Introdução
Nos séculos 16 a 18, xilogravuras e gravuras em cobre eram um importante meio de comunicação e devoção religiosa, tanto no catolicismo, como no protestantismo. Em seguida apresentamos uma leitura dos motivos e elementos iconográficos e da sua mensagem iconológica da gravura Homo moriens ou Um ser humano que está morrendo. Essa gravura foi esculpida ou por Johann (1549-1618) ou por Hieronymus Wierix (1553-1619)1 provavelmente, durante a segunda décadas do século 17. A gravura segue um desenho ou esboço de Ambrosius Francken (1544-1618), infelizmente perdido. Ela faz parte de um conjunto de mais do que 2.000 gravuras dos irmãos Wierix, que em sua grande maioria ilustraram livros jesuítas ou circularam como exemplares avulsos2. A pergunta norteadora que nos impulsiona é: quais são os motivos e elementos iconográficos usados e qual é a mensagem iconológica vinculada a eles? Entendemos aqui motivos como um agrupamento de figuras formando uma cena dentro de uma composição maior, contendo diversos motivos. Já entendemos como elementos tanto gestos específicos como artefatos relacionados com figuras e motivos o a composição como toda.
As seções desse artigo seguem a proposta da leitura iconológica de Erwin Panofsky3, partindo da descrição pré-iconográfica, avançando para a análise iconográfica dos seus elementos e motivos principais, como da sua composição como um todo. Finalizaremos pela interpretação iconológica, inclusive, olhando para sinais tanto de intercâmbios como de afirmações visuais confessionais. Assim apresentamos uma leitura de um artefato que nos dá acesso tanto à cultura visual católica quanto à espiritualidade ou às ênfases espirituais promovidas ou articuladas por ela. Não por último, provoca a leitura das linguagens iconográficas refinadas dessa gravura também uma certa experiência estética e, antecipando um aspecto dos resultados, uma noção mais diversificada daquilo que nós chamamos gravuras em serviço da contrarreforma protestante e da reforma católica.
Composição elementos e motivos iconográficos principais
Nas seis figuras unidas em seguida, indicamos alguns dos elementos composicionais da gravura. As primeiras duas figuras indicam uma tridimensionalidade, tanto pelas linhas que caracterizam o chão (figura 1) como pelo agrupamento de objetos e figuras (figura 2). Há um plano principal com dois grupos de figuras maiores, basicamente dividindo a gravura no seu meio, e um terceiro grupo com três figuras menores na parte superior quase central. Pela posição corporal, pelos olhares (figura 4) e pelos gestos as figuras formam três motivos (figura 3). No centro do motivo maior direito, está uma pessoa no leito, com três figuras ao seu redor que vemos da frente do lado e de traz. No motivo com as figuras do lado esquerdo, encontramos no centro uma figura feminina em pé com duas figuras menores, os três com sua frente na direção do observador (figura 15). Estas três figuras oferecem algo a alguém. A figura maior feminina parece dar para um casal de idosos ao seu lado esquerdo dinheiro, as figuras menores servem pão e água a uma pessoa sentada com uma deficiência (lado inferior esquerdo) e a uma pessoa pobre. O motivo menor é composto por três figuras. As duas figuras nas margens apontam para a figura central. Já os olhares dessas três figuras transcendem o motivo específico: a figura direita parece olhar para a figura maior na parte inferior do lado direito, a figura central para a figura maior do lado esquerdo e a figura direita para a figura deitada na cama. Essa figura parece olhar para a figura acima dela e próxima ao seu leito, enquanto as duas figuras na parte inferior do motivo direito parecem olhar para a figura central do motivo menor na parte superior.
Fonte: Rijkmuseum, Amtserdã, Paises Baixos. Número de objeto: RP-P-1906-183
Link permanente: http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.332421
O artista destaca isso por linhas finas que relacionam essas três figuras diretamente. Um terceiro conjunto de linhas passa dessa figura central para a cabeça da figura feminina maior do motivo esquerdo e as duas linhas para essas duas figuras passam por dois corações, o do lado esquerdo com chamas na sua parte superior, o lado direito com duas asas.
