Introdução
A atenção em saúde mental voltada à criança e ao adolescente tem apresentado inúmeros desafios, tanto para a gestão pública, quanto aos profissionais de saúde em seus cotidianos de trabalho, frente à construção permanente de uma rede de cuidado e o desenvolvimento de ações intersetoriais. Como contribuições na compreensão desse cenário, apresentam-se alguns resultados de uma pesquisa que teve como principal objetivo identificar e problematizar as noções de infância pautadas nas práticas psicológicas nos Centros de Atenção Psicossocial para Infância e Adolescência (Capsi), operando no Brasil. Dentre as publicações recentes, alguns estudos abordam as práticas e reflexões sobre o trabalho da saúde mental direcionado à infância e à adolescência no Brasil, discutindo práticas de trabalho e modos de gestão em rede (Lauridsen-Ribeiro & Lykouropoulos, 2016; Couto et al., 2008).
Quanto às pesquisas realizadas no mesmo contexto analisado (estado do Rio Grande do Sul, Brasil), alguns estudos, como por exemplo de Silva et al., (2010), buscaram compreender a historicidade da internação de crianças e adolescentes no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre e outros abordam a micropolítica do trabalho nos Capsi´s (Cervo & Silva, 2014; Rodrigues et al., 2019). Frente a isso, este estudo tem o objetivo de colaborar para o fomento de estudos sobre saúde mental infanto-juvenil, além de mapear aspectos da assistência e atenção em relação às crianças e aos adolescentes em sofrimento psíquico, entendo a construção dessas práticas e políticas de cuidado dentro das estruturas formais de atenção à situações graves (Couto, 2004; Couto & Delgado, 2015).
Muitos desafios são postos para a consolidação e o avanço de uma política pública de saúde mental voltada à infância e à adolescência no Brasil. A própria noção de infância, como um conceito que vai se desenhando nas práticas dos serviços de saúde, coloca-se como ponto central, tanto nas diretrizes de trabalho das políticas de saúde, quanto nas implicações e desdobramentos que se produzem no cotidiano dos serviços. Muitas vezes, têm-se concepções naturalizadas de infância e adolescência que corroboram para um apagamento da construção histórica e social das singularidades de cada criança e adolescente que frequentam o serviço (Luckow & Cordeiro, 2017).
Nesse sentido, muitos profissionais, incluindo os da Psicologia, não conhecem as especificidades do trabalho na saúde mental e as ações tanto nucleares como de campo de cada área do conhecimento (Campos, 2003; Beltrame & Boarini, 2013). Embora muitos profissionais desenvolvam estratégias de cuidado a partir de uma lógica da atenção psicossocial, muitos reproduzem um modelo enraizado na visão hegemônica de saúde, com ações verticalizadas e fora do território existencial do usuário (Belloti et al, 2018).
O Capsi, campo desta pesquisa, se constitui como um serviço comunitário de atenção diária para crianças e adolescentes com grave comprometimento psíquico, tais como autismo, psicoses, neuroses graves e situações nas quais a fragilização dos laços sociais produz impedimentos nos processos de vida do usuário (Brasil Ministério da Saúde, 2004). Tal serviço, faz parte de uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), constituída de diferentes equipamentos de saúde destinados ao cuidado em saúde mental. Dentre os seus objetivos, a RAPS destaca-se por subsidiar cuidados em saúde a grupos vulneráveis tais quais, crianças, adolescentes e jovens (Brasil Ministério da Saúde, 2014). Instituída pela portaria GM n.º 3.088, é organizada a partir dos seguintes componentes: Atenção Básica em Saúde, Atenção Psicossocial Estratégica (em que se localiza as diferentes modalidades de Caps, incluindo o Capsi), Atenção de Urgência e Emergência, Atenção Residencial de Caráter Transitório, Atenção Hospitalar, Estratégias de Desinstitucionalização e Estratégias de Reabilitação Psicossocial (Brasil Ministério da Saúde, 2011). Estima-se que em torno de 12% de crianças e adolescentes mundialmente sofrem de algum transtorno mental e que necessitam de algum cuidado em serivço especializado (Kieling et al., 2014; Almeida et al., 2019).
O Capsi constitui-se como serviço estratégico e organizador da rede de cuidados voltados à infância e à adolescência, conforme Portaria GM/MS 336 (Brasil Ministério da Saúde, 2002), considerando os marcos legais desde o Estatuto da Criança e do Adolescente, em que destaca o público infanto-juvenil como prioritário na agenda do setor público no país, até a constituição e efetivação da RAPS, que insere com destaque a atenção integral ao cuidado de crianças e adolescentes no Sistema Único de Saúde, com acesso universal e gratuito (Brasil Ministério da Saúde, 2010; 2005). Dentre os diferentes serviços prestados pelo Capsi estão: “atendimento individual, atendimento grupal, atendimento familiar, visitas domiciliares, atendimentos de inserção social, oficinas terapêuticas, atividades socioculturais e esportivas” (Brasil Ministério da Saúde, 2004, p. 23).
Quanto às demandas de cuidado realizadas ao Capsi, tem-se observado um alto índice de encaminhamentos realizados pela escola e por profissionais de saúde de diferentes setores (Beltame & Boarini, 2013). Muitas vezes, são discursos poliqueixosos e constituem-se como modos de normatização para situações que esses profissionais compreendem como desadaptadoras ou transgressoras. Nesse sentido, Kamers (2013, p. 154) observa que “a escola tem se tornado o principal dispositivo regulador da inclusão/exclusão da criança no domínio do saber médico-psiquiátrico”. O uso da medicação como resposta privilegiada ao cuidado dessas crianças abre margem a um amplo processo de medicalização da vida infantil como tentativa de restabelecimento da ordem vigente. Isso produz uma psiquiatrização da vida cotidiana que se manifesta, muitas vezes, na criação de diferentes diagnósticos, como uma tentativa de responder às questões da infância no plano social (Freitas & Amarante, 2015). Corre-se, pois, um risco de um processo de apagamento da infância e uma tentativa de transformar a vida infantil em um modo de vida ideal da existência dos adultos, uma vez que a práxis médico-psiquiátrica, ao se debruçar às sintomatologias das crianças, consubstanciada nas falhas do funcionamento cerebral e em sua neuroquímica, abre caminhos para medicalização da vida infantil (Kamers, 2013).
