Introdução
O uso de Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) tem se consolidado em diversos setores da sociedade contemporânea. O que contempla também a educação básica e superior. Lapa e Belloni (2012) afirmam que as TDIC possuem recursos com potencialidades em uma educação para transformação. Contudo, ignorar esse potencial pode fazer do uso de TDIC uma reprodução de velhas práticas já estabelecidas, típicas de uma compreensão bancária de educação (Freire, 1987). Lapa e Belloni (2012) alertam a necessidade de uma apropriação não ingênua das inovações tecnológicas, a fim de se fazer uma educação para a liberdade. "É preciso uma educação que promova uma formação crítica por meio das mídias, mas também para as mídias" (Lapa e Belloni, 2012, p. 182). Portanto, o que antes era visto por alguns apenas como uma mudança nos aparatos tecnológicos utilizados pelos docentes no meio educacional tem sido alvo de reflexões mais aprofundadas quanto ao seu papel na educação.
A proposta de utilização de TDIC na educação perpassa pelas mais diversas situações existentes, inclusive aquelas ligadas ao desenvolvimento de atividades experimentais. Atualmente, existem "objetos de aprendizagem" (OA) disponíveis em repositórios brasileiros e internacionais, tais como: o MECRED, Plataforma Integrada do Ministério da Educação (MEC) de Recursos Educacionais Digitais (RED) que reúne em um só local, materiais do Banco Internacional de Objetos Educacionais, a Rede Interativa Virtual de Educação (Rived), o Portal do Professor e outros desenvolvidos no Brasil. São exemplos internacionais: o Multimedia Educational Resources for Learning and Online Teaching (MERLOT); Mocho (portal de ensino de ciências e de cultura científica de Portugal) e o National Digital Learning Resources Network gerenciado pelo Education Services da Austrália. Muito embora a expansão de TDIC seja significativa, há indicativos de uma grande disseminação de estudos sobre experimentação para a educação básica e superior, com grande enfoque em laboratórios didáticos de bancada presenciais, ao passo que são em menor número os estudos relacionados à experimentação mediada por TDIC neste ambiente ou em laboratórios virtuais (Franco; Velasco e Riveros, 2017; Gonçalves e Marques, 2011; 2012; Cardoso e Takahashi, 2011). Não obstante, é importante mencionar trabalhos como o de Zacharia (2003) que pesquisou efeitos do uso combinado de simulações e experimentos baseados em investigações. O autor destaca uma disposição favorável dos professores de ciências envolvidos no estudo para o desenvolvimento de simulações e/ou experimentos baseados em investigações. Em outra pesquisa Zacharia e Constatinou (2008) comparam os efeitos da manipulação virtual e física no entendimento conceitual de calor e temperatura de estudantes de graduação. Os pesquisadores apontam que tanto a manipulação virtual como a física podem colaborar positivamente ao entendimento conceitual acerca de temperatura e calor. Já Finkelstein et al. (2005) chamam a atenção de que não é possível garantir que as simulações conduzirão às aprendizagens conceituais, mas defendem que elas podem se constituir em um ferramen-tal pujante para tal aprendizagem. Em pesquisa semelhante, Tarekegn (2009) reforça o potencial das simulações experimentais para contribuir à aprendizagem conceitual. O que se expõe por meio dos resultados destas investigações está em harmonia com a literatura que trata do assunto no que se refere à necessidade de combinar os laboratórios virtuais e laboratórios didáticos de bancada presenciais (de Jong; Linn e Zacharia, 2013). Nesta direção, ainda cabe mencionar explicitamente a valorização dos laboratórios remotos que possibilitam aos estudantes, por meio de seus computadores, a manipulação de equipamentos científicos sofisticados (Jeschofnig e Jescho-fnig, 2011) - talvez para alguns estudantes a única possibilidade de manipulação de tais equipamentos.
A utilização de atividades experimentais mediadas por TDIC, como simulações em vários níveis de interação, atividade de experimentação remota ou até mesmo o uso de softwares para construções de gráficos ou visualização de modelos explicativos, não significa, contudo, o abandono completo das atividades experimentais nos denominados laboratórios didáticos de bancada presenciais, tampouco que todas essas possibilidades sejam mutuamente exclu-dentes, pelo contrário.
Uma possibilidade que reforça o uso de TDIC associada à experimentação está relacionada à dificuldade de apropriação de conhecimentos sistematizados, sobretudo em assuntos de caráter mais abstratos ligados à química, à física e à biologia, em três dimensões de realidade: a macroscópica, a submi-croscópica (atômico-molecular) e a representacional, conforme expõe Giordan (2008). Percebe-se que há grande dificuldade em operar apropriadamente nas três dimensões da realidade. O problema perpassa não somente por alunos da educação básica, mas também por aqueles da educação superior. A utilização de modelos, analogias e gráficos computacionais pode ser vista como auxílio ao desenvolvimento de níveis de conhecimentos mais aprofundados que permitam o melhor entendimento e apropriação do pensamento químico. Em especial, a utilização de TDIC pode auxiliar na superação de visões eivadas pela memorização ou pelo experimentalismo ingênuo. Giordan (2008) argumenta em função da experimentação mediada por TDIC para melhorar a compreensão das três dimensões citadas com aporte na fenomenologia.
A utilização de atividades experimentais mediadas pelas TDIC gera novos desafios que também perpassam pela compreensão daqueles que estão sendo formados, mas, sobretudo, daqueles que formam docentes. A pesquisa sobre como têm sido desenvolvidas as atividades experimentais na formação inicial de professores em cursos de licenciatura em ciências da natureza (biologia, física e química) mostra-se importante para desdobramentos e novas compreensões desta realidade. Neste sentido, Heckler, Motta e Galiazzi (2015a) apresentam um estudo sobre como uma comunidade de professores desenvolve/compreende a experimentação em Ciências via internet. Em outro trabalho dos mesmos autores (Heckler; Motta e Galiazzi, 2015b) se faz um levantamento acerca do panorama em que se encontra a experimentação no contexto brasileiro da formação de professores em ciências na Educação a Distância (EaD). Percebe-se então que com o crescente uso das TDIC, a investigação no ensino de ciências a respeito das necessidades de integrar as TDIC aos currículos acadêmicos e escolares, faz-se cada vez mais presente (Scanlon et al., 2002). Outros trabalhos como o de Zabel e Malheiros (2015) e Silva (2013) também discutem o processo de inserção e de apropriação de TDIC por docentes em formação inicial em suas práticas na educação matemática.