As três figuras do motivo menor (figura 9) formam um triângulo: A figura esquerda segura uma coroa, a figura direita uma âncora, a figura central uma cruz vazia, em forma de tau. Acima dessa figura há quatro cabeças com asas o que deve representar um coral angelical. Sentada num arco-íris, essa figura tem, abaixo do seu pé direito, um esqueleto que segura uma lança quebrada em sua mão esquerda4. Já abaixo do seu pé esquerdo há um corpo humano, caído na sua frente, segurando em sua mão esquerda uma fruta, ao redor do seu tronco como uma serpente.
A gravura contém diversos elementos textuais (figura 10). Ao redor, na parte superior e inferior, encontramos um título ou a inscriptio (I1 - I3)5 e uma poesia ou a subscriptio (S1- S3), sempre em holandês, latim e francês. Já o texto na gravura ou a pictura é sempre em latim e se divide entre palavras para identificar as figuras (P2 - P4, P6), a cena (P5) ou a origem da obra (A1 - A3).
Inscriptio: Den stervende mensch (I1), Homo moriens (I2), L´homme mourat (I3)6;
Pictura: 4 Esdras 2 sapiens (P1), Spes (P2), Charitas (P3), Fides (P4)7, Multum e/nim valet / deprecatio // iusti as/sidua (P5)8,Oratio (P6); Wie[rix]9fecit (A1), Ambro[sius] Franc[ken] in[veni]t (A2), Willem van Haecht comp[osuit] e Geofroi van Haecht esculp[sit] (A3)10.
Subscriptio:11Homo qui moriens in Charitate Christi credit / Semetipsum consolat quod cum Christo refulget / Et ab gratia divina non auferetur oratio eius / Exhibemini itaque cum charitate fidem12(S2).
Pela organização trata-se então ainda de um emblema clássico, com seus três elementos constitutivos13. Os emblemas tinham, incialmente, enquanto obras humanistas, a função de envolver de modo ativo o leitor ou a leitora no processo da interpretação e da apropriação e aplicação da sua mensagem para sua vida cotidiana devocional particular. Quanto aos elementos específicos, já falamos das duas representações de corações. Um elemento importante é ainda um cálice com uma cruz (figura 11) na mão esquerda da figura fides, o detalhe que a citação P5 é integrado em um livro abaixo do leito que remete à própria Bíblia (figura 12), que a figura esquerda do motivo menor segura uma coroa (figura 13).
As origens dos elementos e motivos iconográficos
A composição da gravura, assim afirma-se nela (A2), parece ser de Ambrosius Francken, o Velho, (1544-1618) um pintor flamengo conhecido por seguir um estilo maneirista tardio, uma pré-forma do estilo barroco. Apesar de que todos os textos confirmam essa autoria do motivo, não conseguimos identificar o original para compará-lo com a gravura de Wierix.
Mas, sem dúvida, há tanto elementos iconográficos clássicos como surpreendentes. O Cristo ressurreto pisando um esqueleto, uma serpente ou um dragão é um motivo comum. Ainda mais antiga é a imagem de Cristo pisando as cabeças de feras, por exemplo, um leão e uma serpente, como é o caso de um mosaico do século 6 que se encontra na capela do arcebispo em Ravenna. Na respectiva iconografia ocidental Adão e Eva normalmente não aparecem. Em vez disso, são muito presentes na iconografia oriental onde o Ressurreto segura Adão e Eva nos seus punhos para levá-los consigo aos céus. Já em nosso caso (figura 14), trata-se de uma iconografia que representa o Cristo ressurreto como vitorioso sobre a morte (esqueleto) e o pecado no sentido de todos pecados desde o início da criação, ou seja, o pecado original (o papel da serpente e da fruta na queda do ser humano).
O motivo da Charitas (figura 15) também surpreende. Normalmente configura a Charitas uma figura feminina com duas ou três crianças, da mesma idade, mas, de aspectos diferentes para articular que a Charitas cuida até de crianças de outras mães.
Não se trata de algo esporádico, mas, de uma cultura de caridade e de amor no sentido qualitativo que transcende primeiros momentos e que está se desdobrando já que muitas mãos possam atender mais pessoas.