Isto posto, a Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (SMCA) apresenta importantes desafios para o avanço da política de saúde mental dessa área. Um deles refere-se ao modo como a infância é compreendida nos Capsi´s, que é o objetivo norteador deste trabalho. Para além disso, a medicalização da vida infantil e seus desdobramentos no campo do discurso social bem como as dificuldades de construção de uma rede intersetorial, são desafios permanentes no cotidiano dos serviços.
Uma das dificuldades para um avanço na política integral de saúde mental infantojuvenil está em ignorar que “a loucura” ou o adoecimento psíquico podem ser uma experiência da infância, a partir de uma romantização da infância que estaria imbrincada nas práticas de cuidado dos serviços (Couto, 2004). Essa romantização se choca com a ideia de que não há uma infância “por ela mesma”, mas há a produção de diversos discursos sobre a infância, a partir de um conjunto de normas nas relações adultos-crianças, ancorados em um sentimento de piedade e ternura e de uma certa política da verdade, ou seja, ao mesmo tempo em que a cultura começa a demarcar a infância e suas características, ela principia o chancelamento do que realmente ainda pode caber nesse campo de existência (Corazza, 2000). Dessa forma, pode-se dizer que o sujeito infantil é constituído e produzido por diferentes construções históricas, contrapondo a ideia hegemônica da infância concebida e caracterizada por um período de tempo geralmente estanque, que demarca o início e o fim de uma etapa da vida (Hillesheim & Guareschi, 2007).
Diante disso, objetivo geral deste artigo é discutir como a noção de infância vai se constituindo nas narrativas dos profissionais que atuam em Centros de Atenção Psicossociais infantojuvenis e quais discursos sobre infância se pulverizam sobre as crianças atendidas nos serviços de saúde mental. Outros objetivos subjacentes centraram-se em conhecer as práticas de cuidado que vão sendo desenhadas pelos profissionais da psicologia e nos desafios do trabalho da psicologia nesse contexto, para a construção de práticas do cuidado alinhadas à Política de Saúde Mental Infantojuvenil.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo exploratória, com a participação de nove psicólogas, integrantes de equipes que atuam em cinco Capsi do estado do Rio Grande do Sul, selecionadas a partir de uma amostra de dezesseis Capsi´s cadastrados na Secretaria Estadual no momento da realização da coletiva dos dados (Oliveira, 2018). Tendo em vista, a extensão geográfica do Estado do Rio Grande do Sul, optou-se por realizar uma seleção da amostra por conveniência, a partir de um sorteio. Como critérios para a inclusão dos participantes, foi determinado o seguinte: ser psicóloga atuante no serviço no mínimo 6 meses; e como critério de exclusão, serem de outros núcleos profissionais e atuarem com menos de 6 meses no Capsi. O pesquisador apresentava o projeto para a equipe do Capsi e posteriormente realizava o convite para todos os psicólogos que participaram da equipe de saúde. A média de idade das pessoas participantes concentra-se entre 23 a 47 anos e o tempo de formação em psicologia entre dois a vinte e quatro anos.
Foi realizada entrevista semidirigida, gravada e transcrita na íntegra, que investigou temáticas tais como, a noção de infância nas práticas de cuidado e as percepções dos desafios do trabalho no cotidiano dos serviços, a partir de perguntas tais como: “de que maneira você compreende o serviço do Capsi?”; o “que você compreende como infância no seu contexto de trabalho?”; “quais os desafios da sua prática dentro do serviço de saúde?”, entre outras. As entrevistas foram realizadas dentro dos Capsi´s em local com garantia de sigilo, escolhido pela participante, com duração em média de uma hora. Além da entrevista, foi utilizado o diário de campo sobre as visitas aos locais, para registrar os itinerários das experiências da pesquisa. O diário de campo foi construído pelo pesquisador após cada visita nos Capsi´s, entre o intervalo das entrevistas e após as reuniões de equipe em que o pesquisador pôde se inserir. Constitui-se como uma “escrita do presente”, que incita um movimento de reflexão da própria prática, na medida em que, o exercício da escrita, se constitui como um movimento de reflexão sobre e com o vivido (Pezzato & L´Abbate, 2011). Nesse sentido, o diário se refere as “anotações das experimentações e dos acontecimentos realizados durantes os estudos e suas ressonâncias” (Nascimento & Lemos, 2020, p.241), e foi integrado à leitura das entrevistas para a construção da categorias de análise.
As produções desses encontros foram analisadas pela análise temática (Minayo, 2010), uma vez que permite analisar diferentes contextos a partir de significantes, estruturas sociológicas dos enunciados articulados aos processos psicossociais e ao contexto social e cultural. O primeiro passo da análise centrou-se na leitura dos materiais e na realização de uma pré-análise, com o objetivo de formular unidades de registro e de contexto, a partir da leitura exautiva do material transcrito. O segundo passo consistiu na codificação dos registros a partir dos referencias da reforma psiquiátrica, enquanto um campo múltiplo e crítico do saber. Após essa fase, mediante a leitura flutuante, consideraram-se os critérios de representatividade, pertinência e exaustividade. A partir das transcrições, construíram-se eixos analíticos para a sustentar a argumentação das ideias a partir da fala das entrevistadas. O primeiro eixo discute como a noção de infância se constitui nas práticas de cuidado a partir dos discursos de profissonais que atuam no Capsi, o segundo eixo discute as construções de demandas nos Capsi´s e o último, os processos de patologização e medicalização da vida infantil.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisas com Seres Humanos, vinculado a Plataforma Brasil sob o número: 72820517.7.0000.5336. Todas as participantes assinaram o TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido), respeitando as diretrizes éticas das resoluções 466 e 510 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil Ministério da Saúde, 2012; 2016).
