Introdução
A preocupação com a qualidade da assistência nos serviços de saúde é primordial, sendo os impactos positivos de um cuidado organizado e seguro, perceptíveis desde a atuação de Florence Nightingale no século XIX, quando foram observadas diminuições expressivas na mortalidade dos pacientes a partir de uma atuação mais sistematizada1-2. Contudo, o tema da qualidade, que inclui a segurança do paciente, veio à tona de forma mais marcante somente em período recente, no fim do século XX, com a publicação de resultados alarmantes que estimaram entre 44.000 e 98.000 mortes anuais nos Estados Unidos devido a falhas de assistência à saúde2-3.
No Brasil, onde elevados índices de eventos adversos também são observados4, foi publicada, em 2013, a Portaria MS/GM ( Ministério da saúde/ Governo de Minas) n° 529/20135, que instituiu o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). O objetivo geral do Programa é contribuir para a qualificação do cuidado em saúde para que erros sejam evitados nos estabelecimentos de todo o território nacional. Para isso, desde então, os estabelecimentos de saúde devem contar com um Núcleo de Segurança do Paciente para que diferentes eixos, como o estímulo à prática assistencial segura e o envolvimento do cidadão na sua segurança, sejam alcançados. Desse modo, devem ser promovidas e apoiadas implementações de diferentes iniciativas voltadas à segurança do paciente nesses espaços.
Conforme previsto pelo Ministério da Saúde, a adoção dessas iniciativas, nos diferentes estabelecimentos, vem aumentando desde então6. Contudo, o cumprimento dessas normas como uma série de requisitos está longe de corresponder à sua real aplicação e incorporação de preocupação e compromissos constantes com a segurança. Em revisão sistemática que observou a chamada cultura de segurança do paciente em 21 países, com publicações entre 2005 e 2016, foi revelada predominância de culturas organizacionais subdesenvolvidas a fracas7, alertando para a importância de que esse aspecto seja levado em consideração, principalmente em países em desenvolvimento, como o Brasil.
A cultura de segurança é uma característica fundamental presente nas chamadas organizações de alta confiabilidade, onde há uma preocupação constante acerca da segurança dentro do cenário organizacional, mas questionável nas organizações de saúde, reconhecidamente complexas. Comunicações inadequadas, falsa crença relacionada à isenção de erros devido à formação árdua, falta de comprometimento coletivo e aprendizado organizacional, insuficiência de recursos materiais e jornadas excessivas de trabalho entre os profissionais são alguns dos fatores relacionados à complexidade dessas organizações e ao comprometimento da qualidade e segurança dentro desses espaços8.
Por ser produto de valores, atitudes e percepções do comportamento individual de cada profissional e também da equipe, onde todos devem estar comprometidos em oferecer um cuidado seguro, a cultura de segurança é fundamental à efetivação de práticas realmente seguras9. Por isso, sua avaliação é considerada um indicador estrutural básico para promover iniciativas que visam à redução de riscos e a ocorrência de eventos adversos, principalmente em hospitais. Essa avaliação, além de benefícios gerenciais à própria organização, possibilita reflexões e aprendizados para cenários semelhantes, em prol do melhor cuidado ofertado ao paciente10.
Devido à recente implementação de medidas oficiais direcionadas à segurança do paciente no Brasil e, ainda, devido à complexidade inerente às organizações de saúde, é possível que a cultura de segurança esteja fraca nesses espaços. No entanto, além da cultura de segurança nas organizações ser fundamental por interferir no cuidado prestado ao paciente, sua mensuração pode impactar em importantes mudanças de conduta9-11. Desse modo, o objetivo deste estudo é avaliar a cultura de segurança do paciente entre os profissionais de Enfermagem em um hospital filantrópico de Minas Gerais.
Métodos
Trata-se de uma pesquisa observacional do tipo transversal, de caráter descritivo e exploratório.
População do estudo
A população de estudo foi constituída por profissionais de enfermagem, de nível superior e médio (enfermeiros e técnicos de Enfermagem), atuantes em instituição hospitalar filantrópica de um município mineiro. A amostra dos participantes incluídos foi do tipo não probabilístico e ocorreu por conveniência.