A entrega de uma moeda ou a referência direta à prática de dar esmola faz parte da iconografia clássica da Charitas14. Essa inovação temática explica também a única inclusão de uma referência bíblica na gravura que não é acompanhada por uma palavra ou versículo. A gravura menciona Tobia[s] 4 [7-9], que estabelece uma relação direta acerca da caridade entre seres humanos e da caridade de Deus para com o ser humano15. Na gravura, a Charitas e seus filhos cuidam de um casal de idosos, de uma pessoa com uma deficiência e de uma pessoa pobre, talvez mais jovem, caracterizado pelas poucas roupas rasgadas que recobrem seu corpo. Pão, água e uma moeda, são doações elementares e representam o serviço junto aos mais pobres e miseráveis.
Também chama a atenção a distribuição das três virtudes teológicas na gravura como um todo. A virtude da Spes, junto com a virtude da Gloria16, fazem parte do motivo 3, as virtudes da Charitas e da Fides do motivo 2 e motivo 1, o que dá o destaque para a Charitas e a Fides. Elas relacionam então os três motivos. A Spes aponta para Cristo, o que lembra 1 Timoteo 1.117. Os atributos hagiográficos das virtudes cardeais, variam, às vezes. Numa gravura flamenga das três virtudes teologais de 1562, apresentada em seguida (figura 20), permanecem os atributos da Charitas e da Spes, mas, a Fides segura nessa gravura somente uma cruz. Da mesma forma, especialmente na iconografia católica, é conhecida a representação da Fides somente com um cálice nas suas mãos, como evidencia ainda a pintura de Julius Hübner (figura 21) de 1860.
Nessa pintura sob influência do estilo nazareno, que sua fez ecoava a arte renascentista, a Charitas segura um coração, a Fides um cálice18 e a esperança, em mais uma variação, dobra as mãos em oração. Wierix combina, então, duas linhas hagiográficas relacionadas à Fides e retrata tanto o cálice como a cruz.
Um último comentário em relação ao fato que a Charitas é representada com seus seios abertos, acima da blusa, uma iconografia que na mesma época também é usada para representar prostitutas de tavernas. Entretanto, a semelhança se explica por um terceiro elemento: as duas iconografias compartilham a mesma origem, a representação alegórica da Vénus (figura 22). Nessa gravura, inclusive, a Vénus segura nas suas mãos um coração com chamas. Essa gravura do alemão Albrecht Altdorfer (1480-1538) inspirou-se em uma pintura do italiano Peregrino da Cesena (1490-1520). Já a pintura do artista flamengo Vincent Selaer (1490-1564) retrata a Charitas amamentando diversas crianças (figura 23), que sua vez entigra o elemento central do motivo da Maria lactans, como gesto de afeto e cuidado.19 Trata-se, então de uma iconografia bem estabelecida já no século 16, como uma das formas - não a única - de retratar a Charitas como cuidadosa e afetiva20.
O motivo do coração com asas (figuras 8 e 24) segue uma antiga tradição pré-cristã e tem seu locus classicus no topos da alma com asas em Platão. Segundo ele, uma alma sem asas está presa no corpo; uma alma que ganha asas tem o potencial te chegar nas alturas o no lugar do divino, porque as asas participam do divino. O motivo era também popular na iconografia protestante, mas, representava nela menos a alma humana do que a totalidade do ser humano.
Assim aparece em livros com emblemas luteranos da época (figura 25), como nos Emblemas sacras de Daniel Cramer21. Cramer compõe um motivo que combina o coração com asas com uma representação do demoníaco o que representa no total o desejo de se refugiar para Deus do mal. Essa interpretação sugere também a citação do Salmo 143,10 - segundo as bíblias atuais, 143,9 - que acompanha essa pictura: “Livra-me, Senhor, dos meus inimigos; pois em ti é que me refúgio”. Os irmãos Wierix, porém, seguiram a compreensão iconografia clássica católica do coração com asas numa compreensão neoplatónica, tão característica para o catolicismo da época22.