Resultados e discussões
As noções de infância nas práticas de cuidado nos Capsi´s
As perguntas no campo de investigação apontaram sobre as especificidades das práticas da psicologia nos Capsi´s, sobre o funcionamento do serviço e sobre os obstáculos do trabalho. Em um dos pontos da entrevista, questionam-se as participantes acerca do entendimento sobre a infância. Em todas as entrevistas, essa pergunta foi tomada por surpresas e questionamentos. Foram momentos de ruptura e de descontinuidades na fala das entrevistadas. Uma das marcas que se mantém é uma idealização da infância, como esboçado nos excertos abaixo, costurada em diferentes momentos das entrevistas.
Eu sempre falo pro pessoal do estágio isso da questão da infância que a gente tem uma ideia de infância como o período melhor da vida, né, mais feliz, a gente tem saudade quando a gente era criança e tal (Participante 02).
Infância é um momento sagrado. A meu ver, é um momento em que a criança tem que ser cuidada, tem que ser amada, tem que ser protegida. É o iniciozinho da vida. Tudo que acontece na infância reflete na vida adulta. A infância pra mim é uma idade sagrada (Participante 04).
As falas ilustram a manutenção de uma ideia de certa ingenuidade, pueril, afeita ao próprio conceito e que está alicerçada em uma ideia de infância que começa a se desenvolver no século XIII, mas que assume seu auge no século XIX, que é a representação da criança “engraçadinha”. Essa sensibilidade em compreender a infância faz começar a aparecer, na relação das crianças com suas amas, uma linguagem, um vocabulário e um jargão utilitário os quais nos dão um sinal de que há ali, na relação das crianças com os adultos, uma determinada conexão com o campo do infantil.
Na mesma perspectiva, outra participante vê a infância em uma perspectiva romântica e de alegria.
[...] a infância é uma fase de mudança constante e alegria, vejo a infância como alegria! Também, desde a gente se manter sempre colorido, porque a gente, nosso serviço era todo sem cores [...] A gente chegou, a gente quis revolucionar: “vamos pintar as portas coloridas (Participante 06).
De acordo com Schérer (2009), a criança, em sua cotidianidade, aos poucos desperta no adulto uma virtude travestida de inocência que vai produzindo e mantendo um determinado tipo de contato com a infância. Somos arremessados automaticamente a “um tempo áureo, idílico, muitas vezes romântico, tempo de nossa vida em que não tínhamos mais nada a fazer do que brincar e sonhar e crescer, em habitar outro mundo, o mundo dos adultos” (Redin & Redin, 2008, p. 11-12). A partir dessa visão, corre-se o risco de pensar a infância apenas constituída de sensibilidades boas, e de que não há nela, como em qualquer fase do desenvolvimento, modos de sofrer, modos de adoecer, que possam demandar cuidados especializados.
Na mesma direção, outra participante coloca a questão da infância atrelada ao campo de desenvolvimento alinhado às concepções classicistas do desenvolvimento humano, tomando-a como uma das etapas mais importantes do sujeito, conforme sugere a fala seguinte: “infância pra mim é a fase principal que embasa todo desenvolvimento, né, tudo que aquela pessoa vai ser. Então é uma fase muito importante que deve ser protegida, deve se ter uma visão priorizada” (Participante 05).
Tomar a infância, a partir da insígnia desta romantização, a partir de etapas pré-estabelecidas do desenvolvimento, ou percebida como um momento mais feliz de um sujeito, além de ser marcada por um certo determinismo factual da infância, coloca em risco as concepções de trabalho preconizadas pela política de saúde mental voltadas à infancia e a adolescência (Brasil Ministério da Saúde, 2014), que tenta afirmar a criança como um sujeito desejante, produzido histórico e socialmente, como sujeito de direitos, deveres, mas alguém capaz de ter sua expressividade legitimada no contexto social e também na relação com os serviços de saúde. Isso encontra esteio na própria herança do nascimento da profissão da psicologia no país, que se destacava na definição de parâmetros de normalidade e anormalidade e que tinha certa autoridade para falar sobre a infância. A infância no campo hegemônico psicológico passa a ser entendida, como uma etapa separada das outras fases do desenvolvimento (Hillesheim & Guareschi, 2007). Essa romantização da infância borra o olhar sobre outros modos de existir infantis, perpassados pelas marcas de violência, de abusos, de alienações parentais. Ou seja, há infâncias que não deixam saudades.
Dito isto, a romantização da infância pode ser um dos entraves para o avanço de uma política de saúde mental voltada à infância e à adolescência. Esse entrave recai sobre a ideia de que conceber uma criança, unicamente como um ‘ser em desenvolvimento’, parece engendrar essa tão corriqueira noção de ‘deficiência’ (fartamente utilizada como categoria diagnóstica) sempre que ela se descola do seu curso ideal, ‘desadaptando-se’, ou “[...] a desconsideração de que a criança possa portar o enigma da loucura. Criança deficiente e desadaptada sim, louca não” (Couto, 2004, p. 4).