Local do estudo
O estudo foi realizado em um hospital geral que presta assistência a diversas especialidades, localizado no município de Juiz de Fora, MG. Este hospital é uma associação civil de fins beneficentes e não lucrativos e possui 290 leitos ativos dedicados ao Sistema Único de Saúde (SUS). É credenciado pelo Ministério da Saúde para atendimento em alta complexidade que teve inicio em 2012 onde passou a ser realizados procedimentos e atendimentos como Cirurgia Bariátrica, Ortopedia e Traumatologia, Oftalmologia, Cirurgia Cardíaca Adulta e Pediátrica e Cardiologia Intervencionista, e também realiza atendimento às gestantes de alto risco provenientes da sua macrorregião no estado. Além disso, é associado ao Centro Nacional de Regulação de Alta Complexidade para atender a crianças e adultos de todo o país para cirurgias cardíacas e procedimentos de Hemodinâmica. Desde de 2012 é reconhecido pela Organização Nacional de Acreditação (ONA) como hospital acreditado, título este que é reavaliado anualmente.
Critérios de elegibilidade, inclusão e exclusão
Foram elegíveis a participar do estudo todos os profissionais de Enfermagem, de ambos os sexos, atuantes em setores onde o funcionamento é ininterrupto na instituição, ou seja, naqueles onde há profissionais atuantes durante as 24 horas do dia. Esses setores correspondem às Unidades de Terapia Intensiva (UTI) adulto e neonatal, enfermarias, Centro Cirúrgico (CC), Centro de Parto Normal (CPN) e Central de Material e Esterilização (CME). Como critérios de inclusão foi estabelecido que os profissionais deveriam ter sido admitidos no setor há mais de dois meses, estivessem em serviço no momento da coleta de dados e apresentassem interesse e disponibilidade de participar após explicitados os objetivos da pesquisa e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Foram excluídos os indivíduos que não retornaram com o questionário no período de coleta de dados.
Instrumentos e medidas
A coleta de dados ocorreu a partir do preenchimento, pelos próprios profissionais incluídos no estudo, de um questionário autoaplicável que contemplou variáveis sociodemográficas - para a caracterização da amostra - e questões voltadas à avaliação da cultura de segurança do paciente.
Para a avaliação da cultura de segurança foi utilizado o instrumento Hospital Survey on Patient Safety Culture (HSOPSC)10. Traduzido como Inquérito Hospitalar sobre Cultura de Segurança do Paciente (HSOPSC), este instrumento foi criado pela Agency for Heathcare Research and Quality (AHRQ), dos Estados Unidos, em 200412 e teve sua adaptação transcultural e validação no Brasil em 201210,13. No instrumento há quarenta e duas questões relacionadas à cultura de segurança do paciente, as quais são agrupadas em doze dimensões, a saber: Trabalho em equipe dentro das unidades; Expectativas do supervisor/chefe e ações promotoras da segurança; Aprendiza- do organizacional - melhoria contínua; Apoio da gestão hospitalar para a segurança do pacien- te; Percepção geral da segurança do paciente; Retorno da informação e comunicação sobre os erros; Abertura da comunicação; Frequência da notificação de eventos de segurança; Trabalho em equipe entre as unidades hospitalares; Adequação de pessoal; Mudanças de turno e transi- ções entre unidades/serviços; Respostas não punitiva aos erros.
A avaliação de cada dimensão é realizada a partir do percentual de respostas positivas, neutras e negativas. Valores percentuais mais altos indicam atitudes positivas em relação à cultura de segurança14.
Procedimento de coleta de dados
A coleta de dados foi realizada após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), tendo ocorrido em setembro de 2019. Pesquisadoras treinadas abordaram os participantes elegíveis na saída dos turnos de trabalho, explicitando os objetivos do estudo, apresentando o TCLE e convidando-os a participar. Aos que aceitaram, foi fornecido o instrumento de coleta, sendo o plantão seguinte a data acordada entre pesquisadora e participante para seu recolhimento. Aos participantes também foi esclarecido que o tempo despendido para a participação, referente ao preenchimento do questionário, seria de aproximadamente quinze minutos.
Análises estatísticas
A análise descritiva da amostra foi feita por meio de frequências para variáveis categóricas e medidas de tendência central para variáveis contínuas. Na análise e interpretação dos dados quanto à cultura de segurança do paciente foram seguidas as orientações da AHRQ14. Para avaliação do percentual de respostas positivas, neutras e negativas dentro de cada dimensão foi observado o quociente entre o número de cada categoria de resposta nos diferentes itens da dimensão e o número total de respostas válidas a esses mesmos itens. Esse percentual permitiu identificar áreas fortes e frágeis.