Deste modo, o presente trabalho buscou responder a seguinte questão de pesquisa: como formadores de professores da área de ciências da natureza compreendem e promovem atividades experimentais mediadas por TDIC em licenciaturas? O repensar as características metodológicas das atividades experimentais no ensino de ciências, apoiado em uma perspectiva progressista de educação, pode trazer à tona a necessidade de enfrentamentos de novas situações. De tal sorte que a caracterização de compreensões trazidas pelos que promovem atividades experimentais pode indicar tanto situações-limite como um inédito viável (Freire, 1985) a partir de sinalização de possibilidades às atividades experimentais mediadas por TDIC em cursos de licenciatura ligados às ciências da natureza.
Educação dialógica e problematizadora e a experimentação
Aproximações entre a educação progressista de Paulo Freire e a educação formal em ciências da natureza vêm sendo feita há pelo menos três décadas (Delizoicov, 2008, 1991, 1982; Delizoicov; Angotti e Pernambuco, 2002; Pontuschka, 1993; Pernambuco, 1994; Angotti, 1982). Todavia, a experimentação não é objeto principal nas discussões de tais aproximações, aliás, a aproximação entre ensino de ciências e a educação progressista é muito mais abrangente. Ressalta-se, porém, a existência de registros acerca de estruturação de propostas de atividades experimentais na comentada perspectiva (Francisco Junior; Ferreira e Hartwig, 2008). Ou ainda, pesquisas que utilizam o referencial de Paulo Freire como fundamentação teórica em investigações sobre experimentação no ensino de ciências da natureza (Gonçalves e Marques, 2013, 2012, 2011). Cabe registrar ainda a intensificação recente de trabalhos sobre a educação superior a partir das contribuições do referencial de Paulo Freire. Exemplos concernentes ao assunto são identificados em edição especial, lançada em 2013, da Revista Lusófona de Educação.
À semelhança de Gonçalves e Marques (2013), apoia-se nesta pesquisa nas categorias situações-limite e inédito viável exploradas por Freire (1987). O autor define situações-li-mites como barreiras impostas historicamente, cujas existências freiam e cerceiam a liberdade de transformação dos sujeitos em uma determinada brecha temporal. A superação de uma situação-limite, no entanto, se dá quando o que outrora se configurava como barreira para os sujeitos cognoscentes agora é perceptível por meio de um nível de consciência que permite vislumbrar sua superação. Freire (1987) destaca que o sentimento de "desesperança" pode inicialmente ser predominante nos sujeitos que ainda não vislumbraram a superação das situações-limite. E tais situações ocorrem, novamente, porque vão ao encontro de ideias que ainda se sustentam em uma curiosidade ingênua. Vale ressaltar que as situações-limite, em si, não são necessariamente causadoras de "desesperança", pois essas são situações emergentes provenientes do processo de transformação histórica de seres inconclusos, em constantes questionamentos e superações. Mas, a resistência à "critiza-ção" da curiosidade primeira é causadora de "desesperança", uma vez que impede a ação dos sujeitos. Nas palavras de Freire (1987, p. 51-52):
Esta é a razão pela qual não são as "situações-limites", em si mesmas, geradoras de um clima de desesperança, mas a percepção que os homens tenham delas num dado momento histórico, como um freio a eles, como algo que eles não podem ultrapassar. No momento em que a percepção crítica se instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva os homens a empenhar-se na superação das "situações-limites". Esta superação, que não existe fora das relações homens-mundo, somente pode verificar-se através da ação dos homens sobre a realidade concreta em que se dão as "situações-li-mites". Superadas estas, com a transformação da realidade, novas surgirão, provocando outros "atos-limites" dos homens.
O que está para além do obstáculo pro-pulsionador dos "atos-limites" nos sujeitos é o que Freire (1987) chama de inédito viável. A partir da percepção da "fronteira" que separa o ser e o ser mais, há uma apropriação cada vez mais crítica da realidade concreta que está intimamente relacionada com o inédito viável, cuja efetivação se dá por meio da ação transformadora (Freire, 1987). Os movimentos de percepção e apropriação do obstáculo e a ação impulsionadora para sua transposição também estão relacionados ao que o autor chama, apoiado em Lucien Goldmann, de distintos níveis de consciência, sendo eles, consciência real (efetiva) e consciência máxima possível. A primeira relaciona-se com a adesão à situação-limite, mas sem o desvelar da possibilidade de superação dela. O sujeito, ao expressar uma consciência real (efetiva), pode revelar uma percepção fatalista das situações-limite através de sua visão de mundo, pois ainda pode estar condicionada à ideia de realidade estática e não transponível. Inclusive, o que se configura como situação-limite pode ainda não ser perceptível como uma situação contraditória, conforme expõe Freire (1987, p. 61): "Por isto é que, embora, as 'situações-limites' sejam realidades objetivas e estejam provocando necessidades nos indivíduos, se impõe investigar, com eles, a consciência que delas tenham". Porém, a partir do momento em que os sujeitos tomam consciência de que a realidade concreta em que estão inseridos propõe-lhes situações-limite a serem superadas se começa a vislumbrar o inédito viável. É com base em uma consciência máxima possível que os sujeitos passam a entrever o inédito viável. A construção da autonomia está vinculada com essa conscientização, no sentido de ser um esforço para se obter a "consciência crítica dos obstáculos" (Freire, 1996).
Gonçalves e Marques (2013) em investigação sobre como o desenvolvimento profissional e a docência de formadores de professores de química - particularmente daqueles que atuam nas componentes curriculares de química - podem colaborar para a aprendizagem acerca da experimentação no ensino de ciências da natureza, identificaram um conjunto de situações-limite que influencia tal processo de aprendizagem. Entre as situações-limite, pode-se destacar aquela que se refere à carência de ações coletivas e de cumplicidade entre os formadores em relação às propostas de atividades experimentais desenvolvidas com os licenciandos em química. Em geral, os experimentos promovidos não incorporam as inovações recomendadas na literatura em didática das ciências.
O referencial progressista de educação aqui adotado ainda contribui para interpretar o fato de docentes se sentirem inseguros com a utilização de TDIC em situações escolares, especificamente quando articulada com as atividades experimentais. Tal insegurança pode estar relacionada a conhecimentos constituintes de uma consciência real (efetiva), assim como à compreensão do papel da experimentação associada à verificabilidade de teorias ou à suposta transmissão de novos conhecimentos - compreensão que se aproxima do que Freire (1987) denominou de visão bancária de educação. Aliás, Gonçalves e Marques (201 2; 2011) ressaltam que essas compreensões têm sido identificadas na literatura entre docentes da educação superior e, por sua vez, podem influenciar na proposição das atividades experimentais. Compreende-se assim a experimentação como conteúdo a ser problematizado na formação inicial de professores, sendo as possibilidades de mediação por TDIC uma forma de indagação inquietadora que propicia a curiosidade. Freire e Faundez (1985) pontuam que o conhecimento começa pela pergunta e essa é gerada pela curiosidade. Mas o buscar respostas é ação do sujeito cognoscente.