Entender que a criança está em desenvolvimento contínuo traz certa apreensão na medida em que não se olha para a criança no lugar em que ela está, mas sim para o lugar que ela potencialmente pode ocupar no futuro. É um “vir a ser” não como um devir, mas como um lugar seguro a habitar, ou corre-se o risco de olhar para a criança e ter a tarefa principal de prepará-la para ser um adulto (Barbosa, 2015). E não um adulto qualquer, mas um adulto normalizado e produtivo. Dessa maneira, a infância também vai sendo produzida no território das ideias neoliberais, como forma de manutenção desse sistema, a partir do controle e da regulação da população infantil (Gadelha, 2010). Ou, como defende Couto (2004, p. 6),
tributar a uma criança a enigmática condição de uma existência particular, louca, exige um duro exercício de rompimento com os ideais que na modernidade sustentaram sua inclusão diferenciada e valorada na cena social. [...] Essa criança ‘louca’ macula ideais, subverte o imaginário cultural, mas nos convoca, a todos, o desafio de delas cuidar, tratar e com elas coexistir.
Entretanto, no decorrer das entrevistas e nos registros das observações, nota-se o contrário. A infância que emerge na condição de um discurso é uma infância de muitas vulnerabilizações, de muitas questões sociais e de sofrimentos. Chama a atenção o paradoxo enunciativo nos trechos abaixo.
[...] Ah, o que a gente vê por aqui nos serviços é uma infância muito triste, muito diferente daquilo que a gente imagina. Eu me preocupo muito com as crianças de 9 e 10 anos que se cortam e tentam se matar, diz a técnica de enfermagem na reunião geral do Capsi (Diário de campo, julho de 2018).
As crianças que chegam aqui, em grande parte, têm problemas graves, alcoolismo, problemas de abandono, de negligência, de violência, tentativa de suicídio (Participante 01).
Hoje o que mais se recebe no serviço são crianças com tentativas de suicídio, tu imagina, né, isso não tinha antes, crianças se cortando, com depressão. No meu tempo não era assim, tá tudo meio louco hoje em dia, tu não achas? (Diário de campo, junho de 2018).
Tentativa de suicídio, automutilação, antes a gente atendia mais a falta de limites (Participante 04).
Em um primeiro momento, essas acepções causam estranheza, visto que o mandato social do Capsi é prestar serviços para crianças e adolescentes que apresentam dificuldades de diferentes ordens, sejam neurológicas, psíquicas, cognitivas, mas fundamentalmente para crianças com dificuldades de se inscreverem no laço social. Um dos desafios dos serviços é ter que lidar no cotidiano e nas micropolíticas de trabalho com os encontros e os desencontros entre a infância ideal e a infância real. Assim, essas ideias abrem campo para se compreender quais demandas chegam aos serviços de saúde e como elas vão sendo conformadas nas práticas de trabalho, que são compostas também a partir dessas visões dicotômicas e fragmentadas sobre a infância.
Apenas duas entrevistas trouxeram outro recorte sobre a infância. Ambas reconhecem que a infância é uma fase importante do desenvolvimento, que tem suas potencialidades e suas dificuldades como qualquer outra etapa de constituição do sujeito e, portanto, apresenta também suas vicissitudes.
Eu não consigo tirar essa questão social, da construção social da infância. Antes de trabalhar aqui eu pensava a infância dissociada de sofrimento, [...] hoje o meu olhar sobre a infância é mais turvo, de pensar sobre esses sofrimentos todos que a infância atravessa. Me incomoda esse lugar de não infância hoje, de não poder brincar, de não poder errar, de fantasiar, de sonhar. Me parece que ou tudo é sintoma, ou não é nada. Para mim é da infância que a gente constrói sujeito (Participante 08).
É uma fase da vida, é um momento. Eu vejo mais potência na infância, porque ela tem menos marcas. Tu não vê tantas situações que se cronificam. É um momento que ainda é possível fazer algo. São histórias de muito sofrimento, violência doméstica, abusos (Participante 09).
As duas participantes exploram essa questão da infância observando alguns eixos de entendimento. Um deles é a patologização da infância, ou seja, a transformação de determinados aspectos da vida infantil em problema de saúde mental. Frente a isso, elas destacam a dificuldade dos pais ou responsáveis em sustentarem uma posição de cuidado e orientação.
Muitos chegam no serviço dizendo que a criança bagunça demais, que não se aquieta na escola e o que mais me questiono e reflito é poder dizer para os pais: Mas isso é coisa de criança. Tu que é o adulto. Tu que tem que tirar ele da cama. Tu que tem que dizer que tem que escovar os dentes depois de toda refeição. Para mim isso é que é infância. É poder esquecer que tem que escovar os dentes. Ou quando a criança chora a gente precisa abrir esse diálogo mostrar para ela que, sim, que a gente sofre, que chora, mas que vai passar, que tem alternativa para isso (Participante 08).
A partir do exposto, observa-se então uma certa dificuldade dos pais ou dos responsáveis em se situarem frente ao desenvolvimento da infância dos filhos, ou numa expectativa de se adequar a comportamento normal esperado pelo mandato social. Muitos desses pais, constituíram-se a partir de infâncias com muitas vulnerabilidades1, e histórias de sofrimento, muitas vezes, sem uma referência para lidar com questões de saúde mental, quando isso acontece com seus filhos.
[...] a gente precisa entender que os pais, os cuidadores também têm suas histórias de sofrimento, de abandono, têm muitas marcas. E os pais cuidam do jeito que eles conseguem. Muitos deles também não foram cuidados de uma maneira que era para ser cuidado, que a gente imagina cuidar. Então a gente precisa ajudar essa família a se cuidar e a poder cuidar dessas crianças e isso é fundamental no meu trabalho, é por isso que eu continuo aqui (Participante 09).