Foram consideradas dimensões fortalecidas da cultura de segurança do paciente aquelas cujas respostas positivas foram maiores ou igual a 75%. De modo semelhante, dimensões de cultura fragilizada e que necessitam melhoria foram aquelas cujas respostas positivas representaram 50% ou menos das respostas. Foram incluídas como respostas positivas, as dos itens escritos positivamente com respostas positivas (“concordo totalmente” ou “concordo”), ou dos itens escritos negativamente com respostas negativas (“discordo totalmente” ou “discordo”)14.
As análises foram realizadas com o apoio do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) ® versão 17.
Aspectos éticos
A pesquisa foi desenvolvida a partir dos pressupostos da resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, que aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e determina que todo e qualquer projeto de pesquisa que envolva seres humanos, direta ou indiretamente, deve ser submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa.
O anonimato dos participantes está sendo mantido em todas as fases do estudo, assim como a privacidade e o sigilo das informações observadas, de forma a resguardar e preservar seus direitos. Nos questionários preenchidos não foi incluído o nome do participante. Esses questionários, assim como os bancos de dados estruturados para as análises, foram armazenados pelas pesquisadoras em local seguro, com acesso restrito à equipe de pesquisa.
Resultados
Foram elegíveis a participar do estudo 221 profissionais de Enfermagem (enfermeiros e técnicos de Enfermagem) atuantes nos setores: Unidades de Terapia Intensiva (UTI) adulto e neonatal, enfermarias, Centro Cirúrgico (CC), Centro de Parto Normal (CPN) e Central de Material e Esterilização (CME). Dentre esses profissionais, foram excluídos: oito, por trabalharem na unidade há menos de dois meses; oitenta e seis, por não retornarem com o instrumento de coleta preenchido; e nove por recusarem-se a participar, totalizando 118 participantes incluídos no estudo. Na Figura 1 pode ser observado o fluxograma dos participantesincluídos.
Dentre os 118 profissionais incluídos, a maioria era do sexo feminino (82,7%), com idade entre 31 e 40 anos, apresentando em média 35 anos de idade. Quanto à formação, os técnicos de Enfermagem representaram 82,6% dos participantes e os enfermeiros, 17,2%. Esses profissionais relataram ter, em média, 6 anos de profissão, sendo que a maioria trabalha no hospital há menos de cinco anos (55,8%). Trabalham na instituição há menos de um ano, 10,6% dos profissionais incluídos; 23,9% tem tempo de trabalho no local entre 6 e 10 anos e 9,7% há mais de 11 e menos de 20 anos.
A maioria dos profissionais incluídos tem jornada de trabalho semanal na instituição maior ou igual a quarenta horas (75,2%) e exerce contato direto com os pacientes na sua área de atuação (94,0%). Houve uma distribuição homogênea dos participantes quanto ao setor de atividade e turno de trabalho, conforme pode ser observado na Tabela 1, juntamente com as demais variáveis sociodemográficas.