Em relação ainda à questão da insegurança, Freire e Shor (1986) discutem sobre o receio, por parte daqueles que lecionam, de reaprender a docência frente aos educandos mediante uma nova perspectiva educacional. A utilização de TDIC vinculada à experimentação, como conteúdo formativo pode trazer estes enfrentamentos. Freire e Guimarães (1984), contudo, alertam que utilizar as novas tecnologias de maneira arcaica, no que diz respeito às finalidades didático-pedagógicas, não contribui para uma educação transformadora, senão para limitação do aluno à tarefa do consumo de mensagens pré-fabricadas, assim como é feito na educação bancária. Freire (2000, p. 45) também destaca:
A compreensão crítica da tecnologia, da qual a educação de que precisamos deve estar infundida, e [sic] a que vê nela uma intervenção crescentemente sofisticada no mundo a ser necessariamente submetida a crivo político e ético. Quanto maior vem sendo a importância da tecnologia hoje tanto mais se afirma a necessidade de rigorosa vigilância ética sobre ela. [...] Por isso mesmo a formação técnico-científica de que urgentemente precisamos é muito mais do que puro treinamento ou adestramento para o uso de procedimentos tecnológicos.
A proposição de alternativas para educação em geral, e em especial, para o ensino de ciências em cursos superiores de formação docente deve inicialmente analisar sua contribuição em aspectos mais amplos e que, portanto, estão para além da apreensão de conceitos científicos pré-estabelecidos e aceitos na comunidade acadêmica no período vivenciado. Assim, o uso de atividades experimentais mediadas por TDIC, por exemplo, precisa superar compreensões sobre ensino de ciências, experimentação e TDIC já ultrapassados academicamente.
Os sujeitos de pesquisa, a obtenção e análise das informações qualitativas
A respeito dos sujeitos de pesquisa, procuraram-se dois perfis. Não se intencionou necessariamente fazer comparações entre esses dois perfis. Isto poderia ir contra o próprio referencial utilizado como embasamento para análise.
O primeiro perfil - identificados como P1 a P6 - é caracterizado por formadores atuantes em componentes curriculares de conteúdos específicos (por exemplo, química geral, bioquímica, etc.) que contenham experimentação em cursos de licenciatura na área de ciências da natureza na EaD. Definiu-se o primeiro critério de escolha por acreditar que os formadores atuantes na EaD teriam conhecimento e envolvimento com atividades experimentais mediadas por TDIC devido à natureza do curso em que atuam e por isso se estaria em interlocução com sujeitos que tem o que dizer sobre o que se está investigando. Outro aspecto considerado foi o de que sujeitos que lecionam nessa modalidade muitas vezes são os mesmos que compõem educação presencial, de modo que a interlocução com esses formadores poderia dar indicativos do desenvolvimento de atividades experimentais mediadas por TDIC tanto na EaD como na modalidade presencial. Em outras palavras, não foi foco da pesquisa a EaD em si, e nem a experimentação nesta modalidade, pois se reconhece que as atividades experimentais mediadas pelas TDIC podem ser realizadas tanto na modalidade presencial como a distância. Essas considerações são dirigidas aos dois perfis. Estabeleceram-se critérios de escolha para o direcionamento dos convites, sendo eles: a) participação como docente em componente curricular de conteúdos específicos que contenham experimentação em pelo menos duas edições em um curso de licenciatura ligado às ciências da natureza na EaD; e b) ter lecionado em componentes curriculares com atividades experimentais que abordem preferencialmente conteúdos que tenham relação com mais de uma área ligada às ciências da natureza (química, física e biologia) considerada para esta pesquisa.
No que se refere aos critérios para convidar os participantes que contemplassem o segundo perfil - identificados como Q1 a Q6 - foi estabelecido que esses devessem ser formadores de professores que se constituíssem como pesquisadores em ensino de ciências e: a) ser atuante, ou que tenha atuado, como docente na formação inicial de professores na EaD, ou; b) ser autor de publicações acerca da experimentação mediadas por TDIC para modalidade presencial e/ou a distância; ou c) ser pesquisador acerca de experimentação em ensino de ciências e que atue, ou tenha atuado, na EaD.
Foram convidados 6 participantes para cada perfil, totalizando 12 participantes. Todos tiveram acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) no momento da entrevista e o assinaram concordando em participar da investigação.
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas presencialmente ou via skype. As entrevistas via skype foram necessárias devido à distância geográfica entre parte dos pesquisados e os investigadores. O grupo investigado se caracterizou por ter nove formadores de uma mesma instituição e os demais de outras três instituições diferentes. Todos trabalhavam em instituições brasileiras públicas e federais. Neste grupo havia quatro professores com formação em licenciatura em química, quatro professores com formação em licenciatura em biologia e quatro professores com formação em licenciatura em física. As entrevistas tiveram roteiros com perguntas pré-formuladas, sendo parte relacionada com a leitura preliminar de fragmentos de reportagens e de artigos acadêmicos disponíveis online associados à experimentação mediada por TDIC. Lembra-se que as atividades experimentais mediadas por TDIC podem se caracterizar por meio de simulações, experimentação remota ou ainda o uso de softwares para construções de gráficos, visualização de modelos explicativos, etc. Uma compreensão mais detalhada sobre as possibilidades de atividades experimentais mediadas por TDIC, pode ser encontrada em publicação preliminar dos autores (Guaita e Gonçalves, 2014). Nas entrevistas semiestruturadas se fez a opção por perguntas indiretas que possibilitavam aos investigados expressarem suas compreensões e atuações envolvendo diferentes exemplos de atividades experimentais mediadas por TDIC, de acordo com o já exposto.
As entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas e submetidas aos procedimentos da Análise Textual Discursiva (ATD) proposta por Moraes (2003) e Moraes e Galiazzi (2013). A ATD segue três etapas: unitarização, cate-gorização e comunicação. O primeiro movimento é o de desconstrução. Nesse está caracterizada a etapa de desmontagem dos textos que constituem o corpus de análise e sua posterior unitarização. Este corpus constitui-se em um conjunto de documentos que contém informações de pesquisa, podendo ser documentos já existentes previamente ou produzidos, no caso de entrevistas. O corpus de análise utilizado nesta investigação foi construído através das transcrições dos áudios gravados a partir de cada entrevista com participantes dos dois perfis. Esse desmembrar do texto é o que permite a emersão de unidades de sentido ou de significado. A desconstrução em excesso, entretanto, pode descaracterizar o texto, uma vez que as unidades de significado precisam ser contextualizadas. O segundo momento caracteriza-se pela identificação de semelhanças entre as unidades construídas a fim de se fazer emergir possíveis categorias ou de inserir tais unidades em categorias a priori. Em outras palavras, as categorias podem ser a priori, emergentes ou mistas. Após o movimento de categorização, vem a comunicação que é caracterizada pela construção do metatexto. Este não se constitui numa mera descrição de fatos, mas sim uma profunda análise mediante o envolvimento do(s) pesquisador(es) com um texto rico em detalhes que podem 186 revelar novos entendimentos. No metatexto, fragmentos das entrevistas são utilizados como exemplos para reforçar a interpretação dos pesquisadores das informações qualitativas. O processo, como um todo, não ocorre de maneira linear e cadenciada, mas sim entremeado em idas e vindas ao corpus a fim de se obter um refinamento do olhar analítico. Cumpre notar, que na ATD não se tem uma preocupação com a quantificação. Por exemplo, não há ênfase em quantificar quantos investigados se enquadram em determinada categoria. Como destaca Moraes (2003, p. 201): "A produção de hipóteses de trabalho e de argumentos para defendê-las constitui um dos elementos essenciais de uma análise textual qualitativa. Em vez de números, característica de abordagens quantitativas, é preciso fazê-lo com argumentos". Nesta direção, ainda cabe destacar que a ATD não atende ao conhecido princípio de exclusão mútua na análise qualitativa.
A partir da ATD realizada se apresenta e discutem a seguir as categorias: situação-limite: a hegemonia do lócus da experimentação; situação-limite: a pouca valoração da experimentação associada às TDIC e inédito viável: experimentação mediada por TDIC.
Análise das informações qualitativas
Para análise das informações qualitativas, foram utilizadas categorias a priori, respaldadas pelo educador Paulo Freire, sendo elas nominadas "situações-limite" e "inédito viável. A partir da imersão no corpus de análise, foram geradas as subcategorias "a hegemonia do lócus da experimentação"; "a pouca valo-ração da experimentação associada às TDIC" e "a experimentação mediada por TDIC". As duas primeiras subcategorias estão relacionadas à categoria "situações-limite" e a terceira subca-tegoria à categoria "inédito viável".
Situações-Limite: a hegemonia do lócus da experimentação
São analisadas aqui compreensões acerca das atividades experimentais que tentam explicar a necessidade de "soberania" do lócus presencial em laboratórios didáticos de bancada para tais atividades, cuja implicação, na compreensão dos investigados, é o desenvolvimento incipiente de experimentos mediados por TDIC. É importante, desde já, destacar no que não se constitui o argumento desta categoria: uma defesa por parte dos pesquisadores de oposição entre atividades experimentais em laboratórios didáticos de bancada presenciais e aquelas mediadas por TDIC. Inversamente se entende, assim como parte significativa da literatura (de Jong; Linn e Zacharia, 2013; Zacharia e Constatinou, 2008, Zacharia, 2003), que há um potencial de complementaridade entre ambas. Entre os argumentos utilizados em favor das atividades experimentais em laboratórios didáticos de bancada e em desmerecimento daquelas mediadas por TDIC, alguns foram mais notáveis: relação com a suposta motivação; apropriação de técnicas de laboratório; e "distanciamento" proporcionado pela experimentação online.
O desenvolvimento presencial de atividades experimentais em laboratórios didáticos de bancada foi ressaltado como forma de chamar a atenção dos alunos e de motivá-los. Os formadores P3 e Q3 exemplificam esta situação:
[...] a gente buscou justamente experimentos [em laboratório didático de bancada presencial], já que foi pouco o contato, isso foi o fechamento de uma disciplina, a gente sabia que iria despertar a atenção destes alunos. [...] Eles se empolgaram muito [...].Então ficaram bem motivados, deu para perceber. Foi bem legal a experiência de trazê-los aqui. (P3).
[...] eu acho que a realização das atividades [experimentais de bancada presencial] é interessante, gera interesse. (Q3).
A compreensão das atividades experimentais como incondicionalmente motivadoras implica desconsiderar a profunda complexidade no que diz respeito à dinâmica do processo educativo e ao próprio fenômeno da motivação. A generalização acerca do aumento de interesse de discentes quando expostos a atividades experimentais é questionada há mais de 20 anos no que concerne à educação básica (Hodson, 1994). De semelhante modo, este questionamento pode ser remetido à educação superior. Nem sempre os próprios alunos de cursos de natureza experimental são afeiçoados aos experimentos (Hodson, 1994).
A ideia de apropriação de técnicas, juntamente, com a de motivação, é uma das justificativas utilizadas por professores de ciências, expressas há muito tempo na literatura (Grandini e Grandini, 2004; Galiazzi et al., 2001; Hodson, 1994) que tentam exprimir os objetivos da experimentação. Formadores também expressaram esse entendimento concernente à apropriação de técnicas, como P3:
Aquela troca do professor com o aluno, o cuidado com a técnica. [...] O que é importante de a gente perceber numa disciplina de laboratório o uso das técnicas de laboratório, [...]. O cuidado, a questão da segurança que tem que ter no laboratório [...]. No online as coisas ficam mais distantes do real. (P3).
Neste sentido o pesquisador Q6 também argumentou:
[...] nós temos que ver alguns dos objetivos que se trabalha em disciplinas experimentais a questão da experimentação para a formação do docente [...] E, uma das coisas que até a literatura aponta, é que [...] é necessário muitas vezes o desenvolvimento de habilidades relacionadas à experimentação. Então eu posso imaginar uma série de coisas relacionadas à elaboração de conceitos, onde que eu poderia ver a importância da experimentação visando à elaboração de conceitos, mas claro também eu teria que pensar na questão do quanto as atividades práticas estão associadas ai à habilitação profissional e à questão de domínio de técnicas e habilidades específicas que no âmbito do ponto de vista prático [...] seria importante. (Q6).