Além disso, na gravura, além da figura da Gloria, a Oratio é acrescida às três virtudes teologais dando a ela, pelo formato, um peso parecido. Isso sua vez fortalece a argumentação central da gravura, também expressa pela citação da carta de Tiago e a linguagem gestual do homo moriens: a convicção, expressa iconograficamente, que a oração do justo será ouvida por Deus. Enquanto a Oratio envia a alma com asas para os céus, a Fides aponta para o coração com chamas na mão da Charitas.
Aspectos iconológicos da gravura
A gravura foi feita não depois de 1619, o ano do falecimento de Hieronymus Wierix23. Isso quer dizer que já tinham se passado cem anos desde a reforma protestante (1517) e um meio século desde o Concílio de Trento (1545-1563). 1618 é um ano importante na história das confissões e da Europa, porque marca também o início da[s] Guerra[s] dos Trinta Anos. Hieronymus Wierix trabalhava na cidade de Antuérpia desde 1570 e nós cremos que a obra foi executada durante a Trégua dos Doze Anos, por evidências que nos unimos em seguida. Mas, falamos antes um pouco mais sobre os irmãos Wierix. Apesar de grande parte de sua obra se dedicar à cultura visual da reforma católica, eles não eram exatamente católicos exemplares. Na verdade, os irmãos tinham a fama de trabalhar um terço da semana para depois gastar tudo nas tavernas, o que levou a um desgaste com seu primeiro editor, o famoso Christophe Plantin. Em consequência, ao redor de 1570, ele simplesmente não quis mais contratá-los. “Os irmãos Wierix eram conhecidos como `os melhores gravadores de seu tempo´. No entanto, há muitas reclamações de editores sobre o estilo de vida duvidoso dos irmãos e sua falta de confiabilidade” (Cf. MAUQUOY-HENDRICKX, 1978 apudSORS, 2015, p. 205). Depois de 1585, os jesuítas pediram a Plantin, por diversas vezes, de procurá-los. Assim, solicitou em 1587 a produção de 153 gravuras para a famosa Evangelicae Historiae Imagines und Adnotationes et Meditationes com um texto de Hieronymus Natalis, ou Jerónimo Nadal, quem seguia na liderança dos Jesuítas depois de Loyola. Os irmãos Wierix aceitaram e, para a surpresa de alguns, de fato terminaram a tarefa em 1593 (SORS, 2015, p. 213-214). Retomamos esse “contexto” na parte final da nossa intepretação iconológica da obra. A relação entre os irmãos Wierix e os Jesuítas era então focado, por parte dos jesuítas, na qualidade da sua obra acompanhada por uma certa generosidade, assim parece-nos, de ignorar sua fama de uma conduta de vida mais instável e o fato que tinham sidos “luteranos”.
O título encontrado na obra - Homo moriens - não diz explicitamente o que autores posteriores expressaram com seus títulos dados a obra: A boa morte (MARTINS, 1997, p. 62), Die Kunst des guten Sterbens (VIRTUELLES KUPFERSTICH-KABINETT, 2022) que quer dizer A arte de morrer bem24 e a Alegoria da boa morte (RIJKMUSEUM). Quando olhamos, porém, para o conjunto de inscriptio, pictura e subscriptio essas três adaptações se justificam. Se a inscriptio somente foca no tema de uma pessoa moribunda, a pictura estabelece uma linguagem visual fortemente esperançosa. Ao redor da cama, em imediata proximidade, assistem a fides e a oratio um homem de idade. A expressão fácil dele é de cansaço, mas a pessoa parece lúcida e bem cuidada, o que sinaliza a longa e bem cuidada barba. Seus olhos abertos podem enxergar diversos elementos organizados ao seu redor, do lado da direita a esquerda: a Spes, personificação da esperança, com o atributo da âncora; o cálice com a cruz que a fides segura nas suas mãos, sinal da comunhão com Cristo; o próprio Cristo ressurreto, triunfando sobre a morte e o pecado original; a Gloria, entregando para ele a corão da vitória ou a Fides seguindo o seu braço e a sua mão apontando para um coração em chamas nas mãos da Charitas (figura 26).