N | (%) | ||
---|---|---|---|
Gênero | |||
Feminino | 96/116 | 82,7 | |
Masculino | 20/116 | 17,3 | |
Não informado | 2/118 | 1,7 | |
Idade (anos) | 35 (mediana) | 29 - 41,5 (IIQ) | |
20 - 30 | 36/113 | 31,9 | |
31 - 40 | 46/113 | 40,7 | |
41 - 50 | 25/113 | 22,1 | |
≥ 51 | 6/113 | 5,3 | |
Não informado | 5/118 | 4,2 | |
Grau de Instrução | |||
Ensino médio completo | 75/114 | 65,8 | |
Ensino superior incompleto | 11/114 | 9,6 | |
Ensino superior completo | 10/114 | 8,8 | |
Pós -graduação (especialização) | 17/114 | 14,9 | |
Pós -graduação (mestrado ou doutorado) | 1/114 | 0,9 | |
Não informado | 4/118 | 3,4 | |
Setores | |||
Diversas unidades/Nenhuma específica | 12/118 | 10,2 | |
Clínica (enfermaria) | 35/118 | 29,7 | |
Cirurgia (CC; CME) | 14/118 | 11,9 | |
Obstetrícia | 14/118 | 11,9 | |
Emergência | 2/118 | 1,7 | |
UTI (qualquer tipo) | 41/118 | 34,7 | |
Turno de trabalho | |||
Diurno | 66/116 | 56,9 | |
Noturno | 50/116 | 43,1 | |
Não informado | 2/118 | 1,7 | |
Cargo/Função | |||
Enfermeiro | 20/116 | 17,2 | |
Técnico de Enfermagem | 96/116 | 82,8 | |
Auxiliar de Enfermagem | - | - | |
Não informado | 2/118 | 1,7 | |
Tempo de profissão (anos) | 6 (mediana) | 3 - 10 (IIQ) | |
< 1 ano | 2/106 | 1,9 | |
1 - 5 | 50/106 | 47,2 | |
6 - 10 | 34/106 | 32,1 | |
11 - 20 | 16/106 | 15,1 | |
≥ 21 | 4/106 | 3,8 | |
Não informado | 12/118 | 10,2 | |
Tempo de trabalho no hospital (anos) | |||
< 1 ano | 12/113 | 10,6 | |
1 - 5 | 63/113 | 55,8 | |
6 - 10 | 27/113 | 23,9 | |
11 - 20 | 11/113 | 9,7 | |
≥ 21 | - | - | |
Não informado | 5/118 | 4,2 | |
Tempo de trabalho na unidade (anos) | |||
< 1 ano | 21/114 | 18,4 | |
1 - 5 | 65/114 | 57,0 | |
6 - 10 | 20/114 | 17,5 | |
11 - 20 | 7/114 | 6,2 | |
≥ 21 | 1/114 | 0,9 | |
Não informado | 4/118 | 3,4 | |
Tempo de trabalho semanal no hospital (horas) | |||
< 20 | 4/113 | 3,6 | |
20 - 39 | 18/113 | 15,9 | |
40 - 59 | 85/113 | 75,2 | |
≥ 60 | 6/113 | 5,3 | |
Não informado | 5/118 | 4,2 | |
Exerce contato direto com os pacientes | |||
Sim | 109/116 | 94,0 | |
Não | 7/116 | 6,0 | |
Não informado | 2/118 | 1,7 |
Legenda: IIQ (Intervalo Interquartil); CC (Centro Cirúrgico); CME (Central de Material e Esterilização); UTI (Unidade de Terapia Intensiva)
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados compilados no estudo
Na observação das respostas positivas, neutras e negativas, dadas pelos participantes, não foi identificada nenhuma dimensão da cultura de segurança fortalecida. Apesar disso, as dimensões quanto à “expectativa do supervisor e ações promotoras da segurança”,“frequência de notificação de eventos de segurança”, “trabalho em equipe dentro das unidades”, “aprendizado organizacional - melhoria contínua” e “apoio da gestão hospitalar para a segurança do paciente”, foram as que mais se aproximaram de uma cultura mais forte, com índices de respostas positivas acima de 65%, como observado na Figura 2.
Ao contrário, foram consideradas áreas frágeis e que requerem melhoria por terem respostas positivas menores que 50%: a “abertura à comunicação”, o “trabalho em equipe entre as unidades hospitalares”, a “adequação de pessoal”, as “mudanças de turno e transição entre as unidades”, e as “respostas não punitivas aos erros”.
Legenda:
D1 (Trabalho em equipe dentro das unidades); D2 (Expectativas do supervisor/chefe e ações promotoras da segurança); D3 (Aprendizado organizacional); D4 (Apoio da gestão hospitalar para a segurança do paciente); D5 (Percepção geral de segurança); D6 (Retorno da informação e comunicação sobre os erros); D7 (Abertura da comunicação); D8 (Frequência da notificação de eventos de segurança); D9 (Trabalho em equipe entre as unidades hospitalares); D10 (Adequação de pessoal); D11 (Mudanças de turno e transições entre unidades/- serviços); D12 (Respostas não punitivas aos erros)
Ao serem categorizadas as respostas para avaliação das dimensões de cultura de segurança por turno de trabalho, foram observadas diferenças maiores entre os turnos diurno e noturno para: “aprendizado organizacional - melhoria contínua”, “retorno da informação e comunicação sobre os erros”, “frequência da notificação de eventos de segurança” e “adequação de pessoal”.