Em grande parte dos relatos, observa-se uma certa inferiorização e idealização da infância percebida a partir de um eixo de menoridade, desconsiderando, muitas vezes, a dimensão de sofrimento e as diferentes complexidades que constituem os processos subjetivos dos que demandam o serviço de Capsi. Tais percepções, além de centrar a infância pela ótica desenvolvimentista, deslegitima como aponta Couto (2004), a possibilidade da criança poder falar sobre seu sofrimento de uma forma autêntica e reconhecida nos serviços de saúde e também ter o direito de poder dizer, a partir da sua experiência de sofrimento, caminhos possíveis do cuidado, como preconiza o Projeto Terapêutico Singular (PTS)2, norteador do trabalho nos equipamentos do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), como proposta de incluir e democratizar esse processo, e não tomar a infância como mero objeto de intervenção do Estado. Os marcadores legais da SMCA reconhece a criança como um “ser a vir”, ser em desenvolvimento e diferente dos adultos desenvolvidos. No entanto, “ao contrário da tradição, que considera este inacabamento como negatividade e o equaciona com menos direitos, (...) reconhece que, exatamente porque tais seres são ainda “inacabados”, tal por vir deve ser valorizado”, como possibilidades de construção de novos caminhos do cuidado (Brasil Ministério da Saúde, 2014, p.14).
Desafios do trabalho profissional no Capsi: As construções e produções de demandas
A partir da fala das entrevistadas, um dos desafios do trabalho profissional foi a construção das demandas de atendimento dentros dos serviços. Quais as principais demandas dos Capsi´s e como elas se estabelecem no discurso social. Por um lado, há as prerrogativas preconizadas na política e nas portarias que estruturam os serviços de saúde mental, que caracterizam o público-alvo dos Capsi´s; por outro lado, existem as demandas que vão sendo forjadas pelo campo social e que se constituem como demandas reais no cotidiano dos serviços.
Sabe-se que o Capsi é um serviço aberto, de caráter comunitário e territorial (Brasil Ministério da Saúde, 2004). O caráter aberto indica que o serviço deve receber e acolher todos os usuários, sem burocratização do acesso, e que deve ser destinado a crianças e adolescentes com importante sofrimento psíquico (Lauridsen-Ribeiro et al., 2016). Nesse sentido, abarcam-se “quadro de autismo, psicoses, neuroses graves e todos aqueles que, por sua condição psíquica, estão impossibilitados de manter ou estabelecer laços sociais” (Brasil Ministério da Saúde, 2004, p. 23), ou seja quanto a criança e o adolescente se vêem impossibilitados de colocarem seus projetos de vida em curso. No entanto, observa-se que, muitas vezes, o que é denominado “neurose grave” torna-se um conceito-solução para englobar tudo aquilo que “não cabe” em outros serviços de atendimento de saúde nos municípios. Isso aparece de forma mais grotesca nos acolhimentos nos serviços, dando margem a algumas questões importantes. O que fica e o que não fica no serviço? Quais redes de cuidados os municípios comportam? Como são as práticas de chegada e de acolhimento nos serviços? Como cada município, a partir do seu entendimento e de suas capacidades, organiza um fluxo de demanda?
No que tange à construção das demandas nos Capsi´s, um dos eixos mais apontados refere-se às demandas sociais.
[...] grande parte da procura aqui são crianças que sofrem, e que envolvem [...] digamos, questões sociais, muito complicadas, por exemplo violências, abuso sexual [...] às vezes não têm familiares, às vezes por exemplo têm transtornos, problemas graves, alcoolismo, sei lá o que, que estavam gerando muita dificuldade na criança, questões que envolvem abandono, negligência, violência, e às vezes essa é uma demanda que a gente acaba tendo que atender (Participante 01).
Nesse sentido, outra participante afirma que antigamente o que chegava mais como demanda de atendimento eram os pacientes mais neuróticos, como se observa no depoimento abaixo.
[...] tinha muito paciente bem neurótico. Não eram pacientes tão graves [...]. A gente não tinha autista. Olha, a gente contava nos dedos quantos tinha [...]. A gente não tinha quase internação psiquiátrica de criança, que hoje tem bastante da criança tá muito desorganizada. É uma coisa a se estudar, do que aconteceu nesses dez anos, mas mudou muito e nós também (Participante 02).
As participantes comparam os diferentes tipos de demandas que se constroem no serviço. Com muita frequência, elas se referem a demandas de Capsi e a demandas que não são de Capsi, como citado: “chega muito para nós crianças que têm muitas dificuldades escolares, enurese, dificuldade de relacionamento, depressão e várias outras coisas que não são de Capsi” (Participante 01).
E o que são "crianças de Capsi? O que demarca uma indicação para a entrada no Capsi? Como se dão, no cotidiano dos serviços, essas decisões, do que entra e o que não entra a partir dos acolhimentos. Parece que há um limite e uma confusão nos serviços entre o que é da ordem do psicopatológico, entendido como uma vivência de sofrimento da criança, e aquilo que é uma construção demandante da escola e da sociedade, visto como uma problemática de saúde mental do que eles compreendem como criança-problema. Com isso, figuram ao menos duas concepções importantes: a primeira de que a criança não entende de si e, portanto, não sofre, não deseja; e a segunda de que esse é o melhor período da vida, reafirmado pelas falas das participantes novamente, uma certa romantização da infância que incide nas práticas de trabalho profissionais. Observa-se que essa falta de clareza dificulta os fluxos de atendimento e atrapalha os processos de trabalho nos serviços quanto à linha de cuidado ofertada ao usuário.
[...] antes toda a demanda que chegava a gente atendia, e a gente não entendia que não tinha que atender. A gente demorou muito tempo para compreender que as demandas de Capsi eram casos mais graves (Participante 04).
[...] os casos que são realmente para Capsi, né... autismo, risco de suicídio, transtorno de aprendizagem, de comportamento (Participante 05).