Pela Fides o ser humano no leito, impossibilitado de grandes ações ou atividades, é lembrado daquilo que ele fez na durante a sua vida. A mão da Fides aponta para o coração em chamas, a representação da Charitas, e a representação da Glória. Martins identifica aqui, em primeiro lugar, um elemento tipicamente contrarreformista:
A presença da virtude da Caridade era particularmente reconfortante para o moribundo, recordando-lhe todas as boas obras que praticara em vida, constituindo penhor seguro de salvação. Um tema tipicamente contrarreformista em que à justificação pela fé se contrapunha o complemento do valor salvífico das boas obras25.
O que tecnicamente está correto, o discurso pós-tridentino é um discurso a resposta reforma protestante, parece-nos, porém, não ser a ênfase dessa gravura. Para nós, a gravura não reproduz em primeiro lugar as chaves da controvérsia doutrinária como um marco dos conflitos confessionais modernos. Apresentamos, em seguida, as nossas razões para isso. As mãos do homem no leito são dobradas em oração e se unem às mãos dobradas da personificação da reza, a Oratio, como também de uma pequena figura que nós vemos somente por trás. Iconologicamente falando, podemos seguir aqui duas direções. Primeiro trata-se de uma sinalização de cuidado para com a pessoa no leito. O homem não ora sozinho, outros oram com ele e para ele. Segundo, considerando que a figura da Oratio é uma personificação de uma virtude, da mesma forma como a Spes, a Fides e a Charitas, fala-se aqui da própria pessoa. Quanto a Oratio quer isso dizer: a oração do homem no leito, conta com o livre acesso a Cristo, já que a sua alma “tem asas” e se movo numa linha direita para os céus. Essa compreensão também fortalece a referência bíblica, localizada abaixo do leito. Ele serve como uma espécie de suscriptio desse motivo. A reza do moribundo é então identifica como a súplica “do justo”. Essa justiça, Martins tem razão, é aqui confirmada dentro do padrão católico, onde a justiça do justo se revela por meio das suas obras de misericórdia. Entretanto, na constelação iconográfica da gravura, parece mais uma memória que traz conforto, do que uma cobrança26 ou uma orgulhosa constatação dos próprios méritos acumulados. A mesma linha de um tom sensato segue Tobias quando afirma “sê misericordioso segundo as tuas posses”, ou seja, o projeto católico é apresentado não em tom polêmico nem em tom de ameaça, mas, próximo àquilo que a devotio moderna entendia como imitatio Christi. Em tudo, o conjunto iconográfico da cena lembra mais da conversa entre Jesus e seus seguidores segundo Mateus 25,34-36, onde ao convite “Venham, benditos de meu Pai! Venham herdar o Reino” segue a justificativa “Porque tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; eu era forasteiro, e vocês me hospedaram; eu estava nu, e vocês me vestiram; enfermo, e me visitaram; preso, e foram me ver”. Isso é respondida pelos “justos”, assim o texto, pela pergunta sincera: "Quando foi...?”. E a Fides indica: “sempre que o fizeram a um destes meus pequeninos irmãos, foi a mim que o fizeram [...]” (Mt 25,40). Essa interpretação parece-nos também sustentar a subscriptio. “Homo qui moriens in Charitate Christi credit / Semetipsum consolat quod cum Christo refulget / Et ab gratia divina non auferetur oratio eius / Exhibemini itaque cum charitate fidem”27. Cristo como refúgio e graça de Deus formam o centro dessa poesia em quatro linhas, a fé no amor ou na caridade de Cristo e a fé que virá a público pela caridade descrevem os seus contornos, ou seja, articula-se tanto a fides quae [creditur] - a fé no amor de Cristo - como a fides qua creditur - uma fé que se expressa pelo amor para com o próximo.
Um detalhe já visualizado, mas, não explicitamente mencionado, parece-nos até afirmar um acento cristocêntrico em um lugar não esperado: a moeda de esmola dada pela Charitas contém a monograma de Cristo formado pelas letras gregas chi e rô. A Charitas, então, entrega Cristo. Ser caritativo passa Cristo adiante ou passa adiante a Charitate Christi. Se for isso correto, trata-se de um acento que desafia a ideia que ser caritativo representa uma moeda de troca para garantir o amor de Cristo. Em vez disso, ser caritativo é uma extensão do ser caritativo de Cristo28.