O desenvolvimento de destrezas manuais e de um processo "reflexivo" sobre os conteúdos estudados não são excludentes em atividades experimentais, pelo inverso. A manipulação de equipamentos e/ou a apropriação adequada das técnicas não isentam o sujeito de pensar sobre o que está fazendo e o porquê de estar fazendo algo. De acordo com Hodson (1994), em geral docentes que acreditam na experimentação como modo de proporcionar o desenvolvimento de destrezas manuais/habilidades técnicas, acabam por dar descrédito à possibilidade de se utilizar experimentos através de um computador, uma vez que não permitiria ao aluno ter contato físico com os instrumentos de laboratório. Concorda-se que há momentos que são próprios para a apropriação de técnicas, sobretudo na formação de um profissional ligado às áreas em que a experimentação é pertinente. O que se combate, em parte, é a primazia do objetivo de favorecer a apropriação de técnicas em detrimento de outros conhecimentos (Hodson, 1994; 2005; Gil-Perez e Valdés Castro, 1996).
Hodson (1994) argumenta que tal ponto de vista não vai contra o ensino de qualquer destreza de laboratório - cumpre registrar que Hodson (1994) está se referindo à experimentação na educação básica. E para além de conteúdos procedimentais e conceituais a serem desenvolvidos em uma atividade experimental, há também os atitudinais (Pozo, 1998) que assumem importância e que a abordagem da experimentação articulada com as TDIC não os exime de serem trabalhados.
Hodson (1998) vem destacando que as TDIC podem contribuir para se dedicar menos tempo à manipulação de equipamentos nas atividades experimentais - sem desconhecer a importância da aprendizagem de certas habilidades técnicas - e mais tempo à discussão de aspectos teóricos envolvidos nas atividades. Dispor mais tempo para a discussão acerca daquilo que é estudado nas atividades experimentais vai ao encontro do que Freire (1987) ressalta ao defender que o educador pode, em sua prática, colaborar para a promoção da capacidade crítica do educando e da sua curiosidade. O educador que prioriza a efetividade de momentos em que os educandos são incentivados a serem mais questionadores em seu próprio aprendizado pode favorecer o desenvolvimento da curiosidade epistemológica (Freire, 2003).
Somam-se a essas considerações aquelas, por exemplo, de Zacharia e Constatinou (2008) e Zacharia (2003): as simulações e os experimentos manipulados nas bancadas presenciais podem colaborar igualmente às aprendizagens conceituais dos estudantes. Entende-se que não somente as simulações, mas outras possibilidades de articulação entre atividades experimentais e TDIC podem favorecer as aprendizagens discentes.
Outro discurso relacionado à priorização das atividades experimentais em laboratórios didáticos de bancada presenciais e ao des-merecimento de experimentos mediados pelas TDIC diz respeito ao "distanciamento" que seria proporcionado por esta última. Este distanciamento foi percebido em distintos níveis. O mais notável é acerca da relação professor-aluno. O argumento ficou mais notório na fala do formador P1: "Tem que existir [...] esse momento de proximidade, esse momento de um contato dele com o professor, senão a gente fica virtual demais" P1. O docente se utiliza da interação possível com os alunos, como um argumento para validar o experimento no laboratório didático de bancada presencial. Porém, tal argumento acaba por parecer contraditório, uma vez que atualmente há distintos níveis de interação em experimentos mediados por TDIC. Por exemplo, há as possibilidades oferecidas pela experimentação remota e plataformas para comunicação e interação, como os ambientes virtuais de ensino e aprendizagem, - o mais conhecido sendo o Moodle.
Discutiram-se aqui argumentos que buscam sustentar a "soberania" dada aos laboratórios didáticos de bancada presenciais em detrimento de atividades experimentais mediadas por TDIC - ainda que essas atividades não sejam mutuamente excludentes. Aspectos associados à motivação, à apropriação de técnicas e a um possível "distanciamento" causado pela utilização das TDIC com maior intensidade se constituíram em aliados na defesa de atividades experimentais em laboratórios didáticos de bancada presenciais, tornando secundárias atividades experimentais mediadas por TDIC. Essas últimas, de acordo com os participantes da pesquisa, não teriam o mesmo potencial das anteriores. Essas com-preensões colaboram na constituição de uma situação-limite que é a hegemonia do lócus das atividades experimentais, de tal sorte que os benefícios da complementaridade entre atividades experimentais em laboratórios didáticos de bancada presenciais e aquelas mediadas por TDIC são enfraquecidos. Além disso, tais argumentos se distanciam da defesa feita na literatura da salutar complementaridade entre atividades experimentais em laboratórios didáticos de bancada presenciais e aquelas mediadas por TDIC (de Jong; Linn e Zacharia, 2013; Zacharia e Constatinou, 2008, Zacharia, 2003). Essa hegemonia pode reverberar de semelhante forma nos cursos de formação de professores em que tais formadores atuam. Todos estes aspectos indicaram uma condição por vezes adversa à realização das atividades experimentais mediadas por TDIC. Reitera-se que essa condição pode estar fundamentada em compreensões acerca da experimentação, de modo geral, como foi sinalizado nesta sub-categoria e da experimentação mediada por TDIC, em particular, como será abordado na subcategoria que segue.
Situações-limite: a pouca valoração da experimentação associada às TDIC
Foi volumosa entre os formadores do primeiro perfil uma compreensão que valoriza minimamente as atividades experimentais associadas às TDIC. Parte dos formadores analisou como viável e compreensível tal associação somente nos casos de total impossibilidade de desenvolvimento das atividades experimentais em laboratórios didáticos de bancada presenciais. Houve também certa atribuição de valores quando os diversos tipos de experimentação mediada por TDIC foram comparados. Por exemplo, as simulações, em geral, tiveram uma avaliação correspondente à "ferramenta para fixação de conhecimento". Já os laboratórios remotos foram vistos como "ferramentas" mais valorizadas por se aproximarem do que seria um laboratório didático de bancada presencial. O posicionamento de P1 exemplifica parte dessas interpretações:
[...] eu acho que as duas são ferramentas didáticas importantes e boas em níveis diferentes. [...] Eu acho que a simulação funciona mais para fixar um conhecimento e talvez essa ai de remoto para efetivamente entender. Você fazendo você entende. [...] a simulação eu acho que ela ainda fica numa esfera muito teórica, sabe? Ela não substitui a prática. Ela não substitui. E ainda é teórica, menos do que uma aula teórica pura. Ela fixa, ela ajuda a fixar o conhecimento, mas não é uma prática. (P1).