Ao ser observada isoladamente no período diurno a “frequência da notificação de eventos de segurança”, essa pode ser considerada uma área fortalecida da cultura de segurança (77,2%). No entanto, essa área alcançou somente 60,7% das respostas positivas dentre os profissionais do período noturno. O “aprendizado organizacional - melhoria contínua”, apesar de não ser uma área fortalecida - mesmo no período diurno, teve mais respostas favoráveis nesse turno que no noturno (72,0% no diurno vs. 60,4% no noturno). Quanto ao “retorno da informação e comunicação sobre os erros”, também houve diferença expressiva entre os dois turnos, sen- do essa uma dimensão considerada frágil no período noturno (63,1% no diurno vs. 48,0% no noturno). A “adequação de pessoal” foi frágil em ambos os períodos analisados, no entanto mostrou-se ainda mais fragilizada durante o dia (36,3% no diurno vs. 47,7% no noturno). As comparações das demais dimensões por turno de trabalho podem ser observadas na Tabela 2.
Positiva | Diurno Neutra | Negativa | Positiva | Noturno Neutra | Negativa | |
---|---|---|---|---|---|---|
Trabalho em equipe dentro das unidades (%) | 70,1 183/261 | 20,3 53/261 | 9,6 25/261 | 64,8 129/199 | 19,1 38/199 | 16,1 32/199 |
Expectativas do supervisor/chefe e ações promotoras de segurança (%) | 71,8 188/262 | 19,1 50/262 | 9,2 24/262 | 68,5 137/200 | 24,5 49/200 | 7,0 14/200 |
Aprendizado organizacional (%) | 72,0 139/193 | 20,7 40/193 | 7,3 14/193 | 60,4 90/149 | 24,8 37/149 | 14,8 22/149 |
Apoio da gestão hospitalar para a segurança do paciente (%) | 67,2 129/192 | 21,9 42/192 | 10,9 21/192 | 63,3 93/147 | 19,0 28/147 | 17,7 26/147 |
Percepção geral de segurança (%) | 52,7 138/262 | 26,7 70/262 | 20,6 54/262 | 54,0 107/198 | 27,3 54/198 | 18,7 37/198 |
Retorno da informação e comunicação sobre os erros (%) | 63,1 125/198 | 25,3 50/198 | 11,6 23/198 | 48,0 71/148 | 25,7 38/148 | 26,4 39/148 |
Abertura da comunicação (%) | 43,4 86/198 | 36,4 72/198 | 20,2 40/198 | 44,0 66/150 | 32,0 48/150 | 24,0 36/150 |
Frequência da notificação de eventos de segurança (%) | 77,2 152/197 | 11,7 23/197 | 11,2 22/197 | 60,7 91/150 | 15,3 23/150 | 24,0 36/150 |
Trabalho em equipe entre as unidades hospitalares (%) | 47,2 120/254 | 34,6 88/254 | 18,1 46/254 | 40,0 78/195 | 35,9 70/195 | 24,1 47195 |
Adequação de pessoal (%) | 36,3 94/259 | 29,0 75/259 | 34,7 90/259 | 47,7 94/197 | 22,3 44/197 | 29,9 59/197 |
Mudanças de turno e transições entre unidades/serviços (%) | 41,2 105/255 | 32,2 82/255 | 26,7 68/255 | 44,7 88/197 | 28,4 56/197 | 26,9 53/197 |
Respostas não punitivas aos erros (%) | 24,5 47/192 | 27,1 52/192 | 48,4 93/192 | 17,3 26/150 | 29,3 44/150 | 53,3 80/150 |
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados compilados no estudo
Discussão
O objetivo deste trabalho foi observar a cultura de segurança do paciente em um hospital filantrópico brasileiro. Essa medida vem recebendo interesse crescente tanto de pesquisadores quanto de profissionais de saúde por fornecer apontamentos sobre as áreas mais fortes e frágeis dentro de uma organização e que, portanto, requerem maior atenção.26 Neste trabalho, a distribuição homogênea em diferentes setores e turnos de trabalho dos participantes incluídos pode ser considerada como representativa dos profissionais de Enfermagem da instituição, permitindo confiabilidade aos achados. Sem deixar de levar em conta a peculiaridade contextual da organização estudada, os resultados deste trabalho podem se assemelhar a diferentes cenários, possibilitando reflexões e aprendizados.
