ao se utilizar dessa proposta avaliativa, a narrativa da criança é toda transcrita, possibilitando que o texto como um todo seja avaliado, proporcionando uma avaliação da complexidade linguística das crianças avaliadas.
Apesar de seu uso principal para avaliar elementos microestruturais de narrativas, as Unidades-C também são usadas para avaliar a macroestrutura de recontos orais (e.g., quantidade de Unidades-C da história original, lida ou ouvida, citadas pela criança). Nesse caso, a qualidade do reconto estaria relacionada unicamente ao número de Unidades-C citadas pela criança. Isso pode resultar em uma narrativa avaliada por meio de critérios baseados na literalidade e com grande dependência de memorização do texto a ser recontado. Dessa forma, esta medida parece ser mais adequada para avaliar a produção de narrativas (sem utilizar um livro lido previamente como base comparativa de avaliação) e/ou em conjunto com outras metodologias que destaquem os aspectos temáticos do texto ao avaliar o reconto (e.g., a Gramática Narrativa). Foi o que fizeram Reuterskiold et al. (2010) e Reuterskiold et al. (2011), usando a Unidades-C para avaliar o nível de microestrutura da narrativa e a Gramática Narrativa para avaliar a macroestrutura.
Outro instrumento de avaliação que aparece em três estudos (Barton-Hulsey et al., 2017; Bitetti & Hammer, 2016; Finestack et al., 2012) é o Narrative Schoring Scheme (NSS). Heilman, Miller e Nockerts (2010) propuseram uma forma de avaliação baseada em uma análise crítica de três metodologias de avaliação de narrativas infantis: Plot and Theme, de Reilly et al. (2004); adaptação de Applebee's Narrative Maturity Scale (transição de uma metodologia de categorização para uma escala ordinal), de Manhardt e Rescorla (2002), e a Stein's story levels (usada por Pearce et al., 2010). As duas primeiras são metodologias baseadas na Gramática Narrativa, porém, conforme apontado por Heilman, Miller e Nockerts (2010), a Plot and Theme propõe uma avaliação baseada em decisões binárias (presença ou não do elemento da gramática narrativa), enquanto a Applebee's Narrative Maturity Scale é uma medida holística, que pressupõe análises e decisões mais globais ou integrais do avaliador. A metodologia de Stein's story levels consiste em avaliar o reconto classificando-o em um dos níveis de qualidade/complexidade propostos, que variam desde descrições isoladas (como citar personagens e ações) até narrações complexas de interação e mútua influência entre eventos.
De acordo com Heilman, Miller e Nockerts (2010) a Narrative Scoring Scheme (NSS) procurou adotar os pontos positivos da Plot and Theme, da Applebee 's Narrative Maturity Scale e da Stein's story levels. A NSS inclui avaliação de elementos da Gramática Narrativa, a presença de descrições de pensamentos e sentimentos dos personagens, e aspectos de coesão, como o uso apropriado de pronomes, conectivos antecedentes, ordenação apropriada da sentença, ênfase em eventos principais e a transição entre eventos. Heilman, Miller e Nockerts (2010) compararam as quatro metodologias para avaliar o reconto de narrativas orais em crianças, e concluíram que a NSS se mostrou mais sensível, captando melhor as diferentes proficiências narrativas.
Proposta de categorização dos métodos de avaliação de narrativas orais ficcionais
Elementos da avaliação: modelo antecedente, tarefa, material e medidas
A partir da análise e comparação dos estudos analisados, apresentamos uma proposta de categorização das avaliações de narrativas orais. A base da proposta é a constatação de que há quatro dimensões essenciais em que a avaliação de narrativas orais pode variar: (1) Modelo Antecedente: exemplo ou modelo da história que a criança deverá construir ou reconstruir; (2) Tarefa: a atividade de narração solicitada à criança; (3) Material Provocador ou Auxiliar: instrumentos que a criança pode visualizar para auxiliá-la, antes ou durante sua narração; e (4) Medidas de Qualidade Narrativa: as medidas ou codificações utilizadas pelos pesquisadores para avaliar a qualidade das narrativas infantis (ver tabela 2, que apresenta as quatro categorias e, dentro delas os tipos encontrados nesta revisão). Dois estudos podem ser diferentes ou iguais quanto a uma ou mais dessas quatro dimensões. Essa categorização visa facilitar a comunicação e a comparação entre estudos que avaliam narrativas orais. Isso poderá facilitar, por sua vez, a interpretação de resultados diferentes obtidos em estudos e, ainda, servir de base para a replicação.
Conforme pode ser visto na tabela 2 algumas avaliações incluem um modelo antecedente, outras não. Os modelos antecedentes podem ser, por exemplo, uma história lida pelo experimentador ou uma sequência de imagens mostrada à criança. A partir do modelo antecedente, é solicitada a tarefa à criança, que abarca, por exemplo, o reconto ou produção de uma narrativa. Em alguns casos, a criança pode contar com a ajuda de algum material para construir sua narrativa, por exemplo, folhear as imagens de um livro ilustrado. Em outros, o material só está disponível antes de a criança iniciar sua narração.