O formador citado coloca as atividades experimentais mediadas pelas TDIC como algo inferior ao que é feito em laboratório didático de bancada presencial. Em parte, ressalta uma suposta facilidade para aprendizagem a partir de atividades realizadas nesses laboratórios em detrimento das que poderiam ser realizadas mediante TDIC. Não há, porém, uma explicitação por parte dos formadores de quais perspectivas metodológicas, fundamentadas teoricamente, fazem uso para o desenvolvimento de suas propostas de experimento, tais como experimentação problematizadora (Francisco Junior; Ferreira e Hartwig, 2008), experimentação a partir da resolução de problemas, com cunho investigativo (Hofstein et al., 2005; Hodson, 2005; Gil-Pérez e Valdés Castro 1996) ou ainda na perspectiva de "prever-observar-explicar" proposta por Tao e Gunstone (1999). Interpreta-se necessária a superação do entendimento que põe dúvida quanto à utilização das TDIC associadas às atividades experimentais. Identificou-se igualmente um silêncio entre os formadores acerca de questionamentos em relação às potencialidades de atividades experimentais nos laboratórios didáticos de bancada presenciais. Há muitas incertezas, por parte dos pesquisados, sobre os potenciais de atividades experimentais associadas às TDIC, mas pouco ou nada é colocado em discussão quando se referem aos experimentos promovidos no laboratório didático de bancada presencial. Parece haver um entendimento velado de que a simples realização destes últimos seja suficiente para promover aprendizagens, sobretudo em relação aos conhecimentos procedimentais. O formador P3 se mostra em sintonia com essa discussão:
[...] entre a gente não ter nada de laboratório e ter esta modalidade [mediada pelas TDIC], obviamente é bem melhor a gente ter esta. Pelo menos esses alunos estão fazendo algo relacionado à experimentação, mesmo que seja online. Isso que eu te digo, desde que seja inviável outra forma de se fazer as atividades experimentais. Porque eu sou a favor de uma atividade experimental realizada mesmo no presencial. (P3).
O formador defende o desenvolvimento das atividades experimentais em laboratórios didáticos de bancada presenciais. Entretanto é preciso discutir e considerar o porquê de todos os problemas relacionados à aprendizagem por meio de atividades experimentais estarem centrados apenas em possíveis limitações das TDIC, enquanto nada ou quase nada se levanta de questionamento ou descrença em relação aos experimentos promovidos em laboratórios didáticos de bancada presenciais.
Diante do exposto nesta categoria é iminente a necessidade de apropriação de ideias mais promissoras sobre as TDIC em documentos oficiais e nas práticas pedagógicas, de forma a favorecer que um inédito viável associado ao desenvolvimento de atividades experimentais mediadas por TDIC possa ser vislumbrado. É tão importante repensar os experimentos realizados em laboratórios didáticos de bancada presenciais quanto aqueles mediados por TDIC. Ambas as possibilidades podem representar contribuições que somem na formação de professores e na atuação dos formadores. Lembra-se que a apropriação de habilidades técnicas que podem ser favorecidas pela realização de experimentos em laboratórios didáticos de bancada presenciais se relaciona cada vez mais com tecnologias modernas que envolvem processos automatizados. De modo que as TDIC podem colaborar nesse processo evitando o excesso de dicotomia entre atividades experimentais em laboratórios didáticos de bancada presenciais e aquelas mediadas pelas próprias TDIC e, por conseguinte, enfrentar a pouca valo-ração incongruente dessas últimas.
Inédito viável: experimentação mediada por TDIC
A ideia de experimentação mediada por TDIC, de acordo com o explicitado até então, ainda é pouco aproveitada pelos docentes. Mas há aqueles que mesmo receando o desconhecido e, por ora, minimizando suas potencialidades, mostram-se favoráveis às possibilidades de articulação entre TDIC e atividades experimentais. Há aqueles também completamente favoráveis a tal articulação. Compreende-se a formação inicial de professores como um momento para também estudar a respeito de TDIC (Barros; Baffa e Queiroz, 2014) associadas às atividades experimentais. Por esse motivo faz-se necessário repensar o uso das TDIC associadas às atividades com experimentos para que elas sejam de fato relevantes para a formação discente. Formadores explicitaram tentativas ou desejo de utilização de experimentos vinculados a TDIC:
Não conhecia [experimentação remota]. Mas é interessante. [...]. A gente já ouviu falar na área da medicina de médicos a distância fazendo. [...], a gente tem que se encorajar com essas ideias arrojadas. E a gente vai se envolvendo. Acho que as novas gerações vão cada vez mais se aventurando dessas "maluquices" que a gente ainda acha que não é possível. Mas tem o seu valor isso daí. (P6).
Há principalmente na ideia do formador certo otimismo na inserção das TDIC de maneira mais acentuada no ensino que envolve atividades experimentais. Embora sejam perspectivas e objetivos diferentes, o avanço da experimentação remota em outros setores é algo a ser considerado na discussão das atividades experimentais mediadas por TDIC no âmbito do ensino de ciências. A experimentação remota em si não é algo novo (Gravier et al., 2008). Seu uso já é notado em atividades aeroespaciais, na medicina, na engenharia, entre outros. Entretanto, na área educacional, pelo menos no contexto brasileiro, parece não haver um uso consolidado (Cardoso e Takahashi, 2011), pelo contrário. O formador Q2 expressou igualmente possibilidades:
[...] o grande diferencial hoje, da operação remota de um equipamento científico está na questão da interatividade. E aqui interatividade compreendida como aquilo que te dá oportunidade para maior comunicação entre os sujeitos sobre os experimentos. Então que promovam a interação desses sujeitos, que possam conversar sobre o experimento, buscar, tirar dúvidas sobre o experimento [...] (Q2).
O formador explicita o reconhecimento do que hoje pode ser considerado algo inviável, mas viável em um futuro próximo. Isto denota o reconhecimento da historicidade do ser e das transformações desencadeadas. Sobre a dificuldade de aceitação dos professores, para além do presente em suas práticas já conhecidas, Ferreira e Villani (2002) pontuam que há uma tendência docente de fechamento ao círculo de possibilidades que convém às suas práticas na justificativa de se ter certo domínio em sua interação com os alunos. Por esse motivo, promover mudança pode ser uma ação difícil. Isso está em consonância com o que Freire e Shor (1986) destacam sobre a dificuldade de aceitação da transformação. Ou seja, não há somente certa resistência pelos discentes, mas da própria docência. Quando há a aceitação e propensão a mudanças, há um reconhecimento de que existe um dinamismo na forma de se construir novos conhecimentos. Freire (1979b) argumenta acerca disto ao tratar da superação constante dos conhecimentos de outrora por aqueles produzidos nos dias atuais.