Em tudo falta nessa iconografia um tom explicitamente polêmico até apologético: tanto que faltam temas clássicos afirmativos, como o da igreja como sacramento e única mediadora da salvação, o da importância das hierarquias sacerdotais para a correta administração desse mistério ou o do purgatório como primeira etapa de purificação antes de poder entrar no paraíso. Diferentemente, o texto parece querer assegurar: “Hoje você estará comigo no paraíso” (Lc 23,43). Assim suba o coração com asas e passa as nuvens escuras que não conseguem mantê-lo distante da glória dos céus. Concluímos que as evidências iconográficas apontam para uma fala da gravura para dentro da confissão, não para fora; no centro da composição é quem conta com as suas últimas semanas, senão, seus últimos dias, e a promoção de uma devoção preparatória para esse momento.
Com isso, surge a pergunta da competência cultural do fiel “comum” de ler essa iconografia e entender a sua mensagem confortante. A ampla distribuição dessas gravuras nos faz acreditar em sua popularidade. A estrutura de um emblema com linguagem visual renascentista era de fato na época conhecimento comum, tanto entre católicos como entre protestantes, e os motivos e seus elementos eram pré-estabelecidos durante séculos e do conhecimento, no mínimo, das populações urbanas, mas, certamente também das pessoas que viviam ao redor de monastérios. O uso das três línguas na inscriptio e na subscriptio e uso pontual do latim na pictura restringe o uso a um grupo escolarizado, com passagem por uma escola de latim. Essas escolas eram acessíveis no século 16 e 17 às famílias urbanas burguesas e prepararam para a vida universitária o que sua vez implicaria um uso exclusivo masculino já que meninas não tinham acesso a essas escolas. Entretanto, meninas tinham acesso a essa formação em monastérios das ordens segundas. Por outro lado, sabemos que os Países Baixos, em comparação com o restante da Europa, tinham no século 16 e 17 o maior indicie de alfabetização - não em latim -, inclusive das classes mais humildes. Ou seja, o acesso a leitura era muito comum e essa capacidade se juntou a competência de leituras iconográficas como competência cultural.
Cruzar o tom não polêmico da gravura com a vida e as convicções dos irmãos Wierix ou do desenhista Ambrosius Francken do seu modelo traz alguns dados interessantes. Os três nasceram nos anos 1544, 1549 e 1553, ou seja, eles conviveram com importantes dados da cidade de Antuérpia quanto a sua confessionalidade: o brutal saque da cidade em 1576 com mais de 7.000 cidadãos massacrados, a eleição de uma câmara municipal calvinista em 1577, a ascensão da cidade para a sede e o centro da revolta holandesa e, finalmente, sua nova redenção aos exércitos católicos em 1585. Francken se tornou membro da guilda dos pintores em 1573, ou seja, na fase protestante. De Hieronymus Wierix se sabe que as suas primeiras gravuras depois de 1577 reproduzem obras de Willem van Haecht, o Velho (1535-1585), um defensor da causa calvinista, e dos irmãos Wierix se lembra que eram em 1585 registrados pelos conquistadores da cidade como luteranos29. Em 1585, porém, não se repetiu 1576. Os espanhóis mudaram a estratégia em relação à população da cidade, exigindo uma conversão para o catolicismo ou a saída no prazo de dois anos. Enquanto van Haecht deixou a cidade, os irmãos Wierix e o pintor Francken ficaram, converteram-se para o catolicismo e serviram com a sua arte e suas habilidades, desde então, à propagação da reforma católica. Como a crítica de instabilidade moral dos irmãos Wierix já nasce com Plantin antes de 1570, não pode ser tratada como um comportamento anárquico anticatólico, se não antirreligioso em geral, incluindo os calvinistas. Vale-a pena considerar também que depois de 1600 se desenvolve, paralelamente, um endurecimento das relações internas no calvinismo holandês. Assim aponta Evelyne Verheegen:
Como um dos pontos de virada na guerra (religiosa) que também ocorreu dentro das fronteiras da República, deve-se falar fa sentença de morte e a execução por decapitação do capaz, popular e tolerante [...] Johan van Oldenbarnevelt em 1619. Isso endureceu a batalha entre o protestante preciso (reformado) e flexível (remonstrantes). Livros foram escritos sobre a teoria da predestinação e os teólogos travaram uma 'batalha' sobre como Deus autonomamente dispõe da salvação na morte30.