Diferentes pesquisas questionam os problemas do diagnóstico quando se trata de crianças e adolescentes (Kamers, 2015; Mariotto, 2015; Guarido, 2015). Uma dessas críticas centra-se no processo de medicalização e psiquiatrização da vida baseado nos efeitos que os grandes códigos da Psiquiatria tradicional produzem sobre as pessoas. A ideia de classificação dos transtornos mentais, pautada principalmente no DMS (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), da American Psychological Association (APA), e na Classificação Internacional de Doenças (CID-10), é resultado de um processo de construção social, com categorias nosológicas heterogêneas e limites pouco claros (Izaguirre, 2011). Além disso, os autores críticos da psicopatologização da vida afirmam que essas classificações são de alguma forma arbitrárias, conjeturais e interesseiras (Bekerman, 2011). Desse modo, os fenômenos psicopatológicos não existem sem os construtos psiquiátricos. Podem-se citar vários exemplos desses fenômenos, dentre eles o déficit de atenção, a homossexualidade, os transtornos ansiosos, etc. (Freitas & Amarante, 2015). Dessa maneira há um reconhecimento importante de que:
[...] ao se reconstruir a história de cada uma dessas categorias de diagnóstico, verifica-se que os critérios de classificação mudam historicamente, bem como as condições morais, políticas e institucionais que permitem que essa ou aquela categoria seja incluída ou excluída dos manuais de diagnóstico (Freitas & Amarante, 2015, p. 47).
Diante disso muitos profissionais acabam questionando os motivos de encaminhamento e os modos de intervenção, como se observa a seguir:
[...] a gente recebe muito casos de autismo, o tempo todo, e a gente, enquanto equipe, se questiona se é autismo mesmo, porque a gente vai avaliar a criança e não vemos nada do que a gente estuda de autismo ali (Participante 06).
[...] chegam no serviço muitos casos de autismo que não é autismo. Daí a gente fala com o médico, a gente fala com a escola e eles dizem que é autismo e pronto. E isso dá um trabalho muito grande para nós. Desconstruir esse diagnóstico, até com a equipe às vezes. As crianças já vêm diagnosticadas pela escola e até com indicação de remédio (Participante 08).
Essa pulverização dos diagnósticos pelo campo social, como observado nas falas das participantes, traz alguns problemas importantes, como a fabricação de patologias infantis por um discurso de psiquiatrização dos modos de viver (Kamers, 2013). Como observado nas falas supracitadas não há um consenso entre as equipes sobre determinados critérios diagnósticos sobre o autismo, por exemplo, o que dificulta os caminhos do cuidado nessas crianças em especial. Isso de algum modo, incide sobre os fluxogramas de acolhimento e interfere na decisão das equipes quanto a entrada da criança nos diferentes serviços ofertados pelo Capsi. Em contrapartida isso deslegitima os saberes nucleares de cada profissão frente avaliação daquele contexto, incluindo os saberes da psicologia, quando se está avaliando a criança em um contexto maior, tanto do ponto de vista psicopatológico, quanto do ponto de vista dos aspectos psicossociais que engendram uma demanda de cuidado.
Na reunião de equipe, muitos profissionais questionam que há uma grande dificuldade em avaliar as crianças nos serviços. Neste dia, a assistente social diz que não se tem muito critério para avaliar o que são casos leves, agudos ou moderados. A gente trabalha no olho do furacão. Fica difícil até saber como se dá alta para essas crianças. Tem crianças que chegam aqui com 4 ou 5 anos e já estão nos serviços completando a maioridade. A gente não consegue discutir essas questões com os diferentes setores da sociedade, principalmente a escola (Diário de campo, agosto de 2018).
Percebe-se que a lógica dos encaminhamentos funciona, muitas vezes, como um círculo repetitivo no qual a escola, confrontada com os problemas de aprendizagem ou de indisciplina da criança, solicita à família uma resposta, como observa a participante 01: “qualquer criança que não copiava na sala de aula a escola ou os pais mandavam pro Capsi”. Diante da dificuldade de os pais ou dos cuidadores lidarem com essas experiências, a escola encaminha, muitas vezes, a criança ao neuropediatra ou ao psiquiatra infantil, ou aciona diretamente o conselho tutelar, alegando negligência familiar. Consequentemente, a escola tem se tornado um dispositivo regulador da inclusão ou exclusão da criança no domínio de um saber médico-psiquiátrico, tendo o uso medicamentoso como forma privilegiada de responder às demandas sociais realizadas, fundamentalmente, pelas instituições de assistência à infância (Kamers, 2013). Essas construções de demanda são alicerçadas, comumente, em um modo de compreensão da subjetividade infantil, baseado na relação de normalidade e anormalidade, e inviabilizam construções de cuidado que atentem para as especificidades de cada criança. Diante do exposto, alguns desafios são colocados como problemas ao avanço de uma política de saúde mental infanto-juvenil.
Patologização e medicalização da vida infantil
Quanto aos inúmeros desafios que atravessam as práticas da psicologia dentro dos serviços o uso indiscriminado de psicotrópicos na infância, se destaca pelo depoimento das participantes deste estudo. Na fala das profissionais, quase todas as crianças atendidas fazem uso de, no mínimo, um psicotrópico. Vivemos, na contemporaneidade, uma epidemia de diagnósticos e uma psiquiatrização e psicologização da vida infantil que têm, na sua potência e eficácia, um uso indiscriminado de medicação. Por medicalização da vida entende-se a captura e a transformação de situações do cotidiano e de modos de existir em fatos médicos. Uma das faces do processo de medicalização é o uso abusivo de medicação como estratégia de controle e de restabelecimento da ordem (Freitas & Amarante, 2015). Quanto a essa questão as participantes anunciam que,
É uma demanda, não só do médico. Eu entendo o médico também. Tu vai ali e tu vai prescrever porque tu acredita na eficiência daquilo ali, mas é uma demanda social. Nossa! As mães, se tu não dá medicação... A escola já liga dizendo a medicação que tem que tomar (Participante 02).