Medidas de Qualidade Narrativa - Proposta de Classificação
Propomos, ainda, uma subclassificação das Medidas de Qualidade Narrativa que visa organizar e dar maior inteligibilidade à imensa variedade de critérios utilizados para avaliar narrativas orais. Uma análise das habilidades que são sondadas por cada medida nos levou à proposição de sete categorias, que também podem ser vistas na tabela 2: (1) Estrutura narrativa básica: o esqueleto da história, comumente compreendendo o enredo da narrativa; (2) Coesão e coerência narrativa: elementos usados para dar sentido à unidade narrativa; (3) Riqueza linguística geral: diversidade, quantidade e/ou complexidade de elementos linguísticos; (4) Plano psicológico: elementos narrativos que se sobressaem ao enredo ou à estrutura narrativa básica, indicando sentimentos, intenções, características, interações e motivações dos personagens; (5) Correção gramatical / proximidade da convenção gramatical: adequação das estruturas linguísticas; (6) Autonomia: quantidade de ajuda que a criança precisa para construir ou reconstruir sua narrativa (7) Fluência / velocidade: fluidez ou facilidade com que a criança narra a história.
Essa classificação simplifica a caracterização da avaliação usada nos diferentes trabalhos (como pode ser vista na tabela 1) e aponta para as dimensões da narrativa que foram contempladas em cada estudo, permitindo uma rápida comparação entre eles. A partir disso, ao se pensar nos métodos de avaliação de narrativas a partir de categorias mais amplas, propomos que eles podem ser caracterizados segundo a presença maior ou menor dos critérios apresentados na tabela 3.
O primeiro critério é o de aplicabilidade. Algumas metodologias estão ancoradas em um tipo de narrativa específica e não podem ser adaptadas às variadas formas de narrativas orais, enquanto outras são aplicáveis a uma gama mais ou menos ampla de tipos de narrativas, conforme exemplos na tabela 1.
O segundo critério diz respeito à complexidade da metodologia. Metodologias mais complexas utilizam-se de mais de uma Medida de Qualidade Narrativa para avaliar a narrativa da criança. Os testes padronizados e o NSS, por exemplo, utilizam pelo menos três medidas de avaliação cada um, tendo em comum a estrutura narrativa básica e a coesão e coerência narrativas como tipos de Medidas de Qualidade Narrativa, configurando-se como propostas de avaliação mais complexas. No outro extremo estão as metodologias que se utilizam somente de um tipo de Medidas de Qualidade Narrativa, como a Unidades-C e a Gramática Narrativa que abrangem somente os âmbitos da riqueza linguística e da estrutura narrativa básica, respectivamente.
O terceiro critério refere-se ao contínuo analítico-holístico da metodologia. A grande maioria das propostas pode ser categorizada como metodologia analítica, pois trazem somente a pontuação da presença ou não de determinado elemento na narrativa da criança. O NSS, por sua vez, é uma medida holística, pois envolve, além de medidas analíticas, uma análise qualitativa, na qual o avaliador (com boa proficiência narrativa) verifica a qualidade geral da narrativa e a categoriza segundo tal. Ou seja, no NSS a criança não pontua somente pela presença de determinado elemento narrativo, mas também pela sua complexidade, pontuando mais a criança que consegue formular a estrutura narrativa mais complexa.
Ao escolher uma metodologia, portanto, o pesquisador ou clínico pode usar esta categorização e confrontá-la com seus objetivos. Por exemplo, se deseja ver como a criança se sai em diferentes tipos de narrativas, ou tem por meta verificar sua proficiência em narrativas culturalmente próximas versus distantes, deverá evitar métodos de avaliação que dependem do uso de uma narrativa específica. Por outro lado, caso o objetivo seja verificar o desenvolvimento da criança diante de uma norma relativa a crianças da mesma idade, a melhor metodologia provavelmente seria um teste padronizado. Essa possibilidade se traduz no proveito prático da categorização das metodologias. A escolha adequada da metodologia levará o clínico ou pesquisador a realizar uma avaliação mais justa, que não traga prejuízos à criança (e.g., ser subavaliada) e que permita uma indicação mais precisa de suas dificuldades, possibilitando intervenções mais apropriadas.
Considerações finais
A análise dos estudos nesta revisão de literatura permitiu perceber que, apesar de todas as propostas encontradas ainda serem usadas atualmente, a tendência, ao longo dos anos, tem sido a utilização de propostas que se utilizam de medidas aplicáveis a mais de uma história, compostas por instrumentos multidimensionais de avaliação. Avaliações multidimensionais perdem em simplicidade e podem ter uma aplicação mais difícil, porém trata-se de uma forma mais fidedigna e justa de avaliação da criança. Heilman, Miller e Nockerts (2010) demonstraram que diferentes medidas apresentam diferentes sensibilidades às narrativas das crianças. Porém, mesmo após isso, atualmente, medidas pouco sensíveis ainda são utilizadas. Isso acarreta, muitas vezes, em pontuações injustas das crianças, tanto no contexto clínico quanto escolar. O campo de pesquisa sobre narrativas orais poderia avançar ainda mais com a reflexão sobre as medidas mais fidedignas para cada fim.
Assim, a presente análise tornou evidente que, ao pensar em avaliação de narrativas, pode ser útil partir da constatação de que não existe uma boa narrativa por si só, sendo necessário o pesquisador ou clínico ponderar sobre os objetivos da avaliação. A literatura vem apontando (e.g., Heilman, Miller, & Nockerts, 2010; Spinillo, 1993; Westerveld & Gillon, 2010) a importância de observar a forma de avaliar narrativas e a de escolher medidas holísticas devido à complexidade dessa habilidade. Dessa maneira, uma avaliação justa deve atentar para a adequação das quatro dimensões avaliativas. Além disso, deve cuidadosamente escolher as medidas que serão utilizadas, sendo recomendado avaliar duas ou mais dimensões, dentre as sete categorias propostas.