Pesquisas evidenciam que mesmo países desenvolvidos, como os Estados Unidos, apresentam falhas na cultura de segurança. Porém, constata-se que em países em desenvolvimento, como o Brasil, essas falhas podem ser ainda maiores. Em países como o nosso, as condições para uma segurança adequada podem ser menores por serem mais comuns certas precariedades nos serviços como, a escassez de equipamentos e recursos humanos, a sobrecarga de trabalho, a falta de motivação pelos profissionais relacionada à sua baixa valorização, e a elevada hierarquização entre as diferentes profissões17.
Dentre as diferentes dimensões de cultura de segurança observadas nesse estudo, nenhuma foi considerada fortalecida, o que pode relacionar-se ao fato de a segurança do paciente ser uma temática que vem sendo abordada de maneira mais explícita em período ainda recente em nosso país. Resultados como esse também foram observados em outros estudos. O conjunto de pesquisas incluídas em revisão sistemática que abordou a cultura de segurança revelou que as culturas organizacionais hospitalares são predominantemente fracas em relação à segurança do paciente11, sendo necessário seu fortalecimento em diferentes aspectos.
A aplicação do instrumento HSOPSC permitiu observar o ponto de vista dos profissionais quanto às diferentes dimensões relacionadas à cultura de segurança do paciente, tendo sido identificadas como áreas frágeis e que, portanto, necessitam de intervenções: a “mudança de turno e transição entre as unidades”, a “abertura da comunicação”, o “trabalho em equipe entre as unidades hospitalares”, a “adequação de pessoal”, e a “resposta não punitiva ao erro”. O instrumento utilizado, HSOPSC, traduzido em diferentes idiomas e adaptado transculturalmente em diferentes localidades, possibilitou, ainda, diferentes comparações dos resultados deste trabalho com outras pesquisas7. Em um estudo realizado em um Hospital Universitário do Rio de Janeiro foi encontrado resultado semelhante no que diz respeito à dimensão“mudança de turno e transição entre as unidades” 17. Segundo os autores do estudo17, a fragilidade dessa dimensão pode comprometer a assistência por refletir as perdas de informações e a fragmentação do cuidado, algo que envolve um alto risco de incidentes e que deve ser superado para que haja uma assistência segura.
Essa dimensão está muito relacionada a outra, a“abertura da comunicação”, também identificada como frágil no nosso estudo e em outro estudo nacional17. O fato de o profissional não ter liberdade com seu superior para discutir algumas questões e não ser ouvido pode ter grande influência nesse aspecto. Por isso, é de grande importância salientar a necessidade de gestores e demais líderes criarem um canal de comunicação efetivo com os profissionais prestadores do cuidado direto ao paciente, reconhecendo as limitações e desafios cotidianos enfrentados pelos profissionais da linha de frente e também sua capacidade de contribuir frente às suas vivências e experiências.
Também relacionada à comunicação e transição do cuidado, o “trabalho em equipe entre as unidades hospitalares” foi outra dimensão identificada como fragilizada. Essa dimensão envolve a percepção dos colaboradores sobre a coordenação e cooperação entre as unidades hospitalares, com vistas a oferecer o melhor atendimento possível ao paciente. Todavia, a individualidade entre setores ainda é uma realidade e um grande desafio a ser abordado7. O pensamento voltado ao cuidado individual, e não ao coletivo e integral, cria um distanciamento e barreiras entre os setores e serviços, prejudicando o cuidado.
Em relação à “adequação de pessoal”, este estudo reforçou a necessidade de adequação do quantitativo de profissionais, uma realidade observada em diferentes cenários. Em revisão sistemática que incluiu trinta e três estudos conduzidos em diferentes países - a maioria desenvolvidos - foi identificado que a maior parte dos trabalhos apontou a “adequação de pessoal” como uma dimensão fragilizada7, revelando que o dimensionamento adequado da equipe de Enfermagem constitui um desafio mundial, presente não somente em países em desenvolvimento. No nosso estudo o número inadequado de profissionais foi ainda mais evidente no período diurno (com apenas 36,3% das respostas positivas vs. 47,4% do período noturno). Durante o dia, a sobrecarga de trabalho pode ser ainda maior devido a outros tipos de demandas de trabalho além da prestação direta do cuidado ao paciente.