Isso é uma das coisas que mais me questionei. Porque todas as crianças tomam medicações praticamente, 99% das crianças tomam, os adolescentes também. Então, muitas vezes as mesmas medicações, as mesmas doses, né [...] que sentido que isso faz? Será que todas têm essa demanda ou será que já é uma coisa padronizada, né, do serviço da psiquiatria assim? (Participante 03).
É difícil, assim, porque são medicalizadas com certeza. A agenda do doutor é lotada. Principalmente, hiperatividade, e tem essa cultura. Muitos chegam aqui já com a receita: “Eu quero tal remédio. Meu filho é hiperativo”. Já chegou com um diagnóstico. Talvez, seja mais fácil medicalizar o filho do que vir no grupo dos pais e ver as suas questões (Participante 04).
A epidemia de drogas psiquiátricas é um dos aspectos fundamentais da medicalização; “é o que melhor expressa a aliança entre a Medicina e a indústria farmacológica” (Freitas & Amarante, 2015, p. 33). No que tange à eficácia das drogas psicotrópicas no tratamento para infância, há poucos estudos para essa população, pois não há medicamento psicotrópico infantil. Na literatura científica, eles são chamados de “órfãos terapêuticos” (Meiners & Bergsten-Mendes, 2001). O que se utiliza são doses baseadas na relação peso-miligrama como uma forma compensatória, mas não há evidências de que os medicamentos melhorem os indivíduos a longo prazo (Freitas & Amarante, 2015). Em estudo realizado por Maciel, Gondim, Monteiro e Meireles (2013) sobre o uso de psicotrópicos nos Capsi´s do Ceará, evidenciou-se que 64% das crianças usavam antipsicóticos, sendo que 23,2% utilizavam antidepressivos, com seu uso maior na faixa etária de 3 a 8 anos.
Junto a essa questão, há uma banalização social frente ao diagnóstico e um lugar de resposta quanto às pressões da sociedade e dos saberes especializados que não respondem às produções do infantil contemporâneas e que buscam na patologização uma intervenção que produza algum tipo de resposta. Outrossim, há a pressão de um sistema de ensino que busca, muitas vezes, na adaptação da criança no contexto escolar, a partir de psicodiagnósticos e avaliação psicológica, a culpabilização dos problemas na criança (Oliveira & Marinho-Araújo, 2010). Desse modo, a medicalização da infância produz uma possibilidade de resposta a essas dificuldades.
Quanto a essa questão, uma das entrevistadas afirma que:
é bem difícil [...], porque a gente vai vendo os efeitos da medicação [...]; tem uma menina que eu atendo que tem 20 anos. Quando eu entrei, ela tava com 10 anos, então eu vejo ela há dez anos. A pessoa parece que, ao invés de melhorar, ela entra naquele sistema ali: “Ah, eu sou doente. Eu preciso de medicação a vida toda e tal” (Participante 02).
Sobre os efeitos citados, uma das participantes vê nos medicamentos uma forma de dar respostas simples a problemas complexos. Percebe muito mais uma anulação das características do que seria esperado do infantil do que de fato uma melhora consubstancial no quadro de sofrimento da criança, como é mostrado a seguir:
[...] eu via assim muito como uma anulação dessa infância, parece que muitas vezes, as condições, os transtornos, os casos que a gente via lá eram muito complexos. Então, sim, a maioria realmente precisava de medicação, mas muitos eram super medicados, então... parecia que, além de ser um apagamento dessa infância, era uma forma de apagar esses sintomas que incomodam todo mundo que tá ao redor, né, assim, incomoda a família, incomoda a escola, então, às vezes, principalmente atendimentos que eram de manhã, eles iam praticamente dormindo né, porque foram super medicados. Então qual o sentido também, né? (Participante 03).
[...] porque muitas vezes o médico dá uma dose e a família por conta aumenta. Aumenta, diminui, dá em outros horários, né... tá incomodando um pouco mais, então, mesmo não sendo horário vai lá e dá, pra se acalmar, porque não aguenta mais também, tanto que nisso o importante do Capsi é ter um cuidado também pra essa família, né, porque muitas vezes ela é esquecida (Participante 08).
Um desafio da Reforma Psiquiátrica é a construção de autonomia dos sujeitos - incluídas as crianças - frente aos seus processos de adoecimento e tratamento. Mas como construir autonomia, quando a criança é tutelada pela relação com seus pais ou responsáveis? Como dar voz e visibilidade ao que a criança diz? Como produzir autonomia e autoria frente a esse sujeito infantil que adoece? Grande parte das vezes, o tratamento é construído sem considerar o que a criança tem a dizer sobre essa questão, e isso se relaciona novamente com uma romantização e idealização da infância, como expressa a participante 03.
E hoje, acho que socialmente, a infância é uma coisa assim que... as pessoas veem como alguém ingênuo, alguém que não consegue desejar, né... alguém que a outra pessoa tem que falar por ti, que também não é isso, né. Acho que a infância é um sujeito em construção, um sujeito muito verdadeiro também porque ele fala . [...] Ainda é visto como um sujeito que alguém pode falar por ele, infelizmente, né, porque acho que as crianças têm muito a nos dizer. E muitas vezes nos serviços existe uma anulação do que ela está sendo naquele momento (Participante 03).
A partir dessas leituras, observa-se que a criança pouco tem vez ou voz dentro do contexto do serviço de saúde, fato reforçado por uma romantização da infância, desautorizada a dizer nada sobre si e sobre seu sofrimento. Há também um apelo social ou dos pais por uma intervenção medicamentosa, porque os pais se veem sem recursos para lidar com as demandas da criança e também se veem pressionados socialmente, principalmente pela escola.