Um dos formadores explicitou sua busca por parcerias, para além da sua área de formação, com finalidades de desenvolver objetos de aprendizagem acessíveis aos alunos de graduação e associados às atividades experimentais. Desenvolveu vídeos educacionais, e aplicativos online, isto é, aqueles mediados pelo computador e distribuídos via internet. O formador aponta:
Eu tive [...] um grupo de produção de vídeos didáticos [...] hoje eu me fixo mais nas mídias de computador. Só que eu não tenho a capacidade de programar. Eu destaco um experimento, uma simulação, escrevo um roteiro, tem que ter um web designer do meu lado para ir fazendo, interagindo, vai arrumando e arrumando. Eu tenho várias produções no meu banco que eu utilizei [...]. Pretendemos aumentar este banco [...]. (P4).
Percebe-se que a integração maior entre os profissionais da engenharia, do design e os formadores das áreas específicas ligadas às ciências da natureza é um caminho que se faz necessário para o aprimoramento técnico e, sobretudo pedagógico das ferramentas.
Freire e Guimarães (1984) ressaltam, no entanto, que o simples uso de uma nova tecnologia não garante uma "modernização" no modo de entender o processo educativo, pois essa pode ser utilizada de maneira pouco "reflexiva" e trazendo problemas na construção formativa tanto dos estudantes da escola básica quanto daqueles da educação superior. Os autores alertam que muitas vezes os professores são abertos ao uso desses meios que são amplamente apreciados nos tempos atuais, mas acabam por atribuir-lhes usos problemáticos, dando assim a finalidade de aparelhos de "transmissão de mensagens pré-fabricadas". Isto acaba por reproduzir a prática bancária de educação (Freire, 1987) que ignora o lado ativo e criador por parte dos alunos.
Outro formador expõe uma reflexão acerca dessas mudanças: "tornar ela uma parte online e uma parte presencial também seria interessante, mas não todas elas [...] tem uma série de desafios para a parte experimental" (P3). As TDIC não resolverão por si só os problemas pontuados em torno das atividades experimentais. Esse posicionamento está em sintonia com a perspectiva mencionada anteriormente por Guimarães e Freire (1984) quanto ao uso de tecnologias na educação sem as devidas reflexões. A cautela sugerida pelo formador vai de certa forma ao encontro do que Freire (1979a) aborda em seu livro "Pedagogia da esperança" sobre as mudanças feitas de forma gradual. O autor discute a viabilidade histórica para essas mudanças ocorrerem. Inicialmente busca-se a transformação das partes para, em dias futuros, vislumbrar a sua totalidade. Quando se muda uma dimensão estrutural, espera-se não somente resultados de cunho estruturador, mas também de caráter ideológico, cujo impacto para transformações mais significativas é maior. Um dos exemplos de mudança é a utilização de TDIC em situações de substituição de animais para vivissecção, dissecação e análise, salvo casos particulares, conforme lei n° 11.794 (também chamada de lei Arouca), sancionada em 8 de outubro de 2008 (Brasil, 2008). Um formador sinaliza um aspecto associado à articulação de TDIC e atividades experimentais em sintonia com o exemplo: [...] para evitar o uso de animais, se faz tudo virtual. [...] a biologia já substituiu uma serie de aulas práticas que usavam animais por aulas virtuais [...]" (P5). Outro exemplo trazido por um formador diz respeito à versatilidade na manipulação de parâmetros que outrora em laboratórios didáticos de bancada presenciais poderiam ser fatores limitantes para o seu desenvolvimento, como a escala de tempo ou de grandeza:
[... ] um problema da experimentação é a gente não poder variar todas as grandezas, todas variáveis e poder observar de fato o que acontece. Ou porque vai destruir alguma coisa ou porque vai queimar alguma peça. Então eu acho que a simulação ela tem esse lado bom porque eu não danifico nada, no máximo vai ter um efeito na tela do computador e permite essa investigação mais completa de um dado fenômeno. A escala de tempo também, porque tem certas experiências que você precisa de muito tempo para adquirir dados e no computador você pode acelerar isso. [...] normalmente aquelas situações que envolvem experimentos extremamente complexos e caríssimos e os quais no fundo a gente não observa nada efetivamente porque a escala é outra [...]. Então [...] claro que há uma série de experimentos que você pode fazer [...] os applets cumprem uma boa função ai porque não é trivial você ter certas experiências acontecendo realmente dentro do seu laboratório. (Q1).
As vantagens apontadas pelos formadores P5 e Q1 precisam ser consideradas na articulação de TDIC com as atividades experimentais. Independente da existência de limitações em uma atividade experimental, o que deve ser compreendido é que esta vai além da coleta de dados e da execução de cálculos. Precisa-se incluir, entre outros aspectos, a discussão das especificidades do experimento, das observações e dos possíveis erros.
O formador Q4 aponta a utilização de um software que foi planejado para gerar questionamentos a partir da sua utilização:
[...] um software [...] que foi usado numa disciplina [...] fazendo vários experimentos com um ratinho virtual. Era um experimento simulado mesmo. [...] esse [software] do ratinho eu lembro que é legal porque têm coisas que dão errado e os alunos eles são colocados para traçar hipóteses e elementos sobre o que aconteceu ou por que que isso não está funcionando desse jeito. (Q4).
A elaboração de hipóteses pelos estudantes em experimentos é uma maneira de favorecer a apreensão dos seus conhecimentos iniciais (Gonçalves e Marques, 2012; 2011). O exposto pelo formador sugere que tal apreensão também pode ser tenazmente promovida em atividades experimentais mediadas por TDIC. O formador Q2 também discorre sobre situações diferenciadas para desenvolvimento da experimentação e para o envolvimento discente de maneira mais ativa:
[...] Então quando ele vai criar um experimento, desenvolver um experimento, discutir sobre o experimento que ele saiba tirar fotos, que ele saiba filmar, que ele vá pensar em que resultados está obtendo. Porque ai ele negocia entre os colegas com o professor, quer dizer, tem o mais experiente, o menos experiente, tem uma questão de configuração de comunidade ali. Então essa experiência a gente vem trazendo para o ensino superior nos cursos de licenciatura [...]. (Q2).
A ideia de registro das atividades experimentais ressaltada pelo formador Q2 também é um modo de fomentar a explicitação de conhecimentos discentes. O educador que descarta a memorização mecânica para ter ciência do conhecimento inicial dos educandos e assim discutir as limitações dos conhecimentos deles pode favorecer o processo de apropriação de novos conhecimentos.