Diferentes estudos internacionais têm evidenciado o impacto das características da equipe de Enfermagem - número de pessoal e composição da equipe - na qualidade da assistência prestada19, sendo observadas influências dessas características na segurança e mortalidade dos pacientes. Griffits et al. (2019)20 conduziram um estudo observacional retrospectivo em um grande hospital localizado no sul da Inglaterra entre os anos de 2012 e 2015 e verificaram resultados relevantes, como o risco aumentado de morte em 3% para cada dia de internação quando o número de enfermeiros graduados estava abaixo da média esperada para a enfermaria. Diante disso, e como alternativa ao número deficiente de profissionais, cabe ao gestor da instituição dar mais autonomia ao enfermeiro compor-se de habilidades gerenciais que permitam elaborar a previsão e provisão dos recursos humanos de Enfermagem com atenção às atividades legalmente previstas21.
A dimensão que se refere à “resposta não punitiva ao erro” também foi observada como fraca. Esse mesmo resultado também foi identificado em 70% dos estudos incluídos na revisão sistemática sobre a cultura de segurança7, salientando o quanto a cultura de culpa está arraigada nas organizações. De certa forma, o erro ainda está associado à culpa, ao ambiente de trabalho punitivo e a uma cultura de pensar que os erros provocados pelo cuidador são resultado de descuido. Sendo assim, a criação de um elo de confiança entre os profissionais deve ser bem firmada no serviço devido à importância de se discutir o erro, e não escondê-lo, por medo de ser punido. Por isso, ao invés de uma cultura de culpa, onde erros são vistos como fracassos pessoais, deve haver uma cultura justa, onde os erros sejam encarados como oportunidades de melhorar o sistema através de estratégias de segurança do paciente voltadas para a prevenção7-22.
De maneira geral, pode-se considerar que a caminhada rumo à superação desse desafio está sendo trilhada na organização, uma vez que apesar dessa fragilidade quanto à “resposta não punitiva ao erro”, a dimensão que trata da “frequência de notificação de eventos de segurança” não foi fraca de uma maneira geral (69,7% de respostas positivas na análise global; 77,2% no período diurno; 60,7% no período noturno). De maneira oposta, muitas pesquisas apontam essa dimensão como frágil23, uma vez que a punição ao erro, relacionando-o à incompetência, pode ser uma das razões que levam o profissional a não realizar a notificação de eventos24.
No Brasil, a notificação dos eventos é prevista pelo Programa Nacional de Segurança do Paciente, e tem a finalidade de investigar, analisar e monitorar os incidentes nos serviços.6 Contudo, sabe-se que essa exigência por si só não é suficientemente relevante para tornar frequente o ato de notificar e para cumprir com seu principal objetivo referente ao aprendizado e mudanças de conduta. Salienta-se, contudo, diante das diferenças observadas para a “frequência de notificação de eventos de segurança” por turnos de trabalho, a importância de que essas ações ocorram de forma completa na instituição.
De forma coerente, o “aprendizado organizacional - melhoria contínua” também foi uma dimensão mais forte no hospital estudado. Essa dimensão diz respeito à capacidade de aprendizagem, que deve ser um fenômeno contínuo e ocorrer de maneira formal e informal7. No entanto, assim como na “frequência de notificação de eventos de segurança”, também foi observada maior força para o “aprendizado organizacional” no período diurno (72,0% nesse turno vs. 60,4% no período noturno), o que pode ser um indicativo de que as iniciativas de mudança e melhoria ocorrem mais frequentemente durante o dia, alertando para o perigo de que essas ações estejam mais voltadas a demandas externas, como a busca por acreditação por exemplo, em detrimento das necessidades organizacionais próprias. A grande diferença na dimensão “retorno da informação e comunicação sobre os erros” entre os turnos de trabalho - observada como fragilizada no período noturno (48,0% de respostas positivas à noite vs. 63,1% durante o dia) - ressaltam ainda mais esse risco. Por outro lado, essa diferença pode apenas representar uma mudança paulatina, que pode acontecer em qualquer serviço.
Assim como a “frequência de notificação de eventos de segurança” e o “aprendizado - organizacional - melhoria contínua”, outras dimensões também mostraram-se mais fortes na instituição, com respostas que não estiveram acima de 75% - conforme o previsto - mas com valores acima de 65%. Entre essas estiveram, a “expectativa do supervisor e ações promotoras de segurança”, o“trabalho em equipe dentro das unidades”, e o“apoio da gestão hospitalar para a segurança do paciente”.