É uma questão que, é... tá muito, crescendo muito. Os pais já vêm com uma ânsia muitas vezes. Assim como a gente encontra aqueles resistentes, né “ah, é pequeno” ou “vai fazer mal” ou “vai viciar”. Tem os que já vêm querendo a medicação e pedem até que o psicólogo prescreva né: “tu já pode me dar um remédio?”. [...] Claro que tem os casos que realmente precisam, eu mesmo costumo encaminhar pra avaliação do médico casos que precisam. Porque também a agenda a gente tem um psiquiatra, muito bom, muito experiente [...]; eu encaminho pra avaliação dele, algumas vezes ele diz assim, diz pro familiar, né: “vamos esperar mais um pouco, mais uns dois meses, pra ver como vai estar na escola [...] pra não receitar de imediato (Participante 04).
Porque eles vêm... é aquela questão, né, “vou levar lá e tudo vai se resolver”. Então às vezes tá com uma dificuldade de dormir, ou mesmo a agitação, eles querem aquela criança mais calma “porque ela não para nunca”, “porque eu me preocupo”, “porque eu passo o dia inteiro correndo atrás dela”, “a professora reclama. Eu chego lá, tá reclamando, tira da sala”. (Participante 05).
Mesmo assim, as profisisonais compreendem o uso medicamentoso como uma das estratégias de cuidado disponíveis dentro do serviço, porém não a mais importante ou utilizada. Ao se referir sobre essa questão, a participante diz que
o medicamento é importante às vezes, a gente não abdica disso. Acho que ajuda naqueles sintomas mais difíceis de tolerar. A gente medica em vários casos, mas o ideal é sempre ir retirando essa medicação conforme essa criança ou adolescente vai lidando melhor com as situações da vida dele e ir construindo com ele outras alternativas possíveis (Participante 09).
No entanto, ao contrário dessas demandas, algumas estratégias de cuidado buscam ser desmedicalizantes (Campos, 2003). A medicação pode ser utilizada como uma das estratégias de cuidado, no entanto observa-se que, muitas vezes, ela se torna a intervenção primordial. O seu uso excessivo colabora para tamponar ou anestesiar os processos infantis em nome da norma e do controle (Whitaker, 2016). No entanto, no cenário brasileiro algumas intervenções têm sido propostas como, por exemplo, a “Casa dos Cata-ventos” na cidade de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, que aposta em atividades baseadas na atenção psicossocial a partir de ferramentas como o brincar, a contação de histórias, oficinas de capoeira com o intuito de possibilitar a expressão de diferentes narrativas das crianças, constituindo uma intervenção com as crianças e não sobre elas (Gageiro, et al, 2018). Nesse sentido, pesquisas de intervenção com crianças e familiares acerca do uso de psicotrópicos, buscam outras possibilidades de cuidado com base na estratégia da GAM (Gestão Autônoma de Medicação), como forma de problematizar a relação dos sujeitos com seus tratamentos e medicamentos, considerando seus efeitos sobre os múltiplos aspectos de suas vidas (Chaves & Caliman, 2017). A GAM tem sido uma das estratégias utilizadas no Brasil para lidar com os aspectos medicalizantes de experiências de sofrimento em saúde mental (Jorge et al., 2012).
Isso posto, entendem-se também as dificuldades dos pais e cuidadores de lidarem com situações de crise, de agressividade, situações de tensão. Sabe-se que, frequentemente, os serviços responsabilizam os pais, fato que não ajuda na construção de uma intervenção com a criança, em uma lógica que culpabiliza os responsáveis pelas crianças, sem possibilitar brechas de reflexão crítica para se pensar outros modos de cuidar do sofrimento psíquico (Borba et al., 2008). Como enfrentamento dessas questões, as normativas e orientações técnicas consubstanciadas na política de saúde mental infantojuvenil, apostam em práticas desmedicalizantes que intencionam discutir com todos os atores (crianças, pais, profissionais, gestão, comunidade,etc), o uso responsável da medicação, a importância do brincar e os recursos territoriais, para outros caminhos do cuidado.
Considerações finais
Este trabalho buscou compreender as noções de infância pautadas nas práticas de cuidado, a partir dos discursos de psicólogas que trabalham em Capsi´s. Dessa forma, objetivou-se dar visibilidade aos panoramas de discussão sobre a percepção das entrevistadas nas temáticas expostas nos depoimentos. Diante disso, vemos que a noção sobre a infância e a sua relação com a saúde mental era ambivalente pelas profissionais da Psicologia. Percebe-se, predominantemente, uma romantização e uma idealização da infância descontextualizadas do sofrimento mental e das construções sociais, baseadas na herança desenvolvimentista e clínica do fazer psicológico, corroborando com uma produção do infantil a-histórica, abstrata e asséptica. Por outro lado, reconhece-se que as crianças atendidas em Capsi´s, em sua grande parte, apresentam diferentes sofrimentos psíquicos, a partir de diferentes vetores de complexidade sociais.
No que diz respeito às construções de demanda, existem dificuldades e confusões nos serviços para definir o que é demanda de Capsi. Destaca-se a fragilidade de serviços de cuidado para além dos Capsi´s nos municípios, centrado nas dificuldades de reconhecimento do sofrimento psíquico como uma vivência da criança, impactando as práticas nucleares da Psicologia neste contexto. Outro ponto importante diz respeito à psicopatologização da infância pelo discurso escolar e social, e o que vai se conformando no coletivo como problemáticas de saúde mental e como o entendimento dos profissionais sobre a “criança-problema”. Essa pulverização dos diagnósticos pelo campo social traz alguns entraves, como a fabricação de patologias com base em um discurso de psiquiatrização e psicologização dos modos de viver infantis.
Novos estudos investigando outros profissionais que compõem a equipe mínima do Capsi e explorando outros serviços semelhantes dentro do Estado, podem avançar na discussão sobre as práticas de cuidado nos serviços de saúde mental, considerando a criança como sujeito de desejos e de direitos, que rompam com a noção hegemônica do discurso médico-psiquiátrico-psicologizante, superando a visão sobre a infância e saúde mental, baseada em perspectivas individualizantes e moralizantes.