INTRODUÇÃO
O presente artigo é fruto do trabalho dos autores em Projeto de Extensão Universitária, intitulado Naeca - Núcleo de Apoio a Crianças e Adolescentes, noscontextos de vulnerabilidade na sociedade de Porto Alegre/RS, promovido pela Universidade Estácio de Sá, do Rio Grande do Sul/Brasil, bem como do Grupo de Direitos Humanos, no âmbito das Ciências Sociais Aplicadas, promovido pela Universidade Feevale, de Novo Hamburgo/RS, com a finalidade de criação de um Observatório Permanente de defesa dos direitos humanos e sociais fundamentais. Nesse sentido, cabe remissão a outro artigo já publicado pela Revista Opinión Juridica, intitulado El derecho a la salud y las paradojas en la eficacia de los derechos sociales fundamentales: políticas públicas en el tiempo de la Covid-19. (Opinión Juridica Revista Científica, v. 19, p. 341-367, 2020). Dessa forma, por conta da participação em tais projetos, se pode identificar uma série de violações desses direitos fundamentais, insculpidos no ordenamento, de maneira que, no presente artigo, focamos a disposição de responder à seguinte questão metodológica, que serve de pergunta norteadora da pesquisa: de que forma é possível reverter ou, pelo menos, minimizar tal cenário de agressões aos direitos humanos fundamentais de crianças e adolescentes?
Assim, no contexto normativo dos ditames quanto aos direitos humanos sociais fundamentais, destaca-se, de pronto, que a promulgação da Constituição Federal/88, no Brasil, se constitui do marco fundante do Estado Democrático de Direito, a colocar um fim no período de exceção anterior, instalado pelo Golpe Civil-Militar no país, que durou de 1964 a 1985, quando tem início o processo de redemocratização. Denominada de “Constituição Cidadã”, essa Carta Política, efetivamente, se destaca pela determinação dos princípios “fundamentais da República, [como] soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político”. Ademais, consagra um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, bem como de direitos sociais fundamentais (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
Por conta disso, liberta-se o legislador de quaisquer constrangimentos, de forma que, a partir das normas constitucionais, eis que se passam a establecer legislações ordinárias que, em sintonia com os ditames da Carta Magna, tratan de regulamentar tais direitos e garantias fundamentais e sociais, entre as quais se destaca, para o escopo do presente artigo, a legislação específica que vem a ser conhecida como “Estatuto da Criança e do Adolescente”. De outra sorte, essa nova postura legislativa se vê alicerçada pelo desencadear de uma série de movimentos oriundos da sociedade civil organizada que, por suas ações, lograram o êxito de consubstanciar uma série de políticas públicas, para que tais direitos deixassem a esfera das meras formulações abstratas e pudessem se constituir em vivencias concretas no meio social ao qual se destinavam. Consolidava-se, dessa forma, um processo de avanço político-democrático, com fulcro no Estado de Direito.
Entretanto, passados trinta anos de retorno aos fundamentos político-democráticos, o processo eleitoral havido em 2018 acaba por trazer, por via do voto direto, um Governo Federal que, em suas ações, principalmente ao professar uma ideologia política firmada no campo liberal e nas definições de “Estado Mínimo”, vem, paulatinamente, desconstruindo as referidas políticas públicas, notadamente essas de cunho social e, como se pretende evidenciar no presente artigo, se volta para um desmonte das estruturas institucionais que se haviam constituído com a finalidade de cumprir com os ditames constitucionais e legais de dar atenção prioritária à criança e ao adolescente. Como consequência direta dessa política de Governo, se pode evidenciar um recrudescimento de uma das maiores mazelas sociais do país, qual seja a trágica situação do trabalho infantil e adolescente, que acaba por vitimar meninos e meninas, em completa vulnerabilidade, impingindo-lhes condições desumanas, vindo a lhes roubar a principal condição de dignidade de pessoas humanas em formação.
Infelizmente, tal vulnerabilidade, de cunho estrutural e histórico em nossa sociedade, que, notadamente, se vem utilizando do trabalho infantil, seja no campo ou nas cidades, em condições insalubres e sem atender às condições mínimas de trabalho digno, se vê, agora, ainda mais subjugada pela incidência da pandemia do coronavírus, que estamos a enfrentar, em nível global e que, no país, produz o nefasto efeito de acrescentar invisibilidade a essa condição, pois quase nada, ou muito pouco se pode encontrar em termos de ações especificamente voltadas para minimizar os danos de exposição desses meninos e meninas ao contato direto do contágio. Eis, então, o alerta que o presente artigo procura evidenciar, uma vez que, pela redução da atividade econômica, são esses menores que acabam por ter que se expor ainda mais, como uma desesperada tentativa, nas ruas e estradas, cidades, lavouras e demais atividades, a suprir a redução da renda familiar, em busca de sobrevivência.
Assim, no presente artigo, se traz o contexto constitucional e legal dessas normas protetivas de crianças e adolescentes, bem como das políticas públicas instituídas com a finalidade de lhes dar efetividade, confrontadas com a atual realidade fática, expondo-se as circunstâncias de tal vulnerabilidade, que acaba por ser ainda mais atingida pelas dissonâncias dos órgãos do Governo, em não cumprir com o atendimento de prioridade absoluta que se lhes deva dar. Nesse sentido, se procura dar voz a quem, a partir das próprias organizações responsáveis por tais políticas públicas, procura denunciar o insigne prejuízo lançado sobre essa parcela tão vulnerável da população, bem como repercutir denúncias sérias acerca dessa realidade fática aflitiva, via instrumentos da mídia investigativa, somadas às posições das organizações sociais que se estruturaram para tratar do problema. Ademais, se trata de apresentar as disposições da própria OIT - Organização Internacional do Trabalho, que se debruçam sobre o problema do trabalho infantil, notadamente quanto às piores formas de trabalho infantil, bem como das avaliações, nesse sentido levadas a efeito, em função do cenário em que se desdobra o problema pelo descontrole da pandemia do coronavírus.
1. FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS
O ponto de partida para toda a legislação e, depois, das políticas públicas que, no ordenamento brasileiro, tratam da questão do trabalho infantil, diz respeito a principios constitucionais que, enquanto tais, se revestem do caráter de normas jurídicas de amplo espectro, que se irradiam para todo o complexo de normas e ações governamentais, estabelecendo-se, assim, um alicerce inamovível de respeito e proteção, de forma que seu fundamento pode ser assinalado desde o elenco de incisos do art. 3º, em que se fez constar os objetivos pétreos da República, enquanto sociedade justa e solidária, que busca o desenvolvimento, com erradicação da pobreza, da marginalização e da redução de desigualdades regionais, bem como pela eliminação de toda e qualquer forma de discriminação. Além disso, a diretiva que estabelece o fundamento inconcusso para o tema em comendo se irradia dos incisos do art. 1º, ao estabelecerem a base do Estado Democrático de Direito, já referidos, como sendo a cidadania, o valor social do trabalho e, notadamente, a dignidade da pessoa humana (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
Além disso, ao tratar, no Título II, dos direitos sociais, essa proteção específica se torna expressa pela norma insculpida no art. 6º:“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015). Ainda mais, establece que a proteção à infância, à adolescência e à juventude, são deveres expressos, tanto da família, quanto da sociedade e Estado, pela redação do art. 227, in verbis:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988)
As normas constitucionais se tornam ainda mais específicas, nas determinações do § 1º, do referido artigo, em que, para tanto, fica estabelecido o mandamento de instituição de políticas públicas para efetivar os fins normativos: “O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas”. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010). Ademais, quanto à proteção especial estabelecida, segue-se o que dispõe o § 3º e incisos I e II: “O direito à proteção especial abrangerá o aspecto de idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, bem como a garantia de direitos previdenciários e trabalhistas”. (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
Em cumprimento a esses mandamentos constitucionais e em sintonia com os mesmos, em 13.07.90, surge, então, no ordenamento, a Lei nº 8.069, que passa a ser denominada de ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, com a finalidade de dispor acerca da proteção integral à criança e ao adolescente, uma vez que preceitua que se tratam de seres humanos em formação. Eis a inovação fundante de novo paradigma. Trata-se, portanto, agora, de um conjunto de normas que apresentem significativas inovações, como a do estabelecimento de conselhos de direito e tutelares, para levar a efeito esses direitos básicos que estabelece.
2 POLÍTICAS PÚBLICAS PROTETIVAS X REALIDADE
Porém, desde a edição deste marco regulatório fundante da atenção integral à criança e ao adolescente, já se passaram 31 anos e, com certeza, muitos avanços vieram a ocorrer, de forma efetiva, para concretizar essa proteção, no sentido de deixarem de ser indicações formais da lei e de se converterem em direitos sociais realmente vivenciados por tais vulneráveis que a lei visa proteger. Entretanto, em uma clara guinada político-ideológica quanto ao enfrentamento do problema, se vê uma série de críticas formuladas quanto ao que se passa a considerar como um excesso de garantías atribuídos pelo referido Estatuto, sobretudo, ao menor infrator. Nesse sentido e ainda que o objeto do presente estudo não se refira, diretamente, ao envolvimento desses menores em condições infracionais, vale, para fins de exemplo, trazer depoimentos de Ana Luiza Cardoso, como Delegada e 2ª Vice-Presidente da Associação de Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul, em que apresenta séria crítica ao próprio ECA, uma vez que, ao tratar desses infratores como produto de condições sociais desfavoráveis, propõe, em sentido contrário, um recrudescimento do tratamento penal. Assim, embora faça certas ressalvas, ratifica o entendimento segundo o qual:
Isto porque, qualquer passado, por pior que seja, não retira a tipificação penal da ação. O direito penal não é do indivíduo, é sobre a análise de fatos. (...) O ECA é talvez o instrumento legislativo mais falho na seara penal. Prevê punição máxima de três anos de internação para os infratores, não importando a hediondez do crime. (...) Para onde essa superproteção nos trouxe, ou ainda, para onde nos levará? (Caruso, 2020, p. 23)
Ocorre que, por tais declarações, então, se pode verificar a complexidade do tema a ser tratado, dado que posições como essa antes descrita, feita por representante de órgão do Estado, diretamente envolvido com o problema da conduta inadequada desse menor, na verdade, fulminam, pela base, a principal garantia do ECA, que é a que impede imputação de crime a esse menor, enquadrado em suas disposições, vindo a considerá-lo não como criminoso, mas como infrator, o que representa uma radical mudança de paradigma em relação ao dispositivo anterior, do Código de Menores, já referido, que considerava tais questões a partir de uma circunstância policial. Aqui, logo, a questão a ser colocada, de pronto, diz respeito a se perguntar se o recrudescimento do sistema penal teria o condão de efetivamente, ou resolver o problema do ato lesivo praticado por esse menor, ou, de, pelo menos, minimizar sua ocorrência, fazendo-se valer, então do argumento de defesa da segurança pública da sociedade como um todo, que se sentiria ameaçada. Isto começa a traçar uma linha norteadora do problema outro a ser enfrentado e que diz respeito ao trabalho infantil que esse menor é levado a fazer, nessa mesma sociedade; ou seja, o do trabalho como violência contra esse menor. Poderíamos, também, vir a considerar essas garantias como excessivas? Seria essa a nova base político-ideológica que acessou o poder do Estado, via último processo eleitoral/2018, para o enfrentamento do problema?