O “trabalho em equipe dentro das unidades” parece ser uma das dimensões com maior possibilidade de força dentro das organizações25-28. Isso pode ser explicado pela necessidade de apoio mútuo e trabalho conjunto necessários à atuação da equipe de Enfermagem e ressaltados desde a graduação. Contudo, o fato de essas características estarem mais presentes apenas dentro de uma mesma equipe que atua em um setor específico, e não extrapolarem para outros setores e turnos na transição do cuidado, como evidencia nosso próprio estudo, constituem uma barreira a ser superada.
O “apoio da gestão hospitalar para a segurança do paciente” e a “expectativa do supervisor e ações promotoras de segurança” são dimensões essenciais na trajetória rumo a uma cultura de segurança fortalecida. O apoio de lideranças diversas é essencial para a disseminação de um movimento rumo a mudanças e pode funcionar como um motor que impulsiona novas práticas mais seguras e a adoção de novas rotinas estabelecidas.
Apesar de não ter sido realizada neste estudo a comparação das dimensões de cultura por fatores como: idade, profissão - nível técnico e superior, e tempo em serviço, sabe-se que essas características dos profissionais também podem influenciar na cultura de segurança ao paciente. Os profissionais incluídos nessa pesquisa tinham tempo médio de formação relativamente curto, 6 anos, o que pode favorecer uma cultura de segurança mais positiva. Os profissionais mais jovens, com menor tempo de profissão, podem ser mais flexíveis e abertos a mudanças, quando novas rotinas não representam algo assustador e diferente. Esses profissionais podem estar mais disponíveis para adquirirem um novo conhecimento e uma nova maneira de exercer seu trabalho. Ao contrário, profissionais mais velhos, que exercem o oficio por mais tempo, podem atuar de forma mecânica e serem resistentes a mudanças, o que dificulta a implementação de novas condutas. Um estudo nacional, que avaliou a cultura de segurança do paciente em centro cirúrgico, identificou maior relação com respostas positivas sobre a cultura de segurança entre os profissionais de grupos etários mais jovens29.
Vale destacar que esta pesquisa realizou a avaliação da cultura de segurança do paciente somente com a equipe de Enfermagem, ainda que seja reconhecido que a cultura de segurança envolve a equipe multiprofissional. Isso pode ser considerado uma lacuna, ou limitação, deste trabalho. Porém, além de tratar-se de um trabalho desenvolvido por acadêmicas do curso de Enfermagem, motivadas a reconhecer esse aspecto na área, deve-se ressaltar que a equipe de Enfermagem compõe o maior número de profissionais nas instituições hospitalares, permanecendo por longo tempo ao lado do paciente, além de possuir habilidades para o planejamento, implementação e avaliação dos cuidados25. A equipe de Enfermagem, portanto, tem uma relação direta com a segurança do paciente, sendo parte fundamental na contribuição para a disseminação dessa cultura na organização e entre os demais profissionais.
Conclusão
A análise da cultura de segurança nesse hospital contribuiu para mais conhecimento sobre os fatores capazes de influenciá-la. Foram observadas, tanto áreas de maior força, como áreas mais fragilizadas, onde faz-se necessário o aperfeiçoamento de condutas para garantir uma assistência mais segura.
São necessárias, principalmente, mudanças de rotinas voltadas para: i) canais de comunicação mais efetivos entre os profissionais e maior abertura e capacidade de ouvir por parte das lideranças; ii) maior cooperação e coordenação entre as unidades hospitalares; iii) dimensionamento adequado da equipe de Enfermagem, principalmente no período diurno de trabalho; iv) maiores esforços na disseminação da informação de que erros não são intencionais, permeados por fatores diversos e, portanto, não individuais e passíveis de punição; e v) alerta para o risco quanto à supervalorização de demandas externas ao próprio trabalho e objetivos organizacionais.
Esses resultados podem servir como um guia rumo a mudanças mais direcionadas à própria organização estudada e a outros serviços, mas também podem ser encarados como um incentivo para que outros gestores adotem essa ferramenta de avaliação e estejam atentos às dimensões da cultura de segurança que requerem maior atenção em seus espaços de atuação.