Essa radicalização interna do calvinsismo foi consagrado no Sínodo de Dorte (1618-1619), mas, se desenvolveu antes. Com outras palavras: a fase não bélica entre o catolicismo e calvinismo nos Países Baixos foi acompanhada por uma fase do endurecimento interno do próprio calvinismo e a fração mais rígida, isso sabiam também os irmãos Wierix, era muito menos a fim ao uso devocional da arte religiosa, porém, não da arte como meio de discurso polémico31. Parece, ao final, que estes artistas altamente qualificados, pela experiência dos conflitos anteriores com o calvinismo e do interesse explicito insistente dos jesuítas, fizeram, em primeiro lugar, uma opção professional. Um detalhe em uma das obras anteriores, mas, ainda sim em proximidade cronológica, talvez articule esse “entre” as confissões deles. Assim aparecem na gravura De brede en schmalle weg de 1600 (figura 28) de Hieronymus Wierix duas figuras no caminho estreito com chapéus nas cabeças em forma de cones (figura 29). Trata-se de um detalhe que escapa do olhar rápido, mas, não de quem aplica o método de Panofsky com disciplina. Esses chapéus eram usados em algumas cidades da Espanha para identificar judeus e protestantes em fase de penitência e conversão. Não temos como dizer se isso foi a prática também na Antuérpia ou somente do conhecimento geral e não podemos dizer o que esse detalhe de fato significa. Como toda imagem, esse motivo parcial também é polissêmico, e não vem acompanhando por uma passagem textual. Esse minúsculo detalhe pode sinalizar então diversas coisas: ou, considerando somente os chapéus, uma descrição ou referência simbólica do tratamento de exprotestantes em público, talvez como denúncia camuflada; ou, considerando a sua localização no caminho estreito, uma afirmação que esse grupo também anda ou pode andar no caminho certo, independente da sua origem confessional. Isso pode ser uma mensagem ou do criador e exluterano Hieronymus Wierix, ou pode fazer parte do programa iconográfico jesuíta da época que não somente encomendaram, mas, certamente também avaliaram a gravura antes de colocá-la em circulação. A gravura não responde essas perguntas, mas, a existência do motivo evidencia a presença do tema das diferentes confissões na obra dos irmãos Wierix
Fonte: Museu Boimans Van Beuningen. Número de inventário: BdH 3628 Disponível em: https://resolver.kb.nl/resolve?urn=urn:gvn:BVB01:VOORLOPIG25PK
Mencionamos, incialmente, que o seguro terminus ad quem da obra são os anos 1618 ou 1619 e acrescemos como um possível terminus post quem o ano 1609. 1618 era o início da Guerra dos Trinta Anos, 1609 o início da trégua dos 12 anos. Se isso for o caso, a criação da gravura ocorreu durante um breve período de mais paz, mais tranquilidade e mais prosperidade, no mínimo, de um tipo de status quo. Nessas épocas, a religião pode também olhar mais para dentro, inclusive, com o objetivo de edificar seus pares. Sors32 observa além disso, que a Feira de Livros de Frankfurt, Alemanha, um lugar onde se vendia mais do que 40% dos livros e cartazes avulsos holandeses33, era depois de 1609 novamente acessível para livros da Antuérpia. Pode ter sido, então, também no interesse dos editores, visando o mercado dos livros religiosos, investir em imagens que procuram agradar seu grupo de foco, sem desagradar de forma explícita os outros34.