Entende-se que toda transformação vem acompanhada de um processo gradual e os indicativos do que é e pode ser promovido pelos formadores precisa se constituir em objeto de problematização no desenvolvimento profissional desses. De tal sorte que aquilo que se configura como inédito possa ser efetivamente concretizado enfrentando as situações-limite caracterizadas anteriormente. Diante do exposto, identificaram-se não somente argumentações favoráveis de formadores de professores às atividades experimentais mediadas por TDIC, como também sinalização de possibilidades de inserção dessas atividades em cursos de formação inicial de professores na área de ciências da natureza. As situações-limite antes caracterizadas podem ser enfrentadas, por exemplo, diante da experimentação remota, simulações experimentais e de vídeos sobre experimentos, dentre outras possibilidades destacadas pelos formadores que caracterizamos como inédito viável. Este enfretamento parece se relacionar com uma necessidade de proble-matização das atividades experimentais, de modo geral, no desenvolvimento profissional de formadores de professores de ciências da natureza.
Considerações finais
Nesta investigação identificaram-se argumentos que podem caracterizar a manutenção de situações-limite acerca das atividades experimentais e que buscam sustentar a utilização "soberana" de laboratórios didáticos de bancada presenciais. Enquanto que atividades experimentais mediadas por TDIC ainda são vistas com desconfiança e às vezes descrédito. Motivação, apropriação de técnicas e um possível "distanciamento" causado pela utilização das TDIC foram argumentos levantados que alicerçam a situação-limite acerca da hegemonia do lócus da experimentação. Outra situação-limite caracterizada indica que as TDIC ainda são vistas de maneira expressiva como somente "ferramentas" secundárias para o desenvolvimento de atividades experimentais. Nesta análise reside também o inédito viável, que precisa se constituir em objeto de problematização no desenvolvimento profissional dos formadores - assim como as situações-limite 194 -, de modo que aquilo que se configura como inédito possa ser efetivamente concretizado enfrentando as situações-limite caracterizadas anteriormente.
Apesar dos avanços por meio de pesquisas que sinalizam possibilidades e vantagens das articulações entre atividades experimentais e TDIC, a exemplo daquelas citadas neste trabalho, foi possível identificar o distanciamento em certa medida das compreensões de investigados daquilo que está exposto na literatura. O acesso sistematizado dos formadores de professores de ciências da natureza a resultados de pesquisas como aqueles de Zacharia e Constatinou (2008) que mostram que tanto atividades experimentais em laboratórios didáticos de bancada presenciais como aquelas mediadas por TDIC podem favorecer as aprendizagens discentes, pode implicar em resultados mais positivos junto aos formadores. Depreende-se também dos resultados que quando se investiga compreensões docentes nem sempre se obtém considerações tão otimistas como no trabalho de Zacharias (2003).
De outra parte, considera-se como uma das principais contribuições desta pesquisa a caracterização de novos constituintes de situações-limite e inédito viável não identificados nos trabalhos de Gonçalves e Marques (2016) e de Gonçalves e Marques (2013) no que concerne às atividades experimentais na docência dos formadores de professores de química. Tais trabalhos também se apoiaram nas categorias analíticas exploradas por Paulo Freire, mas não trouxeram o exposto nesta pesquisa. Entende-se que nossos resultados podem somar àqueles, de modo a reforçar um quadro teórico que colabore para a abordagem das atividades experimentais junto aos formadores de professores e na própria formação inicial e continuada de professores de ciências da natureza. Ademais, reforça-se o potencial destas categorias analíticas para a pesquisa que relaciona formação de professores e atividades experimentais. Destaca-se ainda que os resultados explorados nesta pesquisa se diferenciam daqueles citados previamente associados às TDIC no contexto da formação de professores da área de ciências da natureza e matemática por meio dos trabalhos de Heckler, Motta e Galiazzi (2015a; 2015b), Scanlon et al. (2002) Zabel e Malheiros (2015) e Silva (2013). A centra-lidade dos nossos resultados na interlocução explícita com formadores de professores traz uma perspectiva de discussão que se diferenciou do identificado na literatura.
Foi possível identificar que um mesmo formador apresentou compreensões que ora contribuem para manutenção de uma situa-ção-limite, e ora para vislumbrar um inédito viável. Não se entendeu isso como um problema, uma vez que o próprio Freire (1985) apontou a possibilidade de não haver fronteira obrigatoriamente rígida entre conhecimentos novos e velhos e nem abandono imediato de conhecimentos antigos por novos conhecimentos apropriados pelos sujeitos - para o autor somente a ingenuidade tecnicista poderia assim pensar. Compreendemos que transitar entre compreensões quanto às TDIC associadas às atividades experimentais indica a possibilidade de um trabalho mais intenso e efetivo, a fim de proporcionar a transformação e, consequentemente, a superação das situações-limites apontadas ao longo da análise.
A hegemonia do laboratório didático de bancada presencial deve ser repensada no intuito de se explorar com maior efetividade a inserção das TDIC em situações de ensino, pois se entende que a utilização mais frequente de simulações, de vídeos, de outros materiais audiovisuais ou até mesmo de experimentação remota pode contribuir para que se tenha mais tempo para discussão acerca do que é abordado no experimento, ao passo que em situações com laboratório didático de bancada presencial em muitos casos se despende demasiado tempo para um procedimento. Compreende-se que a articulação entre atividades experimentais e TDIC pode colaborar para acentuar a discussão sobre o que é estudado nas componentes curriculares de conteúdos específicos de ciências da natureza.
Na utilização de TDIC ainda parece haver muitas dúvidas e incertezas, embora elas estejam cada vez mais presentes em processos educativos. O que pode, de certa maneira, expressar algo paradoxal. Portanto, chama-se a atenção para a importância de pesquisas referentes às TDIC na formação inicial de professores, em especial, no que diz respeito a cursos de licenciatura em ciências da natureza (biologia, física e química), pensando-se nas particularidades desta formação, como o envolvimento das atividades experimentais mediada por TDIC. A discussão desta utilização também deve contemplar o desenvolvimento profissional dos formadores que atuam em tais cursos. Para isso parece interessante a formação de grupos de discussão sobre estes novos artefatos tecnológicos, bem como o envolvimento destes docentes com outros profissionais para a construção de objetos educacionais. Destacaram-se ainda na análise os silêncios nas compreensões dos formadores, como questões relacionadas às limitações em atividades experimentais promovidas em laboratórios didáticos de bancada presenciais.
Por fim, é importante compreender as TDIC como possibilidade no sentido de não segregar e/ou substituir em definitivo toda e qualquer atividade experimental desenvolvida em laboratório didático de bancada presencial. A dicotomia entre experimentos mediados por TDIC e atividades experimentais em laboratórios didáticos de banca presenciais pode configurar uma artificialidade que se adéqua pouco até à prática daqueles que minimizam em seu discurso as contribuições dos experimentos mediados por TDIC.