Em artigo assinado por Sven Hiblig, como Pesquisador da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, em que aborda as causas do trabalho infantil, se fez constar que:
Existem diversos motivos para as crianças e adolescentes se incorporarem ao mercado de trabalho. A pobreza é o principal. Outra causa importante é a demanda do mercado de trabalho por mão-de-obra barata. Além do fato das crianças trabalharem por menos dinheiro, elas são mais facilmente disciplinadas e não estão organizadas em sindicatos. Uma outra causa é a tradição socioeconómica existente no Brasil. Mas é preciso diferenciar o trabalho infantil tradicional, como o dos descendentes dos imigrantes europeus, e os trabalhos infantis insalubres, perigosos ou penosos em carvoarias, plantações de cana-de-açúcar, de laranja ou pedreiras. (Hiblig, 2020, p. 01)
Na presente discussão, então, urge que se definam os sentidos para o que se possa definir como trabalho infantil e, para tanto, se podem destacar as considerações enumeradas pela própria OIT - Organização Internacional do Trabalho, como órgão da ONU - Organização das Nações Unidas, em sua seccional de Brasília, ao afirmar que:
Nem todo o trabalho exercido por crianças deve ser classificado como trabalho infantil. O termo “trabalho infantil” é definido como o trabalho que priva as crianças de sua infância, seu potencial e sua dignidade, e que é prejudicial ao seu desenvolvimento físico e mental. Ele se refere ao trabalho que: 1. É mental, física, social ou moralmente perigoso e prejudicial para as crianças. 2. Interfere na sua escolarização. 3. Priva as crianças da oportunidade de frequentarem a escola. 4. Obriga as crianças a abandonar a escola prematuramente. 5. Exige que se combine frequência escolar com trabalho excessivamente longo e pesado. (OIT - Organização Internacional do Trabalho, 2020a, p. 1)
Em outro documento, a mesma Seccional de Brasília da OIT, afirma, categoricamente, a ilegalidade do trabalho infantil, uma vez enquadrado nessas conceituações, além de reafirmar que se trata de grave violação dos direitos humanos e dos direitos e princípios fundamentais do trabalho, representando uma das principais antíteses do trabalho decente. E, nesse sentido, conclui que:
O trabalho infantil é causa e efeito da pobreza e da ausência de oportunidades para desenvolver capacidades. Ele impacta o nível de desenvolvimento das nações e, muitas vezes, leva ao trabalho forçado na vida adulta. Por todas essas razões, a eliminação do trabalho infantil é uma das prioridades da OIT. (OIT - Organização Internacional do Trabalho, 2020d)
Antes de adentrar-se, então, nas políticas públicas específicas, instituídas no país, para tratar do problema em comento, deve-se destacar que, de modo geral, essas se referem a arranjos complexos, promovidos pelos âmbitos político-administrativos, de maneira que se possa valer da definição de Paula Dallari Bucci, no sentido de que se tratam de:
Programa de ação governamental, que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados - processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial - visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. (Bucci, 2006, p. 39)
Nesse sentido, então, destaca-se que políticas públicas não dizem respeito somente à articulação dos Poderes específicos do Estado, em seus vários órgãos, mas que, efetivamente, devem contar com a mobilização de organizações privadas, de tal sorte que se pode ratificar, nesse sentido, as afirmações de Secchi, quando trata dos grupos de pressão e de consecução de políticas públicas, no sentido de que:
As políticas públicas são, portanto, diretrizes elaboradas para arrostar problema coletivamente relevante, possuindo como elementos a intencionalidade pública e a resposta a um problema público, devendo ser analisadas sob uma abordagem multicêntrica, cujo foco não é o ente emanando da “policy”, mas a natureza do obstáculo que deva ser superado, razão pela qual não somente os atores estatais são protagonistas no estabelecimento das políticas públicas, mas também as organizações privadas, organizações não governamentais e organismos multilaterais, que são verdadeiras redes de políticas públicas. (Secchi, 2010, p. 2)
Assim, quanto às políticas públicas que foram elaboradas, a partir das disposições legais, se consubstancia a sequência dos denominados Planos Nacionais de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, em que foi acrescentada a Proteção ao Adolescente Trabalhador, na sua IIIª edição, relativa aos anos de 2019 a 2022, onde se afirma a constituição da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil - Conaeti, como sendo um organismo composto por representantes do poder público, empregadores, trabalhadores, sociedade civil organizada e organismos internacionais, que, entretanto, veio a ser extinta pelo atual governo federal. Além de procurar concretizar as disposições constitucionais e legais protetivas, a Conaeti, originalmente instituída no âmbito do Ministério do Trabalho, se apresenta como tendo o objetivo de implementar as disposições das Convenções nº 138 e 182 da OIT, de que o Brasil é signatário e que foram devidamente incorporadas ao ordenamento pelos instrumentos normativos adequados, bem como de viabilizar a elaboração e acompanhamento da execução do referido Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil. (Brasil, 2018).
Interessante observar que, ao elencar os diferentes tópicos que compõem sua estrutura básica, o próprio Plano refere, no que diz respeito ao diagnóstico da situação do trabalho infantil no Brasil, que, quanto à base legal, fruto, igualmente das Convenções Internacionais, destacam-se os princípios norteadores de todas essas ações, assim descritos:
Princípio do interesse do “menor”: todas as decisões que dizem respeito à criança e ao adolescente devem levar em conta seu interesse superior;
Princípio da Prioridade Absoluta: os direitos das crianças e adolescentes devem ser tutelados com absoluta prioridade. (Brasil, 2018)
Entretanto, o referido IIIº Plano, ao apresentar o marco estatístico do diagnóstico situacional do trabalho infantil no Brasil, baseia-se no que define como a serie histórica desse levantamento, levado a efeito pela Penadc - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, tendo como fonte o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que se inicia em 1992 e termina em 2015 e aí está algo a ser levado em conta, haja vista que o Plano diz respeito ao período que abrangeria as ações destinadas aos anos que vão de 2019 a 2022, o que implica, evidentemente, no mínimo, em que tais dados e informações se encontram completamente defasados. Ademais, o referido Plano apresenta uma justificativa de mudança de metodologia de averiguação desses dados, baseado em outra das disposições da citada pesquisa contínua por domicílios, só que, agora, do ano de 2016, em que, ao conceito de trabalho infantil, foi acrescentada a categoria de produção para consumo próprio (Brasil, 2018, p. 5-12). Ora, mesmo que se acrescente outra categoria classificatória para o diagnóstico, se está contando com dados de 2016 para um programa abrangente de ações governamentais que se projetariam para um período de anos seguintes, com grande defasagem de dados que lhe serviriam de base. Projetar não é o problema, mas o projetar com dados não atualizados parece já criar obstáculos para qualquer planejamento, desde a base de sua formulação, que dirá quanto à execução.
Esta circunstância se torna ainda mais impactante, quando o referido Plano estabelece, claramente, que o monitoramento e avaliação devem ser constantes, uma vez que:
Permite que o coordenador analise a consecução do que se propôs, o alcance dos resultados pretendidos, de forma a otimizar a utilização dos recursos financeiros e humanos, além de demonstrar transparência ao público-alvo e à população em geral. Além disso, assevera que o monitoramento deve ser realizado periodicamente para verificação constante do cumprimento das metas e objetivos do plano, assim como para que se realizem reajustes com base nas avaliações feitas no processo de execução. (Brasil. (2018). IIIº Plano Nacional de Prevenção e erradicação do Trabalho Infantil e de Proteção ao Adolescente Trabalhador, p. 46)
Logo, a questão que se coloca, de pronto, diz respeito a se perguntar de que forma se pretende cumprir com tais metas, quando o próprio levantamento dos dados apresenta esta dissonância básica quanto às informações que o nutrem. Dessa forma, a complexidade do tema do trabalho infantil assume proporções dramáticas, quando se passa a citar afirmações da OIT, Seccional de Brasília, segundo a qual, a Convenção nº 182 da OIT foi ratificada e adotada pelo Brasil em 2000, por meio do Decreto 6.481/2008, proibindo no país o emprego de crianças e adolescentes para exercer qualquer função na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). O problema, então, está no fato de que, apesar de proibição expressa dessas cerca de 90 atividades consideradas como trabalho perigoso e de alto risco, pelas normas legais, eis que se chega ao paradoxo de que algumas delas sejam até hoje aceitas pela sociedade e praticadas por essa mesma sociedade, dado que crianças e adolescentes as realizam. (OIT - Organização Internacional do Trabalho, 2020b)
A referida Lista TIP está devidamente arrolada no citado Decreto 6.481/2008, onde se fez constar, para cada atividade, os prováveis riscos ocupacionais, bem como as prováveis repercussões negativas à saúde das crianças. Nesse sentido, que se faça, logo, a ressalva de que, efetivamente, tais riscos e repercussões seriam prováveis, se as crianças a elas não se dedicassem, ou não sendo obrigadas a elas se dedicar; entretanto, nada existe de hipotético no rol das mesmas atividades, já que se referem a atividades em que já se encontraram e se encontram crianças as executando, ou que se mostram passíveis de empregar crianças em sua execução. Por conta disso é que constam do corpo normativo. Não se trata, portanto, de uma formulação desprovida de conteúdo de realidade fática. Seu rol é muito extenso, a pesar de que se podem citar algumas, inseridas nas várias possibilidades produtivas aceitas pela sociedade, como faz referência a citação mencionada da OIT, Seccional de Brasília. Assim, exemplificativamente, se pode mencionar: colheita de cítricos, beneficiamento de fumo, manguezais e lamaçais, em cantarias, pedreiras e salinas, em tecelagens, na produção de farinha de mandioca, em indústrias cerâmicas, artesanatos e trabalhos domésticos e etc. (Brasil, 2008).
Eis, portanto, certo esboço dos contornos do problema, já que o país dispõe de base constitucional e legal protetiva, em sintonia com as organizações internacionais, de cujas Convenções o Brasil é signatário, de maneira que, formalmente, se estabelece a absoluta prioridade a ser dispensada à proteção de crianças e adolescentes, mormente em relação ao seu envolvimento em atividade de trabalho, assegurando-se, logo,que fiquem a salvo de qualquer forma de exploração econômica. Entretanto, se vivencia uma realidade social de exclusão e pobreza, bem como de um mercado de produção em busca de mão-de-obra barata, tanto no campo, quanto nas cidades, a naturalizar o emprego de meninos e meninas nessas atividades, criando condições para a invisibilidade do problema. E, por fim, de ações governamentais em dissintonia com o princípio de zelar, inquestionavelmente, pelo melhor interesse desse menor.
3 MÚLTIPLAS DISSONÂNCIAS NO ENFRENTAMENTO DO PROBLEMA
A justificativa apresentada pelo relatório antes mencionado, ou seja, o IIIº Plano de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, ao acrescentar outra categoria classificatória, a seu turno, teve o condão de procurar retirar dos dados estatísticos do trabalho infantil, propriamente considerado e de acordo com a definição apresentada pela OIT e assumida pelo mesmo documento oficial, a categoria de trabalho para o próprio consumo, desinflando, dessa maneira, os dados efetivamente relacionados às formas de trabalho infantil, que vinham sendo informadas; como se o menor que trabalhasse para si próprio não se incluísse na categoria de trabalho infantil, não devendo ser, então, considerado como incidente sobre a proteção legal instituída. Pode-se perguntar, então, se o objetivo dessa afirmada mudança metodológica, estaba destinada a aparentar uma diminuição das incidências do trabalho infantil no país, melhorando artificialmente os indicadores. Por conta disso, surge o teor de denuncia feita por entidades da sociedade civil organizada que, com base nos fundamentos constitucionais e legais antes referidos, atuam no combate a todas as formas de trabalho infantil, como noticiado em matéria do Portal Globo Economia, sob o título “Há dois anos Brasil não sabe quantas crianças trabalham no país”, em que consta o alerta de que o IBGE, que divulgava anualmente a estatística, diz que há questões metodológicas atrasando a publicação (Almeida & Capetti, 2020).
Nesse sentido, assim se posiciona a Procuradora do Trabalho Ana Maria Villa Real que, como Coordenadora Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente, vem participando das discussões sobre metodologia no IBGE: “Precisamos saber o cenário de trabalho infantil para formular políticas públicas. Eles adiaram mais uma vez a divulgação. O trabalho infantil tornou-se uma questão menor e, sem os dados, o combate perde força. Há uma timidez em tratar o tema.” (Almeida & Capetti, 2020, p. 1). Seria somente timidez, ao não estabelecer a prioridade absoluta insculpida na Constituição, ou ação deliberada de encobrimento do problema?
Essa mesma linha argumentativa é seguida por Isa Oliveira, como Secretária- Executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Fnpeti), ao afirmar que a não divulgação dos dados impacta diretamente a formulação de políticas públicas de combate ao trabalho infantil, notadamente em período de crise econômica, uma vez que obstaculiza a alocação de recursos às áreas mais aflitivas do problema. Sendo assim:
As estatísticas servem não apenas para conhecer o universo pesquisado, mas subsidiar as decisões tomadas e ações; e estamos assistindo a uma paralisação das ações que eram implementadas no âmbito do Ministério da Cidadania. Há um total descaso e omissão no enfrentamento do problema. Esse combate ao trabalho infantil é um compromisso maior. Somente as estatísticas podem mostrar o tamanho e as novas formas do problema público, muitas vezes oculto. Aquilo que é mais visível é o que está crescendo, mas existem formas ocultas que só a estatística pode nos dar. Temos uma história construída de vanguarda no combate ao trabalho infantil e isso foi rompido. Esse cenário traz prejuízos para América Latina e Central. Cerca de 28% do trabalho infantil que ocorre na América Latina está no Brasil. (IG Economia, 2020, p. 1)
Evidentemente, a reordenação da estrutura administrativa do Executivo Federal é de competência exclusiva do respectivo Governo eleito e empossado, de forma que a transferência de ações entre os órgãos não é questionada aqui, embora essa alteração, com a saída do órgão de combate ao trabalho infantil, primeiro do Ministério do Trabalho, depois para o Ministério da Cidadania e, agora, para o da Economia e, por fim pela extinção da Comissão, tenha produzido a referida justificativa de mudança de metodologia de pesquisa, que veio, pelas declarações das entidades acima referidas, produzir, no mínimo uma paralisia nas ações referentes ao combate dessa mazela social (Brasil, Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, 2020). Além disso, a outra justificativa apresentada, agora, por Maria Lúcia Vieira, como Coordenadora de Trabalho e Rendimento do IBGE, de que o atraso também se deveu a que vários órgãos e instituições estariam envolvidos com as estatísticas, pois além do próprio IBGE, diferentes metodologias estariam em discussão pelo Ministério Público do Trabalho, Unicef e OIT, o que encobre um problema pior, que é a dificuldade de identificar o agravante relacionado ao trabalho infantil, que é, precisamente, o da Lista TIP, antes referida e que diz respeito às piores formas de trabalho infantil. Eis a afirmação: “Seria importante o IBGE conseguir identificar esse universo de menores, mas isto não é possível. Com o questionário que temos hoje não é possível separar por piores trabalhos”. (Almeida & Capetti, 2020, p. 01). Porém, diante deste, no mínimo insólito argumento, resta o questionamento: porque, então, simplesmente, não mudar o questionário e, daí, buscar os dados efetivos acerca dessa angustiante realidade? Isto se, realmente, a motivação do impasse gerado não for, mesmo, o de dificultar o acesso aos dados, com a finalidade de aparentar uma diminuição do problema, tornando-o invisível, ou mais difícil de detectar em suas reais dimensões.
Infelizmente, o problema das diferentes estratégias de coleta e interpretação dos dados não se mostra como mais relevante no encobrimento do problema, haja vista que, em matéria de autoria de Gabriela Caesar, como jornalista investigativa do Portal G1 de Notícias, consta a denúncia de que o número de fiscalizações de trabalho infantil é o 2º menor registrado nos últimos 10 anos, pois, de acordo com dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação se mostra que “número de fiscalizações para o combate ao trabalho infantil caiu em 2019, assim como o número de crianças encontradas em condições de trabalho infantil” (Caesar, 2019). Em suma, reduzem-se as fiscalizações e autuações e, logo, não se encontram os índices que indicam o aumento dos indicadores e, como consequência, se pode afirmar, como estratégia de encobrimento, uma diminuição das ocorrências (Caesar, 2019).
Agora, então, se podem acrescentar ambos os enfoques para atestar, no mínimo, a falta de prioridade do Governo Federal diante do problema, haja vista que a desorientação da coleta e divulgação dos dados pode estar embasada na falta de uma fiscalização efetiva, como a que vinha sendo realizada, tendo como justificativa a alocação de recursos financeiros para outras áreas que não a dos programas sociais e/ou políticas públicas tendentes, pelo menos, a minimizar o problema em tela. Nesse sentido, Isa Oliveira, como Secretária Executiva do Fnpeti, já referido, procura tecer um perfil desse menor (criança e adolescente) envolvido por essa forma de trabalho, atestando a importância dos levantamentos e fiscalizações, em função da definição de políticas públicas adequadas:
O maior percentual de crianças em trabalho infantil é de meninos. Quando analisado, porém, apenas o recorte de trabalho infantil doméstico, mais de 93 % são meninas. A maioria das crianças em trabalho infantil (65 %) é negra. ⅓ do trabalho infantil está no campo e ⅔ estão na cidade. Esses recortes são importantes para as políticas públicas, para fornecer subsídios para aqueles que tomam as decisões. (Caesar, 2019, p. 1)
Nesse mesmo sentido se posiciona a socióloga Graça Gadelha, como responsável pela Plataforma Rede Peteca, que apresenta informações sobre os direitos da criança e do adolescente e a erradicação do trabalho infantil, ao afirmar que:
A política da infância e da adolescência não é mais uma prioridade e diz que faltam recursos em áreas estratégicas da educação e dos direitos sociais. Sem bases de dados que reúnam informações sobre o assunto, o governo não conseguirá elaborar e executar políticas públicas de enfrentamento ao trabalho infantil. (Caesar, 2019, p. 1)
Agora, nesse contexto de desatenção quanto às políticas públicas tendentes a efetivar a concretude das garantias constitucionais e legais de proteção à criança e adolescente, pela falta de foco na questão do combate e erradicação do trabalho infantil, segue-se um recrudescimento do drama existencial em comento, na medida em que se desenvolve o contágio pelo novo coronavírus, na pandemia que estamos enfrentando, o que vem acrescentar novos contornos aflitivos às práticas de trabalho infantil ainda desenvolvidas no meio social. Nesse sentido, a matéria assinada por Lu Sudré, na Plataforma Brasil de Fato, dedicada aos direitos humanos, se insere em campanha nacional promovida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), pelo Fórum de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e pela Justiça do Trabalho, intitulada “Covid-19: agora mais do que nunca, protejam crianças e adolescentes do trabalho infantil”; e que passou a ser veiculada a partir de 12 de junho, como data dedicada ao Dia Mundial contra o trabalho infantil. (Sudré, 2020).
Nesse sentido se posiciona Ana Maria Villa Real, como Coordenadora Nacional do Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente pelo Ministério Público do Trabalho, ao referir-se que “a pobreza é a causa e a consequência do trabalho infantil; (e que), com os efeitos socioeconômicos da covid-19, como altos índices de desemprego e retração da economia como um todo, o cenário é desolador” (Sudré, 2020), uma vez que:
As famílias que já eram pobres vão ficar ainda mais pobres. E sabemos que quando a família está em vulnerabilidade socioeconômica, a criança sai para trabalhar, para ajudar no aumento da renda familiar. Isso é muito evidente. Temos consciência que o Estado Mínimo que está se apregoando no Brasil não vai tratar a vulnerabilidade social e econômica das famílias, e vai gerar um aumento da existência do trabalho infantil. (Sudré, 2020)
Então, é essa realidade socioeconômica mais aflitiva, caracterizada pelo aumento do desemprego e perda abrupta da renda familiar, causada pelos reflexos econômicos da pandemia, que desencadeia, como consequência, a saída desses menores em direção às ruas das cidades, expondo meninos e meninas às atividades nas sinaleiras, bem como às possibilidades de aliciamento pelo tráfico de drogas e prostituição; além de incrementar as atividades do emprego do trabalho infantil no meio rural, onde se encontra mais naturalizado, em função das condições históricas de estruturação dessa forma de trabalho no país. No sentido de tratar do agravamento dessa situação pela pandemia, se posiciona Patrícia Fleischmann, como Coordenadora Regional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes, do Ministério Público do Trabalho, do Estado do Rio Grande do Sul: “O trabalho infantil é um problema antigo no Brasil e o contexto em que vivemos, com a pandemia e a crise econômica, deve agravar o cenário. Temos de estar atentos a isso. A sociedade e o poder público precisam fazer a sua parte”. (Fleischmann, 2020, p. 17).
O problema se acentua, entretanto, uma vez que o poder público não está fazendo a sua parte e, além disso, segundo Isa Oliveira, como Secretária-Executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Fnpeti), já referido, joga em sentido contrário, pela fragilização das ações de combate e fiscalização, em que destaca, sobremaneira, a extinção da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil - Conaeti, em abril de 2019 por decreto da Presidência da República. Isto impacta as questões suscitadas pelo problema em comento, porque a entidade, que contava com a “participação da sociedade civil, tinha como uma de suas principais atribuições o acompanhamento [...] [e] execução do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, por ela elaborado” (Sudré, 2020) e mantido, desde 2003. E, nesse sentido, se pode ratificar:
O que falta no Brasil, especialmente nesse momento, é a decisão política de priorizar a proteção à criança e ao adolescente para eliminar o trabalho infantil. Falta esse comprometimento, esse respeito ao que dispõe a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. (Sudré, 2020)
Essa circunstância específica volta a ser alertada por Villa Real, ao referir-se à ausência de medidas efetivas, por parte do Governo Federal, para o enfrentamento do problema, que, ao contrário, extinguiu a referida Comissão, em um quadro que agrava o problema pela incidência da pandemia:
Se tivéssemos uma comissão instituída como antes, poderia ter sido elaborado um plano de emergência para enfrentar a pandemia. Não existe nenhum plano de emergência, nem na assistência social e em nenhuma instância para enfrentar o trabalho infantil. E ninguém fala sobre isso. A desatenção do governo brasileiro com a questão é evidente. (Sudré, 2020)
Cabe destacar que o Ministério da Saúde, a seu turno, mantém um levantamento de dados com foco nos acidentes de trabalho sofridos pelos trabalhadores brasileiros, intitulado Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan (2020), que, infelizmente, se mostra um instrumento de difícil localização dos dados relativos ao trabalho infantil; o que motivou pesquisa levada a efeito pela Fundação Nacional de Proteção e Erradicação do Trabalho Infantil, ao atestar que, em função dos dados que se referem a 2.019:
“Dos 27.924 acidentes graves registrados nos últimos 12 anos, 10.338 acometeram a mão, sendo 705 amputações traumáticas ao nível do punho e da mão”.
“A faixa etária mais atingida é a de 14 a 17 anos, com 27.076 notificações. Os adolescentes estão entre os que mais sofrem acidentes em membros superiores e inferiores, cabeça, mãos e pés, por exemplo”.
“Crianças e adolescentes que trabalham também estão expostos a acidentes com animais peçonhentos, que chegam a 15.147 notificações, à intoxicação exógena por agrotóxicos, produtos químicos, plantas e outros (com 3.176 casos) e a disturbios osteomusculares por esforço repetitivo (165 casos)”. (Fnpeti - Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, 2020, p. 01).
Ademais, deve-se destacar, de maneira clara, que, especificamente quanto ao problema da pandemia incidente sobre tais ocorrências, Cristina Sena, como Assessora de Comunicação do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil - Fnpeti, torna público que se enfrenta a questão grave da subnotificação:
“As estatísticas são parciais, assim como os de 2016 (16 mortes), 2017 (31 mortes) e 2018 (25). A subnotificação é reconhecida pelo próprio Ministério da Saúde”.
“Casos decorrentes do trabalho infantil nem sempre são identificados e notificados no Sinan por profissionais de saúde, fazendo com o que o número de agravos não seja conhecido em seu universo”.
“Com a pandemia de Covid-19, existe a possibilidade de a subnotificação aumentar”.
“Os hospitais tendem a ficar superlotados e os profissionais de saúde sobrecarregados”. (Fnpeti - Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, 2020, p. 01).
Eis, portanto, alguns dos fatores que se inter-relacionam diante das complexidades que se apresentam para o enfrentamento do problema, agravados pelas denuncias de que o trabalho infantil e mesmo os desafios ligados às piores formas de trabalho infantil, porque desumano e indigno, se tornam uma questão menor, vindo a gerar a paralização das ações que já vinham sendo executadas, fazendo transparecer a omissão e descaso do Estado, ao expressar-se por meio desse atual Governo, que não prioriza mais a execução das proteções legais e constitucionais estabelecidas no ordenamento pátrio. Além disso; e de forma mais grave, a instância deliberativa máxima do Estado acaba agindo até mesmo para mascarar indicadores, como forma, provavelmente, de evidenciar redução em tais ocorrências, não condizentes com a realidade.
Isto pode levar, sem dúvida, a se discutirem os fundamentos, ou sentidos e significados através dos quais se pretende instalar o que se denomina de “Estado Mínimo”, enquanto instância que não prioriza mais os próprios fundamentos do pacto social, em que esse Estado se alicerça e é constituído, mormente com a inarredável atenção que deva, intransigentemente, assegurar à vida e saúde, ao trabalho e à própria segurança pública, afetados, diretamente, em sua dignidade, por tais omissões, principalmente se focarmos esses mais vulneráveis dentre os cidadãos. Infelizmente, tais circunstâncias se tornam ainda mais dramáticas, em função da exposição desses meninos e meninas ao contágio pelo novo coronavírus.
CONCLUSÕES
No esforço de contribuir para a superação, ou, pelo menos, a possibilidade de minimizar o problema em comento, o Tribunal Superior do Trabalho - TST, no Brasil, como última instância a que se encontram referidos as questões relativas ao trabalho e, logo, ao trabalho infantil e adolescente, publicou extensa lista de bibliografias selecionadas, tanto de textos eletrônicos, quando de bibliografia especializada sobre o tema, cuja menção se faz necessária para um aprofundamento acerca do tema em comento. (TST - Coordenadoria de documentação - Trabalho Infantil - Bibliografia Recomendada, s/d). Deve-se destacar, ainda, sobretudo quanto às causas dessa mazela social do trabalho infantil e adolescente, em seus aspectos históricos e sistêmicos, afetadas pela exploração econômica e consequente privação de seus direitos humanos fundamentais, a afirmação de que:
Há consenso que o trabalho infantil, como realidade sociológica, não se explica por unicausalidade. O “histórico” (passado e presente) processo de produção capitalista é a causa fundamental da exploração da mão-de-obra infantil. Desde a implantação da revolução industrial, no final do século XVIII, a burguesia industrial e, mais tarde, a agrária, se capitalizaram e se capitalizam com uma voraz e deshumana utilização da mão-de-obra infanto-juvenil. (...) Fatores imediatos condicionantes podem ser apontados entre outros: a pobreza (indiscutivelmente um dos mais fortes); a cultura (a aceitação da fatalidade da pobreza como sina do pobre); a carência de ofertas de escolaridade de qualidade; inexistência de políticas públicas consistentes e perseverantes. (Oliveira, 2004, pp. 121-122)
Assim, no sentido de referenciar a importância de tais políticas públicas, a Seccional de Brasília da OIT atesta que a adesão do Brasil, ao IPEC - Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil, a partir de 1992, em consonância com o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente, juntamente com parceiros do setor público, das organizações de trabalhadores e empregadores e da sociedade civil, logrou planejar e executar mais de 100 programas de ação de combate ao trabalho infantil, em todo o território nacional; de forma que:
Esta mobilização social que envolveu governos municipais, estaduais e federal, demais entidades8 do poder público, organizações de trabalhadores e empregadores, demais entidades da sociedade civil organizada, movimentos sociais e organismos internacionais contribuiu para a retirada de milhares de crianças do trabalho nesses anos, tornando o Brasil referência mundial na redução do número absoluto de crianças exploradas no trabalho. (OIT - Organização Internacional do Trabalho, 2021c, p. 1)
Trata-se, sem dúvida, de conquistas e avanços com notáveis resultados, principalmente se levarmos em conta, para além das mudanças de orientações político-ideológicas dos Governos do período considerado, a questão fundamental da naturalização social do trabalho infantil, por razões históricas da formação das cadeias produtivas no Brasil, desde o meio rural e, mesmo passando pelos processos de industrialização e urbanização acentuada, que se verificam na contemporaneidade. Somem-se a esse processo as questões econômicas que incidem sobre a constituição de relações de trabalho que obedecem à legislação protetiva, assumindo, portanto, contornos oficiais e legais, juntamente com a relação complexa com o recurso à informalidade das atividades laborais, desenvolvidas sem quaisquer espécies de proteção.
Eis o pano de fundo em que vieram a atuar as antes referidas iniciativas das entidades da sociedade civil organizada, com as políticas públicas instituídas, inclusive pela adesão aos programas internacionais, com apoio na normatização constitucional e legal, protetiva dos direitos humanos e da dignidade desses meninos e meninas, sendo envolvidos pelo denominado trabalho infantil. Entretanto, o que se percebe, agora, é o quanto a normalização dessa mazela social é impactante e performativa dessa mesma realidade, na medida em que o discurso atual da Presidência da República dá voz a essa postura, vindo a justificar uma guinada, em sentido contrário, ao reafirmar a naturalização do trabalho infantil e, logo, a pautar uma série de ações governamentais. Assim, de acordo com essa perspectiva: “Trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”. (Redação Hypeness, 2019).
Esse discurso do Presidente da República, provavelmente, visa generalizar uma condição específica do trabalho infantil, de que o envolvido participou, mas inserido no seio do tipo de atividade familiar do meio rural, historicamente desenvolvido no contexto da agricultura familiar da imigração europeia, de importância significativa na formação social do país e, logo, de nossa cadeia produtiva, que, em muito pouco pode ser associado às violações dos direitos humanos assinalados pela classificação de trabalho infantil, como, agora, está consagrado em nível nacional e internacional. Evidentemente, que incitando a naturalização social do trabalho infantil, desencadeou severas críticas, levadas a efeito notadamente pelas entidades da sociedade civil organizada que atuam, em sintonia com organismos internacionais na solução do problema, bem como dos gestores e executores de políticas públicas, mas, igualmente, de órgãos do próprio Estado, como os Juizados do Trabalho, especializados precisamente, no Programa de Combate ao Trabalho Infantil:
É preciso entender que trabalho infantil é todo aquele que priva a criança de uma infância digna, que atenta contra as condições físicas e morais do indivíduo, induzindo à evasão escolar. Há assim, intrínseca relação entre trabalho infantil, baixa escolaridade e pobreza. (...) É certo que trabalho dignifica, contudo, ao ser executado de forma precoce, diminuem-se as oportunidades de aperfeiçoamento intelectual e humano, aumentado as chances de exercício de ofícios precários ao longo da vida adulta. (Fagundes, 2020, p. 25)
Infelizmente, entretanto, pelo teor das diversas denúncias antes enumeradas, ese discurso não apenas exemplifica a naturalização social do trabalho infantil, mas o fato de que essa postura recebe guarida no direcionamento político das ações governamentais para o tema, haja vista que coincidem, até mesmo cronologicamente, com a paralisação das medidas tendentes a realizar o enfrentamento do problema, apontando para uma politização, a partir de determinada perspectiva ideológica, que passa a ser executada em diversas frentes: não mais se prioriza a proteção e erradicação do trabalho infantil, de maneira a reduzir os processos de fiscalização e autuações, quer em empresas, ou no meio rural, além de protagonizar mudanças administrativas e até mesmo extinção de órgãos que tratam do problema, passando, enfim, pela insuficiencia de dados, justificados por mudanças de metodologia da prospecção de indicadores.
Este quadro se agrava, fortemente, em função da incidência da pandemia, uma vez que, em sentido geral, se verifica a carência de métricas adequadas, por parte dos órgãos públicos envolvidos, diretamente, com o contágio, como o Ministério da Saúde, o que dificulta a identificação do real alcance do novo coronavírus, de forma que as estatísticas fornecidas pela União, Estados e Prefeituras, como integrantes dos órgãos federativos, apresentem dissintonias, incluindo-se, aí, os veículos de imprensa. Tais dados que já se encontram atingidos, pela base, a partir da subnotificação de casos, pois não se dispõe de testagens maciças, se veem, agora, vitimados por agressões aos princípios de transparência e de publicidade na divulgação de informações de utilidade pública. Não bastassem esses fatores, sobre tais dados passam-se a lançar diferentes interpretações, que nublam a real situação que os números, se fossem imparcialmente coletados e divulgados, deveriam indicar.
Essas assimetrias, ao atingem o quadro geral da pandemia, se veem mais agravadas ainda, quando se trata de focar o seu impacto na questão do trabalho infantil, pois se os dados estatísticos referentes ao tema já vinham sendo desdenhados, agora fazem com que a marcação do contágio atingindo esses meninos e meninas envueltos pelo trabalho infantil, simplesmente desapareçam, de forma a gerar uma quase que completa invisibilidade do problema. Eis a triste constatação a ser feita acerca de números retorcidos, de interpretações dissonantes e contabilidades inventivas para dissimular a verificação fática da realidade social e, logo, minimizar o problema, forçando o aparente decréscimo de indicadores negativos.
A politização ideológica das diversas posições que assumem o poder é intrínseca aos fundamentos da democracia representativa, de forma que essas diferentes perspectivas tem legitimidade para operar reestruturações do quadro geral da administração da coisa pública, entretanto, se deve, de todas as formas, respeitar o núcleo duro das disposições normativas constitucionais e legais, que constituem os fundamentos do Estado Democrático de Direito, que não podem ser colocados a serviço das disposições de quem os interpreta, ainda que tenha mandato legítimo de representar essa determinada ideologia política. Ademais, tais fundamentos constitucionais e legais, ínsitos ao arcabouço do ordenamento, determinam, sem nenhuma possibilidade de interpretações díspares, a prioridade absoluta da proteção da criança e do adolescente, considerados como seres humanos em formação e, logo devendo receber, obrigatoriamente, a completa proteção aos seus direitos humanos e à dignidade da pessoa humana, como princípios basilares, acentuados, de maneira mais intensa, em função de sua vulnerabilidade social.
Por fim, se retoma a questão norteadora da presente pesquisa, no sentido de se encontrar formas possíveis para se reverter ou, pelo menos, minimizar tal cenário de agressões aos direitos humanos fundamentais de crianças e adolescentes, para se chegar à afirmação de que, para além dos ditames constitucionais e legais, insculpidos no ordenamento, se deve contar, obrigatoriamente, com um conjunto de políticas públicas permanentes, que se revistam do caráter de fundamentos do Estado, livre de injunções transitórias de governos, mesmo que democraticamente eleitos. A seu turno, tais políticas públicas devem abrigar os movimentos sociais, bem como as entidades da sociedade civil organizada, que se predispõem a atuar sobre o problema, de maneira a abrigar todos os agentes sociais, como princípio adequado a se promover os meios de combate ao grave problema. Nada justifica uma postura contrária, muito menos de se subordinar as políticas públicas que devem ser de Estado, a tais injunções político-ideológicas de quaisquer matizes.