Fica, então, uma tripla impressão quanto às caraterísticas essencialmente devocionais e não apologéticas do texto: primeiro, a janela de tempo da criação aponta um momento de esgotamento, da noção da relativa impossibilidade de resolver o conflito religioso de forma bélica; segundo, estava-se entrando num primeiro momento de consolidação da nova geografia religiosa europeia e, terceiro, houve interesses de mercado - tanto dos editores como dos artistas - de não ofender potenciais compradores/as. O fato que esse texto devocional é também extraordinariamente pastoral no sentido de omitir qualquer mecanismo de angustiar seu observador, mas, de trabalhar por uma pedagogia de uma afirmação positiva, isso somente explica em parte. Certamente agradou isso quem quis vender a gravura e quem já passou por uma mudança da confissão por obrigação. Tecnicamente falando, trata-se de “um tema tipicamente contrarreformista”. Mas, parece-nos que a intencionalidade dessa obra seria descrita melhor de forma positiva como uma expressão prepositiva da reforma católica, com outras palavras, o discurso visual descreve uma posição para gerar segurança e certeza da fé dentro da narrativa católica pós-tridentina.
Considerações finais
Comprova-se novamente a importância de olhar para uma imagem com bastante atenção e que para isso o método iconológico de Panofsky continua oferecendo técnicas preciosas. Além disso, parece-nos importante acompanhar a composição visual proposta pela gravura. Trata-se da estrutura de um emblema que inicia com a inscriptio abrindo uma conversa com a pictura e a subsriptio. Parece-nos que nesse caminho ocorrem acentuações importantes. A inscriptio apresenta ainda o tema um tanto genérico, apesar de que o mais exato homo bene moriens era na época já conhecida e estava à disposição. A pictura introduz, num primeiro olhar, a Charitas e a Fides como do mesmo tamanho no processo do acesso à salvação, até que a Charitas é referenciada pela Fides como elemento que deve gerar fé e a certeza da fé. Referências como à súplica do justo, à esmola que se relaciona com a caridade do próprio Cristo e à subscriptio que fala do refúgio em Cristo, do papel central da graça e Deus, da fé em Cristo e dá fé que atua pelo amor (Gl 5,6) - exhibemini itaque segue a menção da graça de Deus - distanciam essa imagem de representações da doutrina da justificação pelas obras como conditio sine qua non. Em vez disso, lembra a Fides da Charitas do próprio moribundo e da sua fé pelo qual já tinha atuado pelo amor. O foco não está, quanto a sua vida, em acertos ou correções ainda necessárias, mas, na afirmação de uma certeza que gera paz, já que “Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo”. Por causa disso julgamos a obra menos comprometida com um posicionamento contra a reforma protestante e mais a favor da reforma católica, um direcionamento da linguagem visual para o campo do cuidado pastoral que nós consideramos mais provável em tempos mais pacíficos como durante a Trégua dos Doze Anos.
Uma pergunta ainda aberta e que necessita mais pesquisas se refere ao uso dessa e de outras gravuras do mesmo gênero no cotidiano devocional no âmbito católico. Isso não faz parte do método iconológico de Panofsky, mas, é de interesse. A gravura não faz parte de um Andachtsbuch35, um livro devocional, mas, trata-se de uma gravura devocional como folha única ou avulsa, produzida em número consideráveis, como tontas outras. O que se sabe é que o uso desse tipo de literatura ou do material avulso era muito comum, tanto entre católicos como entre protestantes, com centenas de publicações nos séculos 16 e 17, inclusive com títulos parecidos, como o de Pia Desideria36. A prática de organizar a sua vida devocional com este tipo de material era então, muito comum, supomos com uma necessidade especial por parte do catolicismo, já que não tinha o costume de permitir aos leigos e às leigas o acesso direto ao texto bíblico. Esse costume requeria a capacidade de leitura e, quanto ao uso de imagens, de competências culturais iconográficas e iconológicas. O que podemos ver, depois nos séculos 18 e em especial no século 19, como cartazes com iconografias devocionais claramente alcançaram as classes mais humildes, tanto nos territórios católicos como protestantes, acompanhado com uma única mudança: o abandono do latim e o uso das linguagens nacionais. Esse fenômeno já inicia no século 16 com edições bilíngues até quadrilíngues de livros devocionais que então ainda mantém o latim, mas, não mais dependem dele unilateralmente. A nossa gravura é parte dessa tradição, como o uso de três línguas na inscriptio e na subscriptio